terça-feira, 10 de agosto de 2010
UM SÉCULO, de Anônimo ( Editorial de O Estado de São Paulo de 1901)*
Hontem, ao dobre da meia-noite, morreu o seculo XIX. São do seculo XX as primeiras claridades e os primeiros rumores do dia de hoje.
Um dia perfeitamente como os outros. No mundo exterior, todas as coisas se nos apresentam com o mesmo aspecto, que hontem tinham, e na mesma ordem, em que hontem as deixámos: o mesmo sol no mesmo céo, sob o mesmo céo o mesmo espaço, sob o mesmo espaço a mesma terra. Tambem não há mudança alguma no mundo interior: erguemo-nos com as mesmas idéas, os mesmos sentimentos, os mesmos cuidados e as mesmas esperanças com que nos deitámos...
Entretanto, não ha ninguem que, por momentos ao menos, não se deixe illudir e não julgue que é real a imaginaria divisão do tempo imposta pelo calendario que nos rege: “deve haver um abysmo entre a noite de hontem e a manhan de hoje!” E, ao abrir os olhos do corpo e os do espirito, neste 1.º de janeiro, que só de cem em cem annos se repete, quem se libertará desse instinctivo movimento de amargo espanto que nos assalta quando nos falta, quando não vemos o que esperavamos?...
Entra nisso muito da immensa e inexgottavel vaidade humana, que por qualquer ninharia se enfeita, se alvoroça e incha. Poucas gerações assistem á passagem de um seculo para outro seculo... E’ espectaculo de predestinados... E aqui estamos nós, impando, quasi a estoirar de soberba, revestindo a nudez diaphana de uma ficção com as roupagens mais vistosas, que a nossa phantasia inflammada póde sonhar, e assistindo, no auge do orgulho e do desvanecimento, a um facto para o qual não concorreu a minima quantidade do nosso esforço e que, se existe, existe tanto para nós quanto para o infimo vérme da creação!
Façamos, todavia, como toda a gente. O dia de hoje é da maxima solennidade. A terra como que suspende, por um instante, o seu giro surdo e invisivel, mas real e eterno, entre as myriades sem conta dos astros flammejantes. A’ parada do planeta corresponde a dos que o habitam: a humanidade como que suspende tambem a sua marcha através das edades. Ashavero tem emfim mais um minuto de repouso.
Aproveitemol-o, e, como é de praxe até quando um misero anno expira e outro nasce, tentemos dar um grande balanço na nossa vida. Qual é o legado do seculo que morreu ao dobre da meia-noite de hontem? Que nos annunciam as primeiras claridades e os primeiros rumores desta madrugada? O seculo XIX concluiu alguma tarefa? Como poderemos definil-a? O seculo XX começa com algum programma? Se começa, como o havemos de lêr? A humanidade progride? Não?...
Perguntas formidaveis. Tão altas e tão profundas que não ahi sabio tão sabio que as possa resolver satisfactoriamente, seja qual fôr a sua força de synthetisar. Tão complexas que um erudito bem erudito precisaria de todos os ponderosos volumes de uma encyclopédia só para destrinçal-as e classifical-as.
Não commetteremos a insania de nos medirmos peito a peito com ellas nesta pagina leve e ephemera de jornal. A penna de um jornalista é alavanca ridiculamente fragil para remover montanhas desta estatura e foice demasiadamente céga para desbastar florestas tão cerradas e exuberantes. Contentes ficaremos se conseguirmos despertar no espírito de quem nos lê a vontade de saber mais do que sabemos.
E a primeira difficuldade com que tropeçamos está no calendario que nos rege. A bem dizer, o seculo XIX não começou em 1 de janeiro de 1801. Quem tiver de fixar a sua origem mais proxima tem de recuar, queira ou não queira, até 1789. Bem sabemos que já caiu em desuso a paixão romantica por aquella data, grande, luminosa, inextinguivel.
