quarta-feira, 14 de maio de 2025

PORTUGAL / PORTUGAL, de Miguel de Unamuno


     

Del Atlántico mar en las orillas

desgreñada y descalza una matrona

se sienta al pié de sierra que corona

triste pinar. Apoya en las rodillas

los codos y en las manos las mejillas

y clava ansiosos ojos de leona

en la puesta del sol. El mar entona

su trágico cantar de maravillas.

Dice de luengas tierras y de azares

mientras ella sus piés en las espumas

bañando sueña en el fatal imperio

que se le hundió en los tenebrosos mares,

y mira como entre agoreras brumas

se alza Don Sebastián rey del misterio.



Tradução de José Bento:



Do atlântico mar na praia areosa

uma matrona descalça e desgrenhada

senta-se ao pé de uma serra coroada

por triste pinheiral. Nos joelhos pousa



os cotovelos e nas mãos a ansiosa

face, e olhos de leoa desconfiada

crava no poente; o mar dá a toada

trágica, de altos feitos sonorosa.



Fala de vastas terras e de azares

enquanto ela, seus pés nessas espumas

banhando, sonha no fatal império



que se sumiu nos tenebrosos mares,

e olha como entre agoureiras brumas

se ergue D. Sebastião, rei do mistério.



Salamanca, 28 IX 1910



(Antologia Poética, 2003)


(Ilustração: Cristóvão de Morais - D. Sebastião O Desejado, 1571)

domingo, 11 de maio de 2025

O MILITAR QUE VIA TUDO A DOBRAR, de Joseph Heller

 



Yossarian devia a sua boa saúde ao exercício, ao ar puro, ao trabalho de equipa e ao bom desportivismo, e fora para se esquivar a tudo isso que descobrira o hospital. Quando o oficial de educação física do Campo Lowery ordenou que destroçassem para a calistenia, o soldado raso Yossarian, ao invés, apresentou-se no dispensário, com uma dor no lado direito.

– Põe-te a andar – indicou o médico de serviço, concentrado num problema de palavras cruzadas.

– Não o podemos mandar pôr-se a andar – acudiu um cabo. – Saiu uma nova directiva acerca das afecções abdominais. Temos de manter o paciente em observação durante cinco dias, porque morreram muitos depois de os mandarmos porem-se a andar.

– Está bem – resmungou o médico. – Mantenham-no em observação durante cinco dias e depois que se ponha a andar.

Despiram Yossarian e levaram-no para uma enfermaria, onde se sentia feliz quando ninguém das proximidades roncava. De manhã, um interno inglês jovem e solícito assomou à entrada para lhe perguntar pelo fígado.

– Desconfio que é o apêndice que me incomoda – esclareceu Yossarian.

– O apêndice não serve – advertiu o outro, em tom autoritário revestido de pedantismo. – Se estiver inflamado, podemos extraí-lo e você regressa ao activo sem demora. Mas se se queixar do fígado, pode iludir-nos durante semanas. O fígado representa um vasto e hediondo mistério, para nós. Se alguma vez comeu fígado frito, compreende o que quero dizer. Os estudos mais recentes permitem-nos concluir que ele existe de facto e fazer uma ideia geral da sua acção, quando funciona devidamente. Para além disso, ainda navegamos nas trevas. No fundo, o que é um fígado? O meu pai, por exemplo, morreu de cancro no fígado e não esteve doente uma única vez até ao momento em que isso o matou. Nunca tinha sentido a mínima dor. Até certo ponto, não fiquei muito contente, porque não o podia ver. Manifestava um apetite sexual voraz pela minha mãe, sabe.

– Que faz um médico inglês aqui?

– Amanhã explico-lhe, quando vier observá-lo – declarou, com uma risada. – E largue esse saco de gelo, antes que morra de pneumonia.

Yossarian não o tornou a ver. Era uma das coisas agradáveis acerca de todos os médicos dos hospitais: os pacientes nunca os viam segunda vez. Entravam, saíam e desapareciam para sempre. Em lugar do interno inglês, no dia seguinte apareceu um grupo de médicos que ele nunca vira, que lhe perguntaram pelo apêndice.

– Não tenho nada no apêndice – informou ele. – O médico de ontem disse que se tratava do fígado.

– Talvez seja o fígado – admitiu o oficial de cabelos brancos que chefiava o grupo. – Que indica a contagem dos glóbulos vermelhos?

– Não foi feita nenhuma.

– Então, tratem disso imediatamente. Não podemos correr riscos com um paciente nesta condição. Temos de nos proteger, para a eventualidade de morrer. – Inscreveu algumas palavras na pequena prancheta aos pés da cama e dirigiu-se a Yossarian. – Entretanto, não largues o saco de gelo. Lembra-te desta importante recomendação.

– Não tenho saco de gelo.

– Então, pede-o. Tem de haver um por aí, algures. E se a dor se tornar insuportável, previne.

Transcorridos dez dias, outro grupo de médicos procurou Yossarian com más notícias: estava de perfeita saúde e tinham de lhe dar alta. Foi salvo no momento crítico por um paciente na correnteza de camas em frente, que começou a ver tudo a dobrar. Sem aviso prévio, sentou-se na cama e bradou:

– Vejo tudo a dobrar!

Uma enfermeira soltou um uivo de pavor e um servente desmaiou, enquanto acudiam médicos de todos os lados, munidos de seringas, lanternas, martelos de borracha e pequenas tinas metálicas, além de um carro carregado de instrumentos. Não havia espaço suficiente em torno do paciente para se instalarem, pelo que houve necessidade de se colocarem em fila, pois o contingente aumentou com a incorporação de alguns especialistas, ouvindo-se protestos de impaciência provenientes dos retardatários, receosos de que não existisse nada de interessante para observar quando chegasse a sua vez. Um coronel de fronte larga e óculos de aros de tartaruga não tardou a elaborar um diagnóstico.

– Só pode ser meningite – declarou em tom enfático, fazendo sinal aos outros para que retrocedessem –, embora não exista nenhuma razão de peso que o indique.

– Nesse caso, porque optou pela meningite? – quis saber um major, com um leve sorriso. – Porque não nos contentamos com nefrite aguda?

– Porque sou especialista de meningites e não de nefrites agudas. E garanto que não vou ceder a famintos de rins como vocês sem luta renhida. Aliás, fui o primeiro a aparecer.

Por fim, chegaram a um consenso. Admitiram que não faziam a menor ideia do que sofria o militar que via tudo a dobrar e levaram-no para um quarto particular ao fundo do corredor, ao mesmo tempo que colocavam todos os outros ocupantes da enfermaria em situação de quarentena.

