terça-feira, 16 de abril de 2024

AI! QUE PREGUIÇA..., de Maria Augusta Fonseca

 




"Ai! que preguiça...", desabafo-chave que percorre a rapsódia de Mário de Andrade, Macunaíma o herói sem nenhum caráter (1928), sugere na sua aparência marcas de uma certa indolência nativa associada também ao prazer carnal, tendo alcance limitado. Seria assim uma expressão que à primeira vista se encerraria em si mesma. Entretanto, há razões para conjecturar que, ao cunhá-la, Mário de Andrade teve motivações mais complexas, ligadas a seu interesse pelas manifestações do caráter nacional enraizadas na língua. Preocupado em se aproximar de um padrão linguístico que expressasse a identidade cultural brasileira, o escritor pode muito bem ter-se atraído pelo recurso sonoro e avançado em muitas direções nessa expressão que forjou e emprestou para desafogo do herói Macunaíma no percurso da rapsódia.

Essa complexidade subjacente que a expressão acolhe tem um rastro na obra do Padre Anchieta, leitura conhecida de Mário de Andrade. Na carta em que faz "a descrição das inúmeras coisas naturais, que se encontram na província de S. Vicente hoje S. Paulo", em fins de maio de 1560, Anchieta observa: "Há outro animal (que os índios chamam Aig, e nós 'Preguiça' por causa de sua morosidade realmente vagarosa [...]".

Além da interjeição "ai", o desabafo abriga elementos sonoros que, sem dúvida, fazem reavivar a explicação de Anchieta: Aig ... Preguiça.

Dicionários etimológicos, de zoologia e não especializados trazem diversas grafias transliteradas do tupi como sendo equivalentes ao substantivo "preguiça": ai, aí, ahú, aig, aígue. O filólogo Antenor Nascentes registra que esse vocábulo tem origem onomatopaica, traduzindo o som emitido pelo animal que "articula um a fechado, muito prolongado, seguido de i curto e aspirado". A Mário de Andrade, poeta, professor de música, crítico, e pesquisador interessado em zoofonia não devem ter escapado as possibilidades de exploração desse amálgama entre o tupi e o português, abrindo espaço para especular que o refrão não se resume a uma simples interjeição individual, mas pretende reforçar, na mestiçagem linguística e na sonoridade musical, mais um traço expressivo da mescla da nacionalidade.

Em Macunaíma, na expressão elaborada de forma poética ecoaria, portanto, o som emitido pelo bicho preguiça, animal emblemático, totêmico, paradisíaco, no entender de Mário de Andrade. De um lado o ai (aig) emaranhando-se nas raízes primitivas de Pindorama e irmanando-se ao ócio criador (sublimado nas artes). Esse ócio tão bem diferenciado por Mário de Andrade em seu artigo de 1918, "A Divina Preguiça", difere daquele sentido de preguiça que traduz a indolência e marca o improdutivo, o inoperante: "Forçoso é continuar, para que o idealismo floresça e as ilusões fecundem, a castigar os que se aviltam no 'far niente;' burguês e vicioso e a exalçar os que compreenderam e sublimaram as artes, no convívio da divina Preguiça!"

E é nessa trilha do ócio-criador, propício ao florescimento da poesia, que Mário de Andrade evoca também, nesse mesmo artigo de 1918, o poema ELDORADO, de Edgar Allan Poe, como exemplo de resquício da preguiça divinizada.

Vale lembrar, ainda, que as preguiças aparecem no roteiro de seu livro de viagem, O turista aprendiz (1927), no papel de antepassados dos imaginários índios Do-Mi-Sol, que teriam como peculiaridade comunicar-se por meio da música. E o "turista" Mário de Andrade expande a explicação: "Também poderia por junto da tribo Do-Mi-Sol, outra tribo inferior, escrava dos Do-Mi-Sol, justamente porque falava com palavras como nós, e daí um, estreitamente de conceitos que a tornava muito inferior. Mas por intermédio desta tribo, poderei criar todo um vocabulário de pura fantasia, mas com palavras muito mais sonoras e de alguma forma descritivamente expressivas onomatopaicamente expressivas, dos meus sentidos".

Nessa trilha, não se pode esquecer também que, ao se despedir da cidade de São Paulo, Macunaíma a transforma em pedra, na imagem do bicho preguiça, como que totemizando-a: "- Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são... Enxugou a lágrima, consertou o beicinho tremendo. Então fez um caborge: sacudiu os braços no ar e virou a taba gigante num bicho preguiça todinho de pedra. Partiram."

O feitiço de Macunaíma resguardará no bicho-estátua sua tradição cultural, trazendo uma vez mais presente aquela "Lenda do aparecimento do homem" contada pelos índios Do-Mi-Sol. O "ai! Que preguiça..." embute, portanto, o desejo ancestral, o princípio de prazer e o de realidade, em níveis distintos, além de sugerir, entrançados na musicalidade da língua e na expressão feita, seu hibridismo e, metaforicamente, uma fratura, a consciência cindida, o traço de divisão de nossa identidade cultural.



(Este artigo foi extraído, com alterações feitos pela própria autora, do ensaio “A carta prás camiabas”, em “Mário de Andrade, Macunaíma o herói sem nenhum caráter”; edição crítica de Telê Porto Ancona Lopez)



(Ilustração : Pieter Bruegel - The Elder: Laziness)

sábado, 13 de abril de 2024

FANTAISIE / FANTASIA, de Gérard de Nerval

 




Il est un air pour qui je donnerais

Tout Rossini, tout Mozart et tout Weber,

Un air très vieux, languissant et funèbre,

Qui pour moi seul a des charmes secrets.



Or, chaque fois que je viens à l’entendre,

De deux cents ans mon âme rajeunit:

C’est sous Louis treize; et je crois voir s’étendre

Un coteau vert, que le couchant jaunit,



Puis un château de brique à coins de pierre,

Aux vitraux teints de rougeâtres couleurs,

Ceint de grands parcs, avec une rivière

Baignant ses pieds, qui coule entre des fleurs;



Puis une dame, à sa haute fenêtre,

Blonde aux yeux noirs, en ses habits anciens,

Que, dans une autre existence peut-être,

J’ai déjà vue… – et dont je me souviens!



Tradução de Victor Queiroz:




Existe uma ária por que eu trocaria

Qualquer Weber ou Mozart ou Rossini;

Ária funérea e langorosa e antiga,

Cujo secreto encanto é só pra mim.



Ora: sempre que chega-me aos ouvidos,

Transporta-me a alma a séculos atrás:

O rei é Luís XIII… uma colina

Verde – o ocaso a dourava – se desfaz;



E, a seguir, todo um castelo imbricado,

Com seus vitrais tingidos de rubores,

Vastos jardins a cercá-lo, e um riacho

Aos seus pés, a correr por entre as flores;



E, por fim, à janela, uma donzela

Loura, olhos negros, em vestes d’outrora…

Que, doutra vida, pode ser aquela –

Déjà vue! – que inda mora na memória!