Hoje, a moda espalhada no mundo pelo forte egoismo dos inglezes e dos allemães, e pelo snobismo elegante e morbido dos francezes, manda odiar 93 e desdenhar 89. Porém, nós não nos curvamos á moda, ainda que não desconheçamos quanto a Allemanha e a Inglaterra contribuiram para aquelle acontecimento culminante dos tempos modernos. E’ certo que a nativa e indomavel independencia do pensamento allemão, e que a energia do bom senso e da dignidade ingleza, já se tinham revoltado efficazmente contra o claro despotismo material e moral em que se havia resolvido e concretisado o sombrio e esparso feudalismo da Edade Média. Mas as liberdades politicas da Inglaterra ainda não tinham atravessado o canal da Mancha, senão para se reproduzirem, transformadas e ainda vacillantes, na America do Norte, e o pensamento da Allemanha ainda não irradiara, com a sua altivez, nem mesmo para os paizes que lhe ficavam mais proximos. Foi á quéda da Bastilha (deixem passar sem protestos mais esta superstição) que o odioso mundo de outr’rora tremeu e cambaleou nos seus alicerces seculares. (E realmente é bom não protestar, porque se fôrmos andando para traz, de protesto em protesto, nem na Roma antiga nos deteremos. A civilisação grega é anterior á romana e está demonstrado que a historia é uma cadêa de factos, cujos fusis de bronze imperecivel se prendem logicamente uns aos outros). Detenhamo-nos, pois, em 1789, e saudemos nesse anno para sempre memoravel a fonte mais evidente e mais abundante dos males e dos bens, que o seculo XIX nos trouxe e nos deixou.
Mais bens do que males? Mais males do que bens ?
Em 1801, a America iniciava apenas a sua existencia de continente livre com a recente victoria dos bravos soldados de Washington. O resto vivia sob o jugo dos hespanhóes e dos portuguezes. A Asia era um vasto e longinquo deposito de mercadorias preciosas, e pouco mais. Sabia-se vagamente que, ao norte, havia monotonas solidões de gêlo e que, no centro e ao sul, por traz de enormes muralhas, formigavam cidades de gente feia e immunda, sob pavilhões e minaretes de perfil bizarro. Da Africa conhecia-se o Egypto, e a Oceania perpassava, raras vezes, pela imaginação dos estudiosos como um enxame de ilhas sem valor, quasi inaccessiveis.
Em 1801, o universo era a Europa – e a Europa, cujo céo de fogo e fumo repercutia em todos os horisontes o grito dos soldados francezes fascinados pela estrella de Bonaparte, a Europa era – a guerra. Apenas a Inglaterra, isolada e agachada em sua ilha, protegida pelo seu mar e superiormente dirigida pelo genio dos seus estadistas, apenas a Inglaterra ia pouco a pouco se enchendo de dinheiro, que as mil sanguesugas do seu commercio paciente e habilmente extraiam dos mais distantes reconcavos dos mares sem termo.
Em 1900, que esplendida e indescriptivel transformação !
Hoje, póde-se dizer, não há terra americana presa como escrava á exploração insaciavel de metropole européa. As colonias hespanholas e a portugueza seguiram logo o exemplo dos seus irmãos do norte e constituiram-se tambem em nações autonomas e soberanas. Os desertos povoaram-se, as mattas abateram-se, as terras incultas cultivaram-se. Os Estados-Unidos tomaram, como que por encanto, proporções colossaes e irromperam, fortes entre os fortes, em meio das potencias do velho mundo assombrado. Mais para cá, olhando para o Pacifico, apertado numa nesga de terra ingrata entre os Andes e a praia, o Chile cresce e prospéra. Nas margens do Prata, flôr pomposa de civilisação apurada, surge a deslumbrante Buenos-Aires. A’ beira do Atlantico, crescemos e prosperamos nós, que seremos amanhan cem milhões de boccas a falar uma lingua, na Europa por tão pouca gente falada que já nem quasi se contava entre as linguas vivas. E governa-nos, sem excepção, a Republica, que é de todas as fórmas de governo até hoje adoptadas certamente a menos imperfeita.
