quinta-feira, 12 de janeiro de 2012
O EIXO, de Marcelo Rubem Paiva
Suas mãos embrulhadas em luvas de borracha limpam obsessivamente todos os cantos do banheiro. Ele passa escova na privada numa velocidade que deixaria qualquer observador tonto.
Na sala, esfrega panos nos vidros. São limpos, como se tivessem acabado de sair da fábrica, e a cidade fosse a menos poluída do mundo.
Passa aspirador. Espanador nos livros. Organiza as almofadas do sofá. Lava a louça e as enxuga com flanela.
É uma faxina completa, rito diário de quem trabalha em casa, vive só e não consegue organizar os pensamentos se um grão de poeira estiver no meio do caminho.
Lava as mãos gastando dez minutos e meio sabonete. E ainda as esfrega com álcool gel antisséptico.
O interfone toca. Ele atende e manda subir. Livra-se do avental, dá uma ajeitada no cabelo e coloca um jazzinho neutro, nada experimental, nem bebop, nem fusion.
Toca a campainha. Ele abre. Ela entra aflita, como sempre.
"Parei na vaga de idoso que tem na frente do seu prédio. Não tinha vagas", ela diz.
Beijam-se burocraticamente com a porta ainda aberta. Ele tranca. Ela joga as coisas pelo caminho. Ele recolhe e as coloca num cabideiro. Ela despeja a bolsa sobre o sofá e encontra um cigarro amassado no fundo. Ele prontamente pega um isqueiro, acende e fica segurando o cinzeiro, para quando ela precisar.
"Ele deu de controlar as minhas contas. Examina cada ligação do celular e reclama se tem alguma longa demais. 'Usa o Skype.' Reclama quando chega uma multa, critica o meu jeito de dirigir, fazer baliza, meus caminhos. 'Esta rua é a mais congestionada. Vai pela faixa da direita'. Imagina quando souber que voltei a fumar?"
Ela dá três tragadas rápidas. Enfim o agarra e o empurra até o sofá. Pula em cima dele, já sentado. Apaga o cigarro. Abre a barguilha dele, levanta a saia e se encaixa. Tira anel, pulseiras e colares. Joga-os displicentemente na mesa de centro. E fala, enquanto transam no sofá mesmo.
"Não suporto mais aquela arrogância, me examina quando saio, me avalia quando cozinho, testa minha inteligência, perguntando: 'Como é mesmo o nome do presidente da ONU?' Vivo tensa, como numa aula em que o professor faz prova oral. Ai, como é bom... Todo metódico para dormir, acordar, é uma pedra que tem respostas para tudo, nunca chora em velórios, sente-se superior a todos. Ai, assim eu gozo... Sempre me aparece com novidades: 'Olha esta gravação rara de Callas. Viu o novo aplicativo que instalei? Leu o blog do fulano?' Detesto ópera, detesto telejornais, detesto a ONU, a OEA, blogs, e ele insiste: 'Viu o que o fulano escreveu? Você concorda com ele?' Ai, para, não para, ai, gostoso, gostoso, gostoso, ai..."
Ela goza. Joga a cabeça sobre o ombro dele. Respira fundo. Sussurra no ouvido dele:
"Delícia..."
"Eu estava com saudades", ele diz.
"É?"
"É."
"Eu também."
"Você também?"
"É."
"Estava nada."
"Claro que estava. Não deu pra notar?"
"É, deu."
Sorriem. Beijam-se. Ela se levanta rapidamente, ajeita a saia e vai ao banheiro. Pergunta lá de dentro:
"Quer me ver quarta? Se não der, mande uma mensagem. Anônima. Que a aula foi cancelada."
Volta ajeitando os cabelos. Recoloca anel e pulseiras. Checa o celular.
"Por que você sempre tira a aliança?", ele pergunta.
"Eu tiro, é? Não tinha reparado..."
"Você namoraria comigo?"
"Está querendo namorar agora?"
"Tenho pensado nisso."
"O que aconteceu com o solteirão mais convicto da cidade?"
"Se cansou."
"Que nada. Você só quer se aproveitar de mim."
"Quero cuidar de você."
"Você não me aguentaria."
"Não?"
"Está falando isso só pra me agradar."
"Fica mais. Vamos passar a tarde juntos."
"Você é tão doce. Me sinto bem aqui. Me sinto leve..."
Ela se senta de novo no colo dele. Abraça. Volta a se excitar. Tira anel e pulseiras, joga-os na mesa de centro. Enquanto ela fala, transam novamente:
"Mas não posso! Ele é importante pra mim, é o meu eixo. Existem aqueles momentos em que ele se ausenta, está na minha frente, mas não está, parece viajar pra Marte, e tudo em sua volta ganha um tom leitoso. Mas eu gosto dele. Vejo seu olhar me atravessar. Isso dura dias, semanas, aquela quietude dos pensamentos, e sei lá se sonha ou se tem pesadelos, o mistério do homem que vive comigo. Eu amo ele. Ai, que gostoso... Minha vocação é tratar, mas como se não se vê a doença? Quero desvendar ele. Quero parar o mundo para ele respirar um pouco. Quero ele pra mim! Ai... O que eu estava dizendo? Ele é meu! Meu homem, meu amor. Ai, tá gostoso... Ai, gostoso, gostoso, gostoso..."
E goza novamente. Aliviada. Esgotada. Beijam-se. De repente, fica aflita e se ergue.
"Multam aqui na sua rua?"
Recoloca anel, pulseiras. Vai para o banheiro. Ele continua sentado.
"Você é tão gostoso. Que música é essa?"
Ele não responde. Ela volta, pega a sua bolsa, checa novamente o celular. Dá um beijo rápido de despedida.
"Não esquece os colares", ele diz.
Ela sorri e os joga na bolsa. Abre a porta, chama o elevador e pergunta:
"Então, quarta?"
Nunca mais se viram. Não respondeu às mensagens dele, aos e-mails, não ligou. A palavra "namorar" contaminou a relação de anos. Também, pedir uma mulher casada em namoro...
(OESP; 22.10.2011)
(Ilustração: Raúl Villalaba – danza de otoño)
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