(Odelettes rythmiques et lyriques)



(Ilustração: Daniel Muczynski - chateau fort)

quarta-feira, 10 de abril de 2024

A CIVILIDADE PUERIL: OS BANQUETES E AS REFEIÇÕES, de Erasmos de Rotterdam

 



ANTES DAS REFEIÇÕES

Nunca se assentar sem antes lavar as mãos, porém, limpa, primeiro, as unhas.

Que elas não escondam sujeiras senão podes levar o apelido de “unhas encardidas”.

Antes ainda cuida de urinar, à parte; e, se necessário, esvazia o intestino.

Se te incomoda o cinto apertado, trata de folgar a fivela. Fazer isso, já assentado, não cai bem.

Ao enxugar as mãos, afasta todo tipo de pensamento melancólico de tua mente. Durante a refeição, não deves aparentar tristeza como não entristecer a ninguém.

A ORAÇÃO ANTES DO REPASTO

Se pedirem a ti para abençoar a comida, assume uma atitude de acolhimento total, seja com as mãos, seja com a fisionomia. De frente para a pessoa de maior respeito, ali, presente ou voltado para a imagem do Cristo, se houver. Chegado ao nome de Jesus e de sua mãe, a Virgem Maria, faze flexão com os dois joelhos.

Caso seja tal função confiada a outrem, ouve e responde com a mesma devoção.

LUGAR DE HONRA



De bom grado, cede para algum outro o lugar de honra. Se fores convidado para ocupar um espaço de mais destaque, escusa-te com amabilidade. Se há firme insistência e repetida por várias vezes, sendo que quem roga é uma autoridade, cede com simplicidade. Deixar de anuir já não seria cortesia e, sim, obstinação.

POSIÇÃO DAS MÃOS

Uma vez assentado, pousa as duas mãos sobre a mesa, mas não juntas nem sobre o prato. Igualmente deseducado é ficar com uma ou com as duas mãos sobre o peito.

POSIÇÃO DO CORPO

Não se perdoa a mania de pôr um ou dois cotovelos sobre a mesa. Isso passa despercebido nos velhos e nos doentes. Cortesãos há refinados que se permitem tais posturas. Não dês atenção a eles nem os imites.

Entrementes, sê atento para não incomodar com os cotovelos a quem está assentado ao teu lado. Também não, com os pés, a quem está a tua frente,

Não fiques a balançar sobre a cadeira, apoiando-te, ora sobre uma das nádegas, ora sobre a outra. Tal atitude sugere o trejeito de quem está para liberar gases do tubo digestivo ou, pelo menos, se esforça para tanto.

O correto é ficar de corpo direito, em equilíbrio estável.

O GUARDANAPO

Se te oferecem o guardanapo, coloca-o ao ombro esquerdo ou sobre o braço do mesmo lado.

O CHAPÉU

Sendo indeclinável estar à mesa em companhia de pessoas mais gradas, posto que tens os cabelos bem penteados, dispensa então o chapéu, a menos que o costume do lugar aconselhe diversamente ou haja exigência em contrário por parte da autoridade do anfitrião ao qual não seria airoso contrariar.

Regiões há onde o costume obriga que criança, junto de adultos,

tome a refeição na ponta da mesa, tendo a cabeça coberta.

Em todo caso, a criança não se aproxime da mesa a não ser que expressamente convidada. Também não pode permanecer junto da mesa até o final da refeição. Logo assim que se alimentou, suficientemente, tome do prato e retire-se, após ter saudado os convivas, fazendo uma leve genuflexão máxime àqueles de maior categoria.

TALHERES

O copo fica à direita como também a faca, devidamente asseada, para talhar a carne. O pão à esquerda.

O PÃO

Alguns cortesãos se distraem em apertar o pão com a palma da mão para depois parti-lo em pedaços com as pontas dos dedos. Tu, porém, deves cortá-lo, normalmente, com a faca, sem tirar a côdea ao derredor, mas indo de um lado a outro. Isso sim revela modo de gente refinada.

Os antigos, durante a refeição, tinham um rito religioso de manusear o pão como se fosse objeto sacro. Daí veio o costume de beijá-lo, se ocorre de cair sobre o piso.

BEBIDA

Principiar a refeição bebendo é hábito dos alcoólatras que bebem não por sede e, sim, por impulso. Isso, além de inconveniente, prejudica a saúde.

Não há necessidade alguma de tomar líquido logo depois de ter tomado sopa ou bebido leite.

Aliás, beber mais de duas ou três vezes, no decorrer da refeição não é elegante nem saudável para as crianças. Bebam uma única vez ao começar o segundo prato, principalmente se for um assado. Depois, no final da refeição, bebam, mas sorvendo o líquido com moderação, não engolindo de um sorvo nem fazendo aquele rumor típico de cavalo.

O vinho e a cerveja, que têm igual teor inebriante, prejudicam a saúde das crianças e depravam os costumes.

Preferível mesmo é que a juventude, por ser mais acalorada, beba apenas água.

De acordo .com a idade dos menores é mais adequado tomar água ferventada. Se tal não se adequar ao clima e a outras coisas mais, então bebam cerveja menos forte ou vinho mais suave diluído em água.

Pelo mais, eis alguns dos prêmios que contemplam pessoas dadas ao vinho: dentes amarelados, pálpebras caídas, olhos embaciados, estupor mental, velhice prematura.

Antes de beber, engole a comida. Nunca aproximar o copo dos lábios sem, primeiro, tê-lo limpado com a guardanapo ou com o lenço, principalmente se um dos convivas te apresenta o próprio copo ou se todos bebem da mesma taça.

REPARAR NOS OUTROS

Girar os olhos enquanto se bebe a fim de observar os outros, nada é mais indiscreto. Também é impróprio o costume de inclinar o pescoço para trás, à guisa de cegonhas, a fim de esvaziar o copo até a última gota.



BRINDE

Se alguém levanta um brinde a tua saúde, retribui com cortesia e, tocando os lábios com o copo, limita-te só a umedecê-los, fingindo beber. Isso é quanto basta para também atender ao festivo conviva. Se o indivíduo insiste como vilão, retruca, dizendo que, um dia, como adulto lhe darás troco adequado.

SOFREGUIDÃO EM COMER

Há gente que, mal se aproxima da mesa, mete a mão nas travessas. a saúde das crianças e depravam os costumes. Isso é coisa de lobo ou de quem devora as carnes da panela antes mesmo de serem feitas as libações aos deuses, como diz o provérbio.

Não tocar, de imediato, no prato servido, não só para não só para não ostentar gula, mas ainda por causa do perigo, por vezes, conexo. Se introduzido na boca, sem o devido cuidado, alimento muito quente resulta ser necessário ou cuspir fora ou queimar a goela. Ambas as reações são tão ridículas quanto mortificantes.

Aguarda um pouco. É vantajoso ir-se acostumando ao controle do apetite. Em virtude de tal conselho, e não por causa da idade, que Sócrates sempre declinava tomar da primeira taça.

PRECEDÊNCIA

Quando uma criança toma lugar à mesa em companhia de pessoas mais velhas, seja a última a servir-se da travessa, e mesmo assim, após ter sido convidada. É gesto grosseiro enfiar os dedos no molho. Pega com a colher ou o garfo o que te apetecer. Ao invés de pôr-te a escolher dentre todas as porções da travessa, à moda de guloso, retira aquela parte que está bem à tua frente.