Na Asia, a India tenta emancipar-se da Inglaterra; o Japão educa-se, instrue-se, constitucionalisa-se, arma-se até os dentes, adquire de assalto um logar de honra entre os povos directores; a gente innumeravel da China, até ha pouco inoffensiva e desprezivel, converte-se num sério perigo para a civilisação occidental, e a infatigavel engenharia russa vae apressadamente riscando, a parallelas de aço, as mudas e desoladas planicies brancas da Siberia.
Cem exploradores heroicos, noutras tantas expedições felizes, desvendam afinal o mysterio impenetravel dos sertões africanos. Os leões, os elephantes, os hypopotamos descuidados batem em retirada. As tribus de negros boçaes resistem, mas os brancos esmagam-nas e anniquilam-nas. Partilha-se o continente abandonado. Injecta-lhe o commercio um novo sangue, são e vigoroso. Ao norte, os abyssinios rejeitam para o Mediterraneo uma invasão armada da Italia, e, ao sul, as mãos herculeas da Inglaterra ainda não puderam asphixiar as republicas dos boers.
Na Oceania desenvolve-se tanto a Australia que os titulos da sua divida são por muito tempo os mais bem cotados na bolsa de Londres, e a lucta desesperada dos filippinos, primeiro contra os hespanhoes e agóra contra os americanos, vem encher-nos a todos de surpreza, porque ninguem imaginava que aquillo fôsse possivel em paragens tão distantes e tão fóra do circulo do nosso estudo e da nossa observação de todos os dias.
E a Europa ? Em 1815, os francezes são definitivamente vencidos. A aguia, que os conduzia, ferida de morte em Waterloo, vae poisar para sempre no rochedo escalvado e solitario de Santa Helena. Desopprimidas as nações corrigem as suas fronteiras – como numa cidade, que um tufão varreu e assolou, os proprietarios restauram as suas casas, quando o céo se faz claro e o vento cessa de rugir. Depois, o germem liberal e egualitario, que veiu da França na violencia do enxurro das invasões, recomeça a sua incessante evolução. Ao mesmo tempo todo o continente se contamina do espirito pratico dos inglezes. Povos abatidos e subjugados levantam a cerviz e libertam-se, outros succumbem no esforço da reacção suprema, mas ha melhora geral na condição do povo, porque os privilegios se debilitam e os despotismos ou se amenisam ou desapparecem, excepto na Turquia, cujo sultão ainda não quiz abrir as janellas do seu imperio entorpecido pelo opio e pelo Alcorão aos ares do christianismo. Até na Russia semi-barbara dos czares valentes, mas grosseiros, e das czarinas com favoritos, até na Russia desponta a liberdade para os servos e as communas conquistam a sua autonomia. Robustece-se o sentimento de patria. Caminham uns para os outros, aconchegam-se, unem-se, juram por uma só bandeira, marcham ao som de um só hymno, todos os que falam uma só lingua ou sentem nas veias o calor da mesma seiva. Reconstrue-se a Germania, enfeixam-se os estados italianos e a Russia attráe os slavos para a orbita da sua influencia e da sua protecção. E, através destas mutações politicas, conseguidas ás vezes á custa de conflictos terriveis, mas rapidos, a lição ingleza não deixa de fructificar. O commercio expande-se e multiplica-se, nasce a industria fabril, que logo se alastra por todo o mundo, e o continente não é, desde as lobregas entranhas do seu solo, senão uma ampla officina de trabalho constante e productivo. Transbordam os cofres dos ricos. Renovam-se os campos e as cidades, inventam-se confortos para as agruras da vida, pede-se ao luxo que consuma e esperdice á vontade. E os cofres opulentos ainda continuam a transbordar. Desloca-se o dinheiro, que sobra, para a America, para a Asia, para a Africa e para a Oceania. E o operario, que já dá signaes de protesto contra a palpavel injustiça da sorte que lhe coube nesta completa renovação, a quem 1789 ensinou, lettra por lettra, os artigos da Declaração dos Direitos do Homem, e a Revolução communicou um irrepremivel sentimento de dignidade pessoal e de protesto contra a miseria tradicional, o operario desprende-se do solo ingrato em que nasceu, acompanha o dinheiro e emigra tambem para a America, para a Asia, para a Africa, para a Oceania. O mundo é largo... Ha espaço e destino para todos os infelizes sob os olhares misericordiosos das infinitas estrellas de Deus ! E os governos, que temem os operarios com fome, e desejam engrandecer as suas nações, se os indigenas das regiões em que elles desembarcam, não os agasalham com carinho e não se submettem á concorrencia que elles vêm estabelecer, os governos não hesitam e abrem-lhes espaço a tiro de canhão e a coice de carabina.
