domingo, 9 de março de 2025

A CONTRARREVOLUÇÃO EVANGÉLICA E SEU SENTIDO SOCIAL E POLÍTICO, de Jessé Souza

 



Para Max Weber, o sociólogo das religiões mais influente e importante de todos os tempos, a religiosidade tem íntima relação com a classe social, ou seja, com a posição relativa dos fiéis na hierarquia social. As versões mais racionais e éticas da religiosidade costumam estar relacionadas à vida citadina – em especial aos comerciantes e artesãos qualificados com seu cotidiano calculável, regular e previsível. Já os camponeses e as classes populares percebem seu cotidiano como dominado por forças externas incontroláveis, como a natureza e a opressão social associada ao trabalho desqualificado, dependente e servil.

O pentecostalismo, desde a sua vertente original nos Estados Unidos, nasce como oposição ao protestantismo histórico e ao processo de secularização que lhe foi subsequente. Como se sabe, a tese weberiana para explicar o processo de secularização parte da contradição interna ao protestantismo ascético, que constrói um “caminho para salvação” baseado no sucesso mundano. Ao interpretar o caminho para a salvação eterna como decorrente do sucesso mundano e visível, ou seja, como riqueza material, o ascetismo protestante passa a exigir do fiel a “dominação do mundo” social e natural como precondição para ser salvo.

Para que o mundo seja dominado, ele precisa, porém, ser conhecido. É necessário que se conheça como o mundo social e natural funciona para que se tenha sucesso nele. Ora, a ciência é exatamente a dimensão criada para o conhecimento e controle do mundo externo. Existe uma forte correlação entre o advento do protestantismo e a ascensão da ciência experimental. A visão científica do mundo, no entanto, elimina pouco a pouco o “mistério”, elemento indispensável a qualquer forma de religiosidade. O estabelecimento da ciência enquanto esfera simbólica detentora de sentido hegemônico implica o enfraquecimento – não a morte – da visão religiosa. É por conta de suas contradições internas que o protestantismo é visto como a parteira do mundo moderno, secular – e, dentre outras consequências, um mundo onde a ciência substitui a religião como provedora de sentido.

Isso, por óbvio, não ocorreu sem resistências. Especialmente nos Estados Unidos – a pátria do puritanismo ascético –, foram desenvolvidas, desde o século XVIII, tendências revivalistas da religiosidade, as quais são o berço histórico do movimento pentecostal posterior. Esses movimentos eram plurais, e havia uma quantidade de oferta religiosa significativa comandadas por novos profetas que pululavam em vários lugares. Um deles foi Charles Parham, figura emblemática da novidade pentecostal, que se tornou o primeiro pregador a fazer a ligação entre experiências extáticas – com manifestações de transe e glossolalias (o falar em “língua estranha”) – e o “batismo com o Espírito Santo”.[1]

Um dos seguidores de Parham, William Seymor – que se tornaria conhecido como o “profeta negro da Rua Azuza” – assistia às suas aulas no corredor e não na sala de aula, por conta do racismo de Parham, e decidiu fundar sua própria denominação na Rua Azuza, em Los Angeles. Rua Azuza se tornou, a partir daí, uma espécie de galvanizador e campo de experiência de uma religiosidade que valorizava a tradição negra: em traços como a oralidade da liturgia, testemunhos orais, inclusão do êxtase, sonhos e visões, inclinação para o xamanismo religioso, uso de coreografia e muita música nos cultos.[2]

Essa ligação com a cultura negra explica, em boa parte, a irresistível influência desse tipo de religiosidade entre nós. Aqui podemos já visua lizar que o ancoramento social desse tipo de manifestação religiosa se dirige aos desterrados, humilhados e imigrados. São pessoas que não conseguem se sentir pertencentes à realidade social, visto que essa os humilha e não os reconhece. São pessoas que estão no mundo social, mas não se sentem parte desse mesmo mundo. Nascia então uma religiosidade, feita com precisão de alfaiate, para os abandonados e excluí dos. Como sempre, a religiosidade mágica é a arma dos despossuídos, daqueles que não têm futuro. Como diria Pierre Bourdieu, em uma de suas frases magistrais: “A esperança mágica é a visada de futuro dos que não têm futuro.”

Criada nos Estados Unidos no começo do século XX, essa forma de protestantismo popular tem se globalizado com rapidez entre as massas empobrecidas do Sul global. Descendentes do metodismo Wesleyano e do Holiness Movement [Movimento da Santidade], os pentecostais, por diferença em relação ao protestantismo histórico, acreditam que Deus, por meio do Espírito Santo – responsável pelo componente mágico desse tipo de religiosidade – continua a agir diretamente no mundo prático. Essa ação se materializa em curas, exorcismo de demônios e realização de milagres.

A diferença entre religiosidade ética e religiosidade mágica é a mais importante do universo religioso. A religiosidade ética, produto singular da cultura ocidental – que nasce no judaísmo antigo e influencia diretamente o cristianismo e o islamismo – cria uma tensão ética entre o mundo transcendente e o mundano. O Deus e seus mandamentos morais, na religiosidade ética, pretendem mudar o mundo profano como ele é. Pretende criticá-lo e revolucioná-lo. Por exemplo, Jeová exige dos fiéis que eles não matem, não roubem e não desejem a mulher do próximo porque na humanidade há quem tenha desejos assassinos, desejos de apropriação das coisas alheias e desejos libertinos em relação à mulher do próximo. A religiosidade ética abre a possibilidade de mudança do mundo social e do nosso comportamento nele. Ela é intrinsecamente revolucionária, ainda que os compromissos com os poderes mundanos tenham sido, historicamente, a regra.

Com a magia, temos o efeito contrário. Na magia, não há oposição entre a dimensão religiosa transcendente e a dimensão mundana, mas sim proximidade e contiguidade. Os entes transcendentes são próximos, e seus favores devem ser conquistados do mesmo modo como fazemos com os poderosos deste mundo: com presentes, bajulações, elogios e afagos. Não existe a tensão ética que possibilite transformar o fiel mágico em outra coisa que ele ainda não seja. A regra aqui é a dos rituais: vive-se da repetição, da tradição e do eterno ontem que sacraliza o mundo como ele é.

