quarta-feira, 6 de novembro de 2024

SONETO NOJENTO, de Glauco Mattoso

 


Tem gente que censura o meu fetiche:

lamber pé masculino e o seu calçado.

Mas, só de ver no quê o povo é chegado,

não posso permitir que alguém me piche.



Onde é que já se viu ter sanduíche

de fruta ou vegetal mal temperado?

E pizza de banana? E chá gelado?

Frutos do mar? Rabada? Jiló? Vixe!



Café sem adoçar? Feijão sem sal?

Rã? Cobra? Peixe cru? Lesma gigante?

Farofa de uva passa? Isso é normal?



Quem gosta disso tudo não se espante

com minha preferência sexual:

lamber o pé e o pó do seu pisante.



(Centopeia - sonetos nojentos & quejandos)



(Ilustração: Madonna do Rosário - detalhe, c. 1607)

domingo, 3 de novembro de 2024

O TEMPO DIRÁ, de Rosiska Darcy de Oliveira

 



A humanidade sempre foi arrogante e curiosa. Se assim não fosse, não haveria ciência, essa história humana da natureza, contada pelos cientistas no ritmo em que desafiam seus mistérios, a transformam e reinventam. Até meio século atrás acreditávamos que, mais cedo ou mais tarde, seríamos capazes de solucionar qualquer problema. Até descobrirmos que o problema maior éramos nós mesmos.

Ferida narcísica, golpe mortal na autoimagem de onipotência, a noção de limite nasceu dos próprios cientistas e veio para ficar desde que o Clube de Roma anunciou que a natureza não era inesgotável, que mares e rios morriam, que ventos enlouqueciam, os polos derretiam espalhando icebergs à deriva, por obra e graça de nossos estilos de vida e das florestas que amputamos. De lá para cá a ecologia foi senhora da agenda científica e política, da insônia dos ansiosos e das revoltas juvenis.

Limite, uma noção até então estranha ao nosso espírito aventureiro, impôs suas razões. Meio Ambiente e Sustentabilidade entraram no vocabulário corrente, associados a uma correção de rota na trajetória desenfreada da economia e das sociedades.

Como nunca nos consideramos parte da natureza, essa consciência dos limites não afetou, na vida de cada um, a relação predatória com o tempo. Tampouco influiu na poluição dos dias por uma multiplicidade de vidas que transbordam das 24 horas, como se as energias humanas também fossem inesgotáveis e não fosse o tempo não renovável e, como tal, de alto valor.

Talvez a inexorabilidade da morte, essa certeza dolorosa sobre a qual pesa o silêncio, impeça a lucidez sobre o suicídio cotidiano que representa nossa estranha forma de vida.

Com amarga ironia, poderíamos perguntar quantas horas trabalhamos para a compra de um Patek Philippe? O homem mais rico do mundo, que compra foguetes espaciais para desbravar o universo, não encontra tempo à venda em nenhum leilão de raridades. A morte, única detentora desse bem escasso, não vende.

Gastamos nosso tempo como sempre gastamos a natureza, no marco da predação, como se a vida e as energias humanas fossem infinitas. O paradigma da onipotência e da falta de limite, o pressuposto de energias inexauríveis que desencadeou a crise ambiental e climática, é o mesmo que contaminou o cotidiano das pessoas e se traduz no consumo descontrolado do tempo em que o hoje invade o amanhã.

Nas megalópoles instalou-se a tirania da pressa que enche os consultórios de psiquiatras e cardiologistas. Enquanto a longevidade se afirma como um fato, os dias são percebidos como cada vez mais curtos. As horas se desentendem, disputam entre si o primado do inadiável. Vivemos vidas insustentáveis. No duplo sentido da palavra.

Nosso estilo vida resulta da conjunção aleatória de fatores aparentemente díspares que interagem, se retroalimentam e acabam por provocar um resultado desastroso.

A vida privada foi ocultada em seu valor. A sociedade contemporânea ainda não colocou como um direito, para homens e mulheres, a dispor de tempo para a vida privada. Deveria, quanto mais não fosse, em respeito à infinidade de gestos que, desde sempre, as mulheres fizeram para transformar cada um de nós em seres humanos melhores do que os animais selvagens que somos ao nascer. Esses gestos fundadores nunca mereceram um mísero registro nos livros de história da civilização, embora nos civilizar tenha sido a grande aventura educativa da espécie, a mais espetacular transformação da natureza em cultura levada a cabo pelas mulheres.

De difícil solução, a questão da compatibilização da vida privada com o mundo do trabalho, quando os “anjos do lar” já são mais da metade da força de trabalho, foi devolvida à intimidade dos casais onde não encontra resposta.

A vida real, que não perdoa, fez dessa ocultação uma angústia diária de homens e mulheres, ainda que silenciosa e sem lugar de expressão no mundo do trabalho que exerce pressão inclemente por mais e mais performances, rendimentos, cumprimento de metas, missões impossíveis em que o urgente atropela o importante. Pergunta-se mais “como” e “quando” do que “por quê” e “para quê”. Nesse reino da urgência, o estresse é a regra e a somatização o sintoma. Cada um é o contramestre de si mesmo, tanto mais severo quanto mais competitivo.

A fome de tempo está na origem da doença urbana epidêmica, que é a depressão.

Aceleradas são as megalópoles onde todos querem rapidez, ninguém se move, e explodem surtos em engarrafamentos de pesadelo. Quem sonhou com um carro suporta hoje a velocidade de um lombo de burro, enquanto envenena o ar que todos respiram e se envenena com a bílis da irritação.

Mas já vai longe o tempo em que a vida real era balizada por família e trabalho, no cenário das cidades. Ela foi atravessada por outra vida, que se desdobra ao infinito, a vida virtual.

A vida virtual tornou-se parte da vida real e já não é possível separá-las ou estabelecer, entre elas, uma hierarquia. A vida de cada um gira cada vez mais em torno de duas pequenas telas: o computador e o celular. Quem mergulha nessas telas cai, como Alice, do outro lado do espelho. As balizas de tempo não vigoram no ciberespaço. O tempo pode ser inventado, relativizando essa dimensão com que trabalhava o pensamento na construção da ideia mesma de real. O mundo se expande e encolhe ao mesmo tempo. Arte e política se submetem ao novo modo de viver. No país de Proust um concurso literário desafia escritores a um conto de 140 toques. Políticos comprimem em frases amputadas receitas para salvar seus países do caos. Google, o ciberoráculo, responde a qualquer questão, salvo de onde viemos e para onde vamos.

Quem não fala digital nativo passa seu tempo correndo atrás de tecnologias que, mal acabamos de dominar, já mudaram e cobram, em tempo, o preço do próprio tempo que elas prometiam nos poupar. Nos realfabetizamos uma vez por semana. Imigrantes no futuro, não estamos bem situados para entender o ciberespaço e suas zonas de sombra, essa população incorpórea em que qualquer um se desdobra em quantas vidas queira se atribuir. Quem se delicia no anonimato e se quer inimputável, sem lei, sem superego, sem tabu, somos nós mesmos, desmaterializados.