A propósito, aprendamos de Homero, onde é frequente este verso: "eles estendiam as mãos para aqueles pedaços de carne cozida que estavam diante deles".

Se um pedaço for mais apetecível, deixa-o para outrem e serve-te de outra porção próxima.

Posto que remexer o conteúdo da travessa inteira passa por gulodice, o simples movimento para girar a travessa a fim de selecionar as melhores partes não deixa de ser descortês.

Se te oferecem uma porção de melhor aspecto, então agradece com cortesia e aceita. Em seguida, tendo separado uma parte pequena para ti, devolve o restante a quem te apresentou o prato ou então passa-o ao vizinho.

O que não pode ser segurado com os dedos, seja posto no prato.

Se te for oferecido um pedaço de bolo ou de torta, pega-o com o talher, coloca-o no prato e devolve o talher. Se for algo de mais mole, recebe para degustar e devolve a colher depois de limpa na toalha de mão.

Em todo caso, lamber os dedos untados ou enxugá-los na roupa é de todo inconveniente. O correto seria servir-te da toalha ou do guardanapo.

MODO DE DEGLUTIR

Deglutir bocados inteiros, apressadamente, é próprio das cegonhas e dos histriões.

Quando alguém está a separar uma fatia, não fica bem já aproximar a mão ou o prato antes que o garção ofereça. Então parece que queres pegar o que estava sendo destinado para outra pessoa. O que te for oferecido, segura-o com três dedos ou apresenta o prato para receber.

Se o que foi oferecido não agrada ao teu paladar, não vás dizer como Clitifones da comédia: "Pai, não aguento!" Pelo contrário, agradece com suave sorriso. Essa é a maneira elegante de refugar.

Dado que o ofertante insiste, replica, com cortesia, que o prato não te apraz ou que já te sentes suficientemente atendido.

MODO DE CORTAR A CARNE

Recomendável é que, desde logo, as crianças, sem aquela afetação de certos indivíduos, aprendam a técnica de cortar com a devida propriedade. Assim, paleta não se corta como perna de carneiro; nem pescoço como costela. Por sua vez, frango, faisão, perdiz e pato, todos eles são dissecados de maneira diversificada.

OUTRAS PRECAUÇÕES EM BANQUETES

Longe de ti passar para os outros um bocado já comido

É costume de caipira estar a imergir no caldo o pão mordido. Nada mais repugnante que repor, no prato, o alimento já mastigado, retirando-o da goela. Se ocorrer que algo, já na boca, não deve ser deglutido, então, voltando-se para trás, trata de retirá-lo de qualquer jeito, discretamente.

Tem-se como de mau gosto repor, no prato, alimento já provado ou ossos descarnados.

Não jogar para debaixo da mesa ossos e outros detritos a fim de não conspurcar o pavimento. Também não depositar sobre a toalha da mesa nem dentro da travessa de serviços. O certo é deixar, num canto, dentro do teu prato ou no pires que, segundo o costume corrente, destina-se a receber os restos.

Revela inépcia quem tira alimento da mesa para dá-lo aos cães dos outros. Pior ainda é estar a acariciá-los.

É ridículo retirar a casca do ovo, usando as unhas ou o polegar. Também detestável é servir-se da língua para descascá-lo. O correto é o uso da faca. Roer os ossos fica bem só para cães. Gente educada sabe como descamar os ossos com a faca.

Mancha de três dedos no saleiro, como se diz por escárnio, são as pegadas do caipira. A regra manda pegar o sal com a faca. Se o saleiro estiver distante, pede por favor e apresenta o prato.

Em todo caso, lamber os dedos untados ou enxugá-los na roupa é de todo inconveniente. O correto seria servir-te da toalha ou do guardanapo.

É coisa de felinos e não de humanos lamber, com a língua, prato ou tigelas onde ficou aderente o mel ou resíduo açucarado.

Primeiro, corta a carne em fatias dentro do prato; a seguir, junto com o pão, mastiga por algum tempo e depois podes engolir. Tal procedimento é preceituado não só pela boa educação como ainda pela saúde.

Indivíduos há que, ao comer, mais parecem devorar e assim se assemelham aos que estão para serem, incontinenti, encarcerados. Tal sofreguidão 'revela o ladrão.

Outros engolfam tanta coisa na boca que estufam as cavidades do rosto.

Alguns, ao mastigar, abrem de tal modo a boca que chegam a grunhir como suíno.

Não falta quem come com tal avidez que aspira como se estivesse sendo sufocado.

Beber e falar com a boca cheia, sobre ser mal-educado, é também perigoso.

Convém que as ceias prolongadas tenham intervalos para a conversação descontraída.

Muita gente há que bebe e come sem fazer pausa ou tomar fôlego, não por causa da fome ou da sede, mas porque não é capaz de ficar sossegada. São indivíduos impulsivos que, ora coçam a cabeça, ora limpam os dentes ou gesticulam, ora brincam com a faca, ora tossem ou escarram e cospem.

Tais cacoetes tanto demonstram o desajustamento dos rústicos como podem até ser indício de anomalias. Convém esconder o enfado, quando escutas a conversa dos outros sem ter chance de falar.

Não há utilidade alguma em sentar-se à mesa e ficar meditabundo.

São até vistos indivíduos tão concentrados que, além de nada ouvirem de quanto os outros falam, não percebem que estão a comer. Se forem chamados pelo nome, tomam o ar de despertados do sono. Isso porque estão de olhos pregados nos pratos.

Feio mesmo é ficar de olho vivo no vizinho para observar o que ele come. Também não é elegante assestar os olhos, fixamente, em determinada pessoa.

Igualmente pouco polido é olhar de soslaio para aqueles que estão ao lado. Pior de tudo é girar a cabeça para trás a fim de ver o que acontece em outra mesa.

Mexericos a respeito do que é dito e feito entre um copo e outro, não fica bem para ninguém e muito menos para um menino.

Criança, à mesa com pessoas mais velhas, deve ficar em silêncio, a não ser que tenha necessidade de dizer alguma coisa ou seja solicitada a falar.

Rir, moderadamente, de alguma palavra chistosa, nada de errado, porém, em ocasião alguma rir motivado por palavra obscena. Sequer levantes as sobrancelhas, se quem a proferiu é pessoa de classe. Ao invés, deves tomar o jeito de quem nada ouviu ou, ainda melhor, fazer que não entendeu.

Se o silêncio é ornamento para a mulher, muito mais para a criança.

Há quem responde bem antes que o interlocutor tenha findado a frase. Acontece então que, dando resposta, provoca risada e enseja recordar o velho provérbio: "Eu te pedia o ancinho " [1].

Aliás, certo rei de grande sabedoria tinha na conta de idiotice o hábito de responder antes de ter ouvido a pergunta. Com efeito, não se ouviu o que não foi entendido.

Se não entendeste bem a pergunta, fica, por um instante, em silêncio até que o interlocutor, espontaneamente, torne a interrogar. Se ele não o faz e mesmo assim insiste na resposta, então a criança, com uma amável escusa, pede que repita o que foi dito.