Além disso, como a moralidade mágica não pressupõe reflexão – uma vez que é mera compulsão pela repetição – inexiste o drama típico da consciência moral ética, que é representado pela questão: devo seguir o que Deus manda, ou seguir aquilo para o qual já me inclino desde sempre? Essa é a primeira forma de consciência moral individual da história – o drama consciente da escolha de caminhos alternativos de vida. Na magia, não há alternativa, nem drama de escolha, nem consciência moral. A magia é, portanto, intrinsecamente conservadora. Não há crítica social possível a partir dela. E foi esse tipo de protestantismo mágico, em forte oposição ao protestantismo histórico, a forma de religiosidade ética mais consequente de que se tem notícia – que tomou o Brasil de assalto a partir dos fins do século XX.

A novidade americana logo chegou, como sempre acontece, rápido ao Brasil. Vários missionários inspirados pela Rua Azuza chegaram aqui poucos anos mais tarde, como Louis Francescon, Daniel Berg e Gunnar

Vingren, os pioneiros do pentecostalismo no Brasil.[3] Os estudiosos dividem em três fases a história do pentecostalismo e neopentecostalismo brasileiro. A primeira onda acontece a partir de 1910, com a vinda dos missionários estrangeiros para ensinar os fundamentos da nova religião. A segunda onda se dá nos anos 1940 e 1950, sobretudo em São Paulo. A terceira onda ganha impulso a partir dos anos 1970 e 1980, em especial com a Igreja Universal do Reino de Deus – comandada com mão de ferro pelo autointitulado bispo Edir Macedo. O contexto da terceira onda é carioca.[4]

O pentecostalismo clássico brasileiro, típico da primeira onda, é representado pela Congregação Cristã do Brasil e pela Assembleia de Deus, a maior denominação pentecostal do Brasil. Suas características principais são o anticatolicismo, o dom de falar em “línguas estranhas”, a crença na volta iminente de Cristo e na salvação paradisíaca, e o radical sectarismo e ascetismo. A segunda onda teve início nos anos 1950 principalmente em São Paulo, a partir de dois missionários americanos que formaram o Evangelho Quadrangular, trazendo para o Brasil a evangelização em massa baseada na cura divina.[5]

Tal ênfase na cura divina foi o grande mecanismo para o crescimento do pentecostalismo brasileiro, como, aliás, aconteceu no mundo todo.[6] O que separa as duas ondas é a ênfase diferencial nos dons do Espírito Santo. A primeira onda enfatiza o dom de línguas; enquanto a segunda privilegia a cura divina. Existe grande influência recíproca entre as diversas denominações, e, em um processo de tentativa e erro, tudo aquilo que se mostrar bem-sucedido tende a ser imitado pelas outras denominações.

A terceira onda se inicia nos anos 1970 e ganha força nas duas décadas seguintes. Seu principal símbolo é a Igreja Universal do Reino de Deus, que é marcada pelo antiecumenismo – forte oposição aos cultos afro, forte hierarquia e centralização, uso de meios de comunicação de massas, ênfase na cura e no exorcismo de demônios. E, como característica mais marcante, as técnicas para retirar dinheiro dos fiéis em troca de bens simbólicos mediante pagamento direto em moeda sonante. Combinado a essa guinada mundana e empreendedora temos a rejeição consequente a toda forma de ascetismo mundano.

Se as ênfases das igrejas anteriores privilegiavam as “línguas estranhas” e a cura divina, na terceira onda neopentecostal a centralidade é do exorcismo de demônios. A singularidade da Universal é baseada na ênfase da luta entre Deus e o demônio, e cabe ao pastor dizer quem é um e quem é o outro (a divindade pode ser associada, inclusive, a Bolsonaro, se o pastor assim o desejar, afinal, ele tem “Messias” no nome). O contexto conservador da magia é levado ao paroxismo na teodiceia neopentecostal. Como inexiste qualquer separação entre a esfera mundana e a transcendente, a esfera mundana é percebida como subordinada à esfera transcendente, perdendo, portanto, qualquer autonomia e independência.

Isso significa que se alguém está doente e não encontra remédio, não é culpa do descaso da sociedade desigual nem da falta de adequado financiamento do sus, mas sim do diabo que invadiu seu corpo. Elimina-se, desde o início, qualquer possibilidade de crítica social à dimensão mundana. O “sacrifício do intelecto”, que Weber percebia em toda forma de religiosidade, é aqui levado ao limite lógico. O mundo social, por mais injusto e perverso que seja, não só não é criticável como passa a ser, inclusive, sacralizado. Trata-se da mais perfeita legitimação da meritocracia e do mundo desigual, visto que invisibiliza as causas da opressão social.

A teodiceia da prosperidade neopentecostal é, em alto grau, uma religiosidade “afirmativa do mundo” – ao contrário de sua negação, como acontece na religiosidade ética. Como corolário, temos a liberalização dos costumes e do apelo ao consumo material. A principal novidade do neopentecostalismo é sua inversão da “negação do mundo” pentecostal clássica em uma decidida “afirmação do mundo” por conta do maior peso do componente mágico e pragmático. O sucesso do neopentecostalismo tem contribuído para influenciar todo o mercado religioso pentecostal. A própria competição pelo controle de meios de comunicação de massas, entre as diversas denominações, traz uma urgência econômica que tende a ser suprida com os dízimos e ofertas em dinheiro.

O que de fato singulariza a Igreja Universal é a exacerbação de uma luta cósmica dualista entre Deus e o diabo pelo domínio da humanidade. Uma guerra, portanto. Pelo menos quatro características principais derivam dessa luta: 1) o embate não é apenas espiritual, mas prático, envolvendo a dimensão sociopolítica e a tentativa de dominar o mundo social segundo seus preceitos, por meio da influência na política partidária e pelo proselitismo nos meios de comunicação de massa; 2) o rompimento com a salvação extramundana e seu ascetismo e rejeição do mundo, tendo como substituta a teodiceia de afirmação e dominação do mundo. Ao contrário da resignação, os neopentecostais são triunfalistas e intervencionistas; 3) como consequência lógica dessa inversão de perspectivas, temos a criação da teologia da prosperidade para o gozo do dinheiro e dos prazeres mundanos; 4) e, como corolário, a ideia de que o serviço a Deus é mediado pelo pagamento em dinheiro: o dízimo – por óbvio – mas sobretudo “ofertas” em profusão.

