terça-feira, 2 de dezembro de 2025
COMO GANHEI O CONCURSO DE QUEM CONTAVA MELHOR UM FILME, de Hernán Rivera Letelier
“Somos feitos do mesmo material dos sonhos.”
Shakespeare
“Somos feitos do mesmo material dos filmes.”
Fada Docine [*]
Como em casa o dinheiro andava a cavalo e a gente andava a pé, quando chegava um filme no acampamento da Mina e meu pai – só pelo nome do ator ou da atriz principal – achava que parecia ser bom, as moedas eram juntadas uma a uma, o preço exato da entrada, e me mandavam assistir.
Depois, ao voltar do cinema, eu tinha de contar o filme para a família inteira reunida na sala.
Era lindo, depois de ver o filme, encontrar meu pai e meus irmãos me esperando ansiosos em casa, sentados enfileirados que nem no cinema, penteadinhos e de roupa limpa, recém-mudada.
Meu pai, com uma manta boliviana cobrindo as pernas, ocupava a única poltrona que a gente tinha, e assim era a plateia lá de casa. No chão, do lado da poltrona, brilhava sua garrafa de vinho tinto e o único copo que havia sobrado em casa. A galeria era aquela bancada comprida, de madeira bruta, onde meus irmãos se acomodavam em ordem, do menor ao maior. Depois, quando alguns de seus amigos começaram a aparecer na janela, a janela virou o balcão.
Eu chegava do cinema, tomava rapidinho uma xícara de chá (que deixavam pronto me esperando) e começava a minha função. De pé na frente deles, de costas para a parede pintada a cal, branca feito a tela do cinema, começava a contar o filme “de a a z”, como dizia meu pai, tratando de não esquecer nenhum detalhe, nem da história, nem dos diálogos, nem dos personagens.
Aliás, devo esclarecer aqui que não me mandavam para o cinema só por ser a única mulher da família e eles – meu pai e meus irmãos – serem cavalheiros com as damas. Não senhor. Eles me mandavam porque eu era a melhor contando filmes. Assim mesmo, como se ouve: a melhor contadora de filmes da família. Depois, passei a ser a melhor da viela e em pouco tempo a melhor do povoado. Que eu saiba, não havia ninguém no povoado da Mina que ganhasse de mim na hora de contar filmes. Do tipo que fosse: de caubóis, de terror, de guerra, de marcianos, de amor. E, claro, os filmes mexicanos, que eram os que papai, como todo mundo que tinha vindo do sul, mais gostava.
E foi justamente com um filme mexicano, desses cheios de cantorias e muito choro, que ganhei meu título. Não foi nada fácil ganhar esse título.
Ou vocês acham que fui eleita só por causa da minha fina estampa?
Éramos cinco filhos na família. Quatro homens e eu. Nós cinco formávamos uma escadinha perfeita, em tamanho e idade. Eu era a menor. Vocês imaginam o que significa crescer numa casa só de irmãos homens? Nunca brinquei de boneca. Em compensação, era campeã em bolinhas de gude e no jogo de palitinhos. E na hora de matar lagartixas nas minas de cal ninguém ganhava de mim. Era eu botar o olho e paf, lagartixa morta.
Andava de pé no chão todo santo dia, fumava escondida, usava um boné de aba virada e tinha até aprendido a mijar de pé.
A gente mija de pé, a gente urina de cócoras.
E eu mijava em qualquer lugar do deserto de salitre, igual aos meus irmãos. Até nas competições de quem mijava mais longe às vezes eu ganhava. E contra o vento.
Quando fiz sete anos entrei na escola. Além do sacrifício de ter que usar saia, me custou um bocado acostumar a urinar como as senhoritas.
Custou mais do que aprender a ler.
Quando papai teve a ideia do concurso, eu tinha dez anos e estava no terceiro ano do primário. Sua ideia consistiu em mandar a gente, um por um, para o cinema, e depois nos fazer contar o filme. Quem contasse melhor iria toda vez que passasse um dos bons. Ou um mexicano. O mexicano podia ser bom ou ruim, para meu pai isso não importava. Desde, é claro, que houvesse dinheiro para a entrada.
Os outros iam ter de se conformar em ouvir, depois, o filme ser contado em casa. Nós todos gostamos da ideia; todos nós nos sentíamos capazes de ganhar. Não era em vão que, como todas as outras crianças do povoado, cada vez que íamos ao cinema saíamos imitando os mocinhos do filme em suas melhores cenas.
Meus irmãos sabiam imitar perfeitamente o caminhar cambaio e o olhar oblíquo de John Wayne, o gesto de desprezo de Humphrey Bogart e as incríveis caretas de Jerry Lewis.
Eu os matava de rir ao tratar de piscar as pestanas feito Marilyn Monroe, ou de imitar as boquinhas de menina inocente – voluptuosamente inocente – de Brigitte Bardot.
Alguns se perguntarão por que meu pai não ia, ele mesmo, ao cinema; pelo menos quando passassem um filme mexicano. Meu pai não conseguia andar. Tinha sofrido um acidente de trabalho que o deixou paralítico da cintura para baixo. Não trabalhava mais. Recebia uma pensão de invalidez que era uma miséria, mal dava para comer.
Nem preciso dizer que a gente não tinha nem para uma cadeira de rodas. Para levá-lo da sala para o quarto, ou do quarto para a porta da rua – onde ele gostava de beber sua garrafa de vinho tinto vendo passarem a tarde e seus amigos –, meus irmãos tinham adaptado as rodas de um velho triciclo na poltrona. O triciclo tinha sido o primeiro presente de páscoa do meu irmão mais velho e as rodas não aguentavam muito o peso do meu pai, dobravam, e era preciso ficar consertando tudo o tempo inteiro.