Dado que a pergunta foi entendida, ocorre pensar um pouco e depois responder com brevidade e de modo simpático. Durante o convívio não deixes escapar nada que prejudique o clima de alegria.

É desairosa a prática de falar mal de pessoas ausentes. Não é de louvor recordar para algum dos convivas qualquer de seus pesares.

Criticar o que está servido na mesa, além de deseducado, revela ainda ingratidão para com o anfitrião.

Quando os gastos com o banquete saírem de tua posse, é gentil pedir compreensão pela exiguidade de fartura, porém, elogiar e proclamar os gastos é o pior dos condimentos para os convivas.

Se, durante a ceia, alguém for grosseiro por ignorância, é de relevar o episódio, ao invés de zombar. Afinal, beber em companhia implica certa liberdade. Em todo caso é cruel estar a propalar, lá fora, como, aliás, já advertia Horácio, algo que escapou do controle, durante a festa. O que, aliás, foi falado e acontece deve passar com o vinho. Caso contrário, ter-se-ia que ouvir o ditado: ”Odeio o conviva de boa memória”.

Se o convívio se prorroga além do tolerável para a idade juvenil e vai se encaminhando para descomedimentos, então, apenas satisfeito o apetite, retira-te, discretamente, ou depois de pedir licença.

Aqueles que submetem crianças à dieta, no meu pensar, são indivíduos tão desmiolados quanto aqueles que os fazem comer em demasia. Realmente, se o regime debilita a resistência de organismos ainda tenros, o excesso de alimentos atordoa o vigor mental. Eis porque, desde cedo, a criança deve aprender a temperança.

O corpo de criança deve estar alimentado aquém da plena saturação. E preferível comer diversas vezes a empanturrar-se.

Há indivíduos que desconhecem os limites do empanzinamento a não ser quando estão a perigo de explodir ou de rejeitar, com o vômito, a sobrecarga.

É sinal de desamor pelas crianças permitir a tão tenra idade participar de ceias que se prorrogam pela noite adentro.

Se for necessário retirar-te da ceia, que se delonga por horas a fio, toma contigo o prato com as sobras e, depois de ter feito uma saudação ao convidado de maior destaque, em seguida, afasta-te com outros convivas, mas retorna bem logo, a fim de que não pensem que estivesses a fazer gracejos ou qualquer coisa de pior.

Ao voltar à mesa, serve-te, se ainda necessitas de algo ou então toma lugar e fica em respeitosa espera de qualquer ordem. Em todo caso, seja ao trazer para a mesa qualquer coisa, seja ao tirar, cuida para não sujar a veste.

FINAL DO BANQUETE

Se fores apagar as velas, primeiro, afasta-as da mesa, e, apenas extinta a chama, submerge-a em areia ou pisoteia-a sob a sandália para que o odor desagradável não seja causa de irritação para os outros.

Quando for para pegar ou entornar alguma coisa, cuida para não te servir da mão esquerda.

Se for pedido para fazer a oração final de agradecimento, toma a atitude adequada para demonstrar que estás pronto ao rito, enquanto aguardas o momento oportuno para executá-lo em meio ao silêncio dos convivas. Enquanto esperas, mantém o rosto voltado, respeitosamente, para quem preside a refeição.



Nota:

(1) Trata-se do antigo provérbio em latim "falces petebam" ("eu te pedia foice"), citado por Svida. Diálogo entre camponeses. Um pede a foice e outro responde: "Só tenho enxadão". Em suma, diálogo entre surdos. Alguém pede uma coisa e o outro responde atravessado. (NT)


(De civilitate morum pueorum / Sobre a civilidade dos costumes dos meninos - 1530; tradução de Luiz Feracine)



(Ilustração : James Ensor - The Banquet of the Sartarved – 1915)

domingo, 7 de abril de 2024

EPISTOLA, de José Bonifácio de Andrada e Silva

 


 



Escrita de Coimbra no começo da primavera de 1785.





. . . Nor ye who live

In luxury and ease, in pomp and pride,

Think these lost themes unworthy of your ear.

THOMPSON. SEASONS.





Tu, em quem liberal a natureza

Uniu uma alma grande a um peito humano,

Tu que vês, doce amigo, caro Armindo,

Os míseros mortais vagar sem tino

De desejo em desejo, de erro em erro

No imenso barulho das cidades,

Donde a risonha paz e a irmã justiça

Banidas pelo vicio vão fugindo;

Foge do alvergue das paixões e crimes;

E pois que a primavera deixa a nuvem,

E fresca desce sobre os nossos campos,



Companheiro vem ser da natureza.

Se anos inteiros lá na corte gastas

Com rostos mil fingidos, vem uma hora

Gastá-la co'a amizade. — Verdes freixos,

Que a casa me rodeiam, sombra amena

Copados guardam para ti. — As ninfas

Colhem as novas flores, que do seio

Da terra o almo sol resplandecente

Lá desde o assento seu, raiando, cria.

Com elas tecem mil gentis grinaldas

Para ornarem-te a fronte, ò caro Armindo!

Ah! se a terna Delmira inda te lembra,

Deixa essas Márcias, deixa essas Nerinas,

Nevados corações, que amor não sentem.

Longe de nós, Armindo, esses amores

Que acasos geram, que desfaz uma hora:

Longe de nós, Armindo, esses amores

Prodigamente dados, que a vontade

Enjeita por fastio ou por cansaço.



Amor não quer atletas furiosos,

Que à meta corram desbocadamente.

Folga de amantes vivos, mas prudentes:

Otil descanso, e férvidos prazeres ...

Então os meigos beijos voadores,

Co'as asas buliçosas refrescando

As amorosas faces inflamadas,

Renovam a paixão, dão-lhe energia.

Doces meiguices, brincos engraçados,

Tudo precisa amor; muito lhe servem.



De pâmpanos frondosos coroando

Nossas cabeças, rubicunda a face,

Sentados com Delmira em brando musgo

À sombra da floresta, rodeados

De festivo esquadrão de cupidinhos,

De desejos gentis, de leves risos,

Com o loiro Madeira, que desterra

Negra melancolia pensadora,

Bassareo Evohé, nós gritaremos.

Lá quando a tarde foge amedrontada

Do inverno irado, que seus ventos junta,

E a noite principia a abrir as asas;

Voltando para a casa sossegados

Com teu modo socrático, mordendo

Irás no velho mundo, que empeiora.

Graciosas pinturas delicadas

De puros Zeros, que per si não vivem,

Do político Mévio barrigudo,

Dignas do grande Pope irás fazendo.

Desmiolada cabeça, em cujo oco

Podem melhor girar trezentos mundos

Do que no espaço do divino Newton!

Quantos pequenos embriões das letras

No vasto alcáçar da benigna deusa

Alojados verás à perna solta!

Apática manada que vegeta,

Enquanto poucos vivem. — Grande deusa!

Coeterna do caos! mãe dos asnos!

