segunda-feira, 18 de novembro de 2024

LO QUE SIENTE LA MANO / O QUE SENTE A MÃO, de Idea Vilariño

 


 

Lo que siente la mano

lo que carga

que sostiene

no es mi frente mi piel mi inteligencia

es el hueso gentil

la calavera

con sus tibios disfraces

con sus órbitas

por el momento llenas

con la suelta mandíbula que un día

remedará la risa

ese día en que deje tirados por ahí

mi esqueleto liviano

mi cráneo regular

y quede yo

mis labios y mis pies

mi pelo mis mejillas

mis ojos mi color

y todo lo que fui

lentamente

obviamente

pudriéndose

pudriéndose

volviéndose ceniza.

 

Tradução de Priscilla Campos:

 

O que sente a mão

o que carrega

segurando

não é minha testa minha pele minha inteligência

é o osso gentil

a caveira

com seus disfarces mornos

com suas órbitas

por um momento cheias

com a mandíbula solta que um dia

imitará a risada

naquele dia em que deixei abandonado por aí

meu esqueleto leviano

meu crânio regular

e eu fico

meus lábios e meus pés

meu cabelo minha bochecha

meus olhos minha cor

e tudo que eu fui

devagar

obviamente

apodrecendo

apodrecendo

virando cinza.

 

(Nocturnos, 1955)

 

(Ilustração: Alyssa Monks)

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

DESCULPAS À FAMÍLIA MESQUITA, de Tom Cardoso


 

Minha filha de 15 anos já sabe falar alemão, inglês e espanhol.

Outro dia, entrou em casa chutando a mochila. Tinha tirado 8,1 em Biologia.

Abri o armário. Fui fuçar o meu histórico escolar. Estavam ali, os boletins dos tempos de Virgília, a escola estadual onde passei boa parte da minha juventude até conseguir completar o colegial. Perto de mim, Damares é uma acadêmica brilhante.

Eu era tão preguiçoso e cara de pau, que uma vez, precisando entregar um trabalho enorme de ciências, colei o capítulo inteiro de um livro do Mario Schenberg, ele mesmo, o lendário físico, amigo de meu pai e de Albert Einstein. Contava com a ignorância do professor de física para não ser desmascarado.

Acho que até ganharia um dez, com louvor, se não tivesse, distraído, incluído no texto a seguinte frase: "veja a figura ao lado".

Em 1990, já reprovado quatro vezes, consegui tirar 6,5 em OSPB (Organização Social e Política Brasileira) e ainda ganhei um elogio do professor por ser o único a explicar razoavelmente quem era Golbery do Couto e Silva. Um isolado momento de glória de minha vida escolar.

Eu era um caso curioso. Semi-analfabeto - não sei até hoje conjugar nenhum tipo de verbo e não faço a menor ideia do que seja adjunto adverbial -, lia, desde os onze anos, todos os colunistas dos quatro jornais trazidos pelo meu pai (também jornalista): JB, O Globo, Estadão e Folha.

Com 12 anos li "Minha Razão de Viver", do Samuel Wainer, e "A Regra do Jogo", do Claudio Abramo. Decidi ser jornalista.

Minha mãe dizia que eu precisava, pelo menos, aprender inglês, e me colocou na Cultura Inglesa, em Pinheiros, que ficava em frente à lendária loja de discos do Edgar, que virou até tema de filme.

Descia do ônibus direto pra loja. Nunca entrei na Cultura. Foi lá que ouvi Toy Dolls pela primeira vez. Não entendi porra nenhuma da letra, mas nem era esse mesmo o propósito dos caras.

O tempo passou. Com 19 anos, ainda no colegial, consegui uma vaga no Jornal da Tarde, na editoria de Esportes. Meu trabalho se resumia a comprar cigarro para os editores e buscar informações no arquivo para os repórteres.

- Tom, vai lá e compra um Hollywood e duas peras.

- Tom, vai lá e vê pra mim quantos jogos o Biro-Biro fez pelo Corinthians.

- Tom, paga essa conta lá no banco? Não esquece o comprovante.

Enfim, um boy disfarçado de estagiário de jornalismo, algo muito comum naquela época. Um bando de chefe feladaputa. As únicas exceções: Cosme Rímoli, Carlos Ferreira Lima e Denise Mirás, que nunca me mandaram fazer feira e ainda me ensinaram que não se deve, por exemplo, colocar crase antes de uma palavra masculina.

Com saco cheio de fazer tabela do campeonato paulista (confesso aqui que sempre roubei uns gols a mais para o Corinthians), parei no corredor o então editor do Caderno 2 do Estadão, Evaldo Mocarzel, e pedi uma vaga de estagiário na editoria de cultura.

O Evaldo era o carioca mais carioca da redação.

- Do que você entende, brother?

- Meu negócio é música.

- Sabe inglês?

- Praticamente minha primeira língua.

Eu sabia que a maioria dos repórteres daquela época não sabia inglês. Dos quatro responsáveis por cobrir música no Caderno 2, só o Jotabê Medeiros segurava uma entrevista inteira. E, além do mais, ninguém pediria para um estagiário fazer uma entrevista com o Quincy Jones. Eu não corria esse perigo.

Até que, uma semana depois, alguém gritou:

- Alguém viu o Jotabê?

O Jotabê tinha sumido, como sempre. Quem trabalhou nos anos 90 por lá sabe do que estou falando.

- Acharam o Jotabê? Ligação internacional pra ele.

Parece mentira, mas é verdade. Nos anos 90, até existia a figura do assessor de imprensa, mas muitos artistas dispensavam esse tipo de intermediário e ligavam diretamente para as redações, para dar a entrevista. A gravadora mandava o número e o cara ligava, de casa.

Logo se soube que o cara na linha, querendo falar com o Jotabê, era o Sting.

- Mauro, você fala com Sting?

- Mas nem a pau.

Mauro Dias, decano do jornalismo cultural, o cara que sabia tudo sobre música brasileira, mas nada sobre verbo to be.

- Haag, fala aqui com o Sting?

- Quem é esse cara mesmo? Me tira dessa?

- Toninho?

- Não dá, tô fechando uma matéria.

- Gente, o homem já está há dez minutos na linha.

- Pode deixar que eu falo com o cara.

Eu comecei a falar um inglês inventado, pior que o do Raoni. O Sting começou a gritar e desligou. Fiz a matéria, que foi publicada no dia 4 de abril de 1996. É só olhar no acervo do Estadão. Minha carreira deslanchou.