Nenhum homem se parece menos com Robinson Crusoë do que o do seculo XIX. Nenhum veio ao mundo mais apercebido de armas e recursos para ferir com vantagem a lucta pela existencia.
Outr’ora, gastavam-se sessenta e setenta dias numa viagem de Lisbôa ao Rio de Janeiro. Hoje, transpõe-se essa distancia em onze dias. Outr’ora, era uma temeridade projectar sómente uma viagem de Madrid a S. Petersburgo, por terra. Hoje, concebe-se num dia esse projecto temerario e, tres ou quatro dias depois, está elle realisado. Outr’ora, uma pessôa, que estivesse no Japão, só se podia comunicar com outra, que se achasse na França, pelo correio, tão lento como o deslise de um navio de véla, tão tropego como o chouto de uma mula cançada. Hoje, as communicações fazem-se pelo telegrapho. Tão promptas como clarões de relampagos. Outr’ora, o som da voz humana extinguia-se a alguns metros do homem que a emittia. Hoje, a electricidade transmitte-a, clara, distincta, a leguas e leguas de distancia. Outr’ora, as cidades, á noite, eram como que deshabitadas. A tréva aterrava os homens honestos e pacificos e protegia os ladrões e os assassinos. Hoje, é exactamente á noite que as cidades, salpicadas de luzes, offerecem mais seducções. Outr’ora, mal se escondia o sol no poente, retraia-se logo a actividade do homem. Hoje, o homem póde exercel-a, sem interrupção de um minuto, desde o primeiro até o ultimo dia do anno. Outr’ora, receiava-se que o dispendio sempre crescente do carvão viesse afinal a paralizar, numa crise sem remedio, o desenvolvimento das industrias. Hoje, já esses receios se vão apagando. A agua fria também produz força motora, como o fogo.
Não nos referimos a um sem número de melhoramentos, não tão importantes como estes, mas relativamente tão uteis como elles, e um dos quaes destacaremos, como mais tocante e sympathico, a machina de costurar...
Quanta casa sem chefe se refugia, pela maquina de costurar, das torturas da fome ou das miserias e vergonhas da prostituição !
O seculo XIX levou a este ponto o empenho de desembaraçar de toddas as peias a energia humana: ideou rectificar a conformação viciosa do planeta, cortando-lhe os aleijões que se oppunham á prompta circulação de pessôas e mercadorias. E realisou, por metade, essa empreza de Titans, cortando o isthmo de Suez, misturando aguas que Deus separára...
Investigou-se sem descanço a zona das sciencias. Classificaram-se as já existentes, crearam-se outras, applicaram-se as positivas ao augmento e ao aperfeiçoamento do patrimonio popular. Centenas e centenas de officinas abrigam e alimentam milhares e milhares de operários, porque, em certo dia, um estudioso, no silencio do seu gabinete, descobriu uma nova propriedade, ou um novo valor, num objecto apparentemente destitutido de todo o prestimo. A physica e a chimica – duas fadas – reverdecem com as suas varinhas magicas o campo mais esteril e exgottado.
Foi no século XIX que Pasteur nasceu e morreu. A sciencia de curar já não anda ás tontas, ou amparada na muleta rude do empyrismo. O seu caminho está illuminado, os seus passos são firmes e autonomos. Os homens ainda morrem, mas morrem em muito menor quantidade do que morriam. Ha doenças, que antigamente não poupavam o doente, e das quaes o medico hoje ri e zomba. Hoje, rasgam-se figados, descobrem-se pulmões e supprimem-se estomagos, tudo impunemente. A ousadia chegou a este extremo: o cirurgião vae tranquillamente com o seu bisturi até o orgam por excellencia, o orgam sagrado – o coração. E o coração não pára, o coração continúa a bater.
A hygiene, filha querida da medicina, dominou e venceu os flagellos das epidemias, e deu ao homem, com os seus conselhos, uma segurança que elle não tinha. Ha epidemias frequentes e regulares em alguns pontos da terra? E’ que a gente, que ahi habita, é ignorante ou são desidiosos os governos que a dirigem. A Inglaterra não tem lazaretos, nem obriga a quarentenas os navios que procuram os seus portos. Um homem, que esteja a par da sciencia do seu tempo, póde dormir á beira do mais pestifero paúl do centro da Africa sem contrair o impaludismo.
E o direito perdeu a sua antiga aspereza. Os codigos já não veem réprobros conscientes e incorrigiveis em todos os delinquentes. Abrandaram-se as penas, vão-se eliminando os calabouços, saneiam-se as prisões.
Vulgarisaram-se as artes. Em litteratura, o seculo não produziu um Shakspeare, em esculptura um Miguel Angelo, em pintura um Raphael, um Leonardo de Vinci, ou um Rembrandt. Mas, em litteratura, um Byron, um Dickens e um Carlyle, um Victor Hugo, um Lamartine, um Musset, um Balzac e um Zola, um Heine e um Uhland, um Leopardi e um Mazoni, um Ibsen e um Tolstoi, um Espronceda e um Garrett compensam bem a ausencia daquelle assombro, não só porque, todos junctos, são maiores do que elle, como tambem, e principalmente, porque o século lhes abriu sulcos por onde pudésse jorrar livremente a luz dos seus espiritos privilegiados, o que o seculo de Shakspeare não fez e os cingiu de uma auréola de gloria universal, que Shakspeare desconheceu. Os seculos anteriores não tinham ao seu dispôr as mil trombetas retumbantes do livro e dos jornaes de largas edições. Assim com os esculptores, que nos compensam da falta de um Miguel Angelo, assim com os pintores, que nos consolam de não ter nascido no nosso tempo um mestre como Raphael, como Vinci, como Rembrandt.
E o seculo XIX foi o seculo da musica. Beethoven só por nós foi comprehendido. Wagner é de hontem...
E’ consideravel, pois, o legado do seculo extincto, e, ou a isto se chama progresso, ou não sabemos o que seja progredir. Daqui se conclue naturalmente que, se puzermos na concha de uma balança os bens deste cyclo, que se encerra, e noutra os males, a dos bens forçosamente ha de pesar mais, seja qual fôr o peso dos males, que a torrente benefica arrastou consigo como calháos entre o limo fertilisante.
Mas, o seculo XIX concluiu alguma tarefa? Não a iniciou, não a concluiu. E aqui está o motivo pelo qual tantos espiritos esclarecidos se deixam invadir e enervar pelas sombras tristes do pessimismo e tanta gente suspira desanimada por uma época mais risonha, que ninguem sabe bem se já passou ou se ainda está por vir.
Alguns suppõem que ella não foi, nem será deste mundo condemnado e, partindo as vezes da mais raza descrença, batem contrictos no peito e dobram os joelhos ante o Deus que desconheciam.
Os doirados sonhos dos candidos revolucionarios de 1789 ainda não se realisaram. Que mundo de coisas puras, mansas e remotas não nos suggerem estes tres sublimes verbos, que os revolucionarios ligavam um ao outro, indissoluvelmente: Liberdade, Egualdade e Fraternidade. Tombou, ou transigiu, o absolutismo, que se lhes oppunha de frente; mentiu-lhes a monarchia constitucional, e, por fim, a Republica, que os acolheu para fundil-os, de palavras vãs, que eram, em instituições de existencia real, terminou por trail-os também.
Fallida a Republica, cravaram-se as esperanças dos sonhadores em systemas que ainda não sairam da região vaga das abstracções. E lá vão elles, socialistas aqui, anarchistas alli, caminho da Terra da Promissão, guiados pela columna de fogo das suas ardentes illusões e alimentando-se – muito contentes – do maná das suas translucidas utopias.
Se o seculo que reponta tem programma, o seu programma é impedir, com tolerancia e habeis e opportunas concesões, que esta caravana de visionarios se converta de repente, como ameaça, em legião de demonios destruidores... O que é preciso é achar a formula politica que, de uma vez para sempre, torne impossivel o tremendo conflicto social cuja possibilidade é o tormento de todos os que pensam e o pavoroso fantasma das vigilias dos estadistas.
Poderá o seculo XX com o encargo que o seculo XVIII transmitiu ao seculo XIX e que este lhe transmitte desempenhado apenas em parte?
Quem o sabe ? Atraz dissemos que a historia é uma cadeia de factos cujos fusis de bronze se prendem logicamente uns aos outros. E é o que os melhores livros nos ensinam, e é o que por alguns tão á lettra é comprehendido que se convencem de que não há grande difficuldade em adivinhar o que o amanhan nos occulta. A nós parece-nos sómente que é facil explicar por um antecedente o facto que constitue objecto do nosso estudo. Ha logica até hoje. Haverá logica amanhan, sem duvida. Mas, o que se nos affigura empreza sobrehumana é apanhar num só relance de olhos todas as veredas do labyrintho, que é o futuro, e apontar precisamente aquella que a logica tomará para cumprir a sua missão de soldar uns aos outros os élos da corrente de que acima falámos. Póde muito a previsão dos sabios, mas a zona do imprevisivel é incomparavelmente mais dilatada do que a que se extende sob os raios dos seus olhares.
Zarpa um navio de um porto com rumo a outro porto. Singra já longe de terra, mar banzeiro, ventos de feição. Deve deitar ancora em tal dia. Mas, de subito, brame uma tempestade, que o piloto cauto não previu, quebra-se o leme, e lá vae o barco, á tôa, desgovernado, de maroiço em maroiço, até que se abata a cólera dos ventos e das aguas. E o tempo, que se despende depois de retomar a róta perdida, dava para duas ou tres viagens.
A humanidade sáe hoje de um porto para outro porto...
E, agóra, a um seculo, que, apezar de tudo, tantos prodigios operou, que denominação havemos de dar ? Nenhuma. O seculo XIX é e será sempre indenominavel. E não se póde imaginar signal mais eloquente da sua verdadeira grandeza, da sua funda e vasta agitação, da sua espantosa fecundidade, da complexidade desvairante e, até certo ponto, da cruel incoherencia do seu labor.
Não o denominaremos, por certo, o seculo de Victor Hugo, como, em pleno enthusiasmo do romantismo, se requereu em França e nos paizes que a França leva pelas mãos, como infantes inconscientes. Hoje, até na França, e até do circulo dos homens de lettras francezes, se ergueriam protestos vehementes contra tal pretenção. O seculo de Bismarck? Tal designação tambem é mesquinha. Bismarck é a unificação da Germania que, por sua vez, é só um facto politico capital dos dez ou quinze que nestes cem annos se completaram. Seculo dos Estados-Unidos, se assim o qualificassemos, apanhariamos apenas um dos seus grandes aspectos, que é a formação das novas nacionalidades. Seculo das constituições, seculo do transbordamento europeu e do povoamento dos continentes, seculo do socialismo, seculo do anarchismo, tudo, tudo, seria pallido e deficiente, por mais expressivo que pareça.
O seculo, que expirou ao dobre da meia-noite de hontem, será o seculo XIX, e nada mais.
(Editorial publicado em 1.1.1901)
(*) Manteve-se a ortografia original.
(Ilustração: Max Ernst – ocell de foc)
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