Estupidez afável que derramas

No calejado peito de teus filhos

Insípida alegria. — Ou abrindo a fonte

Fazes correr em bicas mil palavras,

Escoltadas de símbolos, de enigmas;

A cuja vista tímida a verdade,

Coitadinha verdade! espavorida

Desampara a cadeira de Minerva;

Reina no mundo, pois, nascente deusa,

E ao redor de teu trono bocejando

Teus gordos filhos vejas descansados

Mil sonolentos vivas entoarem!

Eu não desejo, nem deseja Armindo

No altar da razão queimar-te incenso.

Vem pois, amado amigo, e a natureza

Contemplemos uma hora. Solitária

Nos campos mora, longe das cidades.

Já sentados à sombra de altos freixos,

Depois que o sol do seu doirado trono

Aclara os céus, e os zéfiros lascivos

Faz ciciar nos campos florescentes;

Já lá sobre o rochedo alcantilado,

Que os prados do contorno senhoreia,

Donde a águia veloz, cortando os ventos,

Demanda as regiões de empíreo éter,

Por todas estas cenas da natura

Errar deixemos livre o pensamento.



Tu, amável verdura, que atavias

Os campos geniais na primavera,

Ah! faze com que Armindo solitário

Entre a vária paisagem matizada

Veja correr seus dias na inocência.

Pura amizade, cândidos amores

Já esperam por ti, meu caro Armindo:

Com Almena e Delmira, de mãos dadas,

Em ameno passeio gastaremos

As horas da manhã! Que lindas cenas!

Eis em seu carro d'oiro a branca aurora

As trevas afugenta do horizonte,

E debilmente ainda os campos cora!

Eis as mansas ovelhas temerosas

Fazem soar os prados co'os balidos,

Acordando os pastores preguiçosos!

No bosque verdejante filomela

Gorjeando se queixa docemente!

Já o bando voador em meigos laços

Com mil lascivos namorados beijos

Impelido de amor se une ditoso;

Laços gentis da próvida natura!

No brando seio os zéfiros travessos

Vénus aquenta do noturno frio.

Ela mesma destila orvalho puro,

E com liquidas pérolas borrifa

Os tenrinhos botões das novas rosas!

O' alma do universo, ó Vénus bela!

Por ti respira tudo o que tem vida.

A um teu aceno só milhões de seres.

Já nos profundos reinos do oceano,

Já na face da terra, ou lá nos ares

Renovam a cadeia do universo!

Tu viver fazes a matéria inteira!

Todos quantos respiram, vivem, sentem

Na terra e mar, nas regiões do vento,

Obedecem teus mandos, grande deusa!



Sim, meu Armindo, vem passar teus dias

Nos ternos braços da fiel Delmira.

Tu e mais ela, eu e mais Almena,

Ignorados da turba viveremos

Da singela virtude acompanhados,

Enquanto com quimeras vis, ridículas,

Frenéticos mortais a vida estragam

No seio de mil males e mil crimes.

Ah! escapa ao naufrágio! ah! busca o porto!

Assim Voltaire, o vate dos filósofos,

Cansado de lutar com vis intrigas,

As cortes desprezando, retirado

Na aprazível Ferney, viveu contente:

Assim o pensador Rousseau sublime

Herborizando terminou seus dias:

Imitemo-los também, meu caro Armindo!





(Poesias de Américo Elísio. Org. Sérgio B. Holanda, 1946).



(Ilustração: Angelica Kauffmann - Diana and her nymphs bathing - 1778-82)

sexta-feira, 5 de abril de 2024

CARTA A JORGE AMADO, de Dorival Caymmi

 



“Jorge meu irmão, são onze e trinta da manhã e terminei de compor uma linda canção para Yemanjá pois o reflexo do sol desenha seu manto em nosso mar, aqui na Pedra da Sereia. Quantas canções compus para Janaína, nem eu mesmo sei, é minha mãe, dela nasci. Talvez Stela saiba, ela sabe tudo, que mulher, duas iguais não existem, que foi que eu fiz de bom para merecê-la? Ela te manda um beijo, outro para Zélia e eu morro de saudade de vocês. Quando vierem, me tragam um pano africano para eu fazer uma túnica e ficar irresistível.

Ontem saí com Carybé, fomos buscar Camafeu na Rampa do Mercado, andamos por aí trocando pernas, sentindo os cheiros, tantos, um perfume de vida ao sol, vendo as cores, só de azuis contamos mais de quinze e havia um ocre na parede de uma casa, nem te digo. Então ao voltar, pintei um quadro, tão bonito, irmão, de causar inveja a Graciano. De inveja, Carybé quase morreu e Jenner, imagine!, se fartou de elogiar, te juro. Um quadro simples: uma baiana, o tabuleiro com abarás e acarajés e gente em volta. Se eu tivesse tempo, ia ser pintor, ganhava uma fortuna. O que me falta é tempo para pintar, compor vou compondo devagar e sempre, tu sabes como é, música com pressa é aquela droga que tem às pampas sobrando por aí. O tempo que tenho mal chega para viver: visitar Dona Menininha, saudar Xangô, conversar com Mirabeau, me aconselhar com Celestino sobre como investir o dinheiro que não tenho e nunca terei, graças a Deus, ouvir Carybé mentir, andar nas ruas, olhar o mar, não fazer nada e tantas outras obrigações que me ocupam o dia inteiro. Cadê tempo pra pintar?

Quero te dizer uma coisa que já te disse uma vez, há mais de vinte anos quando te deu de viver na Europa e nunca mais voltavas: a Bahia está viva, ainda lá, cada dia mais bonita, o firmamento azul, esse mar tão verde e o povaréu. Por falar nisso, Stela de Oxóssi é a nova iyalorixá do Axé e, na festa da consagração, ikedes e iaôs, todos na roça perguntavam onde anda Obá Arolu que não veio ver sua irmã subir ao trono de rainha? Pois ontem, às quatro da tarde, um pouco mais ou menos, saí com Carybé e Camafeu a te procurar e não te encontrando, indagamos: que faz ele que não está aqui se aqui é seu lugar? A lua de Londres, já dizia um poeta lusitano que li numa antologia de meu tempo de menino, é merencória. A daqui é aquela lua. Por que foi ele para a Inglaterra? Não é inglês, nem nada, que faz em Londres? Um bom filho-da-puta é o que ele é, nosso irmãozinho.

Sabes que vendi a casa da Pedra da Sereia? Pois vendi. Fizeram um edifício medonho bem em cima dela e anunciaram nos jornais: venha ser vizinho de Dorival Caymmi. Então fiquei retado e vendi a casa, comprei um apartamento na Pituba, vou ser vizinho de James e de João Ubaldo, daquelas duas ‘línguas viperinas, veja que irresponsabilidade a minha.

Mas hoje, antes de me mudar, fiz essa canção para Yemanjá que fala em peixe e em vento, em saveiro e no mestre do saveiro, no mar da Bahia. Nunca soube falar de outras coisas. Dessas e de mulher. Dora, Marina, Adalgisa, Anália, Rosa morena, como vais morena Rosa, quantas outras e todas, como sabes, são a minha Stela com quem um dia me casei te tendo de padrinho. A bênção, meu padrinho, Oxóssi te proteja nessas inglaterras, um beijo para Zélia, não esqueçam de trazer meu pano africano, volte logo, tua casa é aqui e eu sou teu irmão Caymmi”.