A vida virtual, essa vida a mais, é um rebatimento do mundo real, sem instituições, sem códigos de moral ou ética, de relacionamento entre pessoas, sem os interditos civilizatórios que domesticam a fera que dorme em cada um.

E assim íamos vivendo, aos trancos e barrancos, quando a máquina do mundo subitamente parou. Sem aviso prévio, um vírus desconhecido, contagioso e letal, trancou a população mundial em casa, condenando todos a uma coletiva convivência com o medo da morte. A pandemia do coronavírus derrubou as balizas já conhecidas do tempo e instalou um paradoxo desconhecido, uma vida sem futuro em que a morte e a doença sufocante, omnipresentes, tornavam o limite de cada um visível a olho nu.

A vida tornou-se, em qualquer idade, uma doença terminal. A temporalidade de zapping que moldava nosso cotidiano, fragmentado em múltiplas vidas, desapareceu, e em seu lugar emergiu uma vivência do tempo que ninguém conhecia, de improviso da sobrevivência. O tempo que nos faltava sobrou, ocioso, dedicado sobretudo, a chegar ao dia seguinte. Perplexos, confinados em nossos corpos vulneráveis, apelamos para nossa dimensão incorpórea, abrindo caminho para que a vida virtual primasse sobre a miserável natureza humana.

A vida mudou-se para o ciberespaço, único continente imune ao vírus. E se antes essa vida virtual já tinha vindo se acrescentar a uma acelerada vida real, agora ela reivindicava para si o primado do nosso tempo.

A pandemia deixou como sequela um aumento vertiginoso de tempo passado no ciberespaço. Muitos abandonaram seus espaços de trabalho. As famílias foram impactadas por esse tempo passado em casa de maneira inabitual. Ensaiam-se novos arranjos cotidianos. Que efeitos terá a longo prazo esse solavanco que sacudiu o mundo inteiro? Os tempos que correm, correm para onde? O tempo dirá.



(Ilustração: Salvador Dalí) 

quinta-feira, 31 de outubro de 2024

REENCONTRO, de Gil T. Sousa

 




diz-me que

não leve o vinho



que os fios de nós

precisam de outro tear



de agulhas mais fortes

que os teçam em voz



em dádiva talvez



diz-me

que leve as palavras

as mais guardadas



aquelas que a pele

do tempo não suou



as que gelam no

grave segredo do olhar



e que leve as mãos

e que elas falem



que voltem a dançar

na sua mão



ou mais perto

muito mais perto



(Ilustração: Catherine Chauloux)

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

BRASIL: PARA COMPREENDER UM FASCISTA, de Walter Falceta

 



1) Frequentemente, o fascista se julga em uma cruzada santa contra o pecado e os pecadores.

2) Nesse campo da guerra dos costumes, ocorre a convergência entre a doutrina política conservadora e o credo evangélico.

3) Como se julga em uma missão santa, o fascista considera conveniente e até necessário agir de modo intolerante, impositivo e violento.

4) Há fascistas cultos, que são poucos, empenhados dia e noite em multiplicar a crença entre a massa de incultos.

5) A principal missão do fascista culto é fazer com que a massa se sinta prejudicada por qualquer política progressista.

6) O fascista articulador diz que negócios fracassam por causa do Bolsa Família.

7) Afirma que o branco não tem emprego em razão das políticas afirmativas de integração racial.

8) Sustenta que as aflições masculinas são resultado do empoderamento feminino.

9) Declara que os conflitos familiares decorrem de uma conspiração funesta urdida no campo da diversidade afetiva.

10) A "inteligência" fascista afirma, dia e noite, que há uma conspiração contra os valores tradicionais e que o pensamento progressista visa a perverter a juventude.

11) Uma expressão primitiva do fascismo condenou Sócrates (o filósofo), acusando-o de cometer este suposto delito.

12) Uma expressão recente do fascismo condenou Sócrates (o jogador), acusando-o de cometer o mesmo delito.

13) O fascismo tem obsessão com o tema da corrupção. A ideia é criminalizar e desqualificar o outro, aquele ideologicamente divergente, reduzindo-o à condição de bandido comum.

14) Em geral, o fascista acusa os adversários dos crimes que cotidianamente comete. Por este motivo, conhece muito bem o roteiro da argumentação caluniosa e do negacionismo. O fascismo nacional, por exemplo, tenta difundir a ideia de que Hitler era um esquerdista.

15) Ao martelar o tema da corrupção, o fascista diz aos estratos economicamente médios e inferiores que todos os seus fracassos e sofrimentos são de responsabilidade exclusiva dos progressistas.

16) O mote da corrupção é a resposta fácil para uma pergunta difícil: por que sofremos?

17) O fascista elimina todo o complexo debate sobre as razões estruturais da pobreza, do fracasso e da infelicidade social. Reduz a resposta à corrupção (supostamente praticada pelos outros) e à erosão dos costumes tradicionais.

18) O fascista e o neoliberal se entendem ao atribuir a infelicidade à preguiça e à falta de talento. Ambos isentam de culpa a exploração dos vulneráveis pelos mais fortes, sistema que preserva privilégios e regalias.

19) O fascista e o neoliberal apresentam exceções à regra para tentar justificar a doxa meritocrática.

20) O fascista trabalha sempre para que sua vontade supere o direito do outro (seja ele uma pessoa ou um grupo). Intimamente, o fascista se satisfaz quando impõe sua vontade acima da vontade dos diferentes.

21) Por tal razão, como lembra Eco, o fascista tem uma obsessão pelo militarismo, ou seja, por aquelas pessoas fisicamente fortes, fardadas e armadas que podem praticar a violência com o beneplácito do Estado.

22) O militar pode promover atrocidades que seriam motivo de punição para o cidadão comum. O mesmo se aplica aos profissionais encarregados de atuar em sessões de tortura e assassinatos políticos.

23) O fascismo aposta no rancor das massas. O rancor e o ressentimento são os combustíveis dos movimentos políticos reacionários.

24) O rancor é resultado, sobretudo, da negação sistemática da razão.

25) Novamente, a razão aponta a desigualdade e a exploração como causas do sofrimento humano.

26) A ausência da razão ajuda a difundir a tese de que o sofrimento é culpa dos diferentes.

27) O fascismo difunde uma falsa ideia de coletivo forte, de iguais empenhados em uma mesma missão. Na verdade, o fascismo elimina a democracia, concentra poderes, censura a opinião divergente e impõe uma uniformidade castradora da mente criativa.

28) Por este motivo, o fascismo tem tanto medo da arte. Incluída em uma peça do teatrólogo alemão Hanns Jost, simpático ao nazismo, é ilustrativa a frase erradamente atribuída a Goebbels: "quando ouço alguém falar em cultura, já saco o meu revólver".

29) A arte sugere o livre pensar e, inevitavelmente, estimula a subversão. Ao lidar com seus códigos de elaboração criativa, o artista identifica a maldade e a opressão. E pode ainda divulgar suas descobertas para a plateia. Toda arte verdadeira é, portanto, uma ameaça à farsa fascista.