Notas:

[1]. Leonildo Silveira Campos, “As origens norte-americanas do pentecostalismo brasileiro”,2005.

[2]. Ibidem.

[3]. Ibidem.

[4]. Ricardo Mariano, Neopentecostais, 1999.

[5]. Ibidem.

[6]. Ibidem



(O pobre de direita)



(Ilustração: Templo de Salomão em São Paulo, inaugurado em 31.7.2014; foto da internet,  sem indicação de autoria)

quinta-feira, 6 de março de 2025

MON HUMBLE AMI / MEU HUMILDE AMIGO, de Francis Jammes





Mon humble ami, mon chien fidèle, tu es mort

de cette mort que tu fuyais comme une guêpe

lorsque tu te cachais sous la table. Ta tête

s’est dirigée vers moi à l’heure brève et morne.



Ô compagnon banal de l’homme: être béni!

toi que nourrit la faim que ton maître partage,

toi qui accompagnas dans leur pèlerinage

l’archange Raphaël et le jeune Tobie...



Ô serviteur: que tu me sois d’un grand exemple,

ô toi qui m’as aimé ainsi qu’un saint son Dieu!

Le mystère de ton obscure intelligence

vit dans un paradis innocent et joyeux.



Ah! faites, mon Dieu, si Vous me donnez la grâce

de Vous voir face à face aux jours d’Éternité,

faites qu’un pauvre chien contemple face à face

celui qui fut son dieu parmi l’humanité.





Tradução de Manuel Bandeira :



Meu cão fiel, humilde amigo, sucumbiste

Sob a mesa, fugindo à morte como à vespa

Tu fugias em vida. Ali tua cabeça

Voltaste para mim no passo breve e triste.



Companheiro banal do homem, tu que em teus dias

No que falta ao teu dono achas o que te baste,

Ó ser bendito que a jornada acompanhaste

Do arcanjo Rafael e do jovem Tobias...



Tal como um santo ama ao seu Deus, num grande exemplo

Amaste-me também, ó servo verdadeiro!

O mistério de tua obscura inteligência

Vive num paraíso inocente e fagueiro.



Ah se de vós, meu Deus, a graça eu alcançasse

De face a face vos olhar na eternidade,

Fazei que um pobre cão contemple face a face

Quem para ele foi um deus na humanidade.



(L’Église Habillée de Feuilles / A Igreja Coberta de Folhas: 1906 ; Poemas Traduzidos, 1956)



(Ilustração: Antonio Rotta - un uomo ed il suo cane)

segunda-feira, 3 de março de 2025

IGREJAS NEOPENTECOSTAIS AMEAÇAM DEMOCRACIA NA AMÉRICA LATINA, de José Ospina-Valencia






A luta das igrejas neopentecostais na América Latina é uma luta pelos pobres: por sua consciência, por suas carteiras e por seus votos. Seu êxito se deve também ao fracasso da Igreja católica em atender às necessidades de milhões que buscam apoio num mundo cada vez mais frustrante e sem aparente futuro. E a história de abusos sexuais do dogma católico deixou, além disso, um rastro de repúdio em vários países e contribuiu para a erosão de um poder passado.

Assim, os mais necessitados são recrutados por pastores protestantes que se autodenominam "cristãos" e que, com frequência, têm mais espírito comercial que religioso.

Apesar de o movimento pentecostal ter sido criado em 1906 nos Estados Unidos, são as novas seitas e igrejas fundadas na mesma América Latina as responsáveis pelo auge que ameaça não somente a supremacia da Igreja católica como os princípios democráticos.

Um movimento que parece germinar especialmente no Brasil, na Colômbia, no México, no Peru, na República Dominicana e na Venezuela. No Brasil, haveria 42,3 milhões de fiéis, equivalentes a 22,2% da população. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a cada ano abrem no país 14 mil novas igrejas neopentecostais.

Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus, considerado pela revista Forbes "o pastor mais rico do Brasil", é proprietário da Record, a segunda rede de televisão mais importante do país. Seu tema favorito: a moral.

O caso da Costa Rica é exemplar: bastou que o pastor e cantor Fabricio Alvarado, candidato à presidência, rechaçasse vociferante o chamado da Corte Interamericana de Direitos Humanos para respeitar os direitos da comunidade LGBTI para que ganhasse o primeiro turno da eleição.

Na Venezuela, por seu lado, milhões não viram outra saída senão refugiar-se em igrejas com nomes como "Pare de sofrer". Já a Guatemala é governada por um humorista e pastor evangélico, Jimmy Morales, que é contra o aborto, recusa o casamento homoafetivo e tem mais receitas contra as minorias do que soluções para a corrupção galopante.

Por todo o continente, há também "casos de superação" de pastores que saíram da pobreza abrindo uma igreja em garagens e que rapidamente se transformam num "exemplo de êxito" com estrambóticos templos e um poder econômico e político inusitados.

O caso de María Piraquive, que deixou de ser costureira num bairro operário de Bogotá, e que com sua Igreja de Deus Ministerial de Jesus Cristo Internacional (Idmji) construiu, desde 1972, um império multimilionário com propriedades em vários países, e a criação de um partido político, são símbolos desse ímpeto. Hoje, a igreja de Piraquive tem cerca de mil sedes em mais de 50 países e até representações em sete Estados federados da Alemanha.

É assustador é que muitos desses pastores tenham tanto êxito com ideias excludentes e um discurso de ódio. Em suas pregações, Piraquive descarta que pessoas com deficiência física possam assumir a veiculação da "palavra de Deus". Uma postura discriminatória em todos os países latino-americanos, que, pelas suas Constituições, se definem como pluralistas e laicos, fundados sobre o respeito e a dignidade humana, e garantidores da liberdade de expressão e de culto.

Paradoxalmente, apesar de essas sociedades terem avançado cultural e economicamente, também graças ao princípio liberal e protestante de que "os pensamentos são livres", o movimento neopentecostal ataca o Estado de opinião. O radicalismo de suas ideias contra as conquistas dessas sociedades abertas, como a abolição da pena de morte, a autodeterminação da mulher e o respeito aos direitos das minorias é difamado como uma suposta "ideologia de gênero" que pretende destruir a família e a moral.