O Dia de Acção de Graças [1] chegou e terminou sem problemas, enquanto Yossarian continuava no hospital. O único inconveniente foi o peru ao jantar, e mesmo assim estava muito saboroso. Foi o Dia de Acção de Graças mais racional da sua vida, e ele prometeu a si próprio passar todos os futuros na atmosfera tranquila de um hospital. Faltou à promessa logo no ano seguinte, pois passou-o num quarto de hotel, entretido em diálogo intelectual com a mulher do tenente Scheisskopf, que envergava o uniforme de Dons Duz para o efeito e admoestou maliciosamente Yossarian por se revelar cínico e pouco respeitador do Dia de Acção de Graças, embora ela também não fosse uma crente fanática.

– Talvez seja tão ateia como tu – especulou, condescendente. – Apesar disso, penso que todos temos muitas coisas pelas quais nos mostremos gratos, e não devemos envergonhar-nos de o demonstrar.

– Indica uma coisa pela qual me deva mostrar grato –desafiou ele, sem interesse especial.

– Bem... – A mulher do tenente Scheisskopf pareceu cismar por um momento. – Eu, por exemplo.

– Deixa-te de brincadeiras.

– Não te sentes grato por minha causa? – inquiriu, arqueando as sobrancelhas. – Não sou obrigada a ir para a cama contigo, como sabes – proclamou com dignidade glacial. – O meu marido tem todo um esquadrão cheio de cadetes da aviação que deliravam por poderem ir para a cama com a mulher do seu comandante, só para enaltecerem o ego.

Yossarian decidiu mudar de assunto.

– Estás a mudar de assunto – acusou diplomaticamente.– Aposto que sou capaz de mencionar duas coisas que me entristecem por cada uma que te alegra. – Mostra-te grato por me possuíres – insistiu ela.

– E estou, podes crer, mas também me entristece o facto de não poder voltar a possuir Doris Duz. Ou as centenas de outras raparigas que verei e desejarei na minha breve vida e não poderei levar para a cama.

– Mostra-te grato por teres saúde.

– E amargurado por não a ter eternamente.

– Mostra-te grato por estares vivo.

– E furioso por ter de morrer.

– As coisas podiam ser muito piores.

– E muitíssimo melhores – afirmou ele, acalorado.

– Só indicas uma coisa – protestou ela. – Disseste que indicarias duas por cada uma das minhas.

– E não me venhas com a fábula de que Deus escreve direito por linhas tortas. Não vejo o que há de extraordinário nisso. Quanto a mim, não escreve absolutamente nada. Entretém-se a brincar. Ou então esqueceu-se de nós por completo. É desse tipo de Deus que vocês falam: um rústico simplório, um campónio desajeitado, desmiolado e presumido. Que reverência se pode sentir por um ser supremo que considera necessário incluir fenómenos como o flegma e a cárie dentária no Seu sistema de criação divina? Que confusão lhe invadia os miolos quando privou do poder pessoas veneráveis e idosas para controlar os seus movimentos? Por que carga de água criou a dor?

– A dor? – repetiu a mulher do tenente Scheisskopf, pegando na palavra vitoriosamente. – A dor é um sintoma útil. Uma advertência dos perigos do corpo.

– E quem criou os perigos? – Yossarian soltou uma risada cáustica. – Não haja dúvida de que se mostrou caritativo quando nos concedeu a dor! Porque não se serviu antes de uma campainha de porta para nos prevenir ou de um dos seus coros celestiais? Ou de um sistema de tubos de néon azuis e vermelhos colocados no meio da testa de cada pessoa? Qualquer fabricante de máquinas de discos que se preza faria melhor. Porque não Ele?

– Não te parece que as pessoas ficavam ridículas com luzes coloridas na testa?

– Achas que têm melhor aspecto contorcendo-se com dores ou tornadas estúpidas com morfina? Que colossal e imortal trapalhão! Quando consideramos a oportunidade e poder de que dispôs para efectuar um trabalho excelente e vemos com o que se saiu, a Sua incompetência é quase inacreditável. Nota-se bem que nunca teve de trabalhar para ganhar a vida. Nenhum homem de negócios digno desse nome incluiria um trapalhão desses na sua folha de salários, nem mesmo para paquete!

A mulher do tenente Scheisskopf empalidecera de incredulidade e fitava-o com uma expressão de alarme.

– Não te aconselho a falares assim d’Ele, querido – advertiu numa inflexão suave e hostil. – Pode castigar-te.

– Não me está já a castigar? Não podemos permitir que se safe. Não, senhor! Não podemos permitir que se safe com toda a amargura que nos causou. Um dia, hei-de obrigá-Lo a pagar tudo junto. E sei quando. No dia do Juízo Final. Sim, nessa altura estarei suficientemente perto para agarrar aquele labrego pelo pescoço...

– Cala-te! Cala-te! – bradou a mulher do tenente Scheisskopf, batendo-lhe com os punhos na cabeça. – Pára com isso!

Yossarian refugiou-se atrás do braço levantado, enquanto ela continuava a dar livre curso à fúria feminina durante uns segundos, até que lhe segurou os pulsos com firmeza e obrigou-a a reclinar-se na cama.

– Por que diabo estás tão abespinhada? – perguntou, divertido. – Julgava que não acreditavas em Deus.

– E não acredito – soluçou ela. – Mas o Deus no qual não acredito é bondoso, justo, misericordioso e não o homem estúpido e mal-intencionado que tu pintas.

– Muito bem. – Ele soltou-lhe os pulsos e deu uma gargalhada. – Vamos instaurar um pouco mais de liberdade religiosa entre nós. Tu não acreditas no Deus que quiseres e eu não acredito no Deus que quiser. Combinado?

Era o Dia de Acção de Graças mais ilógico de que conseguia recordar-se, e os seus pensamentos regressaram com nostalgia à alciónica quarentena de catorze dias no hospital, no ano anterior. No entanto, esse idílio também terminara com uma nota trágica: continuava de boa saúde no final da quarentena e anunciaram-lhe que ia ter alta e devia voltar para a guerra. Quando ouviu a má notícia, sentou-se na cama e vociferou:

–Vejo tudo a dobrar!

Tornou a estabelecer-se pandemónio na enfermaria. Os especialistas acudiram aceleradamente de todos os lados e envolveram-no num círculo de escrutínio tão apertado, que Yossarian notava o alento húmido das diferentes entranhas incidindo desconfortavelmente em cada centímetro quadrado do seu corpo.

Esquadrinharam-lhe os olhos e os ouvidos com focos luminosos de largura milimétrica, atacaram-lhe as pernas e os pés com martelos de borracha e forquetas vibratórias, extraíram-lhe sangue das veias e mostraram-lhe diversos objectos para ver na periferia do seu campo visual.