E a minha mãe? Bom, minha mãe, depois do acidente, abandonou meu pai. Abandonou meu pai e nos abandonou, os seus cinco filhos. Assim, num vupt! Por isso lá em casa meu pai tinha nos proibido de falar dela; da “sirigaita”, como a chamava com desdém.
“Não me falem dessa sirigaita” – dizia ele, quando algum de nós, sem querer, deixava escapar a palavra mamãe.
Depois, entrava no silêncio e a gente levava horas até conseguir tirá-lo de lá.
[...]
Devo confessar que nunca imaginei que seria a vencedora do concurso de quem contava melhor um filme. É que meu irmão Mirto, o segundo, apelidado de Pássaro, que em casa era o responsável pelas compras, era o favorito de todo mundo. Ele sempre foi alegre e falastrão e passava o dia contando coisas que aconteciam com ele; tinha muito senso de humor.
Já meu irmão Mariano, o mais velho, que por causa de sua gagueira era chamado de Caterpillar – ele se encarregava de cozinhar, apesar de ser o mais inteligente de todos, e “mais sério que cabo de polícia”, como dizia meu pai –, não tinha nenhuma possibilidade, por causa de sua fala quebrada. O coitado tinha começado a gaguejar quando nossa mãe foi-se embora.
Meu irmão Manuel, o terceiro (era quem cuidava da limpeza), nem gostava muito de cinema. Para ele, o que mais importava no mundo era o futebol; era um peladeiro impenitente; suas partidas duravam o dia inteiro, o primeiro tempo de manhã e o segundo de tarde, com um breve intervalo para o almoço. Por causa de seu hábito de fazer um montinho de terra cada vez que ia chutar a bola, foi apelidado de Morrinho.
No deserto, todo mundo exibia com orgulho a condecoração de um apelido; quem não tinha apelido era um nonato, um zé ninguém, não existia.
Meu quarto irmão, Marcelino, o Cabeça de Livro, tinha alma de artista. Gostava de desenhar e pintar com lápis de cor. Em casa era mais para o calado, gostava mais de ouvir que de falar. E sua única tarefa era tirar o lixo.
Depois vinha eu, e, por ser mulher, ninguém dava um tostão por mim. Eles achavam que as mulheres só prestavam para fazer as camas e lavar os pratos – daí que eu cuidava da casa – e por isso não tinha a menor chance. Acontece que havia três coisas que me davam vantagem em cima deles, embora nem eu mesma soubesse. A primeira é que eu devorava os quadrinhos de Hopalong Cassidy, de Gene Autry, de Kid Colt e todos os heróis do Velho Oeste, e eles não liam nada. A segunda é que eu era louca pelas novelas de rádio, uma paixão que tinha herdado da minha mãe, que, comigo nos braços, jamais perdia um capítulo de Esmeralda, a filha do rio. E a terceira era uma coisa que até papai ignorava: quando eu era muito pequena, minha mãe me fazia dormir contando para mim filmes românticos – os seus favoritos –, coisa que não fez com nenhum dos meus irmãos.
“Essas coisas são mais nossas, das mulheres”, dizia ao me dar uma piscada de cumplicidade que eu adorava.
O primeiro a ir ao cinema foi meu irmão Mariano, o Caterpillar. Sua narração foi um desastre. Naquele dia passou um de guerra – alemães contra norte-americanos –, e a única coisa que se entendia e saía emendado da boca do pobrezinho era o matracar das metralhadoras. E a mímica. Sua mímica era genial. Eu acho que nos tempos do cinema mudo ele teria sido muito bom.
Na vez do meu irmão Mirto, o Pássaro, passaram um de índios, com Jack Palance. Sua narração foi extraordinária. O galope dos cavalos, os tiros, os gritos dos índios, os sinais de fumaça. A gente até achava que estava ouvindo o assovio das flechas passando sobre nossas cabeças, zuuuummm! A única coisa ruim era que Mirto contava tudo na base de “babaquices” e “cagadas”:
“Então, quando o babaca sacou do revólver e atirou na cabeça da babacona, deu uma tremenda cagada porque os outros babacas nem cagando iam deixar que cagassem neles daquele jeito…”.
Manuel, que até que contava direito, contou um filme de vampiros. Acontece que se perdeu por amor. Aos doze anos, estava apaixonado pela filha do dono da loja mais sortida da Mina – era o único dos irmãos que namorava –, e passou a hora e quarenta minutos que durou o filme abraçando a menina, que gemia de medo.
Já com meu irmão Marcelino aconteceu o cúmulo da má sorte. Calado por natureza – “desse menino, é preciso arrancar as palavras com um saca-rolhas”, dizia minha mãe quando morava com a gente –, na vez dele caiu O velho e o mar, um filme quase sem fala.
Sua narração só durou cinco minutos.
Duas semanas mais tarde chegou, enfim, a minha vez, a vez da irmã menor, Maria Margarita, M M, como às vezes meu pai me chamava. Embora eu não tivesse apelido oficial, sabia que pelas costas alguns meninos me chamavam de Maria Machona. O apelido, é verdade, não era muito refinado, mas se observarem bem verão que é composto por duas palavras que começam com a letra eme.
Durante essas duas semanas chegaram vários filmes bons, e alguns muito bons, mas não houve dinheiro para comprar a entrada. Eram meados do mês e mal dava para comer e para a garrafinha de vinho de meu pai.
“A gente tem que esperar o pagamento da pensão”, dizia ele. E aconteceu que justo no dia do pagamento apareceu no anúncio do cinema nada menos que Ben-Hur, o filme que todo mundo no povoado esperava com ansiedade.
Meus irmãos ficaram loucos.
