quarta-feira, 4 de junho de 2025

TAÇA DE WARREN: CÁLICE ENCONTRADO PROVAVELMENTE EM BITTIR, PERTO DE JERUSALÉM, 5 -15 D.C., de Neil MacGregor

 


Há dois mil anos, membros da elite de grandes impérios como o de Roma não se preocupavam apenas com poder e conquista. Como todas as elites, também encontravam tempo para o prazer e para a arte. Este objeto incorpora as duas coisas. É uma taça de prata feita na Palestina, por volta de 10 d.C. Antes de chegar ao British Museum, esteve na coleção de Edward Warren, o ricaço americano que encomendou a versão mais famosa da escultura O beijo, de Rodin, e nos revela quase tanto sobre as atitudes do século XX em relação ao sexo como sobre as dos romanos.

A Taça de Warren mostra cenas de união sexual entre homens adultos e rapazes adolescentes. Esta peça de prataria romana, de dois mil anos de idade, é um cálice que parece capaz de comportar o conteúdo de uma taça muito grande de vinho. Tem a forma de um troféu esportivo moderno, com uma pequena base, e já teve duas asas, que se perderam. É possível perceber logo de imediato que se trata de uma obra de supremo artesanato. As cenas da taça são esculpidas em relevo, produzido a marteladas de dentro para fora. Deve ter sido usada em festas particulares, e, levando em conta o tema, certamente atraía a atenção e despertava a admiração de todos os presentes.

Comer e beber abundantemente eram rituais importantes do mundo romano. Em todo o império, funcionários romanos e mandachuvas locais usavam banquetes para azeitar as engrenagens da política e dos negócios e para ostentar riqueza e status. As mulheres romanas costumavam ser excluídas de eventos como as bebedeiras das quais nossa taça faria parte, e talvez seja lícito supor que nosso objeto se destinava a festas com listas de convidados compostas apenas por pessoas do sexo masculino.

Imaginemos um homem chegando a uma grande vila perto de Jerusalém por volta do ano 10. Escravos conduzem-no por uma opulenta área de jantar, onde ele descansa com outros convidados. A mesa está servida, com bandejas de prata e taças enfeitadas. É nesse contexto que nossa taça seria passada de um convidado para outro. Nela duas cenas de sexo entre homens são ambientadas numa residência particular suntuosa. Os amantes são mostrados em sofás forrados, semelhantes àqueles em que repousariam os convidados de nosso jantar imaginário. E veem-se uma lira e flautas prontas para começarem a tocar quando os participantes se instalarem para desfrutar seus prazeres sensuais. Bettany Hughes, historiadora e apresentadora, discorre a respeito:

A taça mostra duas variedades de ato homossexual. Na frente há um homem mais velho — sabemos que é mais velho porque tem barba; sentado sobre ele, de pernas abertas, está um jovem muito bonito. É tudo muito vigoroso e viril, muito realista — não é uma visão idealizada da homossexualidade. Mas se olharmos a parte de trás veremos uma representação mais tradicional. Mostra dois belos jovens — sabemos que são jovens porque cachos de cabelos lhes caem pelas costas. Um está deitado de costas, e o outro, um pouco mais velho, afasta o olhar. É muito mais lírica, uma visão bastante idealizada do que era a homossexualidade.

Embora as cenas homossexuais na taça hoje nos pareçam explícitas — para alguns, chocantes e proibidas —, a homossexualidade era parte integrante da vida romana. Mas era uma parte complicada, tolerada, e não inteiramente aceita. A linha de conduta-padrão entre os romanos sobre o que era admissível em uniões entre pessoas do mesmo sexo foi definida com clareza pelo teatrólogo Plauto na comédia Caruncho: “Ame o que lhe aprouver, desde que fique longe de mulheres casadas, viúvas, virgens, jovens rapazes e meninos de família.”[*]

Portanto, se quiséssemos mostrar sexo entre homens e jovens que não fossem escravos, faria sentido buscar inspiração nos tempos da Grécia Clássica, em que era normal homens mais velhos ensinarem meninos sobre a vida em geral, numa relação de mentor-pupilo que incluía sexo. O império romano em seus primórdios tinha idealizado a Grécia e adotado boa parte de sua cultura, e a taça mostra o que é, sem dúvida, uma cena grega. Seria uma fantasia sexual romana sobre uma união sexual entre homens na Grécia Clássica? É possível que, situando-a em um passado grego, qualquer desconforto moral seja mantido a uma distância segura, ao mesmo tempo que dá um tempero extra à excitação do proibido e do exótico. E talvez todo mundo ache que o melhor sexo sempre acontece em outro lugar. O professor James Davidson, autor de The Greek and Greek Love [Os gregos e o amor grego], explica:

Embora esta taça se volte para o período clássico, os pintores de vasos gregos, que não eram de forma alguma pudicos ou modestos quando se tratava de representar sexo, ainda assim evitavam cuidadosamente cenas de cópula homossexual, pelo menos cópula com penetração. Assim, os romanos estão mostrando o que não poderia ser mostrado quinhentos anos antes. O mundo grego fornecia um álibi que permitia às outras sociedades pensar sobre a homossexualidade, falar sobre a homossexualidade, representar a homossexualidade, como ocorreu a partir do século XVIII e mesmo durante a Idade Média. Isso fez dela uma peça de arte, mais do que uma peça de pornografia.

O outro lado da taça mostra dois jovens

Não há dúvida sobre onde esses encontros ocorrem. Os instrumentos musicais, a mobília, as roupas e os penteados dos amantes — tudo aponta para o passado, a Grécia Clássica de séculos antes. Curiosamente, podemos saber, pela taça, que os dois jovens mostrados aqui não são escravos. O estilo dos penteados, com um longo cacho caindo pelas costas, é típico de meninos gregos nascidos livres. Entre os dezesseis e os dezoito anos, o cabelo era cortado e dedicado aos deuses, como parte da passagem para a idade adulta. Portanto, ambos os meninos mostrados na taça são livres e de boas famílias. Mas também podemos ver outra figura, que pode ter participado do banquete romano no qual a taça era usada. Está ao fundo, espiando uma das cenas de sexo atrás de uma porta — só vemos parte de seu rosto. É, sem dúvida, um escravo, embora seja impossível saber se está apenas se entregando a um ato de voyeurismo ou se atende, muito apreensivo, a um pedido de “serviço de quarto”. Seja como for, nos faz lembrar que o que ele e nós testemunhamos são atos a serem praticados apenas em particular, a portas fechadas. Bettany Hughes comenta:

Em Roma havia a noção de que os homens tinham boas esposas e não deveriam recorrer ao sexo com outros homens. Mas sabemos, pela poesia, pelas leis, por referências a relações homossexuais, que isso de fato acontecia em todo o mundo romano. A Taça de Warren é um bom fragmento de indício material que comprova isso. Ele nos diz o que de fato ocorria, nos conta que a atividade homossexual era algo que acontecia em altos círculos aristocráticos.

Um menino escravo atrás da porta espia os amantes

Taças de prata dessa data são hoje excepcionalmente raras, pois muitas foram derretidas, e poucas das que restaram se comparam à virtuosística habilidade da Taça de Warren. Para comprar uma dessas, era preciso ser rico, pois custaria em torno de 250 denários — e com esse dinheiro dava para comprar 25 jarras do melhor vinho, um terreno de mais de dois mil metros quadrados ou até mesmo um escravo não qualificado, como o que vemos espiando atrás da porta. Assim, esta tolerante peça de jantar situa seu dono firmemente nas altas camadas da sociedade, o mundo que São Paulo condenava com eloquência pela embriaguez e fornicação.

Não temos certeza, mas achamos que a Taça de Warren foi encontrada no subsolo perto de Bittir, cidade poucos quilômetros a sudoeste de Jerusalém. Como ela chegou àquele lugar é um mistério, mas temos um palpite. É possível datar a fabricação desta taça em por volta do ano 10. Mais ou menos cinquenta anos depois, a ocupação romana de Jerusalém provocou entre os governantes e a comunidade judaica um clima de forte tensão, que explodiu no ano 66. Os judeus tomaram a cidade de volta à força. Houve confrontos violentos, e o proprietário de nossa taça talvez a tenha enterrado nessa época antes de fugir da briga.

Depois disso, a taça desapareceu por quase dois mil anos, até ser comprada por Edward Warren em Roma em 1911. Durante anos após sua morte, em 1928, foi impossível vendê-la: o tema era chocante demais para qualquer colecionador em potencial. Em Londres, o British Museum recusou-se a comprá-la, assim como o Museu Fitzwilliam, de Cambridge, e a certa altura a taça chegou a ser impedida de entrar nos Estados Unidos, quando a natureza explícita de suas imagens ofendeu um funcionário da alfândega. Só em 1999, bem depois de as atitudes públicas em relação à homossexualidade terem mudado, o British Museum comprou a Taça de Warren — até então a aquisição mais cara de sua história. Um cartum da época mostrou um barman romano perguntando insolentemente a um freguês: “Vai uma taça hétero ou uma taça gay?”