O chefe da equipa de médicos era um indivíduo de aspecto digno e solícito, que ergueu um dedo diante do nariz de Yossarian e perguntou:

– Quantos dedos vês?

– Dois.

– E agora? – volveu, mostrando dois.

– Dois.

– E agora? – Desta vez, não mostrou nenhum.

– Dois – persistiu Yossarian.

O semblante do médico alterou-se num largo sorriso.

– Com a breca! – exclamou, radiante. – Ele vê de facto tudo a dobrar!

Transferiram Yossarian para uma maca e levaram-no para o quarto onde se encontrava o outro militar que via tudo a dobrar, após o que colocaram os restantes ocupantes da enfermaria em regime de quarentena por mais catorze dias.

– Vejo tudo a dobrar! – bradou o militar que via tudo a dobrar, quando introduziram Yossarian no quarto.

– Vejo tudo a dobrar! – redarguiu este último no mesmo tom, piscando o olho.

– As paredes! As paredes! Afastem as paredes!

– As paredes! As paredes! Afastem as paredes!

Um dos médicos fingiu que empurrava uma das paredes e perguntou, solícito:

– Está bem assim?

O militar que via tudo a dobrar assentiu com uma inclinação de cabeça e afundou-a no travesseiro, enquanto Yossarian o imitava, contemplando-o com profunda humildade e admiração. Não lhe restavam dúvidas de que se achava em presença de um mestre. O seu talentoso companheiro de quarto merecia obviamente ser estudado e emulado. Durante a noite, o talentoso companheiro de quarto morreu e ele decidiu que não merecia a pena seguir-lhe o exemplo àquele extremo.

– Vejo tudo a dobrar! – apressou-se a gritar.

Acudiu novo grupo de especialistas, acompanhados de toda a bateria de instrumentos, e o chefe apressou-se a perguntar:

– Quantos dedos vês? – E ergueu um.

– Um.

– E agora? – Mostrou dois.

– Um.

– E agora? – Exibiu três.

– Um.

Voltou-se para os colegas, com uma expressão de assombro.

– Só vê uma coisa! Conseguimos que melhorasse muito!

– E não era sem tempo – anunciou o médico com o qual Yossarian se encontrou a sós a seguir, um homem constituído como um torpedo, com as faces por barbear e um maço de cigarros no bolso do peito da bata branca, que fumava sem interrupção, encostado à parede. – Estão lá fora uns familiares para te ver. Não te preocupes – acrescentou, com uma risada. – Não são familiares teus. É a mãe, pai e irmão do fulano que morreu. Viajaram todo o dia desde Nova Iorque para ver um militar moribundo e tu és o único disponível que temos.

– Que história vem a ser essa? – retorquiu Yossarian, desconfiado. – Não estou moribundo.

– Claro que estás. Todos estamos. Para onde diabo julgas que caminhamos?

– Não vieram para me ver – objectou. – Vieram para ver o filho.

– Têm de se contentar com o que houver. Pela parte que nos toca, um rapaz moribundo é igual a qualquer outro. Para um cientista, todos os moribundos são iguais. Quero apresentar-te uma proposta. Deixa-los entrar para te verem por uns minutos e não digo a ninguém que mentiste acerca dos sintomas do fígado.

– Está ao corrente disso? – articulou Yossarian, encolhendo-se.

– Com certeza. Não somos tapados de todo. – O médico sorriu cordialmente e acendeu novo cigarro. – Como queres que alguém acredite que sofres do fígado, se apalpas as tetas das enfermeiras sempre que se te depara uma oportunidade? Tens de abdicar do sexo, se queres convencer as pessoas de uma doença dessas.

– É um preço levado da breca só para continuar vivo. Porque não me denunciou, se sabia isso?

– Para quê? – retrucou, admirado. – Estamos todos envolvidos neste negócio da ilusão. Nunca recuso ajudar um companheiro de conspiração a sobreviver, se concorda em me pagar na mesma moeda. Essas pessoas vieram de muito longe e eu não gostava de as desapontar. No fundo, sou um sentimentalista.

– Mas vieram ver o filho.

– Chegaram demasiado tarde. Talvez nem notem a diferença.

– E se começarem a chorar?

– É provavelmente o que farão. Foi, aliás, uma das razões por que vieram. Ficarei à escuta do outro lado da porta e tratarei de intervir se as coisas se complicarem.

– Parece-me uma insensatez – observou Yossarian. – Afinal, porque querem ver o filho morrer?

– Nunca consegui compreender isso – admitiu o médico–, mas é como reagem sempre. Então, que dizes? A única coisa que tens de fazer é conservar-te quieto por uns minutos e morrer um pouco. Achas que é pedir muito?

– Está bem, se for só por uns minutos e prometer ficará à escuta. – Yossarian começou a entusiasmar-se com a ideia. – Porque não me aplica umas ligaduras, para criar ambiente?

– Tens razão. Bem pensado.

Envolveram-no em ligaduras e uma equipa de serventes instalou estores castanhos em cada uma das duas janelas e baixou-os para mergulhar o quarto numa penumbra deprimente. Yossarian sugeriu flores e o médico incumbiu um servente de ir buscar um pequeno ramo que exalava um odor pungente e enjoativo. Quando estava tudo em ordem, mandaram entrar os visitantes.

Surgiram em passos hesitantes, como se pensassem que incomodavam, em bicos dos pés e com expressões de humilde desculpa nos olhos, primeiro a mãe e o pai e a seguir o irmão, um marinheiro de ombros largos e semblante granítico. O homem e a mulher avançavam em atitudes rígidas, lado a lado, como se surgissem de um daguerreótipo de aniversário familiar, embora esotérico, da parede. Eram ambos baixos, mirrados e altivos. Pareciam feitos de ferro e tecido velho preto. A mulher tinha rosto oval alongado e bronzeado, com cabelos pretos de indícios grisalhos severamente separados ao meio e penteados para trás com austeridade, sem qualquer ornamentação. A boca era flácida e os lábios comprimidos e estreitos. O marido conservava-se empertigado e embaraçado num fato escuro demasiado apertado. Era corpulento e musculoso a uma escala reduzida e exibia um bigode grisalho irrepreensível no rosto contraído. Tinha olhos congestionados e húmidos e parecia tragicamente constrangido, de chapéu na mão calejada. A pobreza e trabalho árduo haviam produzido estragos indeléveis nos dois. Por seu turno, o filho parecia que procurava um pretexto para lutar com alguém. O barrete branco achava-se equilibrado na cabeça com uma inclinação insolente, cerrava os punhos e movia os olhos por tudo o que havia no quarto com a fronte enrugada numa expressão truculenta.