Todos queriam ir ao cinema. Ou pelo menos que o Mirto fosse, já que até aquele momento tinha sido quem melhor havia contado um filme.
Mas meu pai, que era um homem justo, se negou.
“Agora é a vez de Maria Margarita e quem vai é a Maria Margarita.
E ponto final”.
O filme durou três horas. Chorei mais que Sara García, a veterana atriz do cinema mexicano. Eu nunca havia gostado tanto de um filme. Depois soube que, além de ser tão longo, tinha sido o filme mais caro da história. E que havia ganhado onze prêmios Oscar. E além de tudo, Charlton Heston era um dos atores de quem eu mais gostava.
Cheguei em casa com os olhos vermelhos. Todos me esperavam com grande expectativa. Tomei em silêncio a xícara de chá, me pus na frente deles, e sem que meus joelhos tremessem nem nada, comecei a minha narração.
Foi então que alguma coisa se apoderou de mim.
Enquanto contava o filme – gesticulando, dando braçadas, mudando a voz – ia como que me desdobrando, transformando, convertendo-me em cada um dos personagens. Naquela tarde fui Ben-Hur, o jovenzinho. Fui Messala, o malvado do filme. Fui as duas mulheres leprosas que Jesus curou.
Fui o mesmíssimo Jesus.
Eu não estava contando o filme, eu estava atuando o filme. Mais ainda: eu estava vivendo o filme. Meu pai e meus irmãos me ouviam e olhavam para mim de boca aberta.
“Essa menina é uma artista completa”, comentou meu pai quando, esgotada até a última gota, acabei de contar o filme.
Ele e meus irmãos pareciam estar flutuando.
E estavam com os olhos marejados.
Aquela narração, porém, não foi suficiente para me dar o título. Meu pai declarou empate: meu irmão Mirto e eu tínhamos sido os melhores. E como era um democrata convicto, disse que aquela questão ia ser resolvida através das urnas. E em votação secreta.
Mirto seria o candidato número 1.
Eu seria a candidata número 2.
Foram cortados quatro papeizinhos iguais, distribuídos entre os votantes (os candidatos não tinham direito a voto). Cada um escreveu o número do seu candidato e depois depositou o papelzinho num cone de papel.
E veio a contagem.
Dois votos para meu irmão e dois votos para mim (eu intuí que meu pai e Marcelino tinham votado em mim). Para desempatar, meu pai decidiu fazer o que era mais justo e razoável: nós dois iríamos, juntos, ver o próximo filme. E quem contasse melhor seria o vencedor.
Fomos então ver juntos um filme mexicano carregado de canções; se chamava Guitarras de medianoche e era com ninguém menos que Miguel Aceves Mejía e Lola Beltrán, duas das vozes que mais soavam nos bares do deserto. Meu irmão contou primeiro, e com a mesma graça de sempre. Principalmente quando imitava o sotaque mexicano.
Acontece que eu, que também dominava o tom da fala dos mexicanos (tantos tinham sido os filmes deles que eu tinha visto em minha curta vida), além de contar o filme descrevendo as paisagens e tudo, de repente desandei a cantar as canções interpretadas no filme (de tanto ouvir nos alto-falantes dos bares, sabia todas elas de cor). Eles, que nunca tinham me ouvido cantar, acharam estranho que eu cantasse. E que cantasse tão bem.
Até para mim foi uma surpresa.
Meu pai ficou deslumbrado. Principalmente quando cantei No soy monedita de oro, uma das suas canções favoritas. Foi quando o democrata se esqueceu de votos e plebiscitos e me declarou ganhadora absoluta.
“E ponto final!” rugiu ele quando Mirto quis insinuar um protesto.
E assim me transformei oficialmente na contadora de filmes lá de casa.
Nota do blog:
[*] O nome da narradora é Maria Margarita, mas ela se deu o pseudônimo de Fada Docine, ao se tornar famosa na sua aldeia como contadora de filmes.
(A contadora de filmes; tradução de Éric Nepomuceno)
(Ilustração: cenas de Ben Hur - direção de William Wyler)
sábado, 29 de novembro de 2025
JE NE PARLE PAS BIEN, de Luz Ribeiro
excuse moi, pardon
me ...
je ne parle pas bien français
je ne parle pas bien anglais non plus
je ne parle pas bien
je ne parle pas bien
je ne parle pas bien
je ne parle pas bien
...
eu tenho uma língua solta
que não me deixa esquecer
que cada palavra minha
é resquício da colonização
cada verbo que aprendi conjugar
foi ensinado com a missão
de me afastar de quem veio antes
nossas escolas não nos ensinam
a dar voos, subentendem que nós retintos
ainda temos grilhões nos pés
esse meu português truncado
faz soar em meus ouvidos
o lançar dos chicotes
em costas de couros pretos
nos terreiros de umbanda
evocam liberdade e entidade
com esse idioma que tentou nos prender
cada sílaba separada
me faz relembrar
de como fomos e somos segregados
nos encostaram nas margens
devido a uma falsa abolição
que nos transformou em bordas
me...
