domingo, 16 de fevereiro de 2025

BELZEBUTH / BELZEBUTH, de Teresa Wilms Montt

 





Mi alma, celeste columna de humo, se eleva hacia

la bóveda azul.

Levantados en imploración mis brazos, forman la puerta

de alabastro de un templo.

Mis ojos extáticos, fijos en el misterio, son dos lámparas

de zafiro en cuyo fondo arde el amor divino.

Una sombra pasa eclipsando mi oración, es una sombra

de oro empenachado de llamas alocadas.

Sombra hermosa que sonríe oblicua, acariciando los sedosos

bucles de larga cabellera luminosa.

Es una sombra que mira con un mirar de abismo,

en cuyo borde se abren flores rojas de pecado.

Se llama Belzebuth, me lo ha susurrado en la cavidad

de la oreja, produciéndome calor y frío.

Se han helado mis labios.

Mi corazón se ha vuelto rojo de rubí y un ardor de fragua

me quema el pecho.

Belzebuth. Ha pasado Belzebuth, desviando mi oración

azul hacia la negrura aterciopelada de su alma rebelde.

Los pilares de mis brazos se han vuelto humanos, pierden

su forma vertical, extendiéndose con temblores de pasión.

Las lámparas de mis ojos destellan fulgores verdes encendidos

de amor, culpables y queriendo ofrecerse a Dios; siguen

ansiosos la sombra de oro envuelta en el torbellino refulgente

de fuego eterno.

Belzebuth, arcángel del mal, por qué turbar el alma

que se torna a Dios, el alma que había olvidado las fantásticas

bellezas del pecado original.

Belzebuth, mi novio, mi perdición...



Tradução de Sandra Santos:



A minha alma, celeste coluna de fumo, eleva-se até

à abóbada azul.

Levantados, implorando, os meus braços, formam a porta

de alabastro de um templo.

Os meus olhos extáticos, fixos no mistério, são duas lâmpadas

de safira em cujo fundo arde o amor divino.

Uma sombra passa eclipsando a minha oração, é uma sombra

de ouro ornado de chamas impetuosas.

Sombra formosa que sorri oblíqua, acariciando os sedosos

caracóis dos enormes cabelos luminosos.

É uma sombra que observa com um olhar de abismo,

em cuja margem se abrem as flores rubras de pecado.

Chama-se Belzebuth, sussurrou-mo na cavidade

da orelha, produzindo-me calor e frio.

Gelaram-me os lábios.

O meu coração converteu-se rubro de rubi e um ardor de frágua

me queima o peito.

Belzebuth. Passou Belzebuth, desviando a minha oração

azul até à negrura delicada da sua alma rebelde.

Os pilares de meus braços converteram-se humanos, perdem

a sua forma vertical, estendendo-se com tremores de paixão.

As lâmpadas de meus olhos reluzem fulgores verdes acesos

de amor, culpados e devotos a Deus; seguem

ansiosos a sombra de ouro envolta no torvelinho refulgente

de fogo eterno.

Belzebuth, arcanjo do mal, porquê turvar a alma

que se volta para Deus, a alma que havia esquecido as fantásticas

belezas do pecado original.

Belzebuth, o meu noivo, a minha perdição…



(Ilustração: William Blake: Paradise Lost - The Temptation andFall of Eve)

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

CIVILIZAÇÃO NA GRAÇA, de Luís de Sttau Monteiro


Não há nada como a gente ler os jornais para andar à moda e crescer depressa sim porque isto cá na Graça está velho como burro e quem manda é a velharia que ainda vive como se vivia no tempo do rei D. Afonso Henriques que era aquele que andava de espada na cintura para o caso de encontrar mouros na rua mas é claro que não se pode viver assim e que isto não é vida para ninguém e que se a gente não muda isto daqui a pouco os turistas deixam de vir à Graça e lá se vai o pilim que a gente ganha com o turismo quem fica a perder com isso é o sr. Lopes coitadinho que fuma cigarros feitos de beatas e que anda sempre atrás de estrangeiros para apanhar as beatas deles porque diz que elas têm um gostinho bestial que disfarça bestialmente o gosto dos cigarros pois eu resolvi ler os jornais para modernizar a Graça e fazer com que ela fique como Lisboa que é uma cidade grande e bestial tão boa como as que há lá fora mas que é portuguesa para conseguir isso fui até à paragem dos eléctricos que vão para a Baixa que é o sítio onde as pessoas deitam fora os jornais que compram para ler na viagem mas não julguem que é fácil apanhar lá jornais não é não senhor eu para arranjar alguns tive de andar à pancada com o filho da mulher das castanhas que está lá de serviço todo o dia a arranjar papel para a Mãe embrulhar as castanhas um jornal que dava muito gosto às castanhas era o Diário de Lisboa mas agora têm uma maneira nova de o fazer que não dá gosto nenhum palavra que é preciso não ter respeito nenhum pelos amadores de castanhas enfim fui até lá e consegui dois ou três jornais para ver como era a vida nos lugares mais bestiais de Lisboa a primeira notícia que vi foi uma duns que queimaram uma rapariga com pontas de cigarros por ela ter dois namorados e que se esses dos cigarros vierem até à Graça queimar as raparigas que têm dois namorados têm trabalho até ao fim da vida e nunca mais têm de dar os nomes no desemprego eu conheço uma que até tem quatro sim senhor quatro um que se chama António outro que se chama João outro que se chama Manuel e outro que é careca mas não sei o nome dele enfim como isso de queimar as pessoas que namoram muito fica bem às grandes cidades resolvi queimar um que anda cá chamado Alberto que não namora ninguém mas que é parvo esse Alberto é já a quarta vez que não me dá um rebuçado apesar de andar sempre com os bolsos cheios e por isso merece umas queimaduras e até merece ser afogado mas isso aqui na Graça é muito difícil porque o lago está à vista de toda a gente e se calhar é proibido afogar pessoas digo isto porque nesta terra é tudo proibido de maneira que os proibidores também são capazes de já ter proibido afogar pessoas enfim chamei a minha amiga Crista que é muito boa para estas coisas porque diz sempre que sim a tudo o que eu quero fazer expliquei-lhe o meu plano de queimar pessoas para modernizar a Graça e fomos ambas à caça de beatas o pior foi que encontrámos logo o sr. Lopes que começou aos berros a dizer que não tínhamos o direito de andar às beatas porque ele é que fumava não éramos nós e que os cigarros fazem cancros e mais isto e mais aquilo para o acalmar tivemos de lhe explicar que não queríamos as beatas para fumar que só as queríamos para queimar o Alberto e ele lá se calou a olhar para nós como se nunca tivesse visto ninguém e depois fugiu pela rua acima o taradinho que quem o visse até era capaz de julgar que éramos polícias mas isso é natural porque aqui a Graça anda muito atrasada e as pessoas ainda não sabem a diferença entre ser moderna e ser antiga enfim em menos de meia hora apanhámos uma data de beatas o sítio melhor é à porta da igreja porque como é proibido fumar lá dentro os homens que lá chegam a fumar têm de deitar os cigarros fora e alguns chegam a deitar fora os cigarros muito aproveitáveis o que é pena é irem tão poucos homens à igreja aqui na Graça é o que eu digo a Graça anda bestialmente atrasada em tudo até mesmo nestas coisas de religião que tanta falta fazem a quem precisa de beatas depois como o Alberto anda na escola primária sim porque apesar de já ter doze anos o palerma ainda não conseguiu tirar a quarta classe fomos até lá e escondemo-nos atrás do muro à espera de que acabassem as aulas e escondemos os cigarros daí a um bocado apareceu o Alberto e eu chamei-o e mostrei-lhe um rebuçado que tinha pedido emprestado à Crista a ver se ele vinha e ele como é burro que nem uma porta veio logo a correr e a Crista disse-lhe Abre a boca e fecha os olhos e o palerma obedeceu é claro que lhe meti logo na boca um cigarrinho aceso que foi uma limpeza e ele fechou a boca queimou-se mas é bem feito porque só um burro é que fecha a boca com um cigarro aceso lá dentro e desatou aos berros que nem um doido começámos a fazer-lhe festas e a perguntar o que é que ele tinha e se não tinha gostava dos rebuçados de fogo sim porque se há rebuçados de licor porque é que não há-de haver rebuçados de fogo? e dissemos-lhe que o melhor era ele sentar-se até aquilo lhe passar e com isto e com aquilo levámo-lo até ao degrau duma porta eu pus-lhe outra beata debaixo do sim senhor de maneira que quando ele se sentou deu outro berro e outro salto sem razão nenhuma que essa beata até era americana e os cigarros americanos são bestialmente chiques e levou a mão ao sim senhor a ver o que é que tinha e enfiei-lhe outro cigarro na mão e ele sem saber o que era apertou-a e deu um berro tão grande que houve quem o ouvisse é claro que as pessoas que o ouviram vieram logo a correr ver o que estava a acontecer sim porque aqui na Graça as pessoas são bestialmente bisbilhoteiras e querem saber tudo o que se passa nessa altura eu e a Crista resolvemos ir-nos embora por a Graça já estar suficientemente civilizada para um dia e fomos mesmo no meio disto tudo o Alberto sofreu um bocado lá isso é verdade mas para haver civilização alguém tem de sofrer e antes ele que eu.