Peço aqui minhas desculpas à família Mesquita.



(Ilustração: Enoch Wood - young Franklin at the press)

terça-feira, 12 de novembro de 2024

בוכים / OS PARAQUEDISTAS CHORAM, de יים חפר, Haim Hefer

 


     

הכותל הזה שמע הרבה תפילות

הכותל הזה ראה הרבה חומות נוֹפלות

הכותל הזה חָש ידי נשים מקוֹנְנוֹת וּפִתְקָאות הנִתְחבוֹת בין אבניו

הכותל הזה ראה את רבי יהודה הלוי נִרמס לפניו

הכותל הזה ראה קיסרים קמים ונִמְחים

אך הכותל לא ראה עוד צנחנים בוכים...

הכותל הזה ראה אותם עייפים וסחוטים

הכותל הזה ראה אותם פצועים ושרוטים

רצים אליו בְּהַלמות לב, בִּשְאגות וּבְשתיקה

ומזנקים כמטורפים בסמטאות העיר העתיקה

והם שטופי אבק וְּצְרוּבי שפתיים

והם לוחשים: "אם אשכחך, אם אשכחך ירושלים"

והם קלים כַּנשר ועזים כַּלָביא

והטנקים שלהם - מֶרְכֶּבֶת האש של אליהו הנביא

והם עוברים כְּרעם, והם עוברים בְּזעם

והם זוכרים את כל השנים הנוראות

שבהן לא היה לנו אפילו כותל כדי לשפוך לפניו דמעות...

והנה הם כאן עומדים לפניו ונושמים עמוק

והנה הם כאן מביטים עליו בַּכְּאֵב הַמָתוק

והדמעות יורדות והם מביטים זה בָּזֶה נבוכים

איך זה קורה, איך זה קורה שצנחנים בוכים

איך זה קורה שהם נוגעים נרגשים בקיר

איך זה קורה שמן הַבֶּכי הם עוברים לְשִיר

אולי מפני שבחורים בני י"ט שנולדו עם קום הַמְדִינה

נושאים על גבם - אלפיים שנה...



Tradução de Rafael Stern:



Este muro ouviu muitas orações

Este muro viu muitos outros muros tombarem

Este muro sentiu o toque de mulheres em luto, que choravam por seus filhos

Este muro sentiu bilhetes e pedidos serem depositados entre suas pedras

Este muro viu Rabbi Yehuda Halevi ajoelhado a sua frente

Este muro viu césares levantarem e caírem

Mas este muro nunca antes tinha visto paraquedistas chorarem.



Este muro os viu cansados e aflitos

Este muro os viu feridos e mutilados

Correndo em sua direção com os corações disparados, em alegria, choro, ou silêncio

Rastejando como predadores pelas ruelas da Cidade Velha



Cobertos de pó e com os lábios rachados,

Murmurando: “Se eu esquecer de ti, ó Jerusalém”...



Eles são leves e velozes como as águias; ferozes e valentes como leões

Seus tanques são como as carruagens de fogo do profeta Eliahu

E eles passam em fúria como um trovão

Relembrando os milhares de anos em que nem tínhamos um muro onde derramar nossas lágrimas.



E eis que chegam ao Muro

E, com a respiração pesada, soluçam em silêncio.

E o contemplam em doce lamentação.

As lágrimas escorrem e eles se entreolham confusos.

Como pode paraquedistas chorarem?

Como podem tocar o muro com tanta emoção?



O que aconteceu de repente

Que seu choro se transformou em canto?

Talvez porque estes garotos de dezenove anos, que nasceram junto com o Estado de Israel,

Carregam sobre seus ombros dois mil anos de dispersão.



(1967)



(Ilustração: Jean-Léon Gérôme - Muro das Lamentações – Israel)

sábado, 9 de novembro de 2024

GORGONZOLA, de Clarice Niskier

 


Não sou mais um queijo Minas Frescal, não sou mais uma Ricota, não sou um queijo amarelo qualquer para um lanche sem compromisso.

Não sou para qualquer um, nem para qualquer um dou bola, agora tenho status, sou um queijo Gorgonzola.

“Estamos envelhecendo, estamos envelhecendo, estamos envelhecendo”, só ouço isto.

No táxi, no trânsito, no banco, só me chamam de senhora.

E as amigas falam “estamos envelhecendo” como quem diz “estamos apodrecendo”.

Não estou achando envelhecer esse horror todo.

Até agora.

Mas a pressão é grande.

Então, outro dia, divertidamente, fiz uma analogia.

O queijo Gorgonzola é um queijo que a maioria das pessoas que eu conheço gosta. Gosta na salada, no pão, com vinho tinto, vinho branco, é um queijo delicioso, de sabor e aroma peculiares, uma invenção italiana, tem status de iguaria com seu sabor sofisticadíssimo, incomparável, vende aos quilos nos supermercados do Leblon, é caro e é podre.

É um queijo contaminado por fungos, só fica bom depois que mofa. É um queijo podre de chique.

Para ficar gostoso tem que estar no ponto certo da deterioração da matéria. O que me possibilita afirmar que não é pelo fato de estar envelhecendo ou apodrecendo ou mofando que devo ser desvalorizada.

Saibam: vou envelhecer até o ponto certo, como o Gorgonzola.

Se Deus quiser, morrerei no ponto G da deterioração da matéria.

Estou me tornando uma iguaria. Com vinho tinto, sou deliciosa.

Aos 50 fui uma mulher para paladares variados, aos 70 sou uma mulher para paladares sofisticados.

Não sou mais um queijo Minas Frescal, não sou mais uma Ricota, não sou um queijo amarelo qualquer para um lanche sem compromisso.

Não sou para qualquer um, nem para qualquer um dou bola, agora tenho status, sou um queijo Gorgonzola.





(Ilustração: James Ensor (1860-1949) - La dame en bleu)

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

SONETO NOJENTO, de Glauco Mattoso

 


Tem gente que censura o meu fetiche:

lamber pé masculino e o seu calçado.

Mas, só de ver no quê o povo é chegado,

não posso permitir que alguém me piche.



Onde é que já se viu ter sanduíche

de fruta ou vegetal mal temperado?

E pizza de banana? E chá gelado?

Frutos do mar? Rabada? Jiló? Vixe!