30) O fascismo é frequentemente gestado no campo da limitação e da repressão da sexualidade. Na cama fascista, a relação carnal tende a reproduzir uma relação de poder desprovida de equivalências. No cotidiano, a libido suprimida gera frustração e, em seguida, um rancor difuso. Essa energia é, então, canalizada para o ódio contra os diferentes. A violência fascista tem como fonte os amores não realizados.



(Ilustração: cartaz da internet, sem indicação de autoria)

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

HÁ-DE FLUTUAR UMA CIDADE, de Al Berto (Alberto Raposo Pidwell Tavares)

 


há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida

pensava eu... como seriam felizes as mulheres

à beira mar debruçadas para a luz caiada

remendando o pano das velas espiando o mar

e a longitude do amor embarcado

 

por vezes

uma gaivota pousava nas águas

outras era o sol que cegava

e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite

os dias lentíssimos... sem ninguém

 

e nunca me disseram o nome daquele oceano

esperei sentada à porta... dantes escrevia cartas

punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua

assim envelheci... acreditando que algum homem ao passar

se espantasse com a minha solidão

 

(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no coração. mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.)

 

um dia houve

que nunca mais avistei cidades crepusculares

e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta

inclino-me de novo para o pano deste século

recomeço a bordar ou a dormir

tanto faz

sempre tive dúvidas que alguma vez me visite a felicidade

 


(Ilustração: Kay Sage (June 25, 1898 – January 8, 1963): American Surrealist artist)

terça-feira, 22 de outubro de 2024

VOCÊ NÃO QUER VER OS GATINHOS?, de Toni Morrison

 




Elas vêm de Mobile. Aiken. De Newport News. De Marietta. De Meridian. E o som desses nomes em sua boca faz pensar em amor. Quando a gente pergunta de onde são, inclinam a cabeça, dizem “Mobile” e a gente pensa que ganhou um beijo. Dizem “Aiken” e vê-se uma borboleta branca roçar numa cerca com uma asa rasgada. Dizem “Nagadoches” e você tem vontade de dizer “Sim, aceito”. Você não sabe como são essas cidades, mas adora o que acontece com o ar quando elas abrem os lábios e dizem os nomes.

Meridian. O som da palavra abre as janelas de uma sala, como as quatro primeiras notas de um hino. Poucas pessoas podem dizer o nome de sua cidade natal com tanta afeição dissimulada. Talvez porque não tenham uma cidade natal, só um lugar onde nasceram. Mas essas garotas absorvem o sumo de sua cidade natal, que nunca as deixa. São garotas magras de pele parda que olharam muito tempo para alteias nos quintais de Meridian, Mobile, Aiken e Baton Rouge. E, assim como as alteias, elas são esguias, altas e quietas. Têm raízes profundas, a haste firme, e só a flor, no alto, balança ao vento. Têm os olhos de quem é capaz de dizer a hora pela cor do céu. Essas garotas moram em bairros negros tranquilos, onde todo mundo tem emprego bem remunerado. Onde, nas varandas, há balanços pendendo de correntes. Onde a grama é cortada com uma foice, onde crescem cristas-de-galo e girassóis nos jardins, e vasos de corações-ardentes e hera se alinham nos degraus e no parapeito das janelas. Essas garotas compram melão e feijão na carroça do verdureiro. Colocam na janela um aviso escrito em papelão para o vendedor de gelo, informando quanto gelo querem, quando querem. Essas garotas pardas de Mobile e Aiken não são como algumas de suas irmãs. Não são mal-humoradas, nervosas nem estridentes; não têm belos pescoços negros que se esticam como se forçassem uma coleira invisível; seus olhos não mordem. Essas garotas cor de açúcar mascavo, de Mobile, andam pelas ruas sem chamar a menor atenção. São doces e sem graça como pão de ló. Tornozelos delgados, pés longos e finos. Lavam-se com sabonete Lifebuoy cor de laranja, usam talco Cashmere Bouquet, limpam os dentes com sal num pedaço de pano, amaciam a pele com loção Jergens. Cheiram a madeira, jornal e baunilha. Alisam o cabelo com Dixie Peach e o repartem de lado. À noite, enrolam o cabelo em papelotes pardos, amarram um lenço estampado na cabeça e dormem com as mãos cruzadas sobre o estômago. Não bebem, não fumam nem dizem palavrões, e ainda chamam sexo de “nookey”[*]. São segundo soprano no coral e, embora tenham a voz clara e firme, nunca são escolhidas para solar. Ficam na segunda fila, de blusa branca engomada, saia azul, quase roxa do ferro de passar.

Estudam em faculdades subvencionadas pelo governo federal, cursam a escola normal e aprendem a fazer o trabalho do branco com refinamento: economia doméstica para preparar a comida dele; pedagogia para ensinar crianças negras a obedecer; música para aliviar o cansaço do patrão e entreter-lhe a alma embotada. Ali elas aprendem o resto da lição iniciada naquelas casas tranquilas com balanços na varanda e vasos de corações ardentes: como se comportar. O cuidadoso desenvolvimento de parcimônia, paciência, princípios morais e boas maneiras. Numa palavra, como se livrar da catinga. A horrível catinga das paixões, a catinga da natureza, a catinga da vasta gama de emoções humanas.

Apagam a catinga onde quer que ela irrompa; dissolvem-na onde quer que se encroste; onde quer que goteje, floresça ou se agarre, elas a encontram e a combatem até destruí-la. Travam essa batalha até o fim, até o túmulo. A risada que é um tanto alta demais; a pronúncia um tanto arredondada demais; o gesto um tanto generoso demais. Contraem o traseiro com medo de um balanço demasiado livre; quando usam batom, nunca cobrem a boca inteira, com medo de que os lábios fiquem grossos demais, e preocupam-se, preocupam-se, preocupam-se com as pontas do cabelo.

Nunca parecem namorar, mas sempre se casam. Certos homens as observam, sem dar a impressão de fazer isso, e sabem que, com uma garota assim em casa, vão dormir em lençóis fervidos para branquear, pendurados para secar em pés de zimbro e passados com um ferro pesado. Haverá lindas flores de papel decorando a fotografia da mãe dele e uma grande Bíblia na sala da frente. Eles se sentem seguros. Sabem que sua roupa de trabalho estará remendada, lavada e passada na segunda-feira; que a camisa de domingo, branca e dura de goma, estará no cabide pendurado no umbral da porta. Olham para as mãos dela e sabem o que ela fará com massa de biscoito; sentem o cheiro do café e do presunto frito; veem o pão branco de farinha grossa, fumegante, com um naco de manteiga em cima. Os quadris lhes garantem que elas terão filhos com facilidade e sem dor. E eles têm razão.