(A Mosca, 23 Janeiro 1972; Redacções da Guidinha, 2003)



(Ilustração: Bairro da Graça: Lisboa, Portugal; foto da internet, autoria não identificada)

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

DE PROFUNDIS / DE PROFUNDIS, de Georg Trakl

 


 

Es ist ein Stoppelfeld, in das ein schwarzer Regen fällt.

Es ist ein brauner Baum, der einsam dasteht.

Es ist ein Zischelwind, der leere Hütten umkreist.

Wie traurig dieser Abend.

 

Am Weiler vorbei

Sammelt die sanfte Waise noch spärliche Ähren ein.

Ihre Augen weiden rund und goldig in der Dämmerung,

Und ihr Schoß harrt des himmlischen Bräutigams.

 

Bei der Heimkehr

Fanden die Hirten den süßen Leib

Verwest im Dornenbusch.

 

Ein Schatten bin ich ferne finsteren Dörfern.

Gottes Schweigen

Trank ich aus dem Brunnen des Hains.

 

Auf meine Stirne tritt kaltes Metall

Spinnen suchen mein Herz.

Es ist ein Licht, das in meinem Mund erlöscht.

 

Nachts fand ich mich auf einer Heide,

Starrend von Unrat und Staub der Sterne.

Im Haselgebüsch

Klangen wieder kristallne Engel.

 

(1912)

 

Tradução de Cláudia Cavalcanti:

 

Há um restolhal, onde cai uma chuva negra.

Há uma árvore marrom, ali solitária.

Há um vento sibilante, que rodeia cabanas vazias.

Como é triste o entardecer

 

Passando pela aldeia

A terra órfã recolhe ainda raras espigas.

Seus olhos arregalam-se redondos e dourados no crepúsculo,

E seu colo espera o noivo divino.

 

Na volta

Os pastores acharam o doce corpo

Apodrecido no espinheiro.

 

Sou uma sombra distante de lugarejos escuros.

O silêncio de Deus

Bebi na fonte do bosque.

 

Na minha testa pisa metal frio

Aranhas procuram meu coração.

Há uma luz, que se apaga na minha boca.

 

À noite encontrei-me num pântano,

Pleno de lixo e pó das estrelas.

Na avelãzeira

Soaram de novo anjos cristalinos.

 

(1912)

 

 

(De profundis e outros poemas)

 

(Ilustração: Félix Valloton - Noite no Loire, 1923)

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

O JARDIM DE CIMENTO, de Ian McEwan


Não matei meu pai, mas às vezes tinha a impressão de que o havia ajudado a ir desta para a melhor. E, não fosse por ter coincidido com um evento marcante em minha evolução física, sua morte pareceu insignificante quando comparada ao que veio depois. Minhas irmãs e eu conversamos sobre ele na semana seguinte à sua morte, e Sue sem dúvida chorou quando os enfermeiros da ambulância o levaram envolto num cobertor de um vermelho muito vivo. Ele era um homem de saúde precária, irascível e obsessivo, com mãos e rosto amarelados. Só estou contando a historinha da morte dele para explicar como aconteceu de minhas irmãs e eu termos uma quantidade tão grande de cimento à nossa disposição. No começo do verão, quando eu tinha catorze anos, um caminhão parou diante de nossa casa. Eu estava sentado no degrau da frente relendo uma revista em quadrinhos. O motorista e outro homem se aproximaram. Ambos estavam cobertos de um pó fino e esbranquiçado que lhes dava uma aparência fantasmagórica. Assoviavam com estridência duas melodias totalmente distintas. Fiquei de pé e escondi a revista. Gostaria de estar lendo a página de turfe do jornal de meu pai ou os resultados do futebol.

"Cimento?", disse um deles. Enganchei os polegares nos bolsos da calça, transferi todo o peso do corpo para uma perna e apertei um pouco os olhos. Eu queria dizer algo curto e preciso, mas não tinha certeza de haver entendido bem a pergunta. Demorei demais, porque o sujeito que havia falado ergueu os olhos para o céu e, plantando as mãos nas cadeiras, concentrou sua atenção na porta da frente. Ela se abriu e meu pai saiu, mordendo o cachimbo e aparando uma prancheta contra o quadril.

"Cimento", o homem disse de novo, sua voz agora infletindo para baixo. Meu pai concordou com a cabeça. Enfiei a revista dobrada no bolso de trás da calça e segui os três até o caminhão. Meu pai ficou na ponta dos pés a fim de olhar para dentro, tirou o cachimbo da boca e sacudiu outra vez a cabeça num gesto afirmativo. O homem que ainda não havia falado golpeou violentamente com a mão um pino de aço que, ao se desprender, abriu a lateral com estrondo. Empilhados dois a dois, bem juntinhos, os sacos de cimento ocupavam todo o chão da caçamba. Meu pai os contou, olhou para a prancheta e disse: "Quinze". Os dois homens grunhiram. Eu gostava desse tipo de conversa. Também disse a mim mesmo: "Quinze". Cada um dos homens pôs um saco nas costas e voltamos pelo caminho em direção à casa, eu agora à frente, seguido por meu pai. Contornando a casa, ele apontou com o tubo molhado do cachimbo para a abertura por onde o carvão era entregue. Os homens levantaram com esforço os sacos dos ombros e os jogaram no porão, voltando ao caminhão para apanhar outros. Meu pai fez uma anotação na prancheta com um lápis preso a ela por um barbante. Ficou se balançando sobre os pés enquanto esperava. Encostei-me na cerca. Eu não sabia para que iria servir o cimento, mas não queria ser excluído daquele intenso trabalho coletivo caso demonstrasse minha ignorância. Também contei os sacos e, quando tudo acabou, me postei junto ao cotovelo de meu pai enquanto ele assinava o recibo de entrega. Então, sem dizer uma única palavra, ele voltou para dentro de casa.