Café sem adoçar? Feijão sem sal?

Rã? Cobra? Peixe cru? Lesma gigante?

Farofa de uva passa? Isso é normal?



Quem gosta disso tudo não se espante

com minha preferência sexual:

lamber o pé e o pó do seu pisante.



(Centopeia - sonetos nojentos & quejandos)



(Ilustração: Madonna do Rosário - detalhe, c. 1607)

domingo, 3 de novembro de 2024

O TEMPO DIRÁ, de Rosiska Darcy de Oliveira

 



A humanidade sempre foi arrogante e curiosa. Se assim não fosse, não haveria ciência, essa história humana da natureza, contada pelos cientistas no ritmo em que desafiam seus mistérios, a transformam e reinventam. Até meio século atrás acreditávamos que, mais cedo ou mais tarde, seríamos capazes de solucionar qualquer problema. Até descobrirmos que o problema maior éramos nós mesmos.

Ferida narcísica, golpe mortal na autoimagem de onipotência, a noção de limite nasceu dos próprios cientistas e veio para ficar desde que o Clube de Roma anunciou que a natureza não era inesgotável, que mares e rios morriam, que ventos enlouqueciam, os polos derretiam espalhando icebergs à deriva, por obra e graça de nossos estilos de vida e das florestas que amputamos. De lá para cá a ecologia foi senhora da agenda científica e política, da insônia dos ansiosos e das revoltas juvenis.

Limite, uma noção até então estranha ao nosso espírito aventureiro, impôs suas razões. Meio Ambiente e Sustentabilidade entraram no vocabulário corrente, associados a uma correção de rota na trajetória desenfreada da economia e das sociedades.

Como nunca nos consideramos parte da natureza, essa consciência dos limites não afetou, na vida de cada um, a relação predatória com o tempo. Tampouco influiu na poluição dos dias por uma multiplicidade de vidas que transbordam das 24 horas, como se as energias humanas também fossem inesgotáveis e não fosse o tempo não renovável e, como tal, de alto valor.

Talvez a inexorabilidade da morte, essa certeza dolorosa sobre a qual pesa o silêncio, impeça a lucidez sobre o suicídio cotidiano que representa nossa estranha forma de vida.

Com amarga ironia, poderíamos perguntar quantas horas trabalhamos para a compra de um Patek Philippe? O homem mais rico do mundo, que compra foguetes espaciais para desbravar o universo, não encontra tempo à venda em nenhum leilão de raridades. A morte, única detentora desse bem escasso, não vende.

Gastamos nosso tempo como sempre gastamos a natureza, no marco da predação, como se a vida e as energias humanas fossem infinitas. O paradigma da onipotência e da falta de limite, o pressuposto de energias inexauríveis que desencadeou a crise ambiental e climática, é o mesmo que contaminou o cotidiano das pessoas e se traduz no consumo descontrolado do tempo em que o hoje invade o amanhã.

Nas megalópoles instalou-se a tirania da pressa que enche os consultórios de psiquiatras e cardiologistas. Enquanto a longevidade se afirma como um fato, os dias são percebidos como cada vez mais curtos. As horas se desentendem, disputam entre si o primado do inadiável. Vivemos vidas insustentáveis. No duplo sentido da palavra.

Nosso estilo vida resulta da conjunção aleatória de fatores aparentemente díspares que interagem, se retroalimentam e acabam por provocar um resultado desastroso.

A vida privada foi ocultada em seu valor. A sociedade contemporânea ainda não colocou como um direito, para homens e mulheres, a dispor de tempo para a vida privada. Deveria, quanto mais não fosse, em respeito à infinidade de gestos que, desde sempre, as mulheres fizeram para transformar cada um de nós em seres humanos melhores do que os animais selvagens que somos ao nascer. Esses gestos fundadores nunca mereceram um mísero registro nos livros de história da civilização, embora nos civilizar tenha sido a grande aventura educativa da espécie, a mais espetacular transformação da natureza em cultura levada a cabo pelas mulheres.

De difícil solução, a questão da compatibilização da vida privada com o mundo do trabalho, quando os “anjos do lar” já são mais da metade da força de trabalho, foi devolvida à intimidade dos casais onde não encontra resposta.

A vida real, que não perdoa, fez dessa ocultação uma angústia diária de homens e mulheres, ainda que silenciosa e sem lugar de expressão no mundo do trabalho que exerce pressão inclemente por mais e mais performances, rendimentos, cumprimento de metas, missões impossíveis em que o urgente atropela o importante. Pergunta-se mais “como” e “quando” do que “por quê” e “para quê”. Nesse reino da urgência, o estresse é a regra e a somatização o sintoma. Cada um é o contramestre de si mesmo, tanto mais severo quanto mais competitivo.

A fome de tempo está na origem da doença urbana epidêmica, que é a depressão.

Aceleradas são as megalópoles onde todos querem rapidez, ninguém se move, e explodem surtos em engarrafamentos de pesadelo. Quem sonhou com um carro suporta hoje a velocidade de um lombo de burro, enquanto envenena o ar que todos respiram e se envenena com a bílis da irritação.

Mas já vai longe o tempo em que a vida real era balizada por família e trabalho, no cenário das cidades. Ela foi atravessada por outra vida, que se desdobra ao infinito, a vida virtual.

A vida virtual tornou-se parte da vida real e já não é possível separá-las ou estabelecer, entre elas, uma hierarquia. A vida de cada um gira cada vez mais em torno de duas pequenas telas: o computador e o celular. Quem mergulha nessas telas cai, como Alice, do outro lado do espelho. As balizas de tempo não vigoram no ciberespaço. O tempo pode ser inventado, relativizando essa dimensão com que trabalhava o pensamento na construção da ideia mesma de real. O mundo se expande e encolhe ao mesmo tempo. Arte e política se submetem ao novo modo de viver. No país de Proust um concurso literário desafia escritores a um conto de 140 toques. Políticos comprimem em frases amputadas receitas para salvar seus países do caos. Google, o ciberoráculo, responde a qualquer questão, salvo de onde viemos e para onde vamos.

Quem não fala digital nativo passa seu tempo correndo atrás de tecnologias que, mal acabamos de dominar, já mudaram e cobram, em tempo, o preço do próprio tempo que elas prometiam nos poupar. Nos realfabetizamos uma vez por semana. Imigrantes no futuro, não estamos bem situados para entender o ciberespaço e suas zonas de sombra, essa população incorpórea em que qualquer um se desdobra em quantas vidas queira se atribuir. Quem se delicia no anonimato e se quer inimputável, sem lei, sem superego, sem tabu, somos nós mesmos, desmaterializados.