O que esse homem não sabe é que essa garota parda e sem graça vai construir seu ninho graveto por graveto, transformá-lo em seu mundo inviolável e montar guarda sobre cada planta, erva daninha e toalhinha que haja ali, mesmo contra o marido. Em silêncio, levará o lampião de volta ao lugar que ela decidiu que é o dele; vai tirar os pratos da mesa assim que o último bocado for comido; limpará a maçaneta da porta depois que uma mão engordurada a tiver tocado. Uma olhada de esguelha será o bastante para dizer a ele que vá fumar na varanda dos fundos. As crianças vão sentir instantaneamente que não podem entrar no jardim dela para pegar a bola que caiu ali. Mas o homem não sabe essas coisas. Assim como não sabe que ela lhe dará o corpo com parcialidade. Ele deve penetrá-la sub-repticiamente, erguendo-lhe a camisola só até o umbigo. Quando faz amor, deve sustentar o próprio peso nos cotovelos, em princípio para não machucar os seios dela, mas na verdade para que ela não tenha que tocá-lo nem senti-lo muito.

Enquanto ele se move dentro dela, ela estará pensando por que não puseram as partes necessárias mas íntimas do corpo num lugar mais conveniente — na axila, por exemplo, ou na palma da mão. Um lugar que se pudesse atingir com facilidade, com rapidez, sem tirar a roupa. Ela se enrijece quando sente um dos papelotes no cabelo se soltar como resultado da atividade do amor; guarda na memória qual é que está se soltando, para poder prendê-lo logo, assim que ele terminar. Espera que ele não sue — a umidade pode passar para o cabelo dela; e que permaneça seca entre as pernas — odeia o som molhado que elas fazem quando está úmida. Ao sentir que ele está prestes a ser dominado por um espasmo, ela fará movimentos rápidos com os quadris, apertará as unhas contra as costas dele, prenderá a respiração e fingirá que está tendo um orgasmo. Talvez se pergunte, pela milésima vez, como seria ter aquela sensação enquanto o pênis do marido está dentro dela. O mais próximo disso que ela sentiu foi na ocasião em que a toalhinha absorvente se soltou da calcinha higiênica, movendo-se suavemente por entre suas pernas enquanto ela andava. Suavemente, muito suavemente. E então uma sensação leve e nitidamente deliciosa começou a se intensificar entre suas pernas. Como o prazer aumentou, ela teve que parar na rua e apertar as coxas para contê-lo. Deve ser assim, pensa ela, mas nunca acontece enquanto ele está dentro dela. Quando ele retira o membro, ela baixa a camisola, levanta e vai para o banheiro, aliviada.

De vez em quando, alguma coisa viva lhe cativará a afeição. Um gato, talvez, que vai adorar sua ordem, precisão e constância; que será tão limpo e silencioso quanto ela. O gato se acomodará quietamente no parapeito da janela e vai acariciá-la com os olhos. Ela poderá tomá-lo nos braços, deixando as patas traseiras se agitar para se apoiar nos seios dela e as dianteiras agarrar-se ao seu ombro. Poderá alisar o pelo macio e sentir por baixo a carne que não opõe resistência. Ao mais leve de seus toques, ele vai se espreguiçar e abrir a boca. E ela aceitará a sensação estranhamente agradável que vem quando ele se contorce sob sua mão e aperta os olhos num excesso de prazer sensual. Quando ela estiver em pé na cozinha, preparando comida, ele andará em torno das canelas dela, e a vibração do pelo dele lhe subirá em espirais pelas pernas até as coxas, fazendo os dedos tremer um pouco na massa da torta.

Ou enquanto ela estiver sentada, lendo os “Pensamentos edificantes” na Liberty Magazine, o gato pulará para o seu colo. Ela acariciará aquele monte macio de pelos e deixará o calor do corpo do animal ir penetrando as áreas profundamente privadas do seu colo. Às vezes a revista cairá e ela abrirá as pernas, só um pouquinho, e os dois ficarão imóveis juntos, talvez movendo-se um pouco juntos, dormindo um pouco juntos, até as quatro da tarde, quando o intruso chegará do trabalho, vagamente preocupado com o que há para o jantar.

O gato sempre saberá que é o primeiro nos afetos dela. Mesmo depois de ela ter um bebê. Porque ela terá um bebê — facilmente, sem dor. Mas só um. Um menino. Chamado Júnior.

Uma dessas garotas de Mobile, Meridian ou Aiken, que não transpirava nas axilas nem entre as coxas, que cheirava a madeira e a baunilha, que fazia suflês no departamento de Economia Doméstica, mudou-se com o marido, Louis, para Lorain, em Ohio. Chamava-se Geraldine. Lá ela construiu o ninho, passou camisas, plantou corações ardentes, brincou com o gato e teve Louis Júnior.

Geraldine não permitia que o bebê, Júnior, chorasse. Enquanto as necessidades dele fossem físicas, ela podia atendê-las — conforto e saciedade. Ele estava sempre escovado, banhado, oleado e vestido. Geraldine não falava com ele, não lhe dizia palavrinhas meigas nem o cobria de beijos súbitos, mas providenciava para que todos os outros desejos fossem satisfeitos. Não levou muito tempo para o menino descobrir a diferença no comportamento da mãe em relação a ele e ao gato. Foi crescendo e aprendendo a dirigir para o gato o ódio que sentia da mãe, e passou alguns momentos felizes vendo-o sofrer. O gato sobreviveu, porque Geraldine raramente saía de casa e acudia o animal quando Júnior o maltratava.

Geraldine, Louis, Júnior e o gato moravam ao lado do pátio da escola Washington Irving. Júnior considerava o pátio como seu, e os outros garotos tinham inveja da sua liberdade de dormir até mais tarde, ir almoçar em casa e dominar o pátio depois das aulas. Ele odiava ver vazios os balanços, escorregadores, barras fixas e gangorras, e tentava fazer os meninos ficarem por ali o máximo possível. Meninos brancos; a mãe não gostava que ele brincasse com pretinhos. Ela lhe havia explicado a diferença entre mulatos e pretos. Era fácil identificá-los. Os mulatos eram limpos e silenciosos; os pretos eram sujos e barulhentos. Ele pertencia ao primeiro grupo: usava camisas brancas e calças azuis; cortava o cabelo o mais rente possível para evitar qualquer sugestão de carapinha e a risca era desenhada pelo barbeiro. No inverno a mãe passava loção Jergens no rosto dele para que a pele não ficasse cinzenta. Embora fosse clara, a pele podia ficar cinzenta. A linha entre mulato e preto nem sempre era nítida; sinais sutis e reveladores ameaçavam erodi-la e era preciso estar constantemente atento.

Júnior morria de vontade de brincar com os meninos negros. Mais do que qualquer outra coisa, queria brincar de rei da montanha, que o empurrassem monte de terra abaixo e rolassem por cima dele. Queria sentir-lhes a rigidez comprimindo-se contra ele, sentir o cheiro da negritude rebelde deles e dizer “Foda-se” com aquela deliciosa naturalidade. Queria sentar com eles na calçada e comparar o fio dos canivetes, a distância e o arco das cusparadas. No banheiro, queria compartilhar com eles os louros de ser capaz de fazer xixi de longe e por muito tempo. Em certa época Bay Boy e P.L. foram seus ídolos. Aos poucos acabou concordando com a mãe que nenhum dos dois era bom o suficiente para ele. Só brincava com Ralph Nisensky, que era dois anos mais novo, usava óculos e não queria fazer nada. Júnior gostava cada vez mais de intimidar meninas. Era fácil fazê-las gritar e sair correndo. Como ele ria quando elas caíam e as calcinhas apareciam. Quando se levantavam de rosto vermelho e contraído, ele se sentia bem. Não amolava muito as meninas negras. Elas geralmente andavam em bandos, e uma vez, quando ele atirou uma pedra em algumas delas, todas correram atrás dele, pegaram-no e lhe deram uma surra das feias. Ele mentiu para a mãe, dizendo que tinha sido Bay Boy. A mãe ficou muito aborrecida. O pai se limitou a continuar lendo o Journal de Lorain.