Seus votos fizeram pesar a balança para o lado da recusa do acordo de paz na Colômbia em 2016. Acabar com uma guerra fratricida para salvar vidas pareceu pesar menos que o princípio de retaliação "olho por olho, dente por dente".

E, enquanto as escolas e universidades na América Latina têm de pagar impostos prediais, as igrejas estão isentas de qualquer contribuição, pelo menos na Colômbia, onde até 2017 havia 750 colégios públicos – contra 3.500 igrejas neopentecostais. A recepção diária de dízimos forma a base do poder econômico, convertido em poder político, que, graças a uma agenda moralizadora, está conquistando a política na América Latina.

O teólogo alemão e pastor luterano Thomas Gandow adverte que muitos pregadores neopentecostais atentam contra o espírito do mesmo protestantismo que defendem, que não pode ser expressado com fanatismo, "porque o espírito do protesto não pode ser outro senão o da liberdade". O resto é retrocesso.



(Tradução de Letácio Jansen; 2018)



(Ilustração: sentado em um trono de fogo, Satanás devora uma alma danada, detalhe de mosaicos do século XIII que adornam o Batistério de Florença, Itália)

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

NÃO ME NEGUES, de Mary Castilho


Não me negues a fruta do reino

doce

redonda

com grãos de ouro

no seu ventre fecundo.

Não me negues a faca

que há de partir

em metades iguais

que nos deliciarão

como merecem

dois viventes salvos

desta tragédia

que castigará os ímpios.

Não me negues o sumo

da fruta colhida

na tarde silente

que me afasta dos homens

enclausurados

com medo

dos sortilégios ciganos

sem agonia

por merecer-te.

 

(Há um porto a cada noite de abril)

 

(Ilustração: escultura de Henry Moore (1898-1986): reclining figure)

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

O ETERNO RETORNO DO LIVRO, de Gilles Lapouge

 


Naquela noite, como não conseguia dormir, fui a Caracórum, na Mongólia. Não foi como ir à casa do vizinho, principalmente porque Caracórum desapareceu há séculos. Onde existiu a cidade, hoje só existe areia. Felizmente, eu tinha O Livro das Maravilhas, de Marco Polo. Bastou virar umas páginas para ir ao século 12 e me deparar com milhares de funcionários, soldados de capacete pontudo, artesãos usando bonés com a cor amarela, vermelha ou azul correspondente a seu ofício, mulheres tímidas e provocantes, dromedários, cachorros, porcos, cavaleiros, trovadores, bandos de monges com túnicas cor de açafrão. Passeei por duas horas. Em seguida, fechei meu Marco Polo e dormi.

Um livro é uma usina, a menor de todas, mas não há nada mais forte do que essa coisinha. Perto do livro, Volta Redonda ou Cabo Canaveral são frágeis, pequeninos, uma brincadeira. Já o livro, ou o pergaminho, ou o in-fólio, se comparados a elas são verdadeiros hércules.

Guarde-se um livro de poesias num sótão, num porão, numa urna. Esqueça-se da situação por alguns milênios, tempo em que dez impérios desaparecem e centenas de milhares de humanos nascem e morrem. Voltando ao local, encontraremos tudo coberto de detritos e poeira. Mas, ao soprar o pó, começa-se a ouvir ruídos tênues, como suspiros. É o livro que renasce. Pistões e bielas põem-se a funcionar. Lembra um coração que volta a pulsar. O livro é um relógio em que os deuses informam as horas. Remontado o pequeno mecanismo, a morte desaparece.

Essa estranha usina não se contenta em sobreviver. Aproveita seus longos sonos para instalar novos programas no disco rígido. A Odisseia ou a Ilíada podem ser as mesmas do tempo da Grécia antiga, mas foram enriquecidas com sentidos antes desconhecidos, ganharam melodias secretas. O livro jamais descansa. Na biblioteca ou na poeira, os anos passam por ele como sonhos, mas, indiferente, ele segue seu caminho. Resiste a tudo – aos séculos, aos leitores, aos críticos, aos que escrevem prefácios. Sai sempre vencedor. Alimenta-se das artimanhas do tempo.

Quando criança, eu colhia limões para fazer tinta transparente, a “tinta invisível”. Escrevia poemas com essa tinta. Com o papel exposto ao calor, os poemas surgiam do vazio. Depois, voltavam a desaparecer lentamente – os primeiros volumes de minhas “obras completas” não seriam nunca lidos. Mas isso não me assustava. Desde muito pequeno, sabia que as palavras, uma vez escritas, continuam a executar nas sombras seu teatro mágico.

Há muito não uso essa tinta invisível. Sua familiaridade, porém, deixou marcas em meu espírito. Atribuo a ela meu gosto pelo palimpsesto. E o que é um palimpsesto? Voltemos à Idade Média. Um escriba redige textos. Um dia, ele constata que não há mais pergaminhos no convento. Pega então um pergaminho usado, raspa seu conteúdo e, no pergaminho de novo virgem, escreve um novo texto.

Essa técnica era usada primeiramente para suprir a penúria de pergaminhos ou de velinos (pergaminhos mais finos, feitos de couro de bezerro). Mas também permitia censurar. Na guerra teológica, o palimpsesto era uma arma. Para abrir espaço aos grandes textos cristãos (Evangelhos, Pais da Igreja, Salmos, etc), apagavam-se do pergaminho textos originais que pudessem ser considerados perigosos, mandando-se para o inferno, ou seja, para o silêncio e a ausência, grandes autores pagãos – gregos, latinos e hereges em geral.

Os monges irlandeses do século 12, discípulos de São Columbano, eram eles próprios grandes santos. Do alvorecer à noite, no frio terrível dos conventos, copiavam os Evangelhos, os Cânticos, as Epístolas de São Paulo em pergaminhos antes ocupados por Cícero, Virgílio, Platão, Tácito ou Xenofonte. Algumas obras primas da Antiguidade desapareceram assim.

Na verdade, os textos destruídos ou expulsos não desaparecem. Mesmo lavados, raspados, ilegíveis, continuam lá. Mexem-se. Murmuram. Debaixo do discurso oficial está a voz desaparecida. Ela emerge balbuciante, embora às vezes incompreensível ou inaudível. Como não pensar aqui na psicanálise? Há em cada um de nós um discurso do inconsciente sufocado nas profundezas, que foi repelido ou apagado para dar lugar à fala autorizada do consciente. A psicanálise sabe como reencontrar e fazer ouvir essa palavra mutilada.