je ne parle pas bien
je ne parle pas bien
tiraram de nós o acesso
a ascensão
e eis que na beira da beira, ressurgimos
reinvenção
nossa revolução surge e urge
das nossas bocas
das falas aprendidas
que são ensinadas
e muitas não compreendidas
salve, a cada gíria
je ne parle pas bien
temos funk e blues
de baltimore a heliópolis
com todo respeito edithpiaf
não é você quem toca no meu set list
eu tenho dançado ao som de “coller la petite”
je ne parle pas bien
o que era pra ser arma de colonizador
está virando revide de ex-colonizado
estamos aprendendo as suas línguas
e descolonizando os pensamento
estamos reescrevendo o futuro da história
não me peçam pra falar bem
parce que je ne parle pas bien
je ne parle pas bien
je ne parle pas bien, rien
eu não falo bem de nada
que vocês me ensinaram
(Ilustração: Claudie Baran - La Langue Bien Pendue)
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Luz Ribeiro - Je ne parle pas bien
quarta-feira, 26 de novembro de 2025
DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL, de Jessé Souza
Os grandes sociólogos da religião, como Max Weber e Pierre Bourdieu, analisam o campo religioso do mesmo modo como analisam outros campos sociais. Como qualquer empresa no mercado econômico, que utiliza estratégias para conquistar o maior número de consumidores, a empresa religiosa usa o que estiver ao seu alcance para angariar o maior número de fiéis. O vertiginoso sucesso da vertente neopentecostal foi causado por uma conjunção de dois fatores: o aproveitamento consequente da ideia da batalha transcendental entre a divindade e o diabo – que já habitava o imaginário popular influenciado pela religiosidade africana – com o uso superficial do vocabulário judaico-cristão de modo a parasitar seu prestígio.
Em geral, o pentecostalismo se baseia no episódio bíblico citado em Atos dos Apóstolos, capítulo 2, em que o Espírito Santo teria se revelado aos cristãos por meio da língua do fogo. Partindo dessa vertente interpretativa, o pentecostalismo defende a presença concreta de Deus no mundo por meio do Espírito Santo, em especial pelo dom da cura e do falar em “línguas estranhas” (como vimos, glossolalia). A glossolalia, no entanto, foi perdendo prestígio por comparação com o dom da cura, a libertação dos demônios e a teologia da prosperidade.
Na segunda onda pentecostal e na terceira onda neopentecostal, ocorre um deslocamento simbólico da relação com as “línguas de fogo” em favor da força das palavras proferidas em nome de Deus. Passa-se a acreditar que a palavra dita em “nome de Jesus”, uma espécie de ordem verbal de Deus, tem o poder de curar. Também no exorcismo de demônios a palavra oral é fundamental. O pastor ordena a saída do demônio e é apoiado pela multidão, que grita: “Sai, sai!” ou “Queima, queima!”. A alusão a “queimar” permite perceber a passagem das línguas de fogo ao poder da palavra dita com fé. O exemplo da força das palavras viria do Deus do Livro de Gênesis, que cria o universo por meio do verbo, ou seja, da palavra.[1] Esse fato abre a possibilidade de vincular a bíblia não mais à escrita e à conversão racional, mas, ao contrário, aproximá-la da tradição oral como agente mágico transformador da realidade.
É a ênfase na tradição da oralidade que permite ao neopentecostalismo se aproximar – como o substituto perfeito – das religiões afro-brasileiras, nas quais a palavra se reveste de poder mágico. No candomblé, a palavra dita é “emanação de axé”, mecanismo de movimentação de forças sagradas, sendo Exu percebido como emanação desse poder que pode ser conferido por meio de oferendas. No neopentecostalismo, o poder da fala reinterpreta e ressignifica o fogo da língua do Espírito Santo no sentido do poder de intervenção mágica de Exu. A força da fala, muito além da mera pregação da palavra escrita divina – típica das versões mais éticas e racionais do cristianismo –, transforma-se, no neopentecostalismo, na emanação mágica de um poder autorreferente e autoconstituído.[2]
O neopentecostalismo, portanto, opera uma “antropofagia” da fé inimiga[3] pela centralidade do “transe religioso”, reintroduzindo a proximidade imediata com o sagrado que havia sido expurgado do campo cristão em nome da conversão racional. A novidade do movimento pentecostal, radicalizada no neopentecostalismo, foi introduzir o êxtase religioso e seu fundo mágico para o centro do cristianismo a partir da figura do Espírito Santo como emanação material da divindade.
O que está por trás desse movimento é, acima de tudo, uma redefinição da noção de “eu” e da personalidade do fiel, ou seja, de seu processo singular de subjetivação. No neopentecostalismo, assim como em várias versões do protestantismo, o corpo é pensado como morada de Deus na sua dualidade de corpo e alma. Daí a legitimidade cristã da guerra contra a possessão do corpo pelo demônio, substituindo-a pela possessão do Espírito Santo.
No candomblé, a pessoa é vista como fragmentada e a ela se agregam várias entidades sob a forma de um “enredo de santo”. Esse enredo varia de acordo com o orixá de frente. Os rituais de iniciação visam, por meio do sacrifício de animais e outros ritos, fixar no Ori da pessoa esse enredo, até que, com o tempo – normalmente sete anos –, não haja mais necessidades dos rituais, significando a imanência do seu orixá na própria pessoa, tornando o transe supérfluo.[4]
Desse modo, a fragmentariedade inicial é fundida em uma unidade à medida que vai compondo seu “enredo de santo”. Os ritos sacrificiais de animais servem, precisamente, para garantir uma continuidade da comunicação entre as divindades e os homens. A morte do animal permite abrir um canal de comunicação para que a graça divina possa fluir até os homens. A possessão indica a eficácia desse canal. Quando a divindade “vem”, como na possessão, o homem “vai” – ou seja, perde a consciência.
Apesar da complementariedade, um não pode se sobrepor ao outro.[5]
O neopentecostalismo, nos seus rituais de exorcismo, utiliza-se dessa linguagem e desse universo simbólico para criar uma nova relação do fiel com o Deus. Se nas religiões afro-brasileiras a pessoa se completa pela incorporação de um panteão sagrado, no neopentecostalismo a sacralidade do eu já é pressuposta – bastando que o indivíduo se liberte das eventuais tentações que vêm “de fora”. Assim, se nas religiões afro-brasileiras o “eu” se forma por “adição” das diversas divindades que o regem, no neopentecostalismo o “eu” se forma pela permanente “subtração”, na expulsão dos demônios que ameaçam a já existente divindade do “eu”.[6]
Para Ronaldo de Almeida,[7] os ritos de expulsão dos demônios no neopentecostalismo são mera inversão simbólica dos ritos africanos. Se nas religiões afro a possessão ocorre como uma festa de sacralidade do ritual, no neopentecostalismo a possessão é o polo negativo do sagrado por significar a irrupção do mal. A inversão, como sabe muito bem a psicanálise, mantém o principal em comum, apenas invertendo os termos da relação. O decisivo, portanto, que é a crença na possessão e na subordinação da lógica profana pela transcendental, se mantém. O que a inversão possibilita ao neopentecostalismo é a criminalização do competidor religioso.
Não por acaso são os Exus e as Pombagiras os representantes do diabo no contexto do neopentecostalismo e suas sessões de “descarrego”. Essa aproximação da simbologia cristã e africana já fazia parte da história secular do sincretismo brasileiro. Nas religiões afro, o sentido dos Exus é dado pelo contexto. Os Exus podem ser “amarrados” pelo orixá para obedecer, podendo ser, portanto, tanto demônio quanto orixá. Essa é a confissão que o pastor neopentecostal exige desses espíritos: não que ele seja o demônio, mas que eles revelem não serem sujeitos à negociação como se imaginava,[8] exigindo a vitória do pastor sobre eles.
Essa é uma estratégia que visa conquistar os adeptos desse tipo de religiosidade. A religiosidade africana, portanto, segue intocada no neopentecostalismo – o que explica o ódio à religiosidade afro exatamente pela proximidade e competição mais próxima –, mas é “recoberta”, superficialmente como uma pátina, com o vocabulário de alto prestígio simbólico – em todo o Ocidente – do cristianismo e do judaísmo.
Em um país racista como o nosso, o neopentecostalismo se alimenta, vicariamente, também dessa tradição nefasta que ajuda a criminalizar o negro e todas as suas práticas, inclusive as religiosas. Portanto, o neopentecostalismo é ideal para quem pretende “embranquecer” – com tudo o que isso significa no Brasil, e que não se refere apenas à cor da pele – pela aceitação da norma moral vigente do dominador branco que implica o estigma do negro (seu vizinho ou irmão) e a sua criminalização.
Notas:
[1].Vagner Gonçalves da Silva, “Concepções religiosas afro-brasileiras e neopentecostais”,2005.
[2].Ibidem.
[3].Ronaldo Almeida, A Igreja Universal e seus demônios, 2009.
[4].Ibidem.
[5].Ibidem.
[6].Ibidem.
[7].Ibidem.
[8].Ibidem.
(O pobre de direita)
(Ilustração: Jerry D'oxossi - Exus e Bombogiras, entidades trabalhadoras da Umbanda)
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Jessé Souz - Deus e o diabo na terra do sol
domingo, 23 de novembro de 2025
MADRIGAL LÚGUBRE, de Carlos Drummond de Andrade
Ó princesa ! Ó donzela !
Em vossa casa, de onde o sangue escorre,
Quisera eu morar.
Cá fora é o vento e são as ruas varridas de pânico,
É o jornal sujo embrulhando fatos, homens e comida guardada.
Dentro, vossas mãos níveas e mecânicas tecem algo parecido com um véu.
O mundo, sob a neblina que criais, torna-se de tal modo espantoso
Que o vosso sono de mil anos se interrompe para admirá-lo.
Princesa: acordada sois mais bela, princesa.
E já não tendes o ar contrariado dos mortos à traição.
Arrastar-me-ei pelo morro e chegarei até vós.
Tão completo desprezo se transmudará em tanto amor…
Dai-me vossa cama, princesa.
Vosso calor, vosso corpo e suas repartições,
Oh dai-me! que é tempo de guerra,
Tempo de extrema precisão.
Não vos direi dos meninos mortos
(nem todos mortos, é verdade,
Alguns apenas mutilados).
Tampouco vos contarei a história
Algo monótona talvez
Dos mil e oitocentos atropelados
No casamento do rei da Ásia.
Algo monótono… Ásia monótona…
Se bocejardes, minha cabeça
cairá por terra, sem remissão.
Sutil flui o sangue nas escadarias.
Ah, esses cadáveres não deixam
Conciliar o sono, princesa?
Mas o corpo dorme; dorme assim mesmo.
Imensa berceuse sobe dos mares,
Desce dos astros lento acalanto,
Leves narcóticos brotam da sombra,
Doces unguentos, calmos incensos.
Princesa, os mortos! gritam os mortos!
querem sair! querem romper!
Tocai tambores, tocai trombetas,
Imponde silêncio, enquanto fugimos!
…Enquanto fugimos para outros mundos,
Esse que está velho, velha princesa,
Palácio em ruínas, ervas crescendo,
Lagarta mole que escreve
a história,
Escreve sem pressa mais esta história:
o chão está verde de lagartas mortas…
Adeus, princesa, até outra vida.
(Ilustração: Valquíria Cavalcante)
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Carlos Drummond de Andrade - Madrigal lúgubre
quinta-feira, 20 de novembro de 2025
UM AVÔ E SEU NETO, de Roseana Murray
Esta é uma história muito simples. Fala do amor entre um avô e seu neto, que é como a magia que existe entre a noite e a Lua. Os avós sabem de muitas coisas. Os avós guardam a infância deles na memória, com seus rios azuis, suas ruas de barro, chapéus, cavalos, lampiões. Um mundo tão antigo que já quase não cabe mais neste nosso mundo.