A vida virtual, essa vida a mais, é um rebatimento do mundo real, sem instituições, sem códigos de moral ou ética, de relacionamento entre pessoas, sem os interditos civilizatórios que domesticam a fera que dorme em cada um.

E assim íamos vivendo, aos trancos e barrancos, quando a máquina do mundo subitamente parou. Sem aviso prévio, um vírus desconhecido, contagioso e letal, trancou a população mundial em casa, condenando todos a uma coletiva convivência com o medo da morte. A pandemia do coronavírus derrubou as balizas já conhecidas do tempo e instalou um paradoxo desconhecido, uma vida sem futuro em que a morte e a doença sufocante, omnipresentes, tornavam o limite de cada um visível a olho nu.

A vida tornou-se, em qualquer idade, uma doença terminal. A temporalidade de zapping que moldava nosso cotidiano, fragmentado em múltiplas vidas, desapareceu, e em seu lugar emergiu uma vivência do tempo que ninguém conhecia, de improviso da sobrevivência. O tempo que nos faltava sobrou, ocioso, dedicado sobretudo, a chegar ao dia seguinte. Perplexos, confinados em nossos corpos vulneráveis, apelamos para nossa dimensão incorpórea, abrindo caminho para que a vida virtual primasse sobre a miserável natureza humana.

A vida mudou-se para o ciberespaço, único continente imune ao vírus. E se antes essa vida virtual já tinha vindo se acrescentar a uma acelerada vida real, agora ela reivindicava para si o primado do nosso tempo.

A pandemia deixou como sequela um aumento vertiginoso de tempo passado no ciberespaço. Muitos abandonaram seus espaços de trabalho. As famílias foram impactadas por esse tempo passado em casa de maneira inabitual. Ensaiam-se novos arranjos cotidianos. Que efeitos terá a longo prazo esse solavanco que sacudiu o mundo inteiro? Os tempos que correm, correm para onde? O tempo dirá.



(Ilustração: Salvador Dalí) 

quinta-feira, 31 de outubro de 2024

REENCONTRO, de Gil T. Sousa

 




diz-me que

não leve o vinho



que os fios de nós

precisam de outro tear



de agulhas mais fortes

que os teçam em voz



em dádiva talvez



diz-me

que leve as palavras

as mais guardadas



aquelas que a pele

do tempo não suou



as que gelam no

grave segredo do olhar



e que leve as mãos

e que elas falem



que voltem a dançar

na sua mão



ou mais perto

muito mais perto



(Ilustração: Catherine Chauloux)

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

BRASIL: PARA COMPREENDER UM FASCISTA, de Walter Falceta

 



1) Frequentemente, o fascista se julga em uma cruzada santa contra o pecado e os pecadores.

2) Nesse campo da guerra dos costumes, ocorre a convergência entre a doutrina política conservadora e o credo evangélico.

3) Como se julga em uma missão santa, o fascista considera conveniente e até necessário agir de modo intolerante, impositivo e violento.

4) Há fascistas cultos, que são poucos, empenhados dia e noite em multiplicar a crença entre a massa de incultos.

5) A principal missão do fascista culto é fazer com que a massa se sinta prejudicada por qualquer política progressista.

6) O fascista articulador diz que negócios fracassam por causa do Bolsa Família.

7) Afirma que o branco não tem emprego em razão das políticas afirmativas de integração racial.

8) Sustenta que as aflições masculinas são resultado do empoderamento feminino.

9) Declara que os conflitos familiares decorrem de uma conspiração funesta urdida no campo da diversidade afetiva.

10) A "inteligência" fascista afirma, dia e noite, que há uma conspiração contra os valores tradicionais e que o pensamento progressista visa a perverter a juventude.

11) Uma expressão primitiva do fascismo condenou Sócrates (o filósofo), acusando-o de cometer este suposto delito.

12) Uma expressão recente do fascismo condenou Sócrates (o jogador), acusando-o de cometer o mesmo delito.

13) O fascismo tem obsessão com o tema da corrupção. A ideia é criminalizar e desqualificar o outro, aquele ideologicamente divergente, reduzindo-o à condição de bandido comum.

14) Em geral, o fascista acusa os adversários dos crimes que cotidianamente comete. Por este motivo, conhece muito bem o roteiro da argumentação caluniosa e do negacionismo. O fascismo nacional, por exemplo, tenta difundir a ideia de que Hitler era um esquerdista.

15) Ao martelar o tema da corrupção, o fascista diz aos estratos economicamente médios e inferiores que todos os seus fracassos e sofrimentos são de responsabilidade exclusiva dos progressistas.

16) O mote da corrupção é a resposta fácil para uma pergunta difícil: por que sofremos?

17) O fascista elimina todo o complexo debate sobre as razões estruturais da pobreza, do fracasso e da infelicidade social. Reduz a resposta à corrupção (supostamente praticada pelos outros) e à erosão dos costumes tradicionais.

18) O fascista e o neoliberal se entendem ao atribuir a infelicidade à preguiça e à falta de talento. Ambos isentam de culpa a exploração dos vulneráveis pelos mais fortes, sistema que preserva privilégios e regalias.

19) O fascista e o neoliberal apresentam exceções à regra para tentar justificar a doxa meritocrática.

20) O fascista trabalha sempre para que sua vontade supere o direito do outro (seja ele uma pessoa ou um grupo). Intimamente, o fascista se satisfaz quando impõe sua vontade acima da vontade dos diferentes.

21) Por tal razão, como lembra Eco, o fascista tem uma obsessão pelo militarismo, ou seja, por aquelas pessoas fisicamente fortes, fardadas e armadas que podem praticar a violência com o beneplácito do Estado.

22) O militar pode promover atrocidades que seriam motivo de punição para o cidadão comum. O mesmo se aplica aos profissionais encarregados de atuar em sessões de tortura e assassinatos políticos.

23) O fascismo aposta no rancor das massas. O rancor e o ressentimento são os combustíveis dos movimentos políticos reacionários.

24) O rancor é resultado, sobretudo, da negação sistemática da razão.

25) Novamente, a razão aponta a desigualdade e a exploração como causas do sofrimento humano.