O mesmo ocorre com os livros. Por exemplo, dois discursos de Arquimedes, o Tratado dos Corpos Flutuantes e o Método e Teorema Mecânicos, foram escritos no século 10. Duzentos anos depois, um monge de Constantinopla, que estava sem pergaminho, lavou o texto de Arquimedes para escrever em seu lugar uma oração. Esse homem, inocentemente, infligiu uma terrível mutilação à Biblioteca do Mundo.

Mas no século 20, depois de oito séculos de vazio total, o discurso de Arquimedes e seus desenhos, dos quais não possuímos mais nenhum exemplar, ressurgem das profundezas da noite graças a recursos científicos. Assim, podemos esperar que uma grande parte do pensamento humano que se perdeu no caminho possa ser salva. Na verdade, é do extravagante diálogo entre o texto que se permite ler livremente e o texto oculto, o texto proibido, que nasce a força e a nobreza do pensamento humano.

No Brasil, há cerca de 40 anos, vi um palimpsesto bizarro. Foi em Ouro Preto. Ali, no século 18, os escravos negros que trabalhavam nas minas de ouro às vezes preparavam fogos de artifício. Obtinham a pólvora raspando o salitre de cavernas. Em seguida, embalavam essa pólvora em partituras de música barroca que recolhiam do lixo. Bem mais tarde, já em nossa época, um músico teve a ideia de decifrar uma dessas velhas partituras reencontradas. Por acaso assisti a essa ressurreição. Foi comovente.

Em determinados momentos, a música era inaudível ou inexistia, substituída por silêncios. Eu me lembrava de que esses silêncios eram antigos, de 300 anos. No entanto, quase que se podia adivinhar sua forma.

O escritor russo Leon Tolstoi, autor de Guerra e Paz, em 1910, já com 82 anos, cansado da mulher e de uma parte dos 13 filhos, fugiu. Foi durante um inverno brutal. Ao deixar seu castelo em Isnaïa Poliana, Tolstoi teve uma bronquite. Queimando de febre, foi obrigado a descer do trem em uma estação, Astapovo. A notícia se espalhou. Como Tolstoi era a figura mais célebre do mundo, imediatamente afluiu a essa modesta estação uma horda de jornalistas, embaixadores, dignitários do czar. O chefe da estação cedeu o próprio quarto ao escritor. No pátio, a multidão cobrava notícias. A mulher de Tolstoi, Sophie, chegou e quis ver o marido. Tolstoi se recusou a vê-la. Fora, na neve, a multidão acompanhava a agonia do gênio. Tentava vislumbrar através dos vitrais embaçados pelo frio seus últimos instantes. Tolstoi, deitado, respirava penosamente. Com a ponta dos dedos, “escreveu” alguma coisa nos lençóis enrugados em que morria – seu último manuscrito, sua derradeira palavra antes de cruzar o portal do desconhecido. Era, porém, um manuscrito ilegível, inexistente, como a parte apagada de um palimpsesto. O que Tolstoi escreveu permanece oculto no nada.



(Estadão)


(Tradução de Roberto Muniz)



(Ilustração: Vanessa Bell: Lady with a Book, 1946; a pintora é irmã de Virginia Wolf)

sábado, 22 de fevereiro de 2025

NOME, de Marcelo Tapia


  

o Parthenon é um nome

intacto

de um objeto

em pedaços

o nome e a ideia

sobrepõem-se aos

cacos

do tempo

 

(Expirais; 2017)

 

(Ilustração: Philip Tsiaras - Parthenon)

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

FALA AOS MOÇOS, de Darcy Ribeiro

 


Sou um homem de causas. Vivi sempre pregando e lutando, como um cruzado, pelas causas que me comovem. Elas são muitas, demais: a salvação dos índios, a escolarização das crianças, a reforma agrária, o socialismo em liberdade, a universidade necessária. Na verdade, somei mais fracassos que vitórias em minhas lutas, mas isto não importa. Horrível seria ter ficado ao lado dos que nos venceram nessas batalhas.

Tudo que diz respeito ao humano, suas vidas, suas criações, me importam supremamente. Dentro do humano, o povo brasileiro, seu destino é o que mais me mobiliza. Nele, a ínvia indianidade brasileira, que consegue milagrosamente sobreviver. Mas, sobretudo, a massa de gente nossa, ainda em fusão, esforçando-se para florescer numa nova civilização tropical, mestiça e alegre.

Acho que aprendi isso, ainda muito jovem, com os antigos comunistas.

Imbatíveis em sua predisposição generosa de se oferecerem à luta, por qualquer causa justa, sem mais querer que o bem geral. Estou certo de que a dignidade, e até o gozo de viver que tenho, me vêm dessa atitude básica de combatente de causas impessoais. Tanto, que me atrevo a recomendar duas coisas aos jovens de hoje.

Primeiro, que não respeitem seus pais, porque estão recebendo, como herança, um Brasil muito feio e injusto, por culpa deles. Minha também, é claro. Segundo, que não se deixem subornar por pequenas vantagens em carreirinhas burocráticas ou empresariais pelo dinheirinho ou dinheirão que poderiam render.

Mais vale ser um militante cruzado, acho eu.

Vejo os jovens de hoje esvaziados de juventude, enquanto flama, combatividade e indignação. Deserdados do sentimento juvenil de solidariedade humana e de patriotismo e de orgulho por nosso povo.

Incapacitados para assumir as carências dos brasileiros como defeitos próprios e sanáveis de todos nós. Ignorantes de que o atraso, a fome e a pobreza só existem e persistem, entre nós, porque são lucrativos para uma elite infecunda e cobiçosa de patrões medíocres e de políticos corruptos.

Afortunadamente, podemos nos orgulhar de muitos jovens brasileiros que são o sémen de nosso povo sofredor. Sem eles, nossa Pátria estaria perdida. É indispensável, porém, ganhar a totalidade da juventude brasileira para si mesma e para o Brasil. O dano maior que nos fez a ditadura militar, perseguindo, torturando e assassinando aos jovens mais ardentemente combativos da última geração, foi difundir o medo, promover a indiferença e a apatia. Aquilo de que o Brasil mais necessita, hoje, é de uma juventude iracunda, que se encha de indignação contra tanta dor e tanta miséria. Uma juventude que não abdique de sua missão política de cidadãos responsáveis pelo destino do Brasil, porque sua ausência é imediatamente ocupada pela canalha.