Cem anos depois de Warren tê-la comprado, a taça está em exposição permanente no museu e cumpre um objetivo de grande utilidade. Não é apenas uma magnífica peça de metalurgia imperial romana: de taça de festa a cálice escandaloso e, finalmente, icônica peça de museu, este objeto nos lembra que a atitude das sociedades para com as relações sexuais nunca é rígida.



Nota:

[*] PLAUTUS. Curculio. Traduzido em WILLIAMS, Dyfri. The Warren Cup. Londres: British Museum Press, 2006.



(A história do mundo em 100 objetos; tradução de Ana Beatriz Rodrigues, Berilo Vargas e Cláudio Figueiredo)



(Ilustrações do livro)

domingo, 1 de junho de 2025

AS ROSAS TÊM PRESSA, de Abel Silva




As rosas têm pressa

querem explodir

pois é breve

a glória da flor.



O colibri também sabe

que começa a minar

de leve,

no fundo do cálice perfumado,

o néctar de seus dias.



Se as plantas, os bichos,

os ventos, as águas,

se tudo sabe,

por que em meu peito

ainda cabe



o agasalho

da melancolia?



Se já tenho as milhagens

da fria viagem,

se já é setembro no Rio

enfim, caralho!



Por que o inverno

insiste em mim

com seus dedos crispados

de arrepios?





(O gosto dos dias)



(Ilustração: Edouard Manet - Sur la plage)

quinta-feira, 29 de maio de 2025

O DRAGÃO NA MINHA GARAGEM, de Carl Sagan

 



"Suponhamos que eu lhe faça seriamente a seguinte afirmação:

— Um dragão que cospe fogo pelas ventas vive na minha garagem.

Com certeza você iria querer verificá-la, ver por si mesmo. Afinal, são inumeráveis as histórias de dragões no decorrer dos séculos, mas não há evidências concretas de sua existência. Que oportunidade!

— Mostre-me! — você diz. Eu levo você até a minha garagem. Você olha para dentro e vê uma escada de mão, latas de tinta vazias, um velho triciclo, mas nada de dragão.

— Onde está o dragão? — você pergunta.

— Oh, está ali — respondo, acenando vagamente. — Esqueci de lhe dizer que é um dragão invisível.

Você propõe espalhar farinha no chão da garagem para tornar visíveis as pegadas do dragão.

— Boa ideia — digo eu —, mas esse dragão flutua no ar.

Então você quer usar um sensor infravermelho para detectar o fogo invisível.

— Boa ideia, mas o fogo invisível é também desprovido de calor.

Você quer borrifar o dragão com tinta para torná-lo visível.

— Boa ideia, só que é um dragão incorpóreo e a tinta não vai aderir.

E assim por diante. Eu me oponho a todo teste físico que você propõe com uma explicação especial (explicação ad hoc [1]) de por que não vai funcionar.

​Ora, qual é a diferença entre um dragão invisível, incorpóreo, flutuante, que cospe fogo atérmico, e um dragão inexistente? Se não há como refutar minha afirmação, se nenhum experimento concebível vale contra ela, o que significa dizer que o meu dragão existe? A sua incapacidade de invalidar a minha hipótese não é absolutamente a mesma coisa que provar a veracidade dela[2]. Alegações que não podem ser testadas, afirmações imunes a refutações não possuem caráter verídico, seja qual for o valor que elas possam ter por nos inspirar ou estimular nosso sentimento de admiração. O que estou pedindo a você é tão somente que, em face da ausência de evidências, acredite na minha palavra.

[…]

Imagine que as coisas tivessem acontecido de outra maneira. O dragão é invisível, certo, mas aparecem pegadas na farinha enquanto você observa. O seu detector de infravermelho lê dados fora da escala. A tinta borrifada revela um espinhaço denteado oscilando à sua frente. Por mais cético que você pudesse ser a respeito da existência dos dragões — ainda mais dragões invisíveis —, teria de reconhecer que existe alguma coisa no ar, e que de forma preliminar ela é compatível com um dragão invisível que cospe fogo pelas ventas.

A hipótese de que um dragão, com as características apontadas acima, viva numa garagem não pode ser considerada seriamente pela ciência, porque não há como testá-la. Se não há como testar se o dragão existe ou não, então, para a ciência, é como se ele não existisse.