Quando lhe dava na veneta, chamava qualquer menino que estivesse passando para brincar nos balanços ou na gangorra. Se o menino não quisesse, ou quisesse mas fosse embora cedo demais, Júnior jogava pedrinhas nele. Adquiriu uma ótima pontaria.

Como em casa alternava o tédio com o medo, o pátio era a sua alegria. Num dia em que estava especialmente à toa, viu uma menina muito preta cortar caminho pelo pátio. Ia de cabeça baixa. Ele já a tinha visto muitas vezes no recreio, sozinha, sempre sozinha. Ninguém nunca brincava com ela. Provavelmente porque ela é muito feia, pensou ele.

Júnior chamou-a. “Ei! O que é que você está fazendo, atravessando o meu pátio?” A menina parou.

“Ninguém pode passar por este pátio se eu não deixar.”

“O pátio não é seu. É da escola.” “Mas eu é que mando aqui.” A menina se pôs a andar de novo.

“Espere.” Júnior foi até ela. “Você pode brincar aqui, se quiser. Como você se chama?”

“Pecola. Eu não quero brincar.”

“Vamos. Eu não vou amolar você.”

“Tenho que ir para casa.”

“Quer ver uma coisa? Tenho uma coisa para te mostrar.”

“Não. O que é?”

“Vamos até lá em casa. Olha, eu moro logo ali. Vamos. Eu te mostro.”

“Mostra o quê?”

“Uns gatinhos. A gente tem gatinhos. Você pode ficar com um, se quiser.”

“Gatinhos de verdade?”

“É. Vamos.”

Ele puxou de leve o vestido dela. Pecola começou a andar na direção da casa. Quando percebeu que ela havia concordado, Júnior correu na frente, entusiasmado, parando só para gritar para ela que andasse logo. Segurou a porta para ela, todo sorrisos e encorajamento. Pecola subiu os degraus da varanda e hesitou, com medo de entrar. A casa parecia escura. Júnior disse: “Não tem ninguém em casa. Minha mãe saiu e meu pai está trabalhando. Você não quer ver os gatinhos?”.

Júnior acendeu as luzes. Pecola atravessou a porta.

Que bonito, pensou. Que casa bonita. Havia uma grande Bíblia vermelha e dourada em cima da mesa da sala de jantar. Por toda parte havia toalhinhas de renda — sobre os braços e o encosto das poltronas, no centro de uma grande mesa de jantar, sobre mesinhas. Nos parapeitos de todas as janelas havia vasos de plantas. Numa parede pendia uma imagem colorida de Jesus Cristo, com as mais bonitas flores de papel presas na moldura. Ela queria ver tudo bem devagarinho. Mas Júnior não parava de dizer: “Ei, você. Vamos, vamos”. Empurrou-a para outra sala, ainda mais bonita do que a primeira. Mais toalhinhas, um grande abajur com base verde e dourada e cúpula branca. Havia até um tapete no chão, com flores vermelho-escuras enormes. Ela estava em profunda admiração das flores, quando Júnior disse: “Olhe!”. Pecola se virou. “Aqui está o seu gatinho!”, guinchou ele. E jogou um grande gato preto bem no rosto dela. Ela prendeu a respiração, de medo e surpresa, e sentiu pelo na boca. O gato arranhou-lhe o rosto e o peito num esforço para se endireitar e pulou com agilidade para o chão.

Júnior ria e, deliciado, corria pela sala, segurando o estômago. Pecola tocou o arranhão no rosto e sentiu que as lágrimas estavam vindo. Quando começou a se encaminhar para a porta, Júnior deu um salto e parou na frente dela.

“Você não pode sair. É minha prisioneira”, disse. O olhar era alegre, mas duro.

“Me deixa sair.”

“Não!” Deu-lhe um empurrão, saiu pela porta que separava as salas, fechou a porta e ficou segurando. Pecola se pôs a bater na porta e, quanto mais ela batia, mais alta e arquejante se tornava a gargalhada dele.

As lágrimas vieram rápido, e ela cobriu o rosto com as mãos. Quando uma coisa macia e peluda se moveu em torno de seus tornozelos, ela deu um pulo e viu que era o gato. Ele se enroscou em suas pernas. Momentaneamente distraída do medo, agachou-se para tocá-lo, com as mãos úmidas de lágrimas. O gato esfregou-se contra o joelho dela. Era todo preto, um preto intenso e sedoso, e seus olhos, apontando para o focinho, eram verde-azulados. A luz fazia-os brilhar como gelo azul. Pecola alisou a cabeça do gato; ele choramingou, movendo a língua com prazer. Os olhos azuis na cara preta a fitavam.

Júnior, curioso por não ouvir os soluços dela, abriu a porta e viu-a agachada, afagando a cabeça do gato. Viu o gato esticando a cabeça e estreitando os olhos. Tinha visto aquela expressão muitas vezes quando o animal reagia ao toque de sua mãe.

“Dá aqui esse gato!” A voz dele falhou. Com um movimento ao mesmo tempo desajeitado e certeiro, agarrou o gato por uma perna traseira e começou a girá-lo em torno da cabeça.

“Para com isso!”, gritou Pecola. As patas livres do gato estavam rijas, prontas para agarrar qualquer coisa que lhe devolvesse o equilíbrio, a boca escancarada, os olhos azuis eram riscas de pavor.

Ainda gritando, Pecola se esticou para pegar a mão de Júnior. Ouviu o vestido rasgar embaixo do braço. Júnior tentou empurrá-la para longe, mas ela segurou-lhe o braço que girava o gato. Os dois caíram e, na queda, Júnior largou o gato. Solto em pleno movimento, o animal foi atirado com toda a força contra a janela. Resvalou e caiu em cima do aquecedor, atrás do sofá. Estremeceu algumas vezes e ficou imóvel. Sentia-se apenas um leve cheiro de pelo chamuscado.

Geraldine abriu a porta.

“O que é isso?” Voz suave, como se fosse uma pergunta muito natural. “Quem é essa menina?”

“Ela matou o nosso gato”, disse Júnior. “Olha.” Apontou para o aquecedor, onde o gato jazia, com os olhos azuis fechados, deixando apenas uma cara preta, vazia e indefesa.