Talvez eu veja tanto desencantamento, onde o que há é apenas o normal das coisas ou o sentimento do mundo que corresponde às novas gerações. Talvez seja assim, mas isso me desgosta muito. Desgosta, principalmente, porque sinto no fundo do peito que é obra da ditadura militar tamanha juventude abúlica, despolitizada e desinteressada de qualquer coisa que não corresponda ao imediatismo de seus interesses pessoais. É por isso que não me canso de praguejar e xingar, exaltado, dizendo e repetindo obviedades.

Sobretudo, quando falo à gente jovem em pregações sobre valores que considero fundamentais e que não ressoam neles como eu quisera.

Primeiro de tudo, o sentimento profundo de que esse nosso paísão descomunal e esse povão multitudinário, que temos e somos, não nos caiu ao acaso, nem nos veio de graça. É fruto e produto de séculos de lutas e sacrifícios de incontáveis gerações. O território brasileiro é do tamanho que é graças à obsessão portuguesa de fronteira, impressa neles por um milênio de resistência, para não serem absorvidos pela Espanha, como ocorreu com todos os outros povos ibéricos. Desde os primeiros dias de nosso fazimento estava o lusitano preocupadíssimo em marcar posses, gastando nesse esforço gerações de índios e caboclos que nem podiam compreender que nos faziam.

Meu apego apaixonado pela unidade nacional começa pela preservação desse território como a base física em que nosso povo viverá seu destino. Encho-me da mais furiosa indignação contra quem quer que manifeste qualquer tendência separatista. Acho até que não poderia nunca ser um ditador, porque mandaria fuzilar quem revelasse tais pendores.

Outro valor supremo, e até sagrado, que quero comunicar à juventude, é o sentimento de responsabilidade pelo atroz processo de fazimento de nosso povo, que custou a vida e a felicidade de tantos milhões de índios caçados nas matas e de negros trazidos de África, para serem desgastados no moinho brasileiro de gastar gente. Nós viemos dos zés-ninguém gerados pela índia prenhada pelo invasor ou pela negra coberta pelo amo ou pelo feitor. Aqueles caboclos e mulatos, já não sendo índios nem africanos e não sendo também admitidos como europeus, caíram na ninguendade. A partir desta carência de identificação étnica é que plasmaram nossa identidade de brasileiros.

Fizeram-no um século depois, quando, através dos insurgentes mineiros, tomamos consciência de nós brasileiros como um povo em si, aspirando existir para si.

Surgimos, portanto, como um produto “inesperado e indesejado do empreendimento colonial que só pretendia ser uma feitoria. A empresa Brasil se destinava era a prover o açúcar de adoçar boca de europeu, o ouro de enricá-los e, depois, minerais e quantidades de gêneros de exportação.

Éramos, ainda somos, um proletariado externo aqui posto para servir ao mercado mundial. Criá-lo foi a façanha e a glória das classes dominantes brasileiras, cujo empenho maior consistia, e ainda consiste, em nos manter nessa condição.

Foi sobre esse Povo-Nação, já constituído e levado à independência com milhões de caboclos e mulatos, que se derramou a avalancha européia quando seus trabalhadores se tornaram descartáveis e disponíveis para a exportação como imigrantes. Os melhores deles se identificaram com o povo antigo da terra e até se tornaram indistinguíveis de nós, por sua mentalidade, língua, cultura e identificação nacional. Ajudaram substancialmente a modernizar o país e a fazê-lo progredir, gerando uma prosperidade ampliada, a inda que muito restrita, e que beneficiou principalmente aos recém-vindos.

É de lamentar, porém, que vez por outra surja, entre eles, uns idiotinhas alegando orgulhos de estrangeiridade. O fazem como se isso fosse um valor, mas principalmente porque estão predispostos seja a quebrar a unidade nacional em razão de eventuais vantagens regionais, seja a retornarem eles mesmos para outras terras, como fizeram seus avós. Afortunadamente, são uns poucos. Com um pito se acomodam e se comportam.

Compreendem, afinal, que não há nesse mundo glória maior que participar da criação, aqui, da civilização bela e justa que havemos de ser.

Tal como ocorreu com nossos antepassados, hoje, o Brasil é nossa tarefa, essencialmente de vocês, meus jovens. A história está a exigir de nós que enfrentemos alguns desafios cruciais que, em vão, tentamos superar há décadas. Primeiro que tudo, reformar nossa institucionalidade para criar aqui uma sociedade de economia nacional e socialmente responsável, a fim de alcançarmos uma prosperidade generalizada a todos os brasileiros. O caminho para isso é desmonopolizar a propriedade da terra, tirando-a das mãos de uma minoria estéril de latifundiários que não plantam nem deixam plantar. Eles são responsáveis pelo êxodo rural e o crescimento caótico de nossas cidades e, conseqüentemente, pela Fome do povo brasileiro. Fome absolutamente desnecessária, que só existe e só se amplia porque se mantém uma ordem social e um modelo econômico compostos para enriquecer os ricos, com total desprezo pelos direitos e necessidades do povo.

Simultaneamente, teremos de derrubar o corpo de interesses que nos quer manter atados, servilmente, ao mercado mundial, exigindo privilégios aos estrangeiros e a privatização das empresas que dão ser e substância à economia nacional, para manter o Brasil como o paraíso dos banqueiros. Não se trata de criar aqui nenhuma economia autárquica, mesmo porque nascemos no mercado mundial e só nele sobreviveremos.

Trata-se é de deixar de ser um reles proletariado externo para ser um povo que exista para si mesmo, ocupado primacialmente em promover sua própria felicidade.

Essas lutas só podem ser travadas com chance de vitória desmontando a ordem política e o sistema econômico vigentes. Seu objetivo expresso é preservar o latifúndio improdutivo e aprofundar a dependência externa para manter uma elite rural esfomeadora e enriquecer um empresariado urbano servil a interesses alheios. Todos eles estão contentes com o Brasil tal qual é. Se não anularmos seu poderio, eles farão do Brasil do futuro o país que corresponda aos interesses dos países que nos exploram.