(Ilustração: Dorival Caymmi)

segunda-feira, 1 de abril de 2024

APENAS UM CORPO, de Eugénio de Andrade

 


 



Respira. Um corpo horizontal,

tangível, respira.

Um corpo nu, divino,

respira, ondula, infatigável.



Amorosamente toco o que resta dos deuses.

As mãos seguem a inclinação

do peito e tremem,

pesadas de desejo.



Um rio interior aguarda.

Aguarda um relâmpago,

um raio de sol,

outro corpo.



Se encosto o ouvido à sua nudez,

uma música sobe,

ergue-se do sangue,

prolonga outra música.



Um novo corpo nasce,

nasce dessa música que não cessa,

desse bosque rumoroso de luz,

debaixo do meu corpo desvelado.



(Até Amanhã, 1956).



(Ilustração: Armand Rassenfosse - Baudelaire e sua musa)


sexta-feira, 29 de março de 2024

SOCIOGÊNESE DA DIFERENÇA ENTRE "KULTUR" E "ZIVILISATION" NO EMPREGO ALEMÃO: INTRODUCÃO, de Norbert Elias

 




1. O conceito de "civilização" refere-se a uma grande variedade de fatos: ao nível da tecnologia, ao tipo de maneiras, ao desenvolvimento dos conhecimentos científicos, às ideias religiosas e aos costumes. Pode-se referir ao tipo de habitações ou à maneira como homens e mulheres vivem juntos, à forma de punição determinada pelo sistema judiciário, quanto ao modo como são preparados os alimentos. Rigorosamente falando, nada há que não possa ser feito de forma "civilizada" ou "incivilizada". Daí ser sempre difícil sumariar em algumas palavras tudo o que se pode descrever como civilização.

Mas se examinamos o que realmente constitui a função geral do conceito de civilização, e que qualidade comum leva todas essas várias atividades humanas a serem descritas como civilizadas, partimos de uma descoberta muito simples: este conceito expressa a consciência que o Ocidente tem de si mesmo. Poderíamos até dizer: a consciência nacional. Ele resume tudo em que a sociedade ocidental dos últimos dois ou três se julga superior a sociedades mais antigas ou a sociedades contemporâneas "mais primitivas". Com essa palavra, a sociedade ocidental procura descrever o que lhe constitui o caráter especial e aquilo de que se orgulha: nível de sua tecnologia, a natureza de suas maneiras, o desenvolvimento de sua cultura científica ou visão do mundo, e muito mais.

2. "Civilização", porém, não significa a mesma coisa para diferentes nações ocidentais. Acima de tudo, é grande a diferença entre como ingleses e franceses empregam a palavra, por um lado, e os alemães por outro. Para os primeiros, o conceito resume em uma única palavra o seu orgulho pela importância de suas nações para o progresso do Ocidente e da humanidade. Já no emprego que lhe é dado pelos alemães, Zivilisation significa algo de fato útil, mas, apesar disso, apenas um valor de segunda classe, compreendendo apenas a aparência externa de seres humanos, a superfície da existência humana. A palavra pela qual os alemães se interpretam, que mais do que qualquer outra expressa-lhes o orgulho em suas próprias realizações e no próprio ser, é Kultur.

3. Um fenômeno peculiar: Palavras como "civilização" em francês ou inglês, ou o alemão Kultur, são inteiramente claras no emprego interno da sociedade a que pertencem. Mas a forma pela qual uma parte do mundo está ligada a elas, a maneira pela qual incluem certas áreas e excluem outras, como a coisa mais natural, as avaliações ocultas que implicitamente fazem com elas, tudo isto torna difícil defini-las para um estranho.

O conceito francês e inglês de civilização pode se referir a fatos políticos ou econômicos, religiosos ou técnicos, morais ou sociais. O conceito alemão de Kultur alude basicamente a fatos intelectuais, artísticos e religiosos e apresenta a tendência de traçar uma nítida linha divisória entre fatos deste tipo, por um lado, e fatos políticos, econômicos e sociais, por outro. O conceito francês e inglês de civilização pode se referir a realizações, mas também a atitudes ou "comportamento" de pessoas; pouco importando se realizaram ou não alguma coisa: No conceito alemão de Kultur, em contraste, a referência a "comportamento", o valor que a pessoa tem em virtude de sua mera existência e conduta, sem absolutamente qualquer realização, é muito secundário. O sentido especificamente alemão do conceito de Kultur encontra sua expressão mais clara em seu derivado, o adjetivo kulturell, que descreve o caráter e o valor de determinados produtos humanos, e não o valor intrínseco da pessoa. Esta palavra, o conceito inerente a kulturell, porém, não pode ser traduzido exatamente para o francês e a o inglês.

A palavra kultiviert (cultivado) aproxima-se muito do conceito ocidental de civilização. Até certo ponto, representa a forma mais alta de ser civilizado. Até mesmo pessoas e famílias que nada realizaram de kulturell podem ser kultiviert. Tal como a palavra "civilizado", kultiviert refere-se primariamente à forma da conduta ou comportamento da pessoa. Descreve a qualidade social das pessoas, suas habitações, suas maneiras, sua fala, suas roupas, ao contrário de kulturell, que não alude diretamente às próprias pessoas, mas exclusivamente a realizações humanas peculiares.

4. Há outra diferença entre os dois conceitos estreitamente a isto. "Civilização" descreve um processo ou, pelo menos, diz respeito a algo que está em movimento constante, movendo-se temente "para a frente". O conceito alemão de kultw, no emprego implica uma relação diferente com movimento. Reporta-se a produtos nos que são semelhantes a "flores do campo", a obras de arte, livros, sistemas religiosos ou filosóficos, nos quais se expressa a individualidade de um povo. O conceito de Kultur delimita.

Até certo ponto, o conceito de civilização minimiza as diferenças nacionais entre os povos: enfatiza o que é comum a todos os seres humanos ou — na opinião dos que o possuem — deveria sê-lo. Manifesta a autoconfiança de povos nas quais as fronteiras nacionais e identidade nacional foram tão plenamente estabelecidos, desde séculos, que deixaram de ser tema de qualquer discussão, povos que há muito se expandiram fora de suas fronteiras e colonizaram terras muito além delas.

Em contraste, o conceito alemão de Kultur dá ênfase especial a diferenças nacionais e à identidade particular de grupos. Principalmente em virtude disto, o conceito adquiriu em campos como a pesquisa etnológica e antropológica uma significação muito além da área linguística alemã e da situação em que se originou o conceito. Mas esta situação é aquela de um povo que, de acordo com os padrões ocidentais, conseguiu apenas muito tarde a unificação política e a consolidação e de cujas fronteiras, durante séculos ou mesmo até o presente, territórios repetidamente se desprenderam ou ameaçaram se separar. Enquanto o conceito de civilização inclui a função de dar expressão a uma tendência continuamente expansionista de grupos colonizadores, o conceito de Kultur reflete a consciência de si mesma de uma nação que teve de buscar e constituir incessante e novamente suas fronteiras, tanto no sentido político como espiritual, e repetidas vezes perguntar a si mesma: "Qual é, realmente, nossa identidade?" A orientação do conceito alemão de cultura, com sua tendência à demarcação e ênfase em diferenças, e no seu detalhamento, entre grupos, corresponde a este processo histórico. As perguntas "O que é realmente francês? O que é realmente inglês?" há muito deixaram de ser assunto de discussão para franceses e ingleses. Durante séculos, porém, a questão "O que é realmente alemão?" reclamou sempre resposta. Uma resposta a esta pergunta  uma entre várias outras — reside em um aspecto peculiar do conceito de Kultur.