Geraldine foi até o aquecedor e pegou o gato. O animal ficou largado em seus braços, mas ela esfregou o rosto contra o pelo dele. Olhou para Pecola. Viu o vestido sujo rasgado, as tranças espetadas na cabeça, o cabelo emaranhado nos pontos onde as tranças estavam desfeitas, os sapatos enlameados com um chiclete aparecendo por entre as solas baratas, as meias sujas, uma das quais engolida pelo calcanhar do sapato. Viu o alfinete de gancho prendendo a barra do vestido. Por sobre a corcova das costas do gato, olhou para ela. A vida toda tinha visto aquela menina. Paradas diante das vidraças dos bares em Mobile, engatinhando em varandas de casas toscas na periferia da cidade, sentadas em estações de ônibus segurando sacos de papel e gritando para mães que não paravam de dizer “Cala a boca!”. Cabelo despenteado, vestidos rasgados, sapatos desamarrados e empastados de sujeira. Elas a haviam fitado com grandes olhos incompreensivos. Olhos que não questionavam nada e perguntavam tudo. Sem piscar, despudoradamente, elas a fitavam. Tinham nos olhos o fim do mundo, o começo e todo o vazio entre uma coisa e outra.

Elas estavam por todo lado. Dormiam seis amontoadas, a urina de todas misturando-se durante a noite quando molhavam a cama, cada uma sonhando seu sonho de doces e batatinhas fritas. Nos dias longos e quentes, ficavam à toa, tirando reboco das paredes e cutucando a terra com paus. Sentavam-se em pequenas fileiras nas calçadas, amontoavam-se nos bancos da igreja, tirando espaço das crianças mulatas, bonitas e limpas; faziam palhaçadas nos playgrounds, quebravam coisas em lojas baratas, corriam na frente da gente na rua, faziam pistas de gelo nas calçadas inclinadas no inverno. As meninas cresciam sem saber usar uma cinta e os meninos anunciavam que tinham atingido a idade viril virando para trás a aba do boné. Nos lugares onde elas moravam não crescia grama. As flores morriam. Abatiam-se sombras. Floresciam latas e pneus onde elas moravam. Viviam de feijão-fradinho frio e refrigerante de laranja. Como moscas, elas esvoaçavam; como moscas, pousavam. E esta pousara em sua casa. Por sobre a corcova das costas do gato, ela olhava.

“Fora”, disse, em voz baixa. “Sua negrinha ordinária. Fora da minha casa.”

O gato estremeceu e sacudiu o rabo.

Pecola recuou, olhando fixo para a bela senhora cor de café com leite, na bela casa verde e dourada, que falava com ela por entre o pelo do gato. As palavras da senhora bonita fizeram o pelo do gato se mexer; o sopro de cada palavra separou os pelos. Virou-se para achar a porta da frente e viu Jesus que a mirava com olhos tristes e sem surpresa, o longo cabelo castanho repartido no meio, as alegres flores de papel retorcidas em torno de seu rosto.

Lá fora, o vento de março entrou-lhe pelo rasgão no vestido. Pecola abaixou a cabeça contra o frio. Mas não conseguiu abaixá-la o suficiente para não ver os flocos de neve que caíam e morriam na calçada.



[*] Termo vulgar, mas aceitável para “ato sexual”, talvez derivado de nook, “esconderijo”, “recesso”. (N. T.)



(O olho mais azul; tradução de Manoel Paulo Ferreira)



(Ilustração: Philemona Williamson - red buckled shoes, 2014)

sábado, 19 de outubro de 2024

CASA ARRUMADA, de Leda Gino

 

  




Casa arrumada é assim:

Um lugar organizado, limpo, com espaço livre pra circulação

e uma boa entrada de luz.

Mas casa, pra mim, tem que ser casa e não um centro cirúrgico,

um cenário de novela.

Tem gente que gasta muito tempo limpando, esterilizando,

ajeitando os móveis, afofando as almofadas...

Não, eu prefiro viver numa casa onde eu bato o olho e percebo logo:

Aqui tem vida...

Casa com vida, pra mim, é aquela em que os livros saem das prateleiras

e os enfeites brincam de trocar de lugar.

Casa com vida tem fogão gasto pelo uso, pelo abuso das refeições

fartas, que chamam todo mundo pra mesa da cozinha.

Sofá sem mancha?

Tapete sem fio puxado?

Mesa sem marca de copo?

Tá na cara que é casa sem festa.

E se o piso não tem arranhão, é porque ali ninguém dança.

Casa com vida, pra mim, tem banheiro com vapor perfumado no meio da tarde.

Tem gaveta de entulho, daquelas que a gente guarda barbante,

passaporte e vela de aniversário, tudo junto...

Casa com vida é aquela em que a gente entra e se sente bem-vinda.

A que está sempre pronta pros amigos, filhos...

Netos, pros vizinhos...

E nos quartos, se possível, tem lençóis revirados por gente que brinca

ou namora a qualquer hora do dia.

Casa com vida é aquela que a gente arruma pra ficar com a cara da gente.

Arrume a sua casa todos os dias...

Mas arrume de um jeito que lhe sobre tempo pra viver nela...

E reconhecer nela o seu lugar.




(Ilustração: Vincent Van Gogh - o quarto - 1889 - Musée d Orsay Paris)

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

O NASCIMENTO DO MUNDO (LENDA MAORI RECONTADA POR MARIA DE LA LUZ)


No início só havia Kore, a energia, vagando na escuridão do espaço infinito. Então, veio a luz e surgiram Ranginui, o Pai Céu, e Papatuanuku, a Mãe Terra. Rangi e Papa tiveram muitos filhos: Tangaroa, deus das águas; Tane, deus das florestas; Tawhirmatea, deus dos ventos; Tumatauenga, deus da guerra, que deu origem aos seres humanos; e Uru, que não era deus de nada.


Rangi e Papa viviam num perpétuo abraço de amantes. Acontece que esse enlace apaixonado não deixava a luz penetrar entre seus corpos, onde ficavam os filhos. Obrigados a viver apertados e sempre no escuro, os jovens resolveram dar um basta na situação.

– Vamos matar Rangi e Papa e ficar livres deles! – disse Tumatauenga.

– Não! – disse Tane. – Vamos apenas separá-los, empurrando um para cima e deixando o outro embaixo. Assim sobrará espaço para nós e a luz vai poder entrar.

Todos acharam a ideia excelente.

Tane, que era o mais forte de todos, firmou bem os pés em Papa, encaixou os ombros no corpo de Rangi e o empurrou para cima com toda a força.

Os pais se separaram, mas – oh, decepção! – só um pouco de luz chegou ao mundo dos filhos. Além disso, Rangi e Papa estavam nus e, longe um do outro, sentiam muito frio.

Comovido com a situação, Tane abrigou o pai com o negro manto da noite.

Para a mãe fez um vestido com as mais verdes e tenras folhas e as flores mais coloridas. Em torno dela fez ondular as águas azuis dos mares e rios de Tangaroa. Os ventos de Tawhirmatea sopravam suavemente seus cabelos. Os filhos de Tumatauenga já começavam a povoar o mundo recém-criado.

Olhando lá de cima os lindos trajes da mulher e sua participação no novo mundo, Ranginui ficou doente de inveja. Sua dor cobriu o mundo com uma névoa úmida e cinzenta.

Refugiado em uma dobra do manto paterno, Uru chorava e chorava por não ter sido útil em nada aos pais e aos irmãos. Para que ninguém percebesse suas lágrimas, escondia-as em cestas e mais cestas. Mas Tane tudo percebera:

-Uru, meu irmão, preciso de sua ajuda!

– Nada tenho para dar, você bem sabe!

– Ora, Uru, você tem tantas cestas…

Surpreso e com medo de ser descoberto em sua fraqueza, Uru abaixou a cabeça:

– Não tem nada dentro delas, irmão.

Tane avançou e destampou uma das cestas. Dela voaram luzes faiscantes e risonhas para todos os lados. As lágrimas de Uru haviam se transformado em crianças-luz (para nós, estrelas)!

– Uru, será que você podia me ceder duas de suas cestas? Seus filhos poderiam enfeitar e iluminar a morada de nosso pai…

Uru concordou. As duas cestas foram passadas para Te Waka o Tamareriti, uma canoa muito especial. Tane conduziu a canoa até o céu, espalhando sobre o manto de Rangi milhares de estrelinhas que riam e piscavam umas para as outras o tempo todo.

Quando Tane ia pegar a segunda cesta, esta tombou e se abriu, deixando as estrelas se espalharem numa grande faixa chamada Ikaroa, que cruzou o céu de lado a lado (para nós, a Via Láctea). Tane deixou Ikaroa e Waka o Tamareriti (que é a “cauda” da nossa constelação do Escorpião) no espaço celeste, onde se tornaram os guardiões das estrelas.



(Ilustração: Kipper)

domingo, 13 de outubro de 2024

O XERIFE E OS GUAJAJARAS (NO INTERIOR DO MARANHÃO), de Leonardo Froes

 




Os homens do Romeu Tuma,

prepotentes e embalados,

foram dar uma batida

na tribo dos guajajaras.

Queriam localizar,

pra acabar de vez com ela,

a plantação de maconha

que, segundo haviam dito,

esses índios cultivavam

no sertão do Maranhão.

Lá na aldeia de Coquinhos

os homens bravos do Tuma

já chegaram dando tiros,

matando cachorros mansos

que apenas comiam pulgas.

Curumins apavorados

corriam que nem cutia

da polvorosa imprevista,

enquanto cunhãs e velhas,

aflitas, choravam sem

entender o que é que havia.

“De que se trata?”, diziam

na língua dos guajajaras:

“Que querer aqui fazer

os ruins caramurus?”

Os de fora, dos seus carros

barulhentos que nem tanques

numa ofensiva de guerra,

iam só mandando bala

por entre as choças tranquilas,

furando bambus e sacos,

vasilhames e bacias

com pontaria certeira.

Mas o espírito das matas

(cinco séculos de fúria

sob contínuos massacres)

de repente correu solto

no meio dos guajajaras.

Armando-se de cacetes,

o desespero do orgulho

e a valentia das onças,

os índios antes perplexos

com a louca invasão dos brutos

pularam dando pauladas,

de peito nu e aberto,

contra os tiros da polícia.

E deram tanto, mas tanto,

foram tantas cacetadas

de toda uma raça extinta,

era tão justa a refrega

dos caboclos de Tupã,

tão fraternos e preciosos

os golpes do contra-ataque,

que não houve jamais como

o pelotão resistir.

Seus carros antes possantes

ficaram despedaçados

e nenhum tira escapou:

todos levaram porrada.

Sem armas nem munições,

que os índios depois tomaram,

a polícia foi em cana

metendo o rabo entre as pernas.

Com o bando da lei detido

numa palhoça de varas,

mais pauladas foram dadas,

dessa vez como castigo,

por um ancião da tribo

e o cadáver do cachorro

(nosso irmão e nosso espelho)

assassinado por eles

a seguir foi esfregado

na cara de cada um.

De Brasília, o Romeu Tuma

com seus capangas mais fortes

foi lá conversar com os índios

para soltar os reféns.

Encontrou os guajajaras

preparados para a guerra

com suas caras pintadas.

Talvez não tivesse visto,

mas ventos elementares

faziam tremer a terra

por toda a Barra do Corda.

Sob o calor dos coqueiros,

cocares de antigas lutas

na glória da resistência

faziam gestos simbólicos.

Por trás de cada cunhã

com riscos na face triste,

foram hordas de fantasmas

tomados de amor da terra

que o Romeu Tuma encontrou.

Bom de papo, bem treinado

nas rodinhas de Brasília

depois de muita conversa

conseguiu a liberdade

dos subalternos detidos.

Mas as armas dos seus homens

os guajajaras não deram.

E agora, depois de tanta

estripulia e arbítrio,

impõem uma condição

para entregá-las aos donos:

que os brancos também devolvam,

por estar em suas terras,

o povoado já famoso

e bem, enfim, guajajara

pelas ressonâncias do nome

que é São Pedro dos Cacetes.




(Ilustração: índios guajajaras - foto de Vincent Carelli, 1980)

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

LUCIEN CARR MATOU O AMIGO E O CRIME ESTEVE NA GÉNESE DA GERAÇÃO BEAT, de Isabel Lucas




Na madrugada de 13 de Agosto de 1944, um estudante da Universidade de Colúmbia e o seu mentor e protector, um homem 14 anos mais velho, envolveram-se numa discussão em Riverside Park, junto ao rio Hudson, perto do campus universitário, em Nova Iorque, e o mais novo acabou por atingir o mais velho no peito com dois golpes de navalha. São factos. Facto também é que o mais novo atou as mãos e os pés daquele que pensava ser já um cadáver, encheu-lhe os bolsos do fato de pedras e atirou-o ao rio. Outro facto: o rapaz terá corrido a pedir conselho sobre o que fazer a um grupo de amigos mais velhos - os futuros poetas da beat - e entregou-se às autoridades.

O rapaz de 19 anos seria condenado a 20 de prisão, mas acabou por passar apenas dois num centro de correcção e sair em liberdade aos 21. Chamava-se Lucien Carr, boa pinta, assediado pelos amigos homossexuais, admirado por todos pela sua cultura e sentido de humor, leitor compulsivo que apresentou os poemas de Rimbaud a outro amigo, Allen Ginsberg, e apresentou também Ginsberg a William S. Burroughs e os dois a Jack Kerouac. Sem saber, Carr esteve na génese do que viria a ser o núcleo da geração beat, mas o crime que cometeu afastou-o dela sem que nunca tivesse escrito um poema ou um texto segundo os critérios estilísticos desse grupo cuja regra de vida era não ter regras para a vida: seguir o impulso sem censura.

Lucien Carr é o centro do livro "escondido" que William S. Burroughs e Jack Kerouac escreveram em 1945, antes de publicarem o que quer que fosse, contando a sua versão do crime de Riverside Park, o policial e os hipopótamos cozeram nos seus tanques, agora editado em Portugal pela Quetzal e que a América só conheceu em 2008, depois da morte de Carr. Não é o grande livro de cada um, mas é o primeiro livro de um e de outro.