Mas e se ele existir, apesar da ciência não poder comprová-lo? Bem, a ciência só vai se importar com ele, quando houver como testar sua existência. Podemos pensar em uma situação semelhante, mais realista: O que aconteceria se alguém propagandeasse a existência da radioatividade no século XVII (anos 1600), mas não tivesse base teórica, nem metodológica para demonstrar sua existência? Certamente, ele seria taxado de louco e nenhum cientista 'sério' se ocuparia da ideia, então. Seria um erro dos cientistas?

Provavelmente, não. Afinal, o que eles poderiam aprender a partir da mera ‘informação’ da existência de algo cuja existência eles sequer conseguem verificar? Como eles poderiam entender ou usar tal ‘conhecimento’? Apenas a partir do momento em que a ciência estivesse preparada para detectar, medir e estudar a radioatividade, o conhecimento da existência deste fenômeno se tornaria relevante para ela. E foi só quando ela atingiu este amadurecimento é que a radioatividade foi descoberta...

Isto significa que não vale a pena se preocupar com a opinião da ciência no que se refere a afirmações, hipóteses e ideias não testáveis?

Antes de mais nada, é preciso notar que a ciência não tem o poder, nem a intenção, de obrigar ninguém a acreditar ou desacreditar em nada. Em segundo lugar, é preciso considerar que há, ainda, dois níveis distintos de decisões que se pode tomar com referência a uma determinada afirmação: decisões de cunho eminentemente pessoal, e decisões que afetam uma comunidade ou sociedade. Assim, digamos que alguém afirme que: "Eu me comunico telepaticamente com um alienígena e ele me disse que o mundo vai acabar em uma semana. Ele me avisou, ainda, que todos os que pretendam se salvar devem abandonar tudo o que têm e se lançar ao mar, onde serão resgatados por naves que os levarão a outro planeta". Você tem todo o direito de acreditar e se lançar ao mar. Mas e se você fosse o líder supremo da nação e quisesse obrigar todos os cidadãos de seu país a se lançarem ao mar para se salvarem, porque você acreditou neste 'aviso'? Você teria o direito de obrigar a todos a se arriscarem ao afogamento e seguirem as instruções dos pretensos alienígenas?

A ciência sugere critérios e procedimentos para avaliação de hipóteses que permitam a tomada de decisões, quando essas decisões vão afetar uma coletividade heterogênea e não podem depender de crenças ou ideias pessoais não consensuais. Esses critérios e procedimentos se baseiam na avaliação objetiva de evidências concretas. Quando a ciência apresenta uma explicação para um fato, ela não é necessariamente a verdade absoluta, mas ela foi testada e corroborada pelos testes a que ela foi submetida e, portanto, é uma explicação que funciona, pelo menos nas condições em que foi testada. No extremo oposto, temos indivíduos que nos apresentam explicações não testáveis, das quais, no final das contas, algumas talvez sejam verdade: mas como distingui-las de charlatanices, vigarices e maluquices? Como distinguir dragões invisíveis e incorpóreos, que cospem fogo frio pela venta de dragões que não existem? Vale a pena depositar o destino de nossas vidas em explicações cuja veracidade não temos como comprovar?

Notas:

[1] Ad hoc: Com uma finalidade específica. No contexto das ideias científicas, são proposições ou explicações sem suporte de evidências, construídas especificamente para dar suporte a uma ideia.

[2] Esta é uma proposição muito importante no contexto da ciência moderna: a incapacidade de provar que uma hipótese é falsa não equivale a provar que a hipótese é verdade!



(O Mundo Assombrado por Demônios; tradução de Rosaura Einchemberg)



(Ilustração : Marc Trabys - Le réveil du dragon)

segunda-feira, 26 de maio de 2025

CANÇÃO, de Sóror Violante do Céu

 


Amante pensamento,

Núncio de amor, correio da vontade,

Emulação do vento,

Lisonja da mais triste soledade,

Ministro da lembrança,

Gosto na posse, alívio na esperança,

 

Já que de minhas queixas

A causa idolatrada vás seguindo,

Diz-lhe qual me deixas:

Diz-lhe que estou morta, mas sentindo,

Que pode mal tão forte

Fazer que sinta (ai triste!) a mesma morte.

 

Diz-lhe que é já tanto

O pesar de me ver tão dividida,

Que só me causa espanto

A sombra que me segue de üa vida

Tão morta para o gosto

Como via (ai de mi!) para o desgosto.