26) A ausência da razão ajuda a difundir a tese de que o sofrimento é culpa dos diferentes.

27) O fascismo difunde uma falsa ideia de coletivo forte, de iguais empenhados em uma mesma missão. Na verdade, o fascismo elimina a democracia, concentra poderes, censura a opinião divergente e impõe uma uniformidade castradora da mente criativa.

28) Por este motivo, o fascismo tem tanto medo da arte. Incluída em uma peça do teatrólogo alemão Hanns Jost, simpático ao nazismo, é ilustrativa a frase erradamente atribuída a Goebbels: "quando ouço alguém falar em cultura, já saco o meu revólver".

29) A arte sugere o livre pensar e, inevitavelmente, estimula a subversão. Ao lidar com seus códigos de elaboração criativa, o artista identifica a maldade e a opressão. E pode ainda divulgar suas descobertas para a plateia. Toda arte verdadeira é, portanto, uma ameaça à farsa fascista.

30) O fascismo é frequentemente gestado no campo da limitação e da repressão da sexualidade. Na cama fascista, a relação carnal tende a reproduzir uma relação de poder desprovida de equivalências. No cotidiano, a libido suprimida gera frustração e, em seguida, um rancor difuso. Essa energia é, então, canalizada para o ódio contra os diferentes. A violência fascista tem como fonte os amores não realizados.



(Ilustração: cartaz da internet, sem indicação de autoria)

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

HÁ-DE FLUTUAR UMA CIDADE, de Al Berto (Alberto Raposo Pidwell Tavares)

 


há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida

pensava eu... como seriam felizes as mulheres

à beira mar debruçadas para a luz caiada

remendando o pano das velas espiando o mar

e a longitude do amor embarcado

 

por vezes

uma gaivota pousava nas águas

outras era o sol que cegava

e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite

os dias lentíssimos... sem ninguém

 

e nunca me disseram o nome daquele oceano

esperei sentada à porta... dantes escrevia cartas

punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua

assim envelheci... acreditando que algum homem ao passar

se espantasse com a minha solidão

 

(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no coração. mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.)

 

um dia houve

que nunca mais avistei cidades crepusculares

e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta

inclino-me de novo para o pano deste século

recomeço a bordar ou a dormir

tanto faz

sempre tive dúvidas que alguma vez me visite a felicidade

 


(Ilustração: Kay Sage (June 25, 1898 – January 8, 1963): American Surrealist artist)

terça-feira, 22 de outubro de 2024

VOCÊ NÃO QUER VER OS GATINHOS?, de Toni Morrison

 




Elas vêm de Mobile. Aiken. De Newport News. De Marietta. De Meridian. E o som desses nomes em sua boca faz pensar em amor. Quando a gente pergunta de onde são, inclinam a cabeça, dizem “Mobile” e a gente pensa que ganhou um beijo. Dizem “Aiken” e vê-se uma borboleta branca roçar numa cerca com uma asa rasgada. Dizem “Nagadoches” e você tem vontade de dizer “Sim, aceito”. Você não sabe como são essas cidades, mas adora o que acontece com o ar quando elas abrem os lábios e dizem os nomes.

Meridian. O som da palavra abre as janelas de uma sala, como as quatro primeiras notas de um hino. Poucas pessoas podem dizer o nome de sua cidade natal com tanta afeição dissimulada. Talvez porque não tenham uma cidade natal, só um lugar onde nasceram. Mas essas garotas absorvem o sumo de sua cidade natal, que nunca as deixa. São garotas magras de pele parda que olharam muito tempo para alteias nos quintais de Meridian, Mobile, Aiken e Baton Rouge. E, assim como as alteias, elas são esguias, altas e quietas. Têm raízes profundas, a haste firme, e só a flor, no alto, balança ao vento. Têm os olhos de quem é capaz de dizer a hora pela cor do céu. Essas garotas moram em bairros negros tranquilos, onde todo mundo tem emprego bem remunerado. Onde, nas varandas, há balanços pendendo de correntes. Onde a grama é cortada com uma foice, onde crescem cristas-de-galo e girassóis nos jardins, e vasos de corações-ardentes e hera se alinham nos degraus e no parapeito das janelas. Essas garotas compram melão e feijão na carroça do verdureiro. Colocam na janela um aviso escrito em papelão para o vendedor de gelo, informando quanto gelo querem, quando querem. Essas garotas pardas de Mobile e Aiken não são como algumas de suas irmãs. Não são mal-humoradas, nervosas nem estridentes; não têm belos pescoços negros que se esticam como se forçassem uma coleira invisível; seus olhos não mordem. Essas garotas cor de açúcar mascavo, de Mobile, andam pelas ruas sem chamar a menor atenção. São doces e sem graça como pão de ló. Tornozelos delgados, pés longos e finos. Lavam-se com sabonete Lifebuoy cor de laranja, usam talco Cashmere Bouquet, limpam os dentes com sal num pedaço de pano, amaciam a pele com loção Jergens. Cheiram a madeira, jornal e baunilha. Alisam o cabelo com Dixie Peach e o repartem de lado. À noite, enrolam o cabelo em papelotes pardos, amarram um lenço estampado na cabeça e dormem com as mãos cruzadas sobre o estômago. Não bebem, não fumam nem dizem palavrões, e ainda chamam sexo de “nookey”[*]. São segundo soprano no coral e, embora tenham a voz clara e firme, nunca são escolhidas para solar. Ficam na segunda fila, de blusa branca engomada, saia azul, quase roxa do ferro de passar.

Estudam em faculdades subvencionadas pelo governo federal, cursam a escola normal e aprendem a fazer o trabalho do branco com refinamento: economia doméstica para preparar a comida dele; pedagogia para ensinar crianças negras a obedecer; música para aliviar o cansaço do patrão e entreter-lhe a alma embotada. Ali elas aprendem o resto da lição iniciada naquelas casas tranquilas com balanços na varanda e vasos de corações ardentes: como se comportar. O cuidadoso desenvolvimento de parcimônia, paciência, princípios morais e boas maneiras. Numa palavra, como se livrar da catinga. A horrível catinga das paixões, a catinga da natureza, a catinga da vasta gama de emoções humanas.