À noite meus pais brigaram por causa dos sacos de cimento. Minha mãe, que era uma pessoa pacata, estava furiosa. Queria que meu pai devolvesse tudo. Tínhamos acabado de jantar. Enquanto mamãe falava, meu pai raspava com o canivete a crosta preta do fornilho do cachimbo, deixando-a cair sobre o prato de comida que mal tocara. Ele sabia como usar o cachimbo contra ela. Ela estava dizendo como o dinheiro andava curto e que Tom em breve precisaria de roupas novas para começar a frequentar a escola. Ele recolocou o cachimbo entre os dentes como se fosse parte integral de sua anatomia e a interrompeu para dizer que a devolução dos sacos estava "fora de questão" e que chegava de conversa, lendo visto com meus próprios olhos o caminhão, os pesados sacos e os homens que os haviam trazido, tive a impressão de que papai estava certo. Mas como ele pareceu ridículo e arrogante ao tirar o cachimbo da boca e, segurando-o pelo fornilho, apontar o tubo negro na direção da minha mãe! Ela ficou ainda mais irritada, a voz embargada pela exasperação. Julie, Sue e eu escapamos para o quarto de Julio no andar de cima e fechamos a porta. Através do assoalho nos chegavam as variações no tom de voz de minha mãe, mas não conseguíamos distinguir as palavras.

Sue deitou-se na cama, sufocando uma risadinha com os nós dos dedos enfiados na boca, enquanto Julie empurrava uma cadeira contra a porta. Juntos, num instante tiramos as roupas de Sue, nossas mãos se tocando ao puxarmos para baixo suas calcinhas. Sue era bem magricela. A pele parecia grudada às costelas e a dura crista muscular das nádegas assemelhava-se curiosamente a suas escápulas. Uma tênue pelugem alourada crescia entre suas coxas. Na brincadeira, Julie e eu éramos cientistas examinando um espécime extraterrestre. De um lado e do outro do corpo nu, trocávamos breves comentários com sotaque alemão. Lá de baixo vinha o zumbido cansado e insistente da voz de nossa mãe. As maçãs protuberantes do rosto de Julie tornavam seus olhos mais fundos e lhe davam o ar de um raro animal selvagem. Sob a luz elétrica, os olhos eram negros e grandes. A linha suave de sua boca só era interrompida por dois dentes frontais, e ela precisava fazer beicinho para ocultar o sorriso. Eu morria de vontade de examinar minha irmã mais velha, mas a brincadeira não permitia isso.

"Porr favorr." Pusemos Sue de lado e depois de bruços. Passamos as unhas por suas costas e coxas. Com uma lanterna, olhamos dentro da sua boca e entre as pernas, lá encontrando a florzinha feita de pele.

"Que lhe parrece isto, Herr Doutor?" Julie acariciou a flor com um dedo molhado, e um pequeno tremor percorreu a espinha ossuda de Sue. Observei atentamente. Molhei meu dedo e o fiz deslizar por cima do dedo de Julie. "Nada de sério", ela disse finalmente, fechando a fenda com o indicador e o polegar. "Mas vamos observarr como vai evoluirr, ja?" Sue implorou que continuássemos. Julie e eu nos entreolhamos com ar de sabidos, sem saber nada.

"É a vez de Julie", eu disse.

"Não", disse ela como sempre. "Agora é você." Ainda deitada de costas, Sue nos implorou de novo. Atravessei o quarto, peguei sua saia e joguei para ela.

"Fora de questão", eu disse através de um cachimbo imaginário. "Fim de conversa." Tranquei-me no banheiro e sentei na borda da banheira com as calças caídas em volta dos tornozelos. Pensei nos dedos morenos de Julie entre as pernas de Sue enquanto fazia chegar minha breve e seca pontada de prazer. Continuei curvado sobre as pernas depois que o espasmo passou e me dei conta de que, fazia tempo, as vozes se tinham calado no andar de baixo.

Na manhã seguinte, fui ao porão com Tom, meu irmão mais novo. Era uma área grande, dividida em vários aposentos sem propósito definido. Tom grudou-se em mim enquanto descíamos os degraus de pedra. Ele ouvira falar dos sacos de cimento e agora queria vê-los. A entrada de carvão dava no aposento mais espaçoso, e os sacos estavam espalhados de qualquer maneira por cima do carvão que havia sobrado do inverno anterior. Encostado numa das paredes havia um maciço baú de folha de flandres, que tinha algo a ver com a curta passagem de meu pai pelo exército e fora usado durante algum tempo para guardar o coque separado do carvão. Tom queria ver o que havia dentro dele e por isso ergui a tampa. O interior estava vazio e enegrecido, tão escuro na luz empoeirada do porão que não se via o fundo. Acreditando que estava diante de um buraco profundo, Tom agarrou a beira do baú e gritou para dentro, esperando ouvir o eco. Como nada aconteceu, pediu para ver os outros aposentos. Levei-o ao que ficava mais próximo da escada. A porta estava presa precariamente às dobradiças e, quando a empurrei, soltou-se por completo. Tom riu e foi por fim agraciado com um eco vindo do aposento de que havíamos acabado de sair. Onde estávamos, acumulavam-se caixas de papelão com roupas emboloradas que eu nunca tinha visto. Tom descobriu alguns de seus antigos brinquedos. Desdenhosamente, virou-os de borco com o pé e disse que eram coisa de bebezinhos. Empilhado atrás da porta havia um velho berço de bronze em que todos nós havíamos dormido em algum momento. Como Tom queria que eu o armasse, disse-lhe que aquilo também era coisa de bebezinhos.

Ao pé da escada nos encontramos com meu pai, que descia. Queria que eu o ajudasse com os sacos. Fomos atrás dele de volta para o aposento maior. Tom tinha medo do pai e ficou bem atrás de mim. Julie me havia dito recentemente que, como papai era agora um semi-inválido, ele teria de competir com o Tom pelos cuidados da mamãe. Tratava-se de uma ideia extraordinária, e sobre ela refleti um bom tempo. Tão simples e tão estranho: um garotinho e um adulto competindo. Mais tarde, perguntei a Julie quem venceria e, sem hesitar, ela respondeu: "Tom, obviamente, e papai vai descontar nele".

E de fato ele era muito rigoroso com Tom, sempre o repreendendo. Usava mamãe contra ele assim como usava o cachimbo contra ela, "Não fale desse jeito com sua mãe", ou "Sente-se direito quando sua mãe estiver falando com você". Ela aturava tudo isso em silêncio. Se papai se afastasse, ela dava um breve sorriso para Tom ou passava os dedos por seu cabelo. Tom agora se postara longe da porta, observando enquanto nós dois arrastávamos cada saco pelo chão e os arrumávamos cuidadosamente em duas fileiras ao longo da parede. Devido a seu ataque cardíaco, papai estava proibido de fazer esse tipo de trabalho, mas me certifiquei de que ele pegava tanto peso quanto eu.

Quando nos curvávamos para pegar as extremidades do saco, eu sentia que ele se demorava, esperando que eu fizesse mais força. Mas eu dizia "Um, dois, três..." e só começava a me esforçar de verdade quando via seu braço retesado. Eu só concordaria em fazer mais se ele me pedisse com todas as letras.

Ao terminarmos, demos um passo para trás e, como fazem todos os trabalhadores, contemplamos o serviço. Papai apoiou-se com uma das mãos na parede, respirando com dificuldade. De propósito, respirei tão levemente quanto pude através do nariz, embora isso me deixasse algo tonto. Mantive as mãos nos quadris num gesto blasé. "Para que você quer tudo isso?", senti-me então no direito de perguntar.

Entre uma e outra respiração ofegante, ele conseguiu dizer: "Para... o... jardim". Aguardei maiores esclarecimentos, mas, após uma pausa, ele se voltou para ir embora. Na porta, pegou o braço de Tom. "Olhe como estão suas mãos", reclamou, sem se dar conta da sujeira que a mão dele estava fazendo na camisa do menino. "Suba, trate de ir Subindo." Piquei para trás um momento e comecei a apagar as luzes. Ao ouvir os cliques, meu pai parou ao pé da escada e, em tom severo, me mandou apagar todas as luzes antes de subir.

"Já estava apagando", disse com irritação. Mas ele tossia alto ao galgar os degraus da escada.

Ele não havia cultivado seu jardim, e sim o construído segundo planos que certas noites abria sobre a mesa da cozinha enquanto nós espiávamos por cima de seus ombros. Caminhos estreitos de lajes faziam curvas intrincadas para visitar canteiros de rosas que ficavam a poucos metros de distância. Uma trilha subia em espiral um morrinho de pedras como se fosse uma estrada alpina. Certo dia, ele se irritou ao ver Tom subir em linha reta o morrinho usando a trilha como degraus de uma pequena escada.

"Suba direito", ele gritou da janela da cozinha. No topo de uma pilha de pedras, que não media mais de um metro de altura, havia um gramado do tamanho de uma mesa de jogo em volta do qual havia espaço para uma única fileira de cravos-de-defunto. Só ele chamava aquilo de jardim suspenso. Em seu centro erguia-se uma estátua de plástico de Pã dançando. Espalhavam--se pelo jardim degraus surpreendentes, alguns subindo, outros descendo. Havia também um laguinho com fundo de plástico azul. Certa vez ele trouxe para casa num saquinho transparente dois peixinhos dourados, comidos pelos pássaros no mesmo dia. Os caminhos eram tão estreitos que se corria o risco de perder o equilíbrio e cair nos canteiros de flores. Ele escolhia as flores mais simples e simétricas. Preferia as tulipas, que plantava com grande espaçamento. Não gostava de arbustos, heras ou roseiras. Não admitia nada que se entrelaçasse. Todas as casas de ambos os lados da nossa tinham sido demolidas e, no verão, os terrenos baldios se cobriam de ervas daninhas e suas flores. Antes de sofrer o primeiro ataque cardíaco, ele tencionava construir um alto muro em torno de seu mundinho especial.

Havia algumas piadas recorrentes na família, lançadas e perpetuadas por papai. Sobre Sue, por ela ter sobrancelhas e cílios quase invisíveis; sobre Julie, por sua ambição de ser uma atleta famosa; sobre Tom, por fazer pipi às vezes na cama; sobre minha mãe, por ser ruim em aritmética; sobre mim, por causa das espinhas que começaram a pipocar nessa época. Certa noite, no jantar, eu lhe passei um prato e ele disse que não queria que sua comida chegasse perto demais do meu rosto. A risada de todos foi instantânea e ritual. Como as piadinhas desse tipo eram controladas por meu pai, nenhuma era dirigida contra ele. Naquela noite, Julie e eu nos trancamos no quarto dela e nos dedicamos a preencher páginas e páginas com piadas grosseiras e já bem batidas. Tudo que nos ocorria parecia engraçado. Rolamos da cama para o chão, com dor no peito de tanto rir, urrando de alegria. Do lado de fora, Tom e Sue esmurravam a porta pedindo para entrar. Chegamos à conclusão de que nossas melhores piadas eram do tipo que envolvia uma pergunta e uma resposta. Muitas faziam referência à prisão de ventre do papai. Mas sabíamos qual era o verdadeiro alvo. Selecionamos a melhor e, após aperfeiçoá-la e treinar sua execução, esperamos um ou dois dias. Então, no jantar, ele se saiu com outra caçoada sobre minhas espinhas. Aguardamos até que Tom e Sue parassem de rir. Meu coração batia tão forte que era difícil falar com naturalidade, num tom de conversa, como havíamos ensaiado. "Vi uma coisa hoje no jardim que me chocou", eu disse.

"É mesmo?", perguntou Julie.

"O que foi?"

"Uma flor."

Ninguém pareceu nos ter ouvido. Tom falava consigo próprio, mamãe pôs um pouco de leite na xícara e papai continuou a passar manteiga cuidadosamente numa fatia de pão. Quando a manteiga ia além da beirada do pão, ele a trazia de volta com um rápido movimento da faca. Pensei que talvez devêssemos repetir tudo em voz mais alta e olhei para Julie por cima da mesa. Ela evitou meu olhar. Papai acabou seu pão e foi embora. "Isso foi totalmente desnecessário", disse mamãe.

"O que é que foi desnecessário?" Mas ela não me disse mais nada. Não se faziam piadas com meu pai porque elas não eram engraçadas. Ele ficava amuado. Sentime culpado no momento em que desejava desesperadamente me sentir exultante. Tentei convencer Julie de nossa vitória para que ela, por sua vez, me convencesse disso. Naquela noite deitamos Sue entre nós, mas a brincadeira não nos deu o menor prazer. Sue ficou entediada e se foi. Julie era favorável a que pedíssemos desculpas, que encontrássemos alguma forma de agradá-lo. Eu não conseguia me ver fazendo isso, porém fiquei muito aliviado quando, dois dias mais tarde, ele falou comigo pela primeira vez. Depois disso, o jardim não foi mencionado por um longo tempo e, quando ele cobria a mesa da cozinha com seus planos, ninguém mais o acompanhava. Após o primeiro ataque ele nunca mais trabalhou no jardim. As ervas começaram a surgir nas fissuras das lajes, parte do morrinho de pedras desabou, o laguinho secou. O Pã dançarino tombou de lado, partiu-se em dois e nada foi dito. A possibilidade de que Julie e eu fôssemos responsáveis pela desintegração me enchia de horror e alegria.

Pouco depois do cimento chegou a areia. Um montículo amarelo-claro ergueu-se num canto do jardim da frente. Ficamos sabendo, provavelmente por minha mãe, que a ideia era circundar a casa com uma superfície de concreto. Meu pai confirmou isso certa noite.

"Vai ficar mais limpo", ele disse. "A partir de agora não vou poder cuidar do jardim" (tocou no lado esquerdo do peito com o cachimbo) "e isso vai impedir que os assoalhos de sua mãe fiquem sujos de lama." Ele estava tão convencido da sensatez de sua idéia que, mais por constrangimento que por medo, ninguém questionou o projeto. Na verdade, a possibilidade de contar com uma vasta área de concreto em volta da casa me atraía. Seria um bom lugar para jogar futebol. Imaginei helicópteros descendo ali. Acima de tudo, misturar o concreto para cobrir o jardim depois de nivelado era uma transgressão fascinante. Minha excitação cresceu quando papai falou em alugar uma betoneira.

Mamãe deve tê-lo dissuadido disso, porque começamos a trabalhar num sábado de junho com duas pás. Abrimos no porão um dos sacos e enchemos um balde de zinco com o pó fino e cinza claro. Meu pai então saiu para que eu lhe passasse o balde pela abertura do carvão. Ao se abaixar, sua silhueta ficou recortada contra o céu esbranquiçado e sem nuvens. Ele despejou o cimento no caminho e me devolveu o balde para que eu o reenchesse. Quando já tínhamos a quantidade suficiente de cimento, enchi de areia um carrinho de mão na frente da casa e a juntei ao montinho. Ele havia decidido fazer um caminho cimentado ao lado da casa para facilitar o transporte de areia da frente para os fundos. Exceto pelas curtas e infrequentes instruções que me passou, não trocamos uma só palavra. Fiquei satisfeito em ver que não havia necessidade de nos falarmos porque sabíamos exatamente o que fazer e o que o outro estava pensando. Pela primeira vez me senti à vontade junto dele. Enquanto fui buscar água, ele ajeitou o montinho de cimento e areia, fazendo um buraco no topo. Fiquei encarregado de preparar a mistura enquanto ele ia acrescentando água. Mostrou-me como apoiar o antebraço na coxa para ganhar mais potência no movimento. Fingi que já sabia. Quando a mistura ficou consistente, a espalhamos no chão. Papai então se pôs de joelhos e alisou a superfície com uma pequena tábua. Fiquei de pé atrás dele, apoiado na pá. Ele levantou-se e se encostou na cerca, fechando os olhos. Quando os abriu, piscou como se surpreso de ainda estar lá, e disse: "Bem, então vamos em frente". Repetimos a operação, o balde transitando pela abertura do carvão, o carrinho de mão, a mistura espalhada pelo chão e alisada. Na quarta vez, a monotonia e meus desejos contumazes começaram a me tornar mais lento. Bocejava com frequência e sentia as pernas fracas atrás dos joelhos. No porão, enfiei as mãos nos bolsos da calça. Onde estariam minhas irmãs? Por que não estavam ajudando? Entreguei um balde cheio a meu pai e então, dirigindo-me ao contorno de seu corpo, disse que precisava ir ao banheiro. Ele soltou um suspiro ao mesmo tempo que estalava a língua contra o céu da boca. No andar de cima, sabendo de sua impaciência, me masturbei rapidamente. Como de hábito, tinha diante de mim a imagem da mão de Julie entre as pernas de Sue. Lá de baixo chegava o som da pá raspando no chão. Papai estava misturando o cimento. E então aconteceu, de repente a coisa espirrou no meu pulso e, embora eu soubesse daquilo por causa das piadas e dos livros de biologia na escola, e viesse aguardando que acontecesse havia muitos meses na esperança de não ser diferente dos outros, naquele momento me senti surpreso e emocionado. Contra os cabelinhos macios, junto a uma mancha acinzentada de concreto, brilhava uma pequena quantidade de líquido, não leitoso como eu havia imaginado, mas incolor. Dei uma lambida e não senti gosto de nada. Fiquei olhando um tempão bem de perto, procurando ver aqueles trocinhos com as longas caudas ondulantes. Enquanto eu olhava, o líquido secou e se transformou numa crosta brilhante, mas quase invisível, que se rompeu quando dobrei o pulso. Decidi não lavar o lugar.

Lembrei-me de que papai estava esperando e desci correndo a escada. Minha mãe, Julie e Sue conversavam de pé quando passei por elas na cozinha. Não pareceram ter notado minha presença. Papai estava deitado de bruços no chão, a cabeça descansando sobre o concreto recém-espalhado. Segurava ainda a tábua de alisar. Aproximei-me devagar, sabendo que teria de correr para pedir ajuda. Durante vários segundos não consegui me afastar. Fiquei olhando, absorto como estivera alguns minutos antes. Uma leve aragem agitou uma ponta solta de sua camisa. Logo depois houve muita atividade e barulho. Veio uma ambulância e mamãe seguiu com meu pai, que foi envolto num cobertor vermelho e posto numa maca. Na sala de visitas, Sue chorava e Julie a consolava. O rádio continuava a tocar na cozinha. Depois que a ambulância partiu, fui lá fora ver nosso caminho. Minha cabeça estava totalmente vazia de pensamentos quando peguei a tábua e cuidadosamente alisei a marca que ele havia deixado no concreto fresco e macio.



(O jardim de cimento; tradução de Jorio Dauster)



(Ilustração: Amedeo Modigliani, 1884 -1920: cypress houses)

terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

NUVENS DE ALGODÃO, de Abbas Kiarostami (*)

 





شبدریازمستان.

A noite o mar o inverno.



تابش اولین مهتاب پاییزیبر روی پنجرهشیشهها را لرزاند.

O clarão da primeira lua outonal na janela estremece os vidros.



در غیاب توگفتگو دارمبا تو،در حضورتگفتگو با خویش.

Na tua ausência converso contigo, na tua presença converso comigo.



از بودن با تودر رنجم،از بودن با خوددر هراس،

کجاست بیخودی؟

Se estou contigo sofro, se estou comigo temo

por onde vai a ausência do ser?



از شدت عشقبیزارم.

Pela fúria do amor eu me enfado.



مردد

ایستادهام بر سر دو راهی،تنها راهی که میشناسمراه باز گشت است.

Hesitante estou numa encruzilhada, o único caminho que conheço é o caminho de volta.



گم کردمچیزی که یافته بودم،چیزی یافتم گم شده.

Perdi algo que havia encontrado encontrei algo que havia sido perdido.



از دست غیبآبی نوشیدم

به چندان گوارا.

Das mãos da ventura bebi água pouco agradável.



درخت بهشکوفه کرده استدر خانهای متروک.

A árvore de marmelo foresceu numa casa abandonada.



در روشنایی روزکسی به جا نمیآوردکرم شب تاب را.

Na claridade do dia ninguém distingue o vaga-lume.



گرگی

در کمین.

Um lobo à espreita.



صد چشمه خشکیدهصد گوسپند تشنهچوپانی سالخورده.

Cem fontes secas cem ovelhas sedentas um velho pastor.



بوی گردوعطر یاسبوی باران بر خاک.

O aroma das nozes a fragrância do jasmim o aroma da chuva sobre a terra.



صدهاماهی کوچک و بزرگغوطه میخورنددر سراب گرم بیابان.

Centenas de peixes pequenos e grandes mergulham na ardente miragem do deserto.



یک مگسبه قتل رسیدبه جرم خوردن حلوا.

A mosca foi morta culpada de haver provado o açúcar.



بارانمی بارد سه روزبی وقفه،آفتابدر باورم نمیگنجد.

Chove

há três dias sem parar, o sol não tem lugar no meu pensamento.



آسمان میشکنددر آینه شکسته.

O céu fragmenta-se num espelho quebrado.



در چشم پرنده هاغربمغرب است وشرقمشرق،همین.

Aos olhos dos pássaros o ocidente é onde o sol se põe e o oriente onde o sol nasce, apenas isso.



نوشته:

»لطفا دست نزنید«،سر انگشتم گز گز میکند.

Escreveram:

«Favor não mexer» meus dedos coçam.



به زهره مینگرمبه راه شیری،ستایش می کنمچشمی را که میتواندببیند

این همه...

Olho para Vênus e a Via Láctea, admiro o olho que pode ver tudo isso...



صورتم را در آب چشمهفرو میبرمبا چشمانی بازده ریگ کوچک.

Mergulho meu rosto na água da fonte de olhos abertos dez pedrinhas.



آسمانمال من است،زمین

مال من،من چه ثروتمندم!



O céu

é meu, a terra é minha, como sou rico!



گوش میسپارمبه زمزمه بادبه غرش رعدبه موسیقی امواج.

Aproximo meu ouvido do sussurro do vento do estrondo do trovão da melodia das ondas.





از صدای وزغ هااندازه میگیرمعمق مرداب را.

Pelo coaxar das rãs

meço a profundidade da lagoa.



دراز میکشمبر زمین سخت،ابرهای پنبه ای.

Deito-me

sobre a terra dura, nuvens de algodão.



قرص ماهدر آب،آبدر کاسه،تشنه در خواب.

O disco da lua na água, a água na taça, um homem sedento adormecido.



در سکوت شببی خوابی میکندلالایی موریانه.

No silêncio da noite não me deixa dormir a nênia dos cupins.



ماه نو

شرابی کهنهدوستی تازه.

A lua nova um vinho velho um novo amigo.



انتهای بهاراولین گل سرخعوالم بلوغ.

O m da primavera a primeira rosa o universo da puberdade.



نصف منمال تو،

نصف منمال من.

Pela metade sou teu, pela metade sou meu.





کره اسبی سفید،از مه میآیدو ناپدید میشوددر مه.

Um potro branco vem da névoa e se esvai na névoa.



جا پای عابری در برفاز پی چه کاری رفته؟بر میگردد؟از همین راه؟

Vestígios de um caminhante sobre a neve

Por que passou por aqui?

Regressará?

Por este mesmo caminho?



برف هابه سرعت آب میشوندو به زودی پاک میشودجا پای عابراناز کوچک و بزرگ.

A neve derrete-se rapidamente e rapidamente desaparecem as pegadas dos caminhantes pequenas e grandes.



سپیدیِ کبوترگم میشود در ابرهای سپید،روز برفی.

A brancura da pomba perde-se nas nuvens brancas em um dia de neve.



صد سربازِ گوش به فرمانبه خوابگاه میرونددر آغاز شبی مهتابیرویاهای نافرمان.

Cem soldados diligentes vão à camerata em uma noite de luar sonhos rebeldes.



زن سپید مویبه شکوفههای گیلاس مینگرد:

آیا بهار پیریام فرا رسیده است؟

Uma mulher de cabelos brancos observa as cores da cerejeira:

Haveria chegado a primavera da minha velhice?



جوجههای یک روزهتجربه کردندنخستین باران بهاری را.

Os pintinhos de um dia experimentaram a primeira chuva de primavera.



راهبه ای پیرصبحانه میخورد به تنهایی،صدای کتریِ جوشان.

Uma velha monja toma o café da manhã sozinha barulho de chaleira fervendo.





می پرد و مینشیندمی نشیند و میپردملخ

به سمتی که فقط خود میداند.

Salta e pousa pousa e salta o gafanhoto em uma direção que só ele sabe.



زنبور عسلمردد میماند

در میان هزاران شکوفه ی گیلاس.

A abelha permanece indecisa entre milhares de cores de cereja.



چه خوب شد که نمیبیندسنگ پشت پیر

پرواز سبکبار پرنده ی کوچک را.

Ainda bem que não vê a velha tartaruga o voo plácido do passarinho.



جونه زدشکفت

پژمردفرو ریختحتا یک کس آن را ندید.



Brotou floresceu murchou caiu nem sequer uma pessoa a viu.



عنکبوتدست از کار میکشدلحظه ایبه تماشای طلوع خورشید.

A aranha deixa os seus afazeres por um instante ante o espetáculo do alvorecer.



چگونه میتواند زیستسنگ پشت پیرسیصد سال

بی خبر از آسمان.

Como pode viver a velha tartaruga trezentos anos ignorando o céu.



نور مهتابذوب میکندیخ نازک رود کهن را.

A luz do luar derrete no gelo de um velho rio.



برگ چنارفرو میافتاد آرامو قرار می گیردبر سایهای خویشدر نمیروز پاییزی.

A folha do álamo cai sossegada e repousa sobre a sua sombra em um meio-dia de outono.



زنی آبستنیمی گرید بی صدادر بستر مردی خفت.

Uma grávida chora em silêncio um homem adormentado sobre a cama.



باددر کهنه راباز میکندو میبنددبا صداده بار.

Dez vezes o vento abre e fecha rangendo uma velha porta



مردی خسته در راهتنها

یک فرسنگتا مقصود.

Pelo caminho um homem cansado sozinho a uma légua do seu intento.



یک گولِ کوچکِ بی نامروییده به تنهاییدر شکاف کوهی عظیم.

Uma pequena flor anônima brota sozinha na altura de uma montanha imponente.



در کوره راه کوهستانیپیر مرد روستایی در راهآوای جوانی از دور.

Pelas veredas de uma serra segue um velho camponês ao longe a voz de um jovem.



سگ سیاه

عو عو می کندبرای تازه واردی ناشناسدر شب بی ستاره.

Um cachorro preto

late a um desconhecido recém-chegado em uma noite sem estrelas.



باد بهاریکلاه از سر مترسک می ربایداولین روز سال نو...

A brisa primaveril rouba o chapéu do espantalho o primeiro dia do ano-novo...





فرو میافتاد کلیدبی صدا

از گردن زنیبر اچاق آشپزخانه.

Uma chave cai silenciosamente do pescoço de uma lavradeira no arrozal

a chaleira ferve, sobre o fogão na cozinha.



زنبورهای کارگرکار را رها میکنندبرای گفت گویی لذت بخشدر اطراف زنبور ملکه.

As abelhas operárias interrompem o trabalho para um doce prosear em torno da abelha-rainha.



مهتابتابیده از پشت شیشه

بر چهره ی مهتابی راهب جواندر خواب.

O luar reverbera atrás da vidraça sob a face tênue de uma jovem monja adormecida.



آفتاب پاییزیبر چینه ی گلین:

مارمولکی هوشیار.

O sol de outono sobre um muro de barro: uma lagartixa sagaz.



مترسک

عرق می ریزد زیر کلاه پشمیدر نیمروزِ گرمِ تابستان.

Um espantalho sua debaixo de um chapéu de lã em um quente meio-dia de verão.



آفتاب پاییزیاز پشت شیشه میتابدبر گلهای قالی:

زنبوری خود را به شیشه میکوبد.

O sol de outono reverbera atrás da vidraça sobre as cores do tapete: uma abelha debate-se na vidraça.



باددو نیم میکندتکه ابری کوچک رابرای غرب و شرقدر نیمروز خشکسالی.

O vento parte em dois um pequeno fragmento de nuvem entre Oriente e Ocidente ao meio-dia de um ano de seca.



بچههای روستایینشانه میروند بی مهاباسر حلبین مترسک را.

Os meninos da roça alvejam intrépidos a cabeça de lata do espantalho.



گل ها ی آفتا بگردانسر افکنده نجوا میکننددر پنجمین روز ابری.

Os girassóis murmuram cabisbaixos no quinto dia nublado.



عنکبوت

با رضایت به حاصل کار خویش مینگردبین توت و گیلاس.

A aranha

contempla orgulhosa o resultado do seu trabalho entre o pé de amora e a cerejeira.



کلاغ سیاهبا حیرت به خود مینگرددر دشت پوشیده از برف.

Uma gralha preta mira-se maravilhada em um campo coberto de neve.



راهبه

دست میکشد

بر پارچه ی ابریشم:

مناسب است برای روپوش؟

Uma monja

acaricia um tecido de seda:

Será adequado a um hábito?



زمین لرزهویران کرد حتاانبار غله ی مورچگان را.

O terremoto destruiu até mesmo o celeiro das formigas.



سگ ولگرددم میجنباندبرای عابر کور.



Um vira-lata abana a cauda a um caminhante cego.





در جمع سواران سیاه پوشکودک

خیره به خرمالو مینگرد.

Em um grupo de pessoas vestidas de luto um garoto olha encantado um pé de caqui.



کودک دبستانی

راه میرود بر ریل کهنهو تقلید میکند ناشیانهصدای قطار را.

O colegial caminha sobre um trilho velho desajeitado imita o apito do trem.



زیر کورسوی چراغ نقهبانیکودکنقاشی میکشدپدر در خواب.

Sob a luz tímida do lampião um garoto desenha o pai dorme.



تب دار کودکنگاه میکند از پشت شیشهبا حسرتبر آدمک برفی.

Um garoto com febre olha da janela impaciente um boneco de neve.



در معبدی متعلق بههزاران سیصد سال پیشساعت

هفت دقیقه به هفت.

Em um templo

de mil e trezentos anos hora sete para sete.



روستایی

به زمین خود باز میگرددبرای کشتِ بهاریبدون نیم نگاهی به مترسک.

O camponês

torna à sua lavoura para a semeadura primaveril sem sequer olhar para o espantalho.





راهبه ها

به توافق نمیرسندسر انجامبر سر رنگ اطاق غذاخوری.

As monjas no m das contas não chegam a um acordo sobre a cor do refeitório.



خوب که فکر میکنمنمی فهممدلیل این همهنظم و شکوه رادر کار عنکبوت.

Ainda que eu me esforce não compreendo o porquê de tanto zelo e pompa no trabalho da aranha.



خط کشیده است جتبر آسمانِ آبیدر اولین روز سال نوع.

Um avião traça uma linha em um céu azul o primeiro dia do ano-novo.



زنبور عسلمدهوش میشوداز عطرِ گلی ناشناخته.

A abelha inebria-se do perfume de uma flor desconhecida.



سایه امبا من همراهی میکنددر شب مهتاب.

A minha sombra acompanha-me em uma noite de luar.



چراغ بر میافروزددر شب طوفانیاصرار عاشقراه به جایی نمیبرد.

Um lampião brilha em uma noite tempestuosa a insistência de quem ama não leva a nada.



هیچ کس نمیداندجویبار کوچک

که جاری میشود از دل چشمهای خردقصد دریا دارد.

Ninguém faz caso:

o riacho que brota do coração de uma pequena fonte tenciona ao mar.



بلبلِ آواز خوانرانده میشوداز فریاد مردی خواب آلوددر سپیده دم بهاری.

Um rouxinol cantador foi afastado pelo grito de um homem adormecido em um alvorecer de primavera.

اسب سم می کوبدبر گلی ناشناس

در جمع هزاران گل و گیاه.

As patas do cavalo pisoteiam uma flor desconhecida entre milhares de flores e plantas.



گاو شیرده ماغ میکشدو میپراند خواب رااز چشمان مرد خستهدر بعداز ظهر تابستان.

A vaca muge

e afasta o sono dos olhos de um homem cansado em uma tarde de verão.



باد زوزه می کشددر کوچههای بی ترددنه عابرینه سگی حتا.

O vento sibila nas travessas desertas nenhum pedestre nem sequer um cachorro.



ابر تیرهبه استقبال قرص ماه میروددر شب مهتابی.

Uma nuvem escura

vai ao encontro do disco da lua em uma noite de luar.



شش سندلی بامبوبا هم مرور میکنندخاطره ی آخرین تندباد پاییزی رادر دشت خیزران.

Seis cadeiras de bambu recordam juntas a lembrança da última ventania do outono no canavial.



کودک

درون گهوارهابعاد تخت خود را نمیشناسددر اطاق سه در چهار.

A criança no berço ignora quão grande é o berço em um quarto de três por quatro.



نه خاورنه باخترنه شمالنه جنوبهمین جا که ما ایستاده ام.

Nem oriente nem ocidente nem norte nem sul

Aqui mesmo onde me encontro.



سال هاستمثل پار کاهدر میان فصلسر گردانم.

Há anos como uma palha entre as estações vagueio.



ببخشید و فراموش کنیدگنا هانم رااما نه آن گونهکه به کلی فراموششان کنم.

Perdoai e esquecei as minhas culpas mas não em modo que eu as esqueça completamente.



(Nuvens de algodão. Organização e tradução: Pedro Fonseca)



(*) Não foi possível manter a formatação original do livro, no que pedimos desculpas aos leitores. No entanto, o texto em árabe (que se lê da direita para a esquerda obviamente) e a tradução estão preservados.



(Ilustração: Mahan - cotton clouds)

sábado, 1 de fevereiro de 2025

O VALOR DA ARTE: ENTRE UTILIDADE E FRUIÇÃO, de Ernani Terra



Oscar Wilde (1854 -1900), o célebre autor de O retrato de Dorian Gray, romance publicado em 1891 e que, na época, causou muitas discussões envolvendo não só questões estéticas, mas também morais, em um de seus aforismas, afirma: "Toda arte é completamente inútil".

Essa afirmação de Oscar Wilde ainda hoje causa estranheza em muitas pessoas, que levantam questões como: a) se a arte é inútil, por que assistir a encenações de peças de Shakespeare, Molière e Ibsen?; b) por que ouvir Mozart, Beethoven e Stravinsky?; c) por que ir a museus para ver as obras de Leonardo da Vinci, Van Gogh e Picasso?, d) por que ler Dom Quixote, Grande sertão: veredas, Crime e castigo e os contos de Machado de Assis, de Maupassant e de Tchekhov?

Reflitamos: nem sempre o primeiro sentido de uma palavra que nos vem à mente corresponde ao que foi empregado. As palavras, excetuando as do vocabulário científico, costumam ser polissêmicas, ou seja, podem ter mais de um significado. Nesse caso, o sentido decorre do contexto em que foi empregada.

Quando ouvimos a palavra inútil, logo nos vem à mente que esse adjetivo é usado para caracterizar algo que não é útil. E o que significa útil? O dicionário Houaiss diz, em sua primeira acepção, que útil é aquilo “que tem ou pode ter algum uso; que serve ou é necessária para determinado fim”. Ora, o que Oscar Wilde afirma em seu aforisma é que a arte não tem por interesse a utilidade, como têm um telefone celular, um casaco, um guarda-chuva, uma panela, uma colher. Não nos apropriamos de uma obra de arte para fazer com ela alguma coisa, para usá-la, mas simplesmente para fruí-la, para desfrutar dela, por isso a arte é inútil. É preciso, no entanto, atentar que, embora não tenha função utilitária, a arte é necessária e toda pessoa deve ter direito a ela.

Um telefone celular é útil; nos dias de hoje, para a maioria das pessoas chega até a ser algo necessário. Um casaco serve para nos amparar nos dias mais frios, um guarda-chuva é um objeto útil para nos proteger da chuva. Uma panela serve para cozer alimentos; uma colher, para comer; no entanto obras como Hamlet, de Shakespeare, Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, Guernica, de Pablo Picasso, e a 9ª Sinfonia, de Beethoven, foram feitas não para serem usadas, mas para serem fruídas. Pense na obra A fonte, de Marcel Duchamp (1889 – 1968), um mictório de porcelana exposto de maneira invertida. Ela não foi colocada no Museu Nacional de Arte Moderna de Paris para ser usada, mas para ser apreciada.

Os exemplos citados nos levam a uma outra reflexão: telefones celulares, casacos, guarda-chuvas, panelas e colheres são objetos produzidos em série e anônimos, enquanto Hamlet, Dom Quixote, Memórias póstumas de Brás Cubas, Guernica e a 9ª Sinfonia são objetos únicos e identificados a um autor, Willian Shakespeare, Miguel de Cervantes, Machado de Assis, Pablo Picasso e Ludwig van Beethoven, respectivamente.

Pode-se contra-argumentar que há vários exemplares de Dom Quixote e de Memórias póstumas de Brás Cubas, vários CDs e DVDs com a 9ª Sinfonia, várias gravuras de Guernica, até mesmo estampadas em camisetas. De fato, mas trata-se de reproduções de uma obra única feitas por processos industriais. Há várias reproduções da Mona Lisa, de Leonardo Da Vinci, em quadros, gravuras, canecas e camisetas que podem ser adquiridas por qualquer pessoa a um preço acessível, no entanto a obra de arte Mona Lisa, de Leonardo Da Vinci, é única e está exposta no Museu do Louvre em Paris e não tem preço.

Evidentemente, há teorias que postulam que a arte não é apenas para ser fruída. Alguns afirmam que a arte deve ter um caráter pedagógico, que a arte deve levar à ação. As igrejas medievais apresentavam pinturas na parede que reproduziam a paixão de Cristo; considerando-se que grande parte dos fiéis era analfabeta, essas pinturas tinham por finalidade educar esses fiéis na fé católica. Outros, ligados à estética de herança marxista, postulam que a arte deva ser engajada, isto é, comprometida com causas sociais, denunciando a opressão e o preconceito, entre outras coisas. A arte teria, em síntese, uma função conscientizadora.



(Ilustração: Pablo Picasso - Mural del Gernika)

quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

MUITAS FUGIAM AO ME VER…, de Carolina Maria de Jesus

      


Muitas fugiam ao me ver

Pensando que eu não percebia

Outras pediam pra ler

Os versos que eu escrevia

 

Era papel que eu catava

Para custear o meu viver

E no lixo eu encontrava livros para ler

Quantas coisas eu quis fazer

Fui tolhida pelo preconceito

Se eu extinguir quero renascer

Num país que predomina o preto

 

Adeus! Adeus, eu vou morrer!

E deixo esses versos ao meu país

Se é que temos o direito de renascer

Quero um lugar, onde o preto é feliz.

 

(Antologia pessoal)

 

(Ilustração: Erhabor Emokpae (nigeriano - 1934-1984) - dançarina burlesque)

domingo, 26 de janeiro de 2025

DÚVIDAS PASCOAIS, de Antonio Rocha Neto

 





– Papai, o que é Páscoa?

– Ora, Páscoa uhm… Bem … Bom, é uma festa religiosa.

– Igual Natal?

– É parecido. Só que no Natal comemora-se o nascimento de Jesus, e na Páscoa, se não me engano, comemora-se a sua ressurreição.

– Ressurreição?

– É, ressurreição. Marta, vem cá!

– Sim?

– Explica pra esse garoto o que é ressurreição pra eu poder ler o meu jornal.

– Bom, meu filho, ressurreição é tornar a viver após ter morrido. Foi o que aconteceu com Jesus, três dias depois de ter sido crucificado. Ele ressuscitou e subiu aos céus. Entendeu?

– Mais ou menos … Mamãe, Jesus era um coelho?

– Que é isso menino? Não me fale uma bobagem dessas! Coelho! Jesus Cristo é o Papai do Céu! Nem parece que esse menino foi batizado… Jorge, esse menino não pode crescer desse jeito, sem ir numa missa pelo menos aos domingos. Até parece que não lhe demos uma educação cristã! Já pensou se ele solta uma besteira dessas na escola? Deus me perdoe! Amanhã mesmo vou matricular esse moleque no catecismo!

– Mamãe, mas o Papai do Céu não é Deus?

– É filho, Jesus e Deus são a mesma coisa. Você vai estudar isso no catecismo. É a Trindade. Deus é Pai, Filho e Espírito Santo.

– O Espírito Santo também é Deus?

– É sim.

– E Minas Gerais?

– Sacrilégio!!!

– É por isso que a Ilha da Trindade fica perto do Espírito Santo?

– Não é o Estado do Espírito Santo que compõe a Trindade, meu filho, é o Espírito Santo de Deus. É um negócio meio complicado, nem a mamãe entende direito. Mas se você perguntar no catecismo a professora explica tudinho!

– Bom, se Jesus não é um coelho, quem é o coelho da Páscoa?

– Eu sei lá! É uma tradição. É igual a Papai Noel, só que ao invés de presente ele traz ovinhos.

– Coelho bota ovo?

– Chega! Deixa eu ir fazer o almoço que eu ganho mais!

– Papai, não era melhor que fosse galinha da Páscoa?

– Era, era melhor, ou então urubu.

– Papai, Jesus nasceu no dia 25 de dezembro, não? Que dia que ele morreu?

– Isso eu sei: na sexta-feira santa.

– Que dia e que mês?

– Sabe que eu nunca pensei nisso? Eu só aprendi que ele morreu na sexta-feira santa e ressuscitou três dias depois, no sábado de aleluia.

– Um dia depois?

– Não, três dias.

– Então morreu na quarta-feira.

– Não, morreu na sexta-feira santa … Ou terá sido na quarta-feira de cinzas? Ah, garoto, vê se não me confunde! Morreu na sexta mesmo e ressuscitou no sábado, três dias depois!

– Como?

– Ah! Pergunte para a sua professora de catecismo!

– Papai, por que amarraram um monte de bonecos de pano lá na rua?

– É que hoje é sábado de aleluia, e o pessoal vai fazer a malhação do Judas. Judas foi o apóstolo que traiu Jesus.

– O Judas traiu Jesus no sábado?

– Claro que não! Se ele morreu na sexta!!!

– Então por que eles não malham o Judas no dia certo?

– É, boa pergunta. Filho, atende o telefone pro papai. Se for um tal de Rogério diz que eu saí.

– Alô, quem fala?

– Rogério Coelho Pascoal. Seu pai está?

– Não, foi comprar ovo de Páscoa. Ligue mais tarde, tchau.

– Papai, qual era o sobrenome de Jesus?

– Cristo. Jesus Cristo.

– Só?

– Que eu saiba sim, por quê?

– Não sei não, mas tenho um palpite de que o nome dele era Jesus Cristo Coelho. Só assim esse negócio de coelho da Páscoa faz sentido, não acha?

– Coitada!

– Coitada de quem?

– Da sua professora de catecismo!!!



(Ilustração: Norman Rockwell - Bunny Boy)