 

Diz-lhe que me mata

Quem, vendo-me morrer sem resistência,

De socorrer-me trata,

Pois para quem padece o mal de ausência

Que é só remédio entendo

Ver o que quer ou fenecer querendo.

 

Diz-lhe que a memória

Toma por instrumento do meu dano

A já passada glória,

Fazendo o mais suave tão tirano,

Que o bem mais estimado

Me passa o coração, porque é passado.

 

Diz-lhe que se sabe

O poder de üa ausência rigorosa,

Que a que começa acabe

Antes que ela me acabe poderosa,

Pois de tal modo a sinto,

Que julgo ter por eterno o mais sucinto.

 

Diz-lhe que se admite

Rogos de um coração que o segue amante,

Que ver-me solicite

Apesar do preciso e do distante,

E que tão cedo seja

Que toda a compaixão se torne inveja.

 

Diz-lhe que se acorde

De uns efeitos de amor que encarecia,

E que todos recorde,

Mas que seja um minuto cada dia,

Pois eu cada minuto

Infinitas lembranças lhe tributo.

 

Diz-lhe que até à morte

Assistência contínua lhe ofereces,

E que te invejo a sorte;

E enfim, se de meu mal te compadeces,

Ó pensamento amigo,

Diz-lhe tudo, ou leva-me contigo.

 

(Ilustração: Jean Despujols - la pensée, c.1929)

sexta-feira, 23 de maio de 2025

ENSINAR A TRISTEZA, de Rubem Alves


Meus amigos, com a melhor das intenções, têm se queixado, dizendo que há muita tristeza no intervalo das coisas que escrevo. Essa observação mexeu comigo. Fez-me lembrar uma crônica que escrevi faz muito tempo. Era sobre a poeta Helena Kolody, que eu acabara de descobrir. Seus poemas não são alegres. São alegres-tristes.

Dentre os escritos da Helena Kolody encontrei este mínimo poema: “Buscas ouro nativo entre a ganga da vida. Que esperança infinita no ilusório trabalho… Para cada pepita, quanto cascalho”.

Gosto de ler as Escrituras Sagradas. Mas leio como quem garimpa ouro. Para se encontrar uma pequena pepita, quanto cascalho há de se jogar fora! Acho até que foi arte de Deus… Foi ele mesmo que misturou cascalho e pepitas, alegria e tristeza, pra separar os maus dos bons leitores. Os maus leitores não sabem separar as pepitas do cascalho…

Nas minhas garimpagens pelas Escrituras Sagradas encontrei esta pepita: “Melhor é a tristeza que o riso. Porque com a tristeza do rosto se faz melhor o coração”.

Esse texto me apareceu na memória quando eu pensava sobre uma pergunta estranha que me perseguia: “Pode-se ensinar compaixão?”. Essa pergunta surgiu quando minha neta, sem razão alguma, deixou a mesa no meio do almoço e foi para a sala da televisão chorar. Fui atrás dela para entender a razão do seu choro. Ela me disse: “Vô, quando eu vejo uma pessoa chorando, o meu coração fica triste junto ao coração dela…”.

Sem o saber, a menina havia definido o que é a compaixão. Eu não disse. Quem disse foi a Adélia, que “a poesia é pura compaixão”. A poesia é triste. E acrescentou, pra ninguém entender, “por prazer da tristeza eu vivo alegre”.

Haverá uma pedagogia da tristeza? Estranho pensar que um professor, ao iniciar o seu dia, possa dizer para si mesmo: “Vou ensinar tristeza aos meus alunos…”. Eu mesmo nunca havia pensado nisso. E todos os terapeutas, não importando a sua seita, em última instância estão envolvidos numa batalha contra a tristeza. E agora eu digo esse absurdo, que tristeza é pra ser ensinada, pra fazer melhor o coração.

A poesia nasce da tristeza. Alberto Caeiro era amigo da sua tristeza: “Mas eu fico triste como um pôr de sol quando esfria no fundo da planície e se sente a noite entrada como uma borboleta pela janela”. E concluiu: “Mas minha tristeza é sossego porque é natural e justa e é o que deve estar na alma…”. Num outro lugar, Fernando Pessoa escreveu algo mais ou menos assim: “Ah! A imensa felicidade de não precisar de estar alegre…”.

Existe uma perturbação psicológica ainda não identificada como doença. Ela aparece num tipo a que dei o nome de “o alegrinho”. O alegrinho é aquela pessoa que está o tempo todo esbanjando alegria, dizendo coisas engraçadas, e querendo que os outros riam. Ele é um flagelo. Perto dele ninguém tