sexta-feira, 28 de maio de 2010

PRIMEIRO SERMÃO DO PADRE PANELOUX, de Albert Camus







“Irmãos, caístes em desgraça, irmãos, vós o merecestes”, a assistência se tumultuou. Logicamente, o que se seguiu não parecia estar de acordo com este exórdio patético. Só a seqüência do discurso fez compreender aos nossos concidadãos que, por um hábil processo oratório, o padre tinha dado de uma só vez, como um golpe que se desfecha, o tema de todo o seu sermão. Logo depois desta frase, Paneloux citou o texto do Êxodo relativo à peste no Egito e disse: “A primeira vez que este flagelo aparece na história é para atacar os inimigos de Deus. O faraó opõe-se aos desígnios eternos e a peste o faz então cair de joelhos. Desde o princípio de toda a história, o flagelo de Deus põe a seus pés os orgulhosos e os cegos. Meditai sobre isto e caí de joelhos.”



E continuou, num tom mais veemente: “Se hoje a peste vos olha, é porque chegou o momento de refletir. Os justos não podem teme-la, mas os maus têm razão para tremer. Na imensa granja do universo, o flagelo implacável baterá o trigo humano até que o joio se separe do grão. Haverá mais joio que grão, mais chamados que eleitos e esta desgraça não foi desejada por Deus. Por longo tempo, este mundo compactuou com o mal, repousou na misericórdia divina. Bastava arrepender-se, tudo era permitido. E para se arrependerem, todos se sentiam fortes. Chegado o momento, o arrependimento viria por certo. Até lá, o mais fácil era deixar-se levar; a misericórdia divina faria o resto. Pois bem! Isto não podia durar. Deus, que durante tanto tempo baixou sobre os homens desta cidade o seu rosto de piedade, cansado de esperar, desiludido na sua eterna esperança, acaba de afastar o olhar. Privados da luz de Deus, eis-nos por muito tempo nas trevas da peste!”


“Sim, chegou a hora de refletir. Pensaste que vos bastaria visitar Deus aos domingos para ficardes com os vossos dias livres. Pensastes que algumas genuflexões pagariam suficientemente o vosso desleixo criminoso. Mas Deus não é fraco. Essas atenções espaçadas não bastavam à sua ternura devoradora. Ele queria ver-vos mais tempo, é a sua maneira de vos amar, que é, a bem dizer, a única maneira de amar. Eis por quê, cansado de esperar a vossa vinda, deixou que o flagelo vos visitasse, como visitou todas as cidades do pecado desde que os homens têm história. Sabeis agora o que é o pecado, como o souberam Caim e seus filhos, os de antes do Dilúvio, os de Sodoma e Gomorra, Faraó e Jô e também todos os malditos. E, como esses o fizeram, é um olhar novo que lançais sobre os seres e as coisas, desde o dia em que esta cidade fechou os seus muros em torno de vós e do flagelo. Sabeis agora, finalmente, que é preciso chegar ao essencial.”...... Este mesmo flagelo que vos aflige vos eleva e vos mostra o caminho.


“Há muito tempo, os cristãos da Abissínia viam na peste um meio eficaz, de origem divina, para alcançar a Eternidade. Os que não eram atingidos enrolavam-se nas roupas contaminadas para terem a certeza de morrer. Sem dúvida, esta fúria de salvação não é recomendável. Ela revela uma precipitação lamentável, bem próxima do orgulho. Não se deve ser mais apressado que Deus, e tudo o que pretende acelerar a ordem imutável que ele estabeleceu de uma vez para sempre conduz à heresia.


O Padre Paneloux esperava, contra toda a esperança, que, a despeito do horror destes dias e dos gritos dos agonizantes, os nossos concidadãos dirigiriam ao céu a única palavra que era cristã e que era de amor. Deus faria o resto.



(A Peste)



(Ilustração: Peste em Roma, de Jules Elie Delaunay)





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