O trio adiantou-se com timidez, conservando-se junto, como numa tentativa para se apoiarem mutuamente, num cortejo fúnebre, até que se encontraram junto da cama e fixaram os olhos em Yossarian. Seguiu-se um silêncio sinistro e excruciante que ameaçava prolongar-se eternamente. Por fim, incapaz de o suportar por mais tempo, ele aclarou a voz ruidosamente e o homem murmurou:

– Está com um aspecto horrível.

– É natural, pai. Está doente.

– Giuseppe... – aventurou a mãe, que se sentara numa cadeira, com os dedos artríticos entrelaçados.

– O meu nome é Yossarian.

– O nome dele é Yossarian, mãe. Não me reconheces, Yossarian? Sou o teu irmão John. Não sabes quem sou?

– Claro que sei. És o meu irmão John.

– Ele reconhece-me! Sabe quem sou, pai. Está aqui o pai, Yossarian. Cumprimenta-o.

– Olá, pai – proferiu Yossarian.

– Olá, Giuseppe.

– O nome dele é Yossarian, pai.

– Não me conformo com o seu aspecto horrível – volveu o homem.

– Ele está muito doente, pai. O médico diz que vai morrer.

– Fiquei sem saber se devia acreditar ou não. Sabes como esses tipos se enganam.

– Giuseppe... – tornou a murmurar a mãe, numa inflexão de angústia.

– O nome dele é Yossarian, querida. Ela já não tem muito boa memória. Como te estão a tratar, filho? Não te falta nada?

– Tratam-me bem – afirmou Yossarian.

– Óptimo. Não te deixes espezinhar por ninguém. Vales tanto como os outros, apesar de descenderes de italianos. Estás em plena posse de todos os teus direitos.

Yossarian estremeceu e fechou os olhos, para não ter de olhar para o irmão John, começando a sentir-se indisposto.

– Repara agora no seu aspecto horrível – indicou o pai.

– Guiseppe... – murmurou a mãe.

– O nome dele é Yossarian – interrompeu o irmão, com impaciência. – Não te lembras?

– Não tem importância – interveio Yossarian. – Ela pode tratar-me por Giuseppe, se quiser.

– Guiseppe... – tornou ela.

– Não te preocupes, Yossarian – recomendou o irmão. –Há-de resolver-se tudo pelo melhor.

– Não te preocupes, mãe – disse Yossarian. – Há-de resolver-se tudo pelo melhor.

– Esteve cá um padre? – quis saber o irmão.

– Esteve – mentiu Yossarian, voltando a estremecer.

– Ainda bem. O essencial é que recebas tudo a que tens direito. Viemos de Nova Iorque e receávamos não chegar a tempo.

– A tempo de quê?

– De te ver antes de morreres.

– Que diferença fazia isso?

– Não queríamos que morresses sozinho.

– Que diferença fazia isso?

– Deve estar a delirar – murmurou o irmão. – Diz sempre a mesma coisa.

– Tem graça – observou o homem. – Sempre me convenci de que se chamava Giuseppe e descubro agora que é Yossarian. Tem mesmo muita graça.

– Consola-o, mãe – solicitou o irmão. – Diz alguma coisa para o animar.

– Giuseppe...

– Não é Giuseppe, mãe. Yossarian.

– Que interessa isso? – argumentou ela, no mesmo tom lúgubre, sem erguer os olhos. – Está a morrer.

Os olhos inchados marejaram-se e começou a chorar, inclinando o corpo para a frente e para trás, com as mãos pousadas no regaço, como borboletas caídas. O pai e o irmão principiaram igualmente a chorar. Por sua vez, Yossarian lembrou-se de repente porque choravam e imitou-os. Um médico que ele nunca vira entrou naquele momento para anunciar aos visitantes que tinham de se retirar e o pai empertigou-se formalmente para se despedir.

– Guiseppe... – começou.

– Yossarian – corrigiu o filho.

– Yossarian...

– Guiseppe – corrigiu Yossarian.

– Em breve, vais morrer...

Yossarian recomeçou a chorar, porém o médico lançou-lhe um olhar turvo do fundo do quarto e ele dominou-se.

Entretanto, o pai prosseguia solenemente, de cabeça inclinada para o peito:

– Quando falares com o homem lá em cima, dá-lhe um recado meu. Diz-Lhe que não está certo que as pessoas morram quando são jovens. Diz-Lhe que, se têm mesmo de morrer, que seja na velhice. Não te esqueças. Penso que Ele não sabe que não está certo, porque toda a gente O julga bom e isto já dura há muito tempo.

– E não te deixes espezinhar por ninguém lá em cima – advertiu o irmão. – Todos te aceitarão no Céu, apesar de descenderes de italianos.

– Agasalha-te bem – recomendou a mãe, que parecia saber do que falava.



Nota

[1] Feriado celebrado na última quinta-feira de Novembro, nos Estados Unidos, em que é costume comer peru. (N. do T.)



(Catch-22 / Artigo 22; tradutor não identificado pela editora)



Observação do blog: O texto acima é o décimo oitavo capítulo da edição portuguesa, que teve como título ARTIGO 22. Na tradução brasileira, ARDIL 22).



(Ilustração: Bruno Frankewitz - Ala B 64º Hospital Geral Britânico - Segunda Guerra Mundial)

quinta-feira, 8 de maio de 2025

GUERRA, de José Craveirinha

 



Aos que ficam

resta o recurso

de se vestirem de luto

…………………………………

Ah, cidades!

Favos de pedra

macios amortecedores de bombas.




(Ilustração: Hiroshima Peace Memorial Museum - Takakura Akiko)

segunda-feira, 5 de maio de 2025

A NOVA CASA, de Carlos Eduardo Novaes


Meu amigo Rick está se mudando. Mês que vem deixa a casa dos 70 e de mala e cuia se muda para a casa dos 80. Rick pretende viver uns bons anos na nova casa, mais próxima do fim da rua.

Ele sabe que estou morando lá há mais de dois anos e perguntou-me se gostei da mudança. Ora, não se tratou de gostar ou não. Terminou meu tempo na casa dos 70 depois de 10 anos, e saí feliz porque podia ter sido despejado antes do final do contrato.

Assim como a casa dos 20 lembra uma universidade, a casa dos 60, um posto do INSS, a casa dos 80 lembra uma clínica geriátrica. Lembrava! Quando entrei na casa a primeira surpresa foi vê-la cheia de “cabeças brancas”. Na época da minha avó alcançar a casa dos 80 era uma façanha olímpica, para poucos. A segunda e maior surpresa foi ver a “rapaziada”, pulando, malhando, correndo, namorando, como se não houvesse amanhã.

De uns anos para cá a casa dos 80 foi aumentada com vários puxadinhos, para abrigar tanta gente. E não é só! Da minha janela vejo que estão reformando a casa vizinha que estava caindo aos pedaços, a casa dos 90.

Disse ao meu amigo que a casa dos 80 é uma construção dos anos 40, estilo vintage, pé direito alto, esquadrias em arco, piso de tacos de madeira, cadeiras de palha e uma imponente cristaleira. Claro que precisa de cuidados e manutenção constante, muito mais do que a casa dos 30, para evitar rachaduras e infiltrações. Em compensação, amigos, tem a mais bela vista do Passado.

Rick vai gostar. Vai se sentir em casa dos 60, talvez dos 50.



(Ilustração: René Magritte)

sexta-feira, 2 de maio de 2025

DENTRO DE CADA MÁQUINA, de Ernesto von Artixzffski (Sergio Maciel)

 





dentro de cada máquina escorre o sangue dos empregados.

dentro de cada máquina escorre o sangue das empregadas, das mulheres e das fêmeas.

dentro de cada máquina, escorre o sêmen dos machos.

dentro de cada máquina.



dentro de cada máquina há uma infinidade de pedras.

dentro de cada máquina, há o choro das lâminas.

dentro de cada máquina há o arrepio e o arrependimento.

sempre dentro de cada máquina.



dentro de cada máquina há ruas sem saída.

dentro de cada máquina, há o cheiro dos mendigos.

dentro de cada máquina, cai a neve esperada.

dentro de cada máquina nunca nascerá nenhuma flor.

dentro de cada máquina.



dentro de cada máquina não cabe a lua.

dentro de cada máquina, há divisões, cimento e dormitórios.

dentro de cada máquina há sempre sirenes.

dentro de cada máquina, cabe a noite e o peito devorado.



dentro de cada máquina, o ar é fumaça.

dentro de cada máquina, moribundos dormem sobre a ponta dos alfinetes.

dentro de cada máquina o banquete não sacia a fome de tantas bocas.

dentro de cada máquina não se faz sexo.



dentro de cada máquina sempre haverá uma navalha para cada carne.

dentro de cada máquina não existe a lembrança das coisas.

dentro de cada máquina, há o pó, a pólvora e o fumo.

dentro de cada máquina, sempre dentro de cada máquina,

há insetos decrépitos, agrupados, abandonados e sós.



mas apenas dentro de cada máquina.





(Ilustração: H. R. Giger - erotomechanics IV)

terça-feira, 29 de abril de 2025

O CHEIRO DE ROLHA QUEIMADA EM ALGUNS POEMAS DE MANUEL BANDEIRA, de Ronald Augusto

 


Hoje dispomos de um conjunto de conceitos para pensar a produção literária de pessoas negras. Temos literatura negra, literatura afro-brasileira, literatura negro-brasileira ou literatura de autoria negra. Ainda que aceitemos diferenças entre as propostas, há um dado em relação ao qual não se verifica nenhuma discordância entre os defensores de cada um dos conceitos, a saber, por princípio, os autores dessa produção literária são negros e de algum modo eles se deixam reconhecer, através das tramas da linguagem literária, como negros na experiência textual que realizam.

Já os textos literários de autores brancos dedicados a recriar, por exemplo, aspectos da cultura afro-brasileira, o elemento negro ou as tensões raciais de nossas interações sociais, podem representar, quando muito, uma literatura negrista. Trata-se de uma literatura de viés temático que atende principalmente ao interesse do autor não-negro decidido a fazer uma incursão através de um conjunto de signos que lhe são exteriores ou alheios, mas que desafiam sua imaginação criativa. René Depestre, em seu estudo Bonjour et adieu à la négritude (1980), analisa a ideia e o imaginário negristas. Segundo o poeta e romancista haitiano, para a construção de uma história do negrismo na América Latina, é inevitável considerar os antecedentes do fenômeno na Europa. Depestre entende o negrismo como o conjunto de múltiplas imagens que se formou das pessoas negras através da chave dos estereótipos.

Na Europa, antes de se revelar como movimento de vanguarda ou de fornecer elementos vanguardistas à arte, o negrismo, de acordo com Depestre, estava presente sob suas formas primitivas, ou seja, nos contos de fadas, nas histórias de viagens, nos escritos de viajantes. No Iluminismo, segundo o escritor haitiano, seus traços podem ser encontrados em escritores profissionais, em todos os tipos de textos, enternecedores ou zombeteiros, até mesmo no romantismo abolicionista e paternalista.

Até agora os textos negristas acabam por sucumbir, de fato, a uma série de estereótipos e clichês, principalmente aqueles textos circunscritos à tradição modernista que, devido a algumas cláusulas dos seus manifestos, tomou para si a missão de redescobrir o Brasil a partir de um olhar em que se pudesse identificar um modo de ser brasileiro que não fosse simples emulação de tiques culturais da civilização europeia.

É possível ler Manuel Bandeira com a intenção de enfrentar o caráter inegavelmente negrista de determinados poemas de sua obra. Consideramos que o paternalismo sentimental de Bandeira, típico de um sinhozinho que foi amamentado por uma negra da casa-grande, transferiu à evocação poética de sua infância uma dimensão demasiadamente edulcorada no que diz respeito à figuração das formas de vida das pessoas negras. Os poemas em questão, além do traço paternalista, estão carregados de um romantismo quase cego à experiência da escravidão, parecem minimizar as consequências do acontecimento para todos os envolvidos – nomeadamente para os negros, mais afetados negativamente – porque o ângulo de corte da imaginação poética é o da ternura da infância doméstica, bem como da ironia bonachona permitida pela intimidade familiar. As memórias pré ou pós-abolicionistas dos poemas de Manuel Bandeira, humildes e ternas, recriam os últimos tempos do colonialismo escravista a partir do ponto de vista de quem sempre segurou o chicote pelo cabo.

Parte expressiva da poética de Bandeira não se afasta de um certo quadro espiritual do período. Depois da abolição da escravidão no século 19, há uma nova promoção da imagem do negro. A condição de liberto soa como um salvo-conduto concedido para seu ingresso no mundo humano. Depestre argumenta que nos Estados Unidos, por exemplo, se produz a literatura da Reconstrução, menos degradante do que a anterior e cujo exemplo mais acabado é a obra A cabana do Pai Tomás (1852). Contudo, a nova imagem do negro seguiu tributária da tradição da plantation. O crítico haitiano denuncia mesmo inteligências negras que, segundo sua opinião, tomam das palavras do negrismo mais tacanho para pretensamente operarem a reconstrução. Para René Depestre, nestas obras tanto de autores brancos como de autores negros, percebe-se “o mesmo negrismo que animava os espetáculos dos menestréis ou acrobatas que pintavam o rosto com cortiça queimada antes de entrarem em cena.”[1]

Depestre reconhece que tanto nos Estados Unidos como na Amárica Latina aos poucos surgem escritores que ultrapassam os limites do negrismo. Langston Hughes, Countee Cullen, Nicolás Guillén, Aimé Césaire, não por coincidência todos criadores negros, produzem um tipo de literatura que não exala o cheiro de rolha queimada. Sobre o caso brasileiro, René Depestre entende que há poucos poetas e escritores negros de fato comprometidos com a “reabilitação da raça negra”, ainda que Cruz e Sousa e Luis Gama, por exemplo, alcancem um bom domínio dos seus meios expressivos, não manifestam em seus escritos “as contradições de classe/raça que determinaram a vida do seu país”. O mínimo que se poderia comentar sobre a percepção de Depestre é que neste ponto ele foi apressado e na verdade não parece ter lido com cuidado a produção dos poetas. “Emparedado”, de Cruz e Sousa, e a balada sarcástico-crítica “Quem sou eu” (também conhecida como “Bodarrada”), de Luiz Gama, bastariam para derrubar as alegações do haitiano de que ambos não capturaram com firmeza as contradições de classe/raça que determinaram e determinam a vida brasileira.

Vejamos agora dois poemas do negrismo de Manuel Bandeira. “Macumba de pai Zusé”: “Na macumba do Encantado/ Nego véio pai de santo fez mandinga/ No palacete do Botafogo/ Sangue de branca virou água/ Foram vê estava morta!”.

Importa notar no poema a imagem que tenta reduzir as manifestações rituais de origem africana a coisas que têm parte com o demônio. Para o senso comum, expressões como magia negra ou mandinga se inserem numa área semântica indicativa de feitiço cuja intenção é causar danos, propondo-se a destruir ou ferir outrem. Bandeira pratica uma variante do racismo recreativo apelando à oralidade negra como “fala errada”, daí irrompe no verso a expressão Zusé (José), ou em outro poema Zizus (Jesus). São mobilizados os conhecidos preconceitos de raça e linguístico em tom zombeteiro. A aura do poético torna inofensivo o conteúdo da agressão racial.

A partir de um viés carnavalesco de que se beneficia parte da poética de Bandeira, tudo o que acontece nos versos evoca um culto religioso de caráter sincrético-fetichista, a princípio ou pretensamente, afro-brasileiro. Essa imagética, no entanto, transfere à religiosidade afro-brasileira acepções batidas e rebaixadas, e repisa a concepção preconceituosa em que esses cultos e sua signância ritualística são vistos como “coisa do demônio”. Enfim, o que se desenrola diante de nossos olhos não passa de uma representação distorcida e definitivamente menor dos signos que dizem respeito ao aspecto filosófico, espiritual e místico da cultura afro-brasileira.

Em “Murmúrio d’água”, Manuel Bandeira evoca nostálgico sua infância de menino da casa-grande. A imagem da ancestralidade negra vem à superfície dos versos como uma condenação. Enebriados pela música do poema, acompanhamos um discurso circunscrevendo essa ancestralidade ao desvio da escravidão no Brasil (perversa narrativa de origem imposta em termos ontológicos às diásporas africanas). “Murmúrio d’água” serve à perfeição como uma forma de redução, de confinamento, que, de resto, evoca um vago preconceito por sob a capa da compaixão. A dor e a alegria do “povo negro” seriam invariavelmente emanações da escravidão no Brasil do período colonial? É como se seu sofrimento e a desejada superação fossem meros sucedâneos da escravidão, sintomas enclausurados aquém e além de outras chances e predicações relativas à condição humana. Segue o trecho final do poema: “(…) A minha mãe ouvi dizer que era minh'ama/ Tranquila e mansa./ Talvez ouvi, quando criança,/ Cantigas tristes que cantou à minha cama./ Talvez por isso eu me comova a aquela mágoa./ Talvez por isso eu me comova tanto à mágoa/ Do teu rumor, murmúrio d'água…// A meiga e triste rapariga/ Punha talvez nessa cantiga/ A sua dor e mais a dor de sua raça.../ Pobre mulher, sombria filha da desgraça!// — Murmúrio d'água, és a cantiga de minh'ama.”.

Bandeira manifesta uma forma de solidariedade herdeira de concepções ready-mades sobre as quais se equilibra a curiosidade quanto à vida dos negros – seja nas senzalas, seja nas periferias, seja junto ao calor da cozinha do senhor –, o fetichismo a respeito de como acontece esse ser negro que sucumbe, por assim dizer, ao quantificar o povo negro. Cada sujeito negro estaria fadado a exprimir apenas isto e mais nada: uma abissal alma negra, porém como decalque do raciocínio negrista-essencialista e de base racial; uma interioridade tão desconhecida quanto exaustivamente parafraseada por emblemáticos pensadores e artistas do modernismo.



Nota:

[1] A rolha queimada, tinta ou graxa, eram usadas para pintar o rosto de pessoas brancas que deveriam representar pessoas negras.



(Correio do Povo, 27 de abril de 2024)



(Ilustração: Al Jolson no filme The Jazz Singer – 1927)

sábado, 26 de abril de 2025

MINERAI NOIR / MINÉRIO NEGRO, de René Depestre

  


 Quand la sueur se trouva brusquement


…………tarie para le soleil

quand la frénésie de l’or draîna au marché la dernière

…………goutte de sang indien

de sorte qu’il ne resta plus un seul Indien

…………aux alentours des mines d’or

on se tourna vers le fleuve musculaire de l’Afrique

…………pour assurer la relève du désespoir

alors commença la ruée vers l’inépuisable trésorerie

…………de la chair noire

alors commença la bousculade échevelée vers le

…………rayonnant midi du corps noir

et toute la terre retentit du vacarme des pioches

…………dans l’épaisseur du minerai noir

et tout juste si des chimistes ne pensèrent aux

…………moyens d’obtenir quelque alliage précieux

avec le métal noir

tout juste si des dames ne rêvèrent d’une batterie

………….de cuisine en nègre du Sénégal d’un service

………….à thé en massif négrillon des Antilles

tout juste si quelque audacieux curé ne promit à sa

…………..paroisse

une cloche coulée

…………dans la sonorité

……………………du sang noir

ou si quelque vaillant capitaine

……………………ne tailla son épée

………………………………dans l’ébène minéral

ou encore si un brave Père Noël

………….ne songea à des petits soldats

………………………………de plomb noir

…………pour sa vie annuelle.

Toute la terre retentit de la secousse des foreuses

…………dans les entrailles de ma race dans

……………………le gisement musculaire

…………………………………………de

………………………………l’homme noir.

Voilà de nombreux siècles

………………………………que dure l’extraction

…………………………………………des merveilles

…………………………………………de cette race.

Ô couches métalliques de mon peuple

minerai inépuisable de rosée humaine

combien de pirates ont exploré de leurs armes

les profondeurs obscures de ta chair

combien de flibustiers se sont frayé leur chemin

à travers la riche végétation de

…………………………………………clartés de ton corps

jonchant tes années de tiges mortes

…………………………………………et de flaques de larmes

Peuple dévalisé peuple de fond en comble retourné

……………………comme une terre

…………………………………………en labours

peuple défriché pour l’enrichissement des grandes foires

……………………………………………………du monde

Mûris ton grisou dans le secret de ta nuit corporelle

…………nul n’osera plus couler des canons

…………et des pièces d’or dans le noir métal de ta colère en crues!



Tradução de Ernesto von Artixzffski:



Quando seco pelo sol o suor do índio

…………esgotou-se

quando a febre d’ouro drenou a derradeira

…………gota de sangue índio

varrendo do entorno das minas d’ouro todo Índio

…………nos voltamos ao veio muscular d’África

…………para garantir a emersão da miséria

então começou o assalto à infinda riqueza

…………da carne negra

então começou o desordenado ataque ao

…………radiante esplendor do corpo negro

e toda a terra retumbou ao retinir do alvião

…………na densidade do minério negro

e tudo bem se químicos não pensassem em meios

…………de obter uma preciosa liga

do metal negro

tudo bem se as damas não sonhassem com batedeiras

…………de cozinha em negra do Senegal serviços de chá

…………em maciço negrinho das Antilhas

tudo bem se um pároco audacioso não prometesse à sua

…………paróquia

um sino soldado

…………na sonoridade

……………………do sangue negro

ou se algum valente capitão

……………………não talhasse sua espada

………………………………no ébano mineral

ou ainda se algum bravo Papai Noel

……………………não sonhasse soldadinhos

………………………………em chumbo negro

……………………para sua anual visita.

Toda a terra retiniu ao abalo das brocas

…………nas entranhas de minha raça na

……………………jazida muscular

………………………………do

……………………homem negro.

Eis os numerosos séculos que

……………………duram a extração

……………………das maravilhas

……………………desta raça.

Ó tálamos metálicos do meu povo

minério inesgotável do rocio humano

quantos piratas exploraram suas armas

as profundezas obscuras de tua carne

quantos flibusteiros abriram caminhos

pela rica vegetação

……………………de clarezas de teu corpo

espalhando teus anos de troncos mortos

………………………………e poças de pranto

Povo despojado povo todo assim revirado

……………………como a terra

………………………………lavorada

povo devastado para o enriquecimento das grandes feiras

……………………………………………………do mundo

Amadureces teu grisu no segredo de tua noite corporal

…………ninguém mais ousará lançar canhões

…………e moedas de ouro no negro metal de tua cólera em cheia!



(Minerai Noir, 1952)



(Ilustração: Johann Moritz Rugendas: Jogar Capoeira ou Danse de Guerre)

quarta-feira, 23 de abril de 2025

DISCURSO FINAL DE “O GRANDE DITADOR”, de Charles Chaplin

 



Sinto muito, mas não pretendo ser um imperador. Não é esse o meu ofício. Não pretendo governar ou conquistar quem quer que seja. Gostaria de ajudar – se possível – judeus, o gentio… negros… brancos.

Todos nós desejamos ajudar uns aos outros. Os seres humanos são assim. Desejamos viver para a felicidade do próximo – não para o seu infortúnio. Por que havemos de odiar e desprezar uns aos outros? Neste mundo há espaço para todos. A terra, que é boa e rica, pode prover a todas as nossas necessidades.

O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos. A cobiça envenenou a alma dos homens… levantou no mundo as muralhas do ódio… e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e os morticínios. Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado em penúria. Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que de máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido.

A aviação e o rádio aproximaram-nos muito mais. A própria natureza dessas coisas é um apelo eloquente à bondade do homem… um apelo à fraternidade universal… à união de todos nós. Neste mesmo instante a minha voz chega a milhares de pessoas pelo mundo afora… milhões de desesperados, homens, mulheres, criancinhas… vítimas de um sistema que tortura seres humanos e encarcera inocentes. Aos que me podem ouvir eu digo: “Não desespereis! A desgraça que tem caído sobre nós não é mais do que o produto da cobiça em agonia… da amargura de homens que temem o avanço do progresso humano. Os homens que odeiam desaparecerão, os ditadores sucumbem e o poder que do povo arrebataram há de retornar ao povo. E assim, enquanto morrem homens, a liberdade nunca perecerá.

Soldados! Não vos entregueis a esses brutais… que vos desprezam… que vos escravizam… que arregimentam as vossas vidas… que ditam os vossos atos, as vossas ideias e os vossos sentimentos! Que vos fazem marchar no mesmo passo, que vos submetem a uma alimentação regrada, que vos tratam como gado humano e que vos utilizam como bucha de canhão! Não sois máquina! Homens é que sois! E com o amor da humanidade em vossas almas! Não odieis! Só odeiam os que não se fazem amar… os que não se fazem amar e os inumanos!

Soldados! Não batalheis pela escravidão! Lutai pela liberdade! No décimo sétimo capítulo de São Lucas está escrito que o Reino de Deus está dentro do homem – não de um só homem ou grupo de homens, mas dos homens todos! Está em vós! Vós, o povo, tendes o poder – o poder de criar máquinas. O poder de criar felicidade! Vós, o povo, tendes o poder de tornar esta vida livre e bela… de fazê-la uma aventura maravilhosa. Portanto – em nome da democracia – usemos desse poder, unamo-nos todos nós. Lutemos por um mundo novo… um mundo bom que a todos assegure o ensejo de trabalho, que dê futuro à mocidade e segurança à velhice.

É pela promessa de tais coisas que desalmados têm subido ao poder. Mas, só mistificam! Não cumprem o que prometem. Jamais o cumprirão! Os ditadores liberam-se, porém escravizam o povo. Lutemos agora para libertar o mundo, abater as fronteiras nacionais, dar fim à ganância, ao ódio e à prepotência. Lutemos por um mundo de razão, um mundo em que a ciência e o progresso conduzam à ventura de todos nós. Soldados, em nome da democracia, unamo-nos!

Hannah, estás me ouvindo? Onde te encontrares, levanta os olhos! Vês, Hannah? O sol vai rompendo as nuvens que se dispersam! Estamos saindo da treva para a luz! Vamos entrando num mundo novo – um mundo melhor, em que os homens estarão acima da cobiça, do ódio e da brutalidade. Ergue os olhos, Hannah! A alma do homem ganhou asas e afinal começa a voar. Voa para o arco-íris, para a luz da esperança. Ergue os olhos, Hannah! Ergue os olhos!.”



(Tradução, provável, de Bruno Yashinishi)

Fonte:



(Ilustração: Charles Chaplin - O Grande Ditador – 1940)

domingo, 20 de abril de 2025

O OPERÁRIO EM CONSTRUÇÃO, de Vinícius de Moraes



E o Diabo, levando-o a um alto monte,

mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo.

E disse-lhe o Diabo:

- Dar-te-ei todo este poder e a sua glória,

porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero;

portanto, se tu me adorares, tudo será teu.

E Jesus, respondendo, disse-lhe:

- Vai-te, Satanás; porque está escrito:

adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.

Lucas, cap. V, vs. 5-8.



Era ele que erguia casas

Onde antes só havia chão.

Como um pássaro sem asas

Ele subia com as casas

Que lhe brotavam da mão.

Mas tudo desconhecia

De sua grande missão:

Não sabia, por exemplo

Que a casa de um homem é um templo

Um templo sem religião

Como tampouco sabia

Que a casa que ele fazia

Sendo a sua liberdade

Era a sua escravidão.



De fato, como podia

Um operário em construção

Compreender por que um tijolo

Valia mais do que um pão?

Tijolos ele empilhava

Com pá, cimento e esquadria

Quanto ao pão, ele o comia...

Mas fosse comer tijolo!

E assim o operário ia

Com suor e com cimento

Erguendo uma casa aqui

Adiante um apartamento

Além uma igreja, à frente

Um quartel e uma prisão:

Prisão de que sofreria

Não fosse, eventualmente

Um operário em construção.



Mas ele desconhecia

Esse fato extraordinário:

Que o operário faz a coisa

E a coisa faz o operário.

De forma que, certo dia

À mesa, ao cortar o pão

O operário foi tomado

De uma súbita emoção

Ao constatar assombrado

Que tudo naquela mesa

- Garrafa, prato, facão -

Era ele quem os fazia

Ele, um humilde operário,

Um operário em construção.

Olhou em torno: gamela

Banco, enxerga, caldeirão

Vidro, parede, janela

Casa, cidade, nação!

Tudo, tudo o que existia

Era ele quem o fazia

Ele, um humilde operário

Um operário que sabia

Exercer a profissão.



Ah, homens de pensamento

Não sabereis nunca o quanto

Aquele humilde operário

Soube naquele momento!

Naquela casa vazia

Que ele mesmo levantara

Um mundo novo nascia

De que sequer suspeitava.

O operário emocionado

Olhou sua própria mão

Sua rude mão de operário

De operário em construção

E olhando bem para ela

Teve um segundo a impressão

De que não havia no mundo

Coisa que fosse mais bela.



Foi dentro da compreensão

Desse instante solitário

Que, tal sua construção

Cresceu também o operário.

Cresceu em alto e profundo

Em largo e no coração

E como tudo que cresce

Ele não cresceu em vão

Pois além do que sabia

- Exercer a profissão -

O operário adquiriu

Uma nova dimensão:

A dimensão da poesia.



E um fato novo se viu

Que a todos admirava:

O que o operário dizia

Outro operário escutava.



E foi assim que o operário

Do edifício em construção

Que sempre dizia sim

Começou a dizer não.

E aprendeu a notar coisas

A que não dava atenção:



Notou que sua marmita

Era o prato do patrão

Que sua cerveja preta

Era o uísque do patrão

Que seu macacão de zuarte

Era o terno do patrão

Que o casebre onde morava

Era a mansão do patrão

Que seus dois pés andarilhos

Eram as rodas do patrão

Que a dureza do seu dia

Era a noite do patrão

Que sua imensa fadiga

Era amiga do patrão.



E o operário disse: Não!

E o operário fez-se forte

Na sua resolução.



Como era de se esperar

As bocas da delação

Começaram a dizer coisas

Aos ouvidos do patrão.

Mas o patrão não queria

Nenhuma preocupação

- "Convençam-no" do contrário -

Disse ele sobre o operário

E ao dizer isso sorria.



Dia seguinte, o operário

Ao sair da construção

Viu-se súbito cercado

Dos homens da delação

E sofreu, por destinado

Sua primeira agressão.

Teve seu rosto cuspido

Teve seu braço quebrado

Mas quando foi perguntado

O operário disse: Não!



Em vão sofrera o operário

Sua primeira agressão

Muitas outras se seguiram

Muitas outras seguirão.

Porém, por imprescindível

Ao edifício em construção

Seu trabalho prosseguia

E todo o seu sofrimento

Misturava-se ao cimento

Da construção que crescia.



Sentindo que a violência

Não dobraria o operário

Um dia tentou o patrão

Dobrá-lo de modo vário.

De sorte que o foi levando

Ao alto da construção

E num momento de tempo

Mostrou-lhe toda a região

E apontando-a ao operário

Fez-lhe esta declaração:

- Dar-te-ei todo esse poder

E a sua satisfação

Porque a mim me foi entregue

E dou-o a quem bem quiser.

Dou-te tempo de lazer

Dou-te tempo de mulher.

Portanto, tudo o que vês

Será teu se me adorares

E, ainda mais, se abandonares

O que te faz dizer não.



Disse, e fitou o operário

Que olhava e que refletia

Mas o que via o operário

O patrão nunca veria.

O operário via as casas

E dentro das estruturas

Via coisas, objetos

Produtos, manufaturas.

Via tudo o que fazia

O lucro do seu patrão

E em cada coisa que via

Misteriosamente havia

A marca de sua mão.

E o operário disse: Não!



- Loucura! - gritou o patrão

Não vês o que te dou eu?

- Mentira! - disse o operário

Não podes dar-me o que é meu.



E um grande silêncio fez-se

Dentro do seu coração

Um silêncio de martírios

Um silêncio de prisão.

Um silêncio povoado

De pedidos de perdão

Um silêncio apavorado

Com o medo em solidão.



Um silêncio de torturas

E gritos de maldição

Um silêncio de fraturas

A se arrastarem no chão.

E o operário ouviu a voz

De todos os seus irmãos

Os seus irmãos que morreram

Por outros que viverão.

Uma esperança sincera

Cresceu no seu coração

E dentro da tarde mansa

Agigantou-se a razão

De um homem pobre e esquecido

Razão porém que fizera

Em operário construído

O operário em construção.



(Rio de Janeiro, 1959)



(Ilustração: Edvard Munch - Workers Returning Home, 1913-1915)