"Lucien Carr, com a sua paixão por Rimbaud, acabou, numa trágica ironia, por ser ele mesmo uma espécie de Rimbaud deste grupo, alguém que, ao se livrar do seu Verlaine, morreu para as artes antes da maioridade, mas permanecendo uma inspiração". Voz grave, estilo pausado, James W. Grauerholz, o executor testamentário de William S. Burroughs e amigo íntimo do autor de Naked Lunch, diz "olá" como quem diz holla. Está no Kansas, e quer fazer-se entender ao falar de um grupo e de uma história que o mudou também a ele. Diz-se fluente em espanhol, ensaia umas palavras em português, mas segue no seu sotaque cerrado a história de Carr que conheceu numa madrugada de copos em casa de Burroughs.

William S. Burroughs era o ídolo de James W. Grauerholz. Leu Naked Lunch com 14 anos e nunca mais deixou de seguir tudo o que Burroughs escreveu. Queria ser escritor e via ali o exemplo. "Em 1974, quando fui para Nova Iorque, recebi um telefonema de Allen Ginsberg. Dizia-me que Burroughs estava em Nova Iorque e queria conhecer-me; que precisava do um secretário. Deu-me o número dele e o meu herói convidou-me para jantar. Daí a umas semanas estava a viver com ele", conta-nos Grauerholz com o tom e o riso de quem narra umas memórias boas.

"Gostávamos um do outro e fomos íntimos durante algum tempo, mas eu precisava de estar com pessoas da minha idade e essa intimidada acabou tal como existia." Grauerholz tinha então 21 anos e Burroughs 60. Foi nesse período que conheceu Lucien Carr. Carr era editor da United Press. "Numa noite, muito tarde, tocaram à campainha, fui ver quem era e ouço uma voz a gritar: "O Burroughs está por aí?" Ele disse-lhe para entrar. Vestimo-nos à pressa. Lucien, bêbado, estava à procura do velho amigo e passámos o resto da noite a beber e a fumar. Achei-o muito divertido."

Voltaram a ver-se ao longo de décadas. Grauerholz e Burroughs deixaram de ser íntimos, mas nunca perderam a intimidade que Grauerholz compara à de um velho casal. Carr aparecia, mas não falava do que tinha acontecido na noite de 1944. "Acho natural. Tudo correu de forma muito má para Lucien. Ele continuava a gostar dos amigos, mas não queria fazer parte da visão beat", justifica sobre uma história que continua nebulosa e alimentou a imaginação e a obra dos amigos da Beat. Ele foi guardião dessa história e do livro que Burroughs escrevera com Kerouac, mas nunca fora publicado. Kerouac morrera em 1969. Burroughs ficou com o manuscrito, e quando nomeou Grauerholz seu executante testamentário pediu para que se cumprisse a vontade de Carr: que o livro só fosse publicado depois da morte do jornalista.

O que mais incomodava Carr não era, segundo Grauerholz, o facto de ter morto o seu companheiro e tutor, mas as alusões à sua homossexualidade. "Não é que Lucien Carr fosse homofóbico. Mas tinha construído uma vida depois daquele crime distante dos excessos desses dias. Tinha uma profissão, tinha casado duas vezes, tinha três filhos e era nesses papéis que queria ser conhecido."

Grauerholz regressa agora a um passado que não foi o dele, ao início da década de 40, quando Carr e Dave Kammerer eram inseparáveis. A história da relação de Lucian e Dave E. Kammerer vem sintetizada no posfácio de e os hipopótamos cozeram nos seus tanques pelo próprio Grauerholz. Está no livro com os protagonistas a terem outros nomes.

"Para quem acaba de chegar, eis os factos básicos: a relação entre Lucien Carr IV e David Kammerer começou em St. Louis, Missuri, em 1936, quando Lucien tinha 11 e Dave 25 anos. Oito anos, cinco estados, quatro escolas secundárias e duas faculdades mais tarde, a relação havia-se tornado demasiado intensa." O desenlace é o que se sabe ou se lerá, ou ainda se pode ver no filme Kill your Darlings, de John Krokidas, com Daniel Radcliffe, Ben Foster, Michael C. Hall. O filme tem estreia marcada para estes dias na América. "O guião é óptimo, alguns actores consultaram-me para construir as personagens. Estou curioso."

Feito o parêntesis, volta ao incómodo: "O William disse-me que estava certo de que eles nunca tinham tido nenhum contacto sexual. William conheceu Lucien era ele adolescente. Todos andavam pela Village. Dizia-me que ele tinha um intelecto precoce e Kammerer via nele um adorável protegé." Exemplo? Burroughs. Viu sempre nele um amigo leal logo desde o início. "Wiliam tinha emprestado o carro a Lucien para ele ir a St. Louis. Ele era de lá. A meio da viagem, houve um acidente. Lucien telefonou a William: "O teu carro está desfeito na estrada". Como resposta teve: "Ok, obrigada por me contares". Naquele dia impressionaram-se um ao outro e nunca mais deixaram de se respeitar.

Até ao fim. Burroughs morreu em 1997. Lucien Carr em 2005, vítima de cancro e quase desconhecido para o mundo. Cultivava a imagem do velho jornalista americano, "cínico, que bebia e fumava muito". Grauerholz sublinha o lado trágico da história de Carr. "Sim, era um Rimbaud. Os outros viveram a glória". Aquele que era "o mais inquieto" do grupo de rapazes, "uma força da natureza", "caleidoscópico" nos seus entusiasmos, o "talismã" do grupo que tinha em Kerouac o mais tranquilo, em Ginsberg a curiosidade, e o punchline em Burroughs "pagou um preço". "No fim da vida, se lhe perguntassem como queria ser lembrado, julgo que como um grande jornalista", arrisca James W. Grauerholz. Como era ele, afinal? "Não há um Lucien Carr. Há uma figura ambígua. É um exemplo de como alguém pode sobreviver à infância. Ele conseguiu uma segunda vida e viveu-a. É mau que depois de ter resgatado a sua vida ao caos, tenha sido um jornalista não muito conhecido e a infelicidade de ser apenas lembrado como o jovem que cometeu um crime... Mas, isto é a América. É a vida. Como eles eram? Está tudo em On The Road (1957)."



(Ilustração: Carr, Burroughs e Ginsberg; foto da internet sem indicação de autoria)

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

EU TE AMO, de Tom Jobim e Chico Buarque



Ah, se já perdemos a noção da hora

Se juntos já jogamos tudo fora

Me conta agora como hei de partir



Se, ao te conhecer, dei pra sonhar, fiz tantos desvarios

Rompi com o mundo, queimei meus navios

Me diz pra onde é que inda posso ir



Se nós, nas travessuras das noites eternas

Já confundimos tanto as nossas pernas

Diz com que pernas eu devo seguir



Se entornaste a nossa sorte pelo chão

Se na bagunça do teu coração

Meu sangue errou de veia e se perdeu



Como, se na desordem do armário embutido

Meu paletó enlaça o teu vestido

E o meu sapato inda pisa no teu



Como, se nos amamos feito dois pagãos

Teus seios inda estão nas minhas mãos

Me explica com que cara eu vou sair



Não, acho que estás se fazendo de tonta

Te dei meus olhos pra tomares conta

Agora conta como hei de partir





(Ilustração: Apollonia Sainclair - a queen and her king)