Quando um avô morre, esse mundo antigo morre com ele, assim como todos os cavalos, rios azuis, ruas de barro. Por isso eu, particularmente, acho que os avós nunca deviam morrer. Mas, para que as coisas que eles guardam lá no fundo deles – essa poeira encantada de outros tempos – não desapareçam completamente, existem os netos.
E assim como às vezes a gente para para ver uma estrela ou um pássaro, alguns netos param e ouvem essa música secreta que sai de dentro dos avós. Eles viveram uma vida inteira… E quantas malas e armários poderiam encher com suas aventuras?
O avô tinha a barriga grande. O neto achava que havia um Sol lá dentro, ou uma fábrica de alegria. O avô ria tanto! Mas um dia o avô parou de trabalhar. Era como se a barriga tivesse diminuído, ou uma nuvem tivesse escondido o Sol. O neto passava a mão nos cabelos do peito do avô. Os avós são tão lindos com seus cabelos brancos…
Quando o avô estava feliz, contava histórias malucas: de elefantes cantores de ópera, de crocodilos vendedores. Mas, quando se lembrava que não podia mais trabalhar, que se não fizesse bastante barulho ninguém se lembraria mais dele, aí só contava histórias da sua vida (o neto ouvia).
De um país lá longe. Tão longe que se tinha de atravessar o mar. Fazia frio naquele país. Naquela época o avô era criança, era pobre. O pai dele tocava violino. A mãe cozinhava. Um tio morava numa casinha branca no alto de uma colina. O tio fazia panelas de barro.
Um dia, o avô, que naquele país lá longe era criança, foi visitar o tio que morava na colina. Precisava atravessar a cidade inteira. O avô saiu de casa bem cedinho. O tio era esquisito. Gostava de morar afastado, longe das ruas apinhadas de gente.
Durante a noite tinha nevado. As carroças cheias de verdura não podiam passar. (O neto ouvia.) O avô estava indo escondido da mãe. Era muito perigoso. Finalmente o avô atravessou aponte. O rio estava congelado lá embaixo. Parecia que tinha adormecido e já não podia correr para lugar nenhum.
A subida para a casa do tio estava escorregadia. Mas o avô conseguiu chegar. O tio ficou feliz. Ele tinha um forno grande de queimar o barro. Tinha um torno. Parecia mágica. O tio pegava um pedaço de barro e fazia um prato, uma moringa, um bule. O avô dava nome para todas aquelas coisas.
Era como se fossem vivas. (O neto ouvia.) Fazia o bule se casar com a manteigueira. E o dia passou voando na casa desse tio, lá no alto da colina. Quando o avô se lembrou de que era preciso voltar, a noite já estava chegando. Tinha de se apressar.
O tio deu um presente para o avô levar para casa. Era um cavalo de barro. Ia dentro de uma caixa. Agora o avô possuía um cavalo, e se sentia mais rico do que um rei. Levava a caixa com todo o cuidado. Seu cavalo não podia cair de jeito nenhum. (O neto ouvia.)
De repente, embaixo da neve, viu uma coisa brilhando. Era uma moeda de ouro. O avô se esqueceu do presente, se esqueceu de tudo. Ele tentava cavar mas não conseguia. Então teve uma ideia tão boa que nem dava para acreditar: era só fazer xixi em cima da neve que cobria a moeda. O xixi era quente e derretia a neve. Aí o avô piscou o olho e deu uma risada na cara do neto. “É verdade, vô, essa história da moeda?”
“Pode ser que sim, pode ser que não. Nunca se sabe”, respondia o avô. “Mas se nessa época eu tivesse uma moeda de ouro…” E voltava a contar histórias malucas, sem pé nem cabeça, de bichos fantásticos. Sua barriga novamente engolira o Sol.
Contou ao neto que um dia tiveram de partir. Ia haver uma guerra. O avô já tinha catorze anos. As guerras são tão tristes… Deviam ser proibidas em todas as línguas da Terra. Se o avô não tivesse vindo com sua mãe, seu pai e seus irmãos, o neto não existiria.
O neto ouvia assombrado e via o navio se afastando do cais, um navio cheio de gente, com o avô lá dentro. Tantas vezes o avô contou essa história que o neto até sabia de que lado soprava o vento.
O avô gostou muito de chegar num país cheio de sol. Mas às vezes lembrava do tio que morava no alto da colina…
Depois o avô cresceu. Teve uma loja, uma mulher, quatro filhos. Aí os filhos cresceram.
E o avô teve um neto…
(Ilustração: Norman Rockwell)
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Roseana Murray - Um avô e seu neto
segunda-feira, 17 de novembro de 2025
LE SERPENT QUI DANSE /A SERPENTE QUE DANÇA, de Charles Baudelaire
Que j'aime voir, chère indolente,
De ton corps si beau,
Comme une étoffe vacillante,
Miroiter la peau!
Sur ta chevelure profonde
Aux âcres parfums,
Mer odorante et vagabonde
Aux flots bleus et bruns,
Comme un navire qui s'éveille
Au vent du matin,
Mon âme rêveuse appareille
Pour un ciel lointain.
Tes yeux, où rien ne se révèle
De doux ni d'amer,
Sont deux bijoux froids où se mêle
L'or avec le fer.
A te voir marcher en cadence,
Belle d'abandon,
On dirait un serpent qui danse
Au bout d'un bâton.
Sous le fardeau de ta paresse
Ta tête d'enfant
Se balance avec la mollesse
D'un jeune éléphant,
Et ton corps se penche et s'allonge
Comme un fin vaisseau
Qui roule bord sur bord et plonge
Ses vergues dans l'eau.
Comme un flot grossi par la fonte
Des glaciers grondants,
Quand l'eau de ta bouche remonte
Au bord de tes dents,
Je crois boire un vin de Bohême,
Amer et vainqueur,
Un ciel liquide qui parsème
D'étoiles mon cœur!
Tradução de Juremir Machado da Silva:
Babo de ver, gata indolente,
Do teu corpo de modelo,
Como uma lingerie insolente,
Tremeluzir o pelo.
Sobre teu cabelo profundo,
Acres perfumes,
Mar odorante e vagabundo,
Ondas azuis e negrumes,
Como um navio que se espelha
No vento do novo dia,
Minha alma sonhadora aparelha
Para um céu de utopia.
Teus olhos que nada revelam
De doce nem de fatal,
São joias frias que modelam
O ouro com o vil metal.
Quem te vê nesse andar que balança,
Manhosa de exaustão,
Imaginaria uma serpente que dança
Na ponta de um bastão.
Sob o fardo da lascívia
Tua cabeça de infante
Ondeia com a malícia
De um jovem elefante,
E teu corpo se dobra e estira,
Como um barco sem mágoa,
Que costeia a margem e atira
As suas vergas na água.
Como as vagas alimentadas pelas fontes
Das geleiras mordentes,
Quando as águas da tua boca são pontes
Para o fio de teus dentes,
Creio beber da Boêmia um vinho,
Amargo e campeão,
Céu líquido que faz um caminho
De estrelas no meu coração!
(Ilustração: Herman Richir - sueños azules)
sexta-feira, 14 de novembro de 2025
UMA CARTA DE DANÇAS E CAMÉLIAS BRANCAS, de Rainer Maria Rilke
[...] é a primeira vez, por mais estranho que seja, que narro (e, no fim das contas, apenas para mim mesmo) um acontecimento da minha mais remota infância.
O quanto eu ainda devia ser pequeno naquela época é algo que posso deduzir do fato de me ajoelhar sobre a poltrona para alcançar confortavelmente a mesa sobre a qual desenhava. Era à noitinha, no inverno, se não me engano, na casa da cidade. A mesa estava em meu quarto, entre as janelas, e não havia outra lâmpada no quarto senão aquela que iluminava minhas folhas e o livro de mademoiselle; pois mademoiselle estava sentada ao meu lado, um tanto afastada para trás, e lia. Ela ficava bem distante quando lia, e não sei se estava no livro; podia ler por horas a fio, raramente virava uma folha, e eu tinha a impressão de que abaixo dela as páginas ficavam sempre mais cheias, como se acrescentasse palavras com o seu olhar, palavras determinadas de que precisava e que não estavam lá. Era o que me parecia enquanto desenhava. Eu desenhava devagar, sem propósitos muito determinados, e quando não sabia mais como ir adiante, olhava tudo com a cabeça levemente voltada para a direita; era assim que sempre me ocorria mais depressa aquilo que ainda estava faltando. Eram oficiais a cavalo que cavalgavam para a batalha, ou que já estavam no meio dela, o que era muito mais simples, pois o que havia a fazer então era quase tão-somente a fumaça que tudo envolvia. Mamãe, todavia, sempre afirmava que eu desenhava ilhas; ilhas com árvores grandes, um castelo, uma escadaria e flores na beirada que deveriam se refletir na água. Mas acho que ela inventava isso, ou isso deve ter sido mais tarde.
É certo que naquele dia à noitinha eu desenhava um cavaleiro, um solitário cavaleiro, muito nítido, sobre um cavalo estranhamente ajaezado. Eu alternava os lápis com frequência, e ele ia ficando sempre mais colorido, mas era sobretudo o vermelho que me interessava e que sempre voltava a pegar. Precisava dele outra vez; foi quando ele rolou (ainda o vejo) de viés até a borda da mesa sobre a folha iluminada, caiu antes que eu pudesse impedir e sumiu. Eu precisava dele realmente com urgência, e era bem incômodo ter de me arrastar em sua busca. Desajeitado como eu era, custou-me toda sorte de esforços chegar ao chão; minhas pernas me pareciam longas demais, eu não conseguia tirá-las de baixo do meu corpo; sustentada por tempo demais, a posição de joelhos tinha entorpecido meus membros; eu não sabia mais o que era parte de mim e o que era parte da poltrona. Enfim, porém, um tanto confuso, cheguei ao chão e me encontrei sobre uma pele que se estendia debaixo da mesa chegando quase até a parede. Mas então surgiu uma nova dificuldade. Acomodados à claridade lá em cima e ainda completamente entusiasmados com as cores sobre o papel branco, meus olhos não reconheciam o mínimo que fosse embaixo da mesa, onde o preto me parecia tão fechado que eu tinha medo de esbarrar nele. Confiei, portanto, no meu tato, e, de joelhos e apoiado sobre a mão esquerda, sondei com a outra mão o tapete frio e de fios longos, bem familiar ao toque; apenas não havia sinal do lápis. Eu achava que estava perdendo tempo demais e já queria chamar mademoiselle e lhe pedir que segurasse a lâmpada para mim, quando percebi que a escuridão se tornava pouco a pouco mais transparente para os meus olhos, que se esforçavam involuntariamente. Eu já podia distinguir a parede atrás, rematada por um rodapé claro; orientei-me pelas pernas da mesa; reconheci, sobretudo, a minha própria mão aberta que, completamente sozinha, um pouquinho como um animal aquático, se movia lá embaixo e investigava o fundo. Eu a via, ainda me lembro, quase curioso; era como se pudesse fazer coisas que eu não a tinha ensinado, tal a maneira despótica com que tateava lá embaixo com movimentos que eu nunca a tinha observado fazer. Acompanhei o seu avanço, era algo que me interessava e eu estava preparado para muita coisa. Mas como deveria estar preparado para que, de repente, saída da parede, viesse ao seu encontro uma outra mão, uma mão maior, incomumente magra, como jamais tinha visto semelhante? Ela procurava da mesma maneira a partir do outro lado, e as duas mãos abertas se moviam cegamente uma em direção à outra. Minha curiosidade ainda não havia sido consumida, mas, de súbito, ela tinha acabado, e o que restava era apenas o horror. Senti que uma das mãos me pertencia e que estava se metendo em alguma coisa que não poderia ser remediada. Com todos os direitos que tinha sobre ela, detive-a e puxei-a de volta, aberta e devagar, enquanto não perdia a outra de vista, que continuava procurando. Compreendi que ela não desistiria; não sei dizer como foi que me levantei. Fiquei sentado bem no fundo da poltrona, batia o queixo e tinha tão pouco sangue no rosto que me pareceu que não haveria mais azul em meus olhos. Mademoiselle, quis dizer e não consegui, mas ela se assustou por si mesma, largou seu livro e se ajoelhou ao lado da cadeira chamando meu nome; acho que me sacudiu. Mas eu estava completamente consciente. Engoli em seco algumas vezes, pois queria contar o que tinha acontecido.
Mas como? Eu me concentrei de uma forma indescritível, mas não era algo que se pudesse expressar de modo que alguém compreendesse. Se existiam palavras para esse acontecimento, eu era muito pequeno para encontrá-las. E de repente fui tomado pelo medo de que, passando por cima da minha idade, elas pudessem estar repentinamente aí, essas palavras, e ter de dizê-las me pareceu então mais terrível que tudo. Passar outra vez por aquela coisa real ali embaixo, de outra maneira, modificada, desde o início; ouvir como a admitia – para isso eu não tinha mais forças.
É presunção, obviamente, se afirmo agora que já naquela época eu tinha sentido que naquela ocasião havia entrado algo em minha vida, e entrado diretamente, com o que eu teria de lidar sozinho, sempre e sempre. Vejo-me deitado em minha pequena cama gradeada, sem dormir, antevendo de algum modo impreciso que a vida seria assim: cheia de coisas singulares que são pensadas apenas para um indivíduo e que não se deixam dizer. Certo é que pouco a pouco surgiu em mim um orgulho triste e grave. Eu imaginava como seria andar por aí cheio de coisas interiores, e em silêncio. Senti uma simpatia arrebatada pelos adultos; eu os admirava, e me propus lhes dizer que os admirava. Propus-me dizê-lo a mademoiselle na primeira ocasião. E então veio uma dessas doenças que tinham o propósito de me mostrar que aquela não fora a primeira vivência própria. A febre remexeu em mim e tirou bem lá do fundo experiências, imagens e fatos que eu ignorava; eu jazia ali, sobrecarregado de mim, e esperava pelo momento em que me fosse mandado acomodar todas essas coisas outra vez em mim, ordenadamente, segundo a sua sequência. Comecei a fazê-lo, mas aquilo começou a crescer debaixo de minhas mãos, aquilo resistia, era demais. Então fui tomado pela raiva e amontoei tudo dentro de mim e apertei; mas eu não fechava mais. E aí gritei, meio aberto como estava, gritei e gritei. E quando comecei a olhar para fora de mim, eles estavam parados há tempo em volta da minha cama e me seguravam as mãos, e havia uma vela, e as suas grandes sombras se moviam atrás deles. E meu pai me ordenou que dissesse o que estava acontecendo. Era uma ordem amigável, branda, mas era uma ordem, em todo o caso. E ele ficou impaciente quando não respondi.
Mamãe nunca vinha à noite – quer dizer, uma vez ela veio. Eu tinha gritado e gritado, e mademoiselle tinha vindo, e Sieversen, a governanta, e Georg, o cocheiro; mas isso não adiantou nada. Eles mandaram, por fim, a carruagem buscar meus pais, que estavam em um grande baile, acho que oferecido pelo príncipe herdeiro.
E, de repente, ouvi-a entrar no pátio e fiquei quieto, sentado e olhando para a porta. Houve um pouco de ruído nos outros quartos e mamãe entrou usando o grande vestido da corte, com o qual não teve qualquer cuidado, e quase corria e deixou cair sua peliça branca atrás de si e me tomou nos braços nus. E eu toquei, espantado e encantado como nunca, seu cabelo e seu rosto pequeno e cuidado, as pedras frias em suas orelhas e a seda que orlava seus ombros que cheiravam a flores. E ficamos assim e choramos suavemente e nos beijamos até perceber que o pai estava ali e que tínhamos de nos separar.
– Ele está com febre alta – ouvi mamãe dizer timidamente, e o pai pegou minha mão e tomou meu pulso.
Ele usava o uniforme de monteiro-mor [1] com o galão bonito, largo, aquaticamente azul da Ordem do Elefante.
– Que absurdo nos chamar – ele disse para as paredes, sem me olhar.
Eles tinham prometido voltar para o baile se não fosse nada sério. E não era nada sério. E sobre meu cobertor encontrei a carta de danças[2] de mamãe e camélias brancas, que nunca tinha visto, e que pus sobre meus olhos assim que percebi como eram frias.
Notas:
[1]Monteiro-mor ou couteiro-mor era um oficial da casa real encarregado de governar, superintender e dirigir as coutadas de caça, e dirigir as caçadas reais e as pessoas que nelas participavam.
[2]. Carta de danças: relação das danças a serem executadas durante um baile e dos parceiros escolhidos pela dama para cada uma delas.
(Os cadernos de Malte Laurids Brigge; tradução de Renato Zwick)
(Ilustração: Berthe Morisot - Wiege, 1873)
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