Apagam a catinga onde quer que ela irrompa; dissolvem-na onde quer que se encroste; onde quer que goteje, floresça ou se agarre, elas a encontram e a combatem até destruí-la. Travam essa batalha até o fim, até o túmulo. A risada que é um tanto alta demais; a pronúncia um tanto arredondada demais; o gesto um tanto generoso demais. Contraem o traseiro com medo de um balanço demasiado livre; quando usam batom, nunca cobrem a boca inteira, com medo de que os lábios fiquem grossos demais, e preocupam-se, preocupam-se, preocupam-se com as pontas do cabelo.

Nunca parecem namorar, mas sempre se casam. Certos homens as observam, sem dar a impressão de fazer isso, e sabem que, com uma garota assim em casa, vão dormir em lençóis fervidos para branquear, pendurados para secar em pés de zimbro e passados com um ferro pesado. Haverá lindas flores de papel decorando a fotografia da mãe dele e uma grande Bíblia na sala da frente. Eles se sentem seguros. Sabem que sua roupa de trabalho estará remendada, lavada e passada na segunda-feira; que a camisa de domingo, branca e dura de goma, estará no cabide pendurado no umbral da porta. Olham para as mãos dela e sabem o que ela fará com massa de biscoito; sentem o cheiro do café e do presunto frito; veem o pão branco de farinha grossa, fumegante, com um naco de manteiga em cima. Os quadris lhes garantem que elas terão filhos com facilidade e sem dor. E eles têm razão.

O que esse homem não sabe é que essa garota parda e sem graça vai construir seu ninho graveto por graveto, transformá-lo em seu mundo inviolável e montar guarda sobre cada planta, erva daninha e toalhinha que haja ali, mesmo contra o marido. Em silêncio, levará o lampião de volta ao lugar que ela decidiu que é o dele; vai tirar os pratos da mesa assim que o último bocado for comido; limpará a maçaneta da porta depois que uma mão engordurada a tiver tocado. Uma olhada de esguelha será o bastante para dizer a ele que vá fumar na varanda dos fundos. As crianças vão sentir instantaneamente que não podem entrar no jardim dela para pegar a bola que caiu ali. Mas o homem não sabe essas coisas. Assim como não sabe que ela lhe dará o corpo com parcialidade. Ele deve penetrá-la sub-repticiamente, erguendo-lhe a camisola só até o umbigo. Quando faz amor, deve sustentar o próprio peso nos cotovelos, em princípio para não machucar os seios dela, mas na verdade para que ela não tenha que tocá-lo nem senti-lo muito.

Enquanto ele se move dentro dela, ela estará pensando por que não puseram as partes necessárias mas íntimas do corpo num lugar mais conveniente — na axila, por exemplo, ou na palma da mão. Um lugar que se pudesse atingir com facilidade, com rapidez, sem tirar a roupa. Ela se enrijece quando sente um dos papelotes no cabelo se soltar como resultado da atividade do amor; guarda na memória qual é que está se soltando, para poder prendê-lo logo, assim que ele terminar. Espera que ele não sue — a umidade pode passar para o cabelo dela; e que permaneça seca entre as pernas — odeia o som molhado que elas fazem quando está úmida. Ao sentir que ele está prestes a ser dominado por um espasmo, ela fará movimentos rápidos com os quadris, apertará as unhas contra as costas dele, prenderá a respiração e fingirá que está tendo um orgasmo. Talvez se pergunte, pela milésima vez, como seria ter aquela sensação enquanto o pênis do marido está dentro dela. O mais próximo disso que ela sentiu foi na ocasião em que a toalhinha absorvente se soltou da calcinha higiênica, movendo-se suavemente por entre suas pernas enquanto ela andava. Suavemente, muito suavemente. E então uma sensação leve e nitidamente deliciosa começou a se intensificar entre suas pernas. Como o prazer aumentou, ela teve que parar na rua e apertar as coxas para contê-lo. Deve ser assim, pensa ela, mas nunca acontece enquanto ele está dentro dela. Quando ele retira o membro, ela baixa a camisola, levanta e vai para o banheiro, aliviada.

De vez em quando, alguma coisa viva lhe cativará a afeição. Um gato, talvez, que vai adorar sua ordem, precisão e constância; que será tão limpo e silencioso quanto ela. O gato se acomodará quietamente no parapeito da janela e vai acariciá-la com os olhos. Ela poderá tomá-lo nos braços, deixando as patas traseiras se agitar para se apoiar nos seios dela e as dianteiras agarrar-se ao seu ombro. Poderá alisar o pelo macio e sentir por baixo a carne que não opõe resistência. Ao mais leve de seus toques, ele vai se espreguiçar e abrir a boca. E ela aceitará a sensação estranhamente agradável que vem quando ele se contorce sob sua mão e aperta os olhos num excesso de prazer sensual. Quando ela estiver em pé na cozinha, preparando comida, ele andará em torno das canelas dela, e a vibração do pelo dele lhe subirá em espirais pelas pernas até as coxas, fazendo os dedos tremer um pouco na massa da torta.

Ou enquanto ela estiver sentada, lendo os “Pensamentos edificantes” na Liberty Magazine, o gato pulará para o seu colo. Ela acariciará aquele monte macio de pelos e deixará o calor do corpo do animal ir penetrando as áreas profundamente privadas do seu colo. Às vezes a revista cairá e ela abrirá as pernas, só um pouquinho, e os dois ficarão imóveis juntos, talvez movendo-se um pouco juntos, dormindo um pouco juntos, até as quatro da tarde, quando o intruso chegará do trabalho, vagamente preocupado com o que há para o jantar.

O gato sempre saberá que é o primeiro nos afetos dela. Mesmo depois de ela ter um bebê. Porque ela terá um bebê — facilmente, sem dor. Mas só um. Um menino. Chamado Júnior.

Uma dessas garotas de Mobile, Meridian ou Aiken, que não transpirava nas axilas nem entre as coxas, que cheirava a madeira e a baunilha, que fazia suflês no departamento de Economia Doméstica, mudou-se com o marido, Louis, para Lorain, em Ohio. Chamava-se Geraldine. Lá ela construiu o ninho, passou camisas, plantou corações ardentes, brincou com o gato e teve Louis Júnior.

Geraldine não permitia que o bebê, Júnior, chorasse. Enquanto as necessidades dele fossem físicas, ela podia atendê-las — conforto e saciedade. Ele estava sempre escovado, banhado, oleado e vestido. Geraldine não falava com ele, não lhe dizia palavrinhas meigas nem o cobria de beijos súbitos, mas providenciava para que todos os outros desejos fossem satisfeitos. Não levou muito tempo para o menino descobrir a diferença no comportamento da mãe em relação a ele e ao gato. Foi crescendo e aprendendo a dirigir para o gato o ódio que sentia da mãe, e passou alguns momentos felizes vendo-o sofrer. O gato sobreviveu, porque Geraldine raramente saía de casa e acudia o animal quando Júnior o maltratava.

Geraldine, Louis, Júnior e o gato moravam ao lado do pátio da escola Washington Irving. Júnior considerava o pátio como seu, e os outros garotos tinham inveja da sua liberdade de dormir até mais tarde, ir almoçar em casa e dominar o pátio depois das aulas. Ele odiava ver vazios os balanços, escorregadores, barras fixas e gangorras, e tentava fazer os meninos ficarem por ali o máximo possível. Meninos brancos; a mãe não gostava que ele brincasse com pretinhos. Ela lhe havia explicado a diferença entre mulatos e pretos. Era fácil identificá-los. Os mulatos eram limpos e silenciosos; os pretos eram sujos e barulhentos. Ele pertencia ao primeiro grupo: usava camisas brancas e calças azuis; cortava o cabelo o mais rente possível para evitar qualquer sugestão de carapinha e a risca era desenhada pelo barbeiro. No inverno a mãe passava loção Jergens no rosto dele para que a pele não ficasse cinzenta. Embora fosse clara, a pele podia ficar cinzenta. A linha entre mulato e preto nem sempre era nítida; sinais sutis e reveladores ameaçavam erodi-la e era preciso estar constantemente atento.

Júnior morria de vontade de brincar com os meninos negros. Mais do que qualquer outra coisa, queria brincar de rei da montanha, que o empurrassem monte de terra abaixo e rolassem por cima dele. Queria sentir-lhes a rigidez comprimindo-se contra ele, sentir o cheiro da negritude rebelde deles e dizer “Foda-se” com aquela deliciosa naturalidade. Queria sentar com eles na calçada e comparar o fio dos canivetes, a distância e o arco das cusparadas. No banheiro, queria compartilhar com eles os louros de ser capaz de fazer xixi de longe e por muito tempo. Em certa época Bay Boy e P.L. foram seus ídolos. Aos poucos acabou concordando com a mãe que nenhum dos dois era bom o suficiente para ele. Só brincava com Ralph Nisensky, que era dois anos mais novo, usava óculos e não queria fazer nada. Júnior gostava cada vez mais de intimidar meninas. Era fácil fazê-las gritar e sair correndo. Como ele ria quando elas caíam e as calcinhas apareciam. Quando se levantavam de rosto vermelho e contraído, ele se sentia bem. Não amolava muito as meninas negras. Elas geralmente andavam em bandos, e uma vez, quando ele atirou uma pedra em algumas delas, todas correram atrás dele, pegaram-no e lhe deram uma surra das feias. Ele mentiu para a mãe, dizendo que tinha sido Bay Boy. A mãe ficou muito aborrecida. O pai se limitou a continuar lendo o Journal de Lorain.

Quando lhe dava na veneta, chamava qualquer menino que estivesse passando para brincar nos balanços ou na gangorra. Se o menino não quisesse, ou quisesse mas fosse embora cedo demais, Júnior jogava pedrinhas nele. Adquiriu uma ótima pontaria.

Como em casa alternava o tédio com o medo, o pátio era a sua alegria. Num dia em que estava especialmente à toa, viu uma menina muito preta cortar caminho pelo pátio. Ia de cabeça baixa. Ele já a tinha visto muitas vezes no recreio, sozinha, sempre sozinha. Ninguém nunca brincava com ela. Provavelmente porque ela é muito feia, pensou ele.

Júnior chamou-a. “Ei! O que é que você está fazendo, atravessando o meu pátio?” A menina parou.

“Ninguém pode passar por este pátio se eu não deixar.”

“O pátio não é seu. É da escola.” “Mas eu é que mando aqui.” A menina se pôs a andar de novo.

“Espere.” Júnior foi até ela. “Você pode brincar aqui, se quiser. Como você se chama?”

“Pecola. Eu não quero brincar.”

“Vamos. Eu não vou amolar você.”

“Tenho que ir para casa.”

“Quer ver uma coisa? Tenho uma coisa para te mostrar.”

“Não. O que é?”

“Vamos até lá em casa. Olha, eu moro logo ali. Vamos. Eu te mostro.”

“Mostra o quê?”

“Uns gatinhos. A gente tem gatinhos. Você pode ficar com um, se quiser.”

“Gatinhos de verdade?”

“É. Vamos.”

Ele puxou de leve o vestido dela. Pecola começou a andar na direção da casa. Quando percebeu que ela havia concordado, Júnior correu na frente, entusiasmado, parando só para gritar para ela que andasse logo. Segurou a porta para ela, todo sorrisos e encorajamento. Pecola subiu os degraus da varanda e hesitou, com medo de entrar. A casa parecia escura. Júnior disse: “Não tem ninguém em casa. Minha mãe saiu e meu pai está trabalhando. Você não quer ver os gatinhos?”.

Júnior acendeu as luzes. Pecola atravessou a porta.

Que bonito, pensou. Que casa bonita. Havia uma grande Bíblia vermelha e dourada em cima da mesa da sala de jantar. Por toda parte havia toalhinhas de renda — sobre os braços e o encosto das poltronas, no centro de uma grande mesa de jantar, sobre mesinhas. Nos parapeitos de todas as janelas havia vasos de plantas. Numa parede pendia uma imagem colorida de Jesus Cristo, com as mais bonitas flores de papel presas na moldura. Ela queria ver tudo bem devagarinho. Mas Júnior não parava de dizer: “Ei, você. Vamos, vamos”. Empurrou-a para outra sala, ainda mais bonita do que a primeira. Mais toalhinhas, um grande abajur com base verde e dourada e cúpula branca. Havia até um tapete no chão, com flores vermelho-escuras enormes. Ela estava em profunda admiração das flores, quando Júnior disse: “Olhe!”. Pecola se virou. “Aqui está o seu gatinho!”, guinchou ele. E jogou um grande gato preto bem no rosto dela. Ela prendeu a respiração, de medo e surpresa, e sentiu pelo na boca. O gato arranhou-lhe o rosto e o peito num esforço para se endireitar e pulou com agilidade para o chão.

Júnior ria e, deliciado, corria pela sala, segurando o estômago. Pecola tocou o arranhão no rosto e sentiu que as lágrimas estavam vindo. Quando começou a se encaminhar para a porta, Júnior deu um salto e parou na frente dela.

“Você não pode sair. É minha prisioneira”, disse. O olhar era alegre, mas duro.

“Me deixa sair.”

“Não!” Deu-lhe um empurrão, saiu pela porta que separava as salas, fechou a porta e ficou segurando. Pecola se pôs a bater na porta e, quanto mais ela batia, mais alta e arquejante se tornava a gargalhada dele.

As lágrimas vieram rápido, e ela cobriu o rosto com as mãos. Quando uma coisa macia e peluda se moveu em torno de seus tornozelos, ela deu um pulo e viu que era o gato. Ele se enroscou em suas pernas. Momentaneamente distraída do medo, agachou-se para tocá-lo, com as mãos úmidas de lágrimas. O gato esfregou-se contra o joelho dela. Era todo preto, um preto intenso e sedoso, e seus olhos, apontando para o focinho, eram verde-azulados. A luz fazia-os brilhar como gelo azul. Pecola alisou a cabeça do gato; ele choramingou, movendo a língua com prazer. Os olhos azuis na cara preta a fitavam.

Júnior, curioso por não ouvir os soluços dela, abriu a porta e viu-a agachada, afagando a cabeça do gato. Viu o gato esticando a cabeça e estreitando os olhos. Tinha visto aquela expressão muitas vezes quando o animal reagia ao toque de sua mãe.

“Dá aqui esse gato!” A voz dele falhou. Com um movimento ao mesmo tempo desajeitado e certeiro, agarrou o gato por uma perna traseira e começou a girá-lo em torno da cabeça.

“Para com isso!”, gritou Pecola. As patas livres do gato estavam rijas, prontas para agarrar qualquer coisa que lhe devolvesse o equilíbrio, a boca escancarada, os olhos azuis eram riscas de pavor.

Ainda gritando, Pecola se esticou para pegar a mão de Júnior. Ouviu o vestido rasgar embaixo do braço. Júnior tentou empurrá-la para longe, mas ela segurou-lhe o braço que girava o gato. Os dois caíram e, na queda, Júnior largou o gato. Solto em pleno movimento, o animal foi atirado com toda a força contra a janela. Resvalou e caiu em cima do aquecedor, atrás do sofá. Estremeceu algumas vezes e ficou imóvel. Sentia-se apenas um leve cheiro de pelo chamuscado.

Geraldine abriu a porta.

“O que é isso?” Voz suave, como se fosse uma pergunta muito natural. “Quem é essa menina?”

“Ela matou o nosso gato”, disse Júnior. “Olha.” Apontou para o aquecedor, onde o gato jazia, com os olhos azuis fechados, deixando apenas uma cara preta, vazia e indefesa.

Geraldine foi até o aquecedor e pegou o gato. O animal ficou largado em seus braços, mas ela esfregou o rosto contra o pelo dele. Olhou para Pecola. Viu o vestido sujo rasgado, as tranças espetadas na cabeça, o cabelo emaranhado nos pontos onde as tranças estavam desfeitas, os sapatos enlameados com um chiclete aparecendo por entre as solas baratas, as meias sujas, uma das quais engolida pelo calcanhar do sapato. Viu o alfinete de gancho prendendo a barra do vestido. Por sobre a corcova das costas do gato, olhou para ela. A vida toda tinha visto aquela menina. Paradas diante das vidraças dos bares em Mobile, engatinhando em varandas de casas toscas na periferia da cidade, sentadas em estações de ônibus segurando sacos de papel e gritando para mães que não paravam de dizer “Cala a boca!”. Cabelo despenteado, vestidos rasgados, sapatos desamarrados e empastados de sujeira. Elas a haviam fitado com grandes olhos incompreensivos. Olhos que não questionavam nada e perguntavam tudo. Sem piscar, despudoradamente, elas a fitavam. Tinham nos olhos o fim do mundo, o começo e todo o vazio entre uma coisa e outra.

Elas estavam por todo lado. Dormiam seis amontoadas, a urina de todas misturando-se durante a noite quando molhavam a cama, cada uma sonhando seu sonho de doces e batatinhas fritas. Nos dias longos e quentes, ficavam à toa, tirando reboco das paredes e cutucando a terra com paus. Sentavam-se em pequenas fileiras nas calçadas, amontoavam-se nos bancos da igreja, tirando espaço das crianças mulatas, bonitas e limpas; faziam palhaçadas nos playgrounds, quebravam coisas em lojas baratas, corriam na frente da gente na rua, faziam pistas de gelo nas calçadas inclinadas no inverno. As meninas cresciam sem saber usar uma cinta e os meninos anunciavam que tinham atingido a idade viril virando para trás a aba do boné. Nos lugares onde elas moravam não crescia grama. As flores morriam. Abatiam-se sombras. Floresciam latas e pneus onde elas moravam. Viviam de feijão-fradinho frio e refrigerante de laranja. Como moscas, elas esvoaçavam; como moscas, pousavam. E esta pousara em sua casa. Por sobre a corcova das costas do gato, ela olhava.

“Fora”, disse, em voz baixa. “Sua negrinha ordinária. Fora da minha casa.”

O gato estremeceu e sacudiu o rabo.

Pecola recuou, olhando fixo para a bela senhora cor de café com leite, na bela casa verde e dourada, que falava com ela por entre o pelo do gato. As palavras da senhora bonita fizeram o pelo do gato se mexer; o sopro de cada palavra separou os pelos. Virou-se para achar a porta da frente e viu Jesus que a mirava com olhos tristes e sem surpresa, o longo cabelo castanho repartido no meio, as alegres flores de papel retorcidas em torno de seu rosto.

Lá fora, o vento de março entrou-lhe pelo rasgão no vestido. Pecola abaixou a cabeça contra o frio. Mas não conseguiu abaixá-la o suficiente para não ver os flocos de neve que caíam e morriam na calçada.



[*] Termo vulgar, mas aceitável para “ato sexual”, talvez derivado de nook, “esconderijo”, “recesso”. (N. T.)



(O olho mais azul; tradução de Manoel Paulo Ferreira)



(Ilustração: Philemona Williamson - red buckled shoes, 2014)