Nestas singelas proposições se condensa para mim o que é substancial da ideologia política que faz dos brasileiros, brasileiros dignos. Tais são o zelo pela unidade nacional, o orgulho de nossa identidade de povo que se fez a si mesmo pela mestiçagem da carne e do espírito; a implantação de uma sociedade democrática onde imperem o direito e a justiça para todos; a democratização do acesso à terra para quem nela queira morar ou cultivar; a criação de uma economia industrial autônoma como o são todas as nações desenvolvidas.

Eis o que peço a cada jovem brasileiro: repense estas ideias, reavalie estes sentimentos e assuma, afinal, uma posição clara e agressiva no quadro político brasileiro.





(Carta: falas, reflexões, memórias. Brasília, 1994)


(Ilustração: Bob Dylan - The Brazil Series)

domingo, 16 de fevereiro de 2025

BELZEBUTH / BELZEBUTH, de Teresa Wilms Montt

 





Mi alma, celeste columna de humo, se eleva hacia

la bóveda azul.

Levantados en imploración mis brazos, forman la puerta

de alabastro de un templo.

Mis ojos extáticos, fijos en el misterio, son dos lámparas

de zafiro en cuyo fondo arde el amor divino.

Una sombra pasa eclipsando mi oración, es una sombra

de oro empenachado de llamas alocadas.

Sombra hermosa que sonríe oblicua, acariciando los sedosos

bucles de larga cabellera luminosa.

Es una sombra que mira con un mirar de abismo,

en cuyo borde se abren flores rojas de pecado.

Se llama Belzebuth, me lo ha susurrado en la cavidad

de la oreja, produciéndome calor y frío.

Se han helado mis labios.

Mi corazón se ha vuelto rojo de rubí y un ardor de fragua

me quema el pecho.

Belzebuth. Ha pasado Belzebuth, desviando mi oración

azul hacia la negrura aterciopelada de su alma rebelde.

Los pilares de mis brazos se han vuelto humanos, pierden

su forma vertical, extendiéndose con temblores de pasión.

Las lámparas de mis ojos destellan fulgores verdes encendidos

de amor, culpables y queriendo ofrecerse a Dios; siguen

ansiosos la sombra de oro envuelta en el torbellino refulgente

de fuego eterno.

Belzebuth, arcángel del mal, por qué turbar el alma

que se torna a Dios, el alma que había olvidado las fantásticas

bellezas del pecado original.

Belzebuth, mi novio, mi perdición...



Tradução de Sandra Santos:



A minha alma, celeste coluna de fumo, eleva-se até

à abóbada azul.

Levantados, implorando, os meus braços, formam a porta

de alabastro de um templo.

Os meus olhos extáticos, fixos no mistério, são duas lâmpadas

de safira em cujo fundo arde o amor divino.

Uma sombra passa eclipsando a minha oração, é uma sombra

de ouro ornado de chamas impetuosas.

Sombra formosa que sorri oblíqua, acariciando os sedosos

caracóis dos enormes cabelos luminosos.

É uma sombra que observa com um olhar de abismo,

em cuja margem se abrem as flores rubras de pecado.

Chama-se Belzebuth, sussurrou-mo na cavidade

da orelha, produzindo-me calor e frio.

Gelaram-me os lábios.

O meu coração converteu-se rubro de rubi e um ardor de frágua

me queima o peito.

Belzebuth. Passou Belzebuth, desviando a minha oração

azul até à negrura delicada da sua alma rebelde.

Os pilares de meus braços converteram-se humanos, perdem

a sua forma vertical, estendendo-se com tremores de paixão.

As lâmpadas de meus olhos reluzem fulgores verdes acesos

de amor, culpados e devotos a Deus; seguem

ansiosos a sombra de ouro envolta no torvelinho refulgente

de fogo eterno.

Belzebuth, arcanjo do mal, porquê turvar a alma

que se volta para Deus, a alma que havia esquecido as fantásticas

belezas do pecado original.

Belzebuth, o meu noivo, a minha perdição…



(Ilustração: William Blake: Paradise Lost - The Temptation andFall of Eve)