5. As autoimagens nacionais representadas por conceitos como Kultur e "civilização" assumem formas muito diferentes. Por mais diferente que seja a autoimagem dos alemães, que falam com orgulho de sua Kultur, e a de franceses e ingleses, que pensam com orgulho em sua "civilização", todos consideram axiomático que a sua é a maneira como o mundo dos homens, como um todo, quer ser visto e julgado. O alemão pode, quem sabe, tentar explicar a franceses e ingleses o que entende pelo conceito de Kultur. Mas dificilmente pode comunicar o mínimo que seja do meio formativo nacional específico e valores emocionais axiomáticos que para ele a palavra reveste.

Franceses ou ingleses poderão talvez dizer ao alemão que elementos o conceito de civilização assume da autoimagem nacional. Mas por mais razoável e racional que este conceito lhes pareça, ele também nasce de um conjunto específico de situações históricas, e está cercado também por uma atmosfera emocional e tradicional difícil de definir, mas que apesar disso constitui a parte integral de seu significado. E discussão descamba realmente para a inutilidade quando o alemão tenta demonstrar ao francês e ao inglês por que o conceito de Zivilisation de fato representa um valor para ele, embora apenas de segunda classe.

6. Conceitos como esses dois têm algo do caráter de palavras que ocasionalmente surgem em algum grupo mais estreito, tais como família, seita, classe escolar ou associação, e que dizem muito para o iniciado e pouquíssimo para o estranho. Assumem forma na base de experiências comuns. Crescem e mudam com o grupo do qual são expressão. Situação e história do grupo refletem-se nelas. E permanecem incolores, nunca se tornam plenamente vivas para aqueles que não compartilham tais experiências, que não falam a partir da mesma tradição e da mesma situação.

Os conceitos de Kultur e "civilização", para sermos exatos, portam o selo não de seitas ou famílias, mas de povos inteiros ou talvez apenas de certas classes. Mas, em muitos aspectos, o que se aplica a palavras específicas de grupos menores estende-se também a eles: são usados basicamente por e para povos que compartilham uma tradição e situação particulares.

Conceitos matemáticos podem ser separados do grupo que os usa. Triângulos admitem explicações sem referência a situações históricas. Mas o mesmo não acontece com conceitos como "civilização" e Kultur. Talvez aconteça que determinados indivíduos os tenham formado com base em material linguístico já disponível de seu próprio grupo, ou pelo menos lhes tenham atribuído um novo significado. Mas eles lançaram raízes. Estabeleceram-se. Outros os captaram em seu novo significado e forma, desenvolvendo-os e polindo-os na fala e na escrita. Foram usados repetidamente até se tornarem instrumentos eficientes para expressar o que pessoas experimentaram em comum e querem comunicar. Tornaram-se palavras da moda, conceitos de emprego comum no linguajar diário de uma dada sociedade. Este fato demonstra que não representam apenas necessidades individuais, mas coletivas, de expressão. A história coletiva neles se cristalizou e ressoa. O indivíduo encontra essa cristalização já em suas possibilidades de uso. Não sabe bem por que este significado e esta delimitação estão implicadas nas palavras, por que, exatamente, esta nuance e aquela possibilidade delas podem ser derivadas. Usa-as porque lhe parece uma coisa natural, porque desde a infância aprende a ver o mundo através da lente desses conceitos. O processo social de sua gênese talvez tenha sido esquecido há muito. Uma geração os transmite a outra sem estar consciente do processo como um todo, e os conceitos sobrevivem enquanto esta cristalização de experiências passadas e situações retiver um valor existencial, uma função na existência concreta da sociedade, isto é, enquanto gerações sucessivas puderem identificar suas próprias experiências no significado das palavras. Os termos morrem aos poucos, quando as funções e experiências na vida concreta da sociedade deixam de se vincular a eles. Em outras ocasiões, eles apenas adormecem, ou o fazem em certos - aspectos, e adquirem um novo valor existencial com uma nova situação. São relembrados então porque alguma coisa no estado presente da sociedade encontra expressão na cristalização do passado corporificada nas palavras.



Nota:

[1] Oswald Spengler, The Decline of the West (Londres, 1926), p. 21: "A todas as culturas se abrem possibilidades novas de expressão que surgem, amadurecem, decaem, e nunca mais voltam... Essas culturas, essências vitais sublimadas, crescem com a mesma soberba falta de prop6sito das flores do campo. Pertencem, como as plantas e os animais, à Natureza viva de Goethe, e não à Natureza morta de Newton".



(O Processo Civilizador - Volume I: Uma Hist6ria dos Costumes; tradução de Ruy Jungmann)


(Ilustração: Johann Peter Hasenclever - Sociedade de leitura, c.1843)

terça-feira, 26 de março de 2024

O SABIÁ E O GAVIÃO, de Patativa do Assaré







Eu nunca falei à toa.

Sou um cabôco rocêro,

Que sempre das coisa boa

Eu tive um certo tempero.

Não falo mal de ninguém,

Mas vejo que o mundo tem

Gente que não sabe amá,

Não sabe fazê carinho,

Não qué bem a passarinho,

Não gosta dos animá.



Já eu sou bem deferente.

A coisa mió que eu acho

É num dia munto quente

Eu i me sentá debaxo

De um copado juazêro,

Prá escutá prazentêro

Os passarinho cantá,

Pois aquela poesia

Tem a mesma melodia

Dos anjo celestiá.



Não há frauta nem piston

Das banda rica e granfina

Pra sê sonoroso e bom

Como o galo de campina,

Quando começa a cantá

Com sua voz naturá,

Onde a inocença se incerra,

Cantando na mesma hora

Que aparece a linda orora

Bejando o rosto da terra.



O sofreu e a patativa

Com o canaro e o campina

Tem canto que me cativa,

Tem musga que me domina,

E inda mais o sabiá,

Que tem premêro lugá,

É o chefe dos serestêro,

Passo nenhum lhe condena,

Ele é dos musgo da pena

O maiô do mundo intêro.



Eu escuto aquilo tudo,

Com grande amô, com carinho,

Mas, às vez, fico sisudo,

Pruquê cronta os passarinho

Tern o gavião maldito,

Que, além de munto esquisito,

Como iguá eu nunca vi,

Esse monstro miserave

É o assarsino das ave

Que canta pra gente uví.



Muntas vez, jogando o bote,

Mais pió de que a serpente,

Leva dos ninho os fiote

Tão lindo e tão inocente.

Eu comparo o gavião

Com esses farão cristão

Do instinto crué e feio,

Que sem ligá gente pobre

Quê fazê papé de nobre

Chupando o suó alêio.



As Escritura não diz,

Mas diz o coração meu:

Deus, o maió dos juiz,

No dia que resorveu

A fazê o sabiá

Do mió materiá

Que havia inriba do chão,

O Diabo, munto inxerido,

Lá num cantinho, escondido,

Também fez o gavião.



De todos que se conhece

Aquele é o passo mais ruim

É tanto que, se eu pudesse,

Já tinha lhe dado fim.

Aquele bicho devia

Vivê preso, noite e dia,

No mais escuro xadrez.

Já que tô de mão na massa,

Vou contá a grande arruaça

Que um gavião já me fez.



Quando eu era pequenino,

Saí um dia a vagá

Pelos mato sem destino,

Cheio de vida a iscutá

A mais subrime beleza

Das musga da natureza

E bem no pé de um serrote

Achei num pé de juá

Um ninho de sabiá

Com dois mimoso fiote.



Eu senti grande alegria,

Vendo os fíote bonito.

Pra mim eles parecia

Dois anjinho do Infinito.

Eu falo sero, não minto.

Achando que aqueles pinto

Era santo, era divino,

Fiz do juazêro igreja

E bejei, como quem bêja

Dois Santo Antõi pequenino.



Eu fiquei tão prazentêro

Que me esqueci de armoçá,

Passei quage o dia intêro

Naquele pé de juá.

Pois quem ama os passarinho,

No dia que incronta um ninho,

Somente nele magina.

Tão grande a demora foi,

Que mamãe (Deus lhe perdoi)

Foi comigo à disciprina.



Meia légua, mais ou meno,

Se medisse, eu sei que dava,

Dali, daquele terreno

Pra paioça onde eu morava.

Porém, eu não tinha medo,

Ia lá sempre em segredo,

Sempre. iscondido, sozinho,

Temendo que argúm minino,

Desses perverso e malino

Mexesse nos passarinho.



Eu mesmo não sei dizê

O quanto eu tava contente

Não me cansava de vê

Aqueles dois inocente.

Quanto mais dia passava,

Mais bonito eles ficava,

Mais maió e mais sabido,

Pois não tava mais pelado,

Os seus corpinho rosado

Já tava tudo vestido.



Mas, tudo na vida passa.

Amanheceu certo dia

O mundo todo sem graça,

Sem graça e sem poesia.

Quarqué pessoa que visse

E um momento refritisse

Nessa sombra de tristeza,

Dava pra ficá pensando

Que arguém tava malinando

Nas coisa da Natureza.



Na copa dos arvoredo,

Passarinho não cantava.

Naquele dia, bem cedo,

Somente a coã mandava

Sua cantiga medonha.

A menhã tava tristonha

Como casa de viúva,

Sem prazê, sem alegria

E de quando em vez, caía

Um sereninho de chuva.



Eu oiava pensativo

Para o lado do Nascente

E não sei por quá motivo

O só nasceu diferente,

Parece que arrependido,

Detrás das nuve, escondido.

E como o cabra zanôio,

Botava bem treiçoêro,

Por detrás dos nevoêro,

Só um pedaço do ôio.



Uns nevoêro cinzento

Ia no espaço correndo.

Tudo naquele momento

Eu oiava e tava vendo,

Sem alegria e sem jeito,

Mas, porém, eu sastifeito,

Sem com nada me importá,

Saí correndo, aos pinote,

E fui repará os fiote

No ninho do sabiá.



Cheguei com munto carinho,

Mas, meu Deus! que grande agôro!

Os dois véio passarinho

Cantava num som de choro.

Uvindo aquele grogeio,

Logo no meu corpo veio

Certo chamego de frio

E subindo bem ligêro

Pr’as gaia do juazêro,

Achei o ninho vazio.



Quage que eu dava um desmaio,

Naquele pé de juá

E lá da ponta de um gaio,

Os dois véio sabiá

Mostrava no triste canto

Uma mistura de pranto,

Num tom penoso e funéro,

Parecendo mãe e pai,

Na hora que o fio vai

Se interrá no cimitéro.



Assistindo àquela cena,

Eu juro pelo Evangéio

Como solucei com pena

Dos dois passarinho véio

E ajudando aquelas ave,

Nesse ato desagradave,

Chorei fora do comum:

Tão grande desgosto tive,

Que o meu coração sensive

Omentou seus baticum.



Os dois passarinho amado

Tivero sorte infeliz,

Pois o gavião marvado

Chegou lá, fez o que quis.

Os dois fiote tragou,

O ninho desmantelou

E lá pras banda do céu,

Depois de devorá tudo,

Sortava o seu grito agudo

Aquele assassino incréu.



E eu com o maiô respeito

E com a suspiração perra,

As mão posta sobre o peito

E os dois juêio na terra,

Com uma dó que consome,

Pedi logo em santo nome

Do nosso Deus Verdadêro,

Que tudo ajuda e castiga:

Espingarda te preciga,

Gavião arruacêro!



Sei que o povo da cidade

Uma idéia inda não fez

Do amô e da caridade

De um coração camponês.

Eu sinto um desgosto imenso

Todo momento que penso

No que fez o gavião.

E em tudo o que mais me espanta

É que era Semana Santa!

Sexta-fêra da Paixão!



Com triste rescordação

Fico pra morrê de pena,

Pensando na ingratidão

Naquela menhã serena

Daquele dia azalado,

Quando eu saí animado

E andei bem meia légua

Pra bejá meus passarinho

E incrontei vazio o ninho!

Gavião fí duma égua!





(Dois Quadros)


(Ilustração: Henry Blache, Sax)





 

                                   


sábado, 23 de março de 2024

A OUTRA NOITE, de Rubem Braga

 




Outro dia fui a São Paulo e resolvi voltar à noite, uma noite de vento sul e chuva, tanto lá como aqui. Quando vinha para casa de táxi, encontrei um amigo e o trouxe até Copacabana; e contei a ele que lá em cima, além das nuvens, estava um luar lindo, de lua cheia; e que as nuvens feias que cobriam a cidade eram, vistas de cima, enluaradas, colchões de sonho, alvas, uma paisagem irreal.

Depois que o meu amigo desceu do carro, o chofer aproveitou o sinal fechado para voltar-se para mim:

-O senhor vai desculpar, eu estava aqui a ouvir sua conversa. Mas, tem mesmo luar lá em cima?

Confirmei: sim, acima da nossa noite preta e enlamaçada e torpe havia uma outra - pura, perfeita e linda.

-Mas, que coisa...

Ele chegou a pôr a cabeça fora do carro para olhar o céu fechado de chuva. Depois continuou guiando mais lentamente. Não sei se sonhava em ser aviador ou pensava em outra coisa.

-Ora, sim senhor...

E, quando saltei e paguei a corrida, ele me disse um "boa noite" e um "muito obrigado ao senhor" tão sinceros, tão veementes, como se eu lhe tivesse feito um presente de rei.



(Para gostar de ler, vol. 2.)



(Ilustração: Marianne von Werefkin (1860–1938) - Sturmwind-1915-1917)