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

CIVILIZAÇÃO NA GRAÇA, de Luís de Sttau Monteiro


Não há nada como a gente ler os jornais para andar à moda e crescer depressa sim porque isto cá na Graça está velho como burro e quem manda é a velharia que ainda vive como se vivia no tempo do rei D. Afonso Henriques que era aquele que andava de espada na cintura para o caso de encontrar mouros na rua mas é claro que não se pode viver assim e que isto não é vida para ninguém e que se a gente não muda isto daqui a pouco os turistas deixam de vir à Graça e lá se vai o pilim que a gente ganha com o turismo quem fica a perder com isso é o sr. Lopes coitadinho que fuma cigarros feitos de beatas e que anda sempre atrás de estrangeiros para apanhar as beatas deles porque diz que elas têm um gostinho bestial que disfarça bestialmente o gosto dos cigarros pois eu resolvi ler os jornais para modernizar a Graça e fazer com que ela fique como Lisboa que é uma cidade grande e bestial tão boa como as que há lá fora mas que é portuguesa para conseguir isso fui até à paragem dos eléctricos que vão para a Baixa que é o sítio onde as pessoas deitam fora os jornais que compram para ler na viagem mas não julguem que é fácil apanhar lá jornais não é não senhor eu para arranjar alguns tive de andar à pancada com o filho da mulher das castanhas que está lá de serviço todo o dia a arranjar papel para a Mãe embrulhar as castanhas um jornal que dava muito gosto às castanhas era o Diário de Lisboa mas agora têm uma maneira nova de o fazer que não dá gosto nenhum palavra que é preciso não ter respeito nenhum pelos amadores de castanhas enfim fui até lá e consegui dois ou três jornais para ver como era a vida nos lugares mais bestiais de Lisboa a primeira notícia que vi foi uma duns que queimaram uma rapariga com pontas de cigarros por ela ter dois namorados e que se esses dos cigarros vierem até à Graça queimar as raparigas que têm dois namorados têm trabalho até ao fim da vida e nunca mais têm de dar os nomes no desemprego eu conheço uma que até tem quatro sim senhor quatro um que se chama António outro que se chama João outro que se chama Manuel e outro que é careca mas não sei o nome dele enfim como isso de queimar as pessoas que namoram muito fica bem às grandes cidades resolvi queimar um que anda cá chamado Alberto que não namora ninguém mas que é parvo esse Alberto é já a quarta vez que não me dá um rebuçado apesar de andar sempre com os bolsos cheios e por isso merece umas queimaduras e até merece ser afogado mas isso aqui na Graça é muito difícil porque o lago está à vista de toda a gente e se calhar é proibido afogar pessoas digo isto porque nesta terra é tudo proibido de maneira que os proibidores também são capazes de já ter proibido afogar pessoas enfim chamei a minha amiga Crista que é muito boa para estas coisas porque diz sempre que sim a tudo o que eu quero fazer expliquei-lhe o meu plano de queimar pessoas para modernizar a Graça e fomos ambas à caça de beatas o pior foi que encontrámos logo o sr. Lopes que começou aos berros a dizer que não tínhamos o direito de andar às beatas porque ele é que fumava não éramos nós e que os cigarros fazem cancros e mais isto e mais aquilo para o acalmar tivemos de lhe explicar que não queríamos as beatas para fumar que só as queríamos para queimar o Alberto e ele lá se calou a olhar para nós como se nunca tivesse visto ninguém e depois fugiu pela rua acima o taradinho que quem o visse até era capaz de julgar que éramos polícias mas isso é natural porque aqui a Graça anda muito atrasada e as pessoas ainda não sabem a diferença entre ser moderna e ser antiga enfim em menos de meia hora apanhámos uma data de beatas o sítio melhor é à porta da igreja porque como é proibido fumar lá dentro os homens que lá chegam a fumar têm de deitar os cigarros fora e alguns chegam a deitar fora os cigarros muito aproveitáveis o que é pena é irem tão poucos homens à igreja aqui na Graça é o que eu digo a Graça anda bestialmente atrasada em tudo até mesmo nestas coisas de religião que tanta falta fazem a quem precisa de beatas depois como o Alberto anda na escola primária sim porque apesar de já ter doze anos o palerma ainda não conseguiu tirar a quarta classe fomos até lá e escondemo-nos atrás do muro à espera de que acabassem as aulas e escondemos os cigarros daí a um bocado apareceu o Alberto e eu chamei-o e mostrei-lhe um rebuçado que tinha pedido emprestado à Crista a ver se ele vinha e ele como é burro que nem uma porta veio logo a correr e a Crista disse-lhe Abre a boca e fecha os olhos e o palerma obedeceu é claro que lhe meti logo na boca um cigarrinho aceso que foi uma limpeza e ele fechou a boca queimou-se mas é bem feito porque só um burro é que fecha a boca com um cigarro aceso lá dentro e desatou aos berros que nem um doido começámos a fazer-lhe festas e a perguntar o que é que ele tinha e se não tinha gostava dos rebuçados de fogo sim porque se há rebuçados de licor porque é que não há-de haver rebuçados de fogo? e dissemos-lhe que o melhor era ele sentar-se até aquilo lhe passar e com isto e com aquilo levámo-lo até ao degrau duma porta eu pus-lhe outra beata debaixo do sim senhor de maneira que quando ele se sentou deu outro berro e outro salto sem razão nenhuma que essa beata até era americana e os cigarros americanos são bestialmente chiques e levou a mão ao sim senhor a ver o que é que tinha e enfiei-lhe outro cigarro na mão e ele sem saber o que era apertou-a e deu um berro tão grande que houve quem o ouvisse é claro que as pessoas que o ouviram vieram logo a correr ver o que estava a acontecer sim porque aqui na Graça as pessoas são bestialmente bisbilhoteiras e querem saber tudo o que se passa nessa altura eu e a Crista resolvemos ir-nos embora por a Graça já estar suficientemente civilizada para um dia e fomos mesmo no meio disto tudo o Alberto sofreu um bocado lá isso é verdade mas para haver civilização alguém tem de sofrer e antes ele que eu.




(A Mosca, 23 Janeiro 1972; Redacções da Guidinha, 2003)



(Ilustração: Bairro da Graça: Lisboa, Portugal; foto da internet, autoria não identificada)

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

DE PROFUNDIS / DE PROFUNDIS, de Georg Trakl

 


 

Es ist ein Stoppelfeld, in das ein schwarzer Regen fällt.

Es ist ein brauner Baum, der einsam dasteht.

Es ist ein Zischelwind, der leere Hütten umkreist.

Wie traurig dieser Abend.

 

Am Weiler vorbei

Sammelt die sanfte Waise noch spärliche Ähren ein.

Ihre Augen weiden rund und goldig in der Dämmerung,

Und ihr Schoß harrt des himmlischen Bräutigams.

 

Bei der Heimkehr

Fanden die Hirten den süßen Leib

Verwest im Dornenbusch.

 

Ein Schatten bin ich ferne finsteren Dörfern.

Gottes Schweigen

Trank ich aus dem Brunnen des Hains.

 

Auf meine Stirne tritt kaltes Metall

Spinnen suchen mein Herz.

Es ist ein Licht, das in meinem Mund erlöscht.

 

Nachts fand ich mich auf einer Heide,

Starrend von Unrat und Staub der Sterne.

Im Haselgebüsch

Klangen wieder kristallne Engel.

 

(1912)

 

Tradução de Cláudia Cavalcanti:

 

Há um restolhal, onde cai uma chuva negra.

Há uma árvore marrom, ali solitária.

Há um vento sibilante, que rodeia cabanas vazias.

Como é triste o entardecer

 

Passando pela aldeia

A terra órfã recolhe ainda raras espigas.

Seus olhos arregalam-se redondos e dourados no crepúsculo,

E seu colo espera o noivo divino.

 

Na volta

Os pastores acharam o doce corpo

Apodrecido no espinheiro.

 

Sou uma sombra distante de lugarejos escuros.

O silêncio de Deus

Bebi na fonte do bosque.

 

Na minha testa pisa metal frio

Aranhas procuram meu coração.

Há uma luz, que se apaga na minha boca.

 

À noite encontrei-me num pântano,

Pleno de lixo e pó das estrelas.

Na avelãzeira

Soaram de novo anjos cristalinos.

 

(1912)

 

 

(De profundis e outros poemas)

 

(Ilustração: Félix Valloton - Noite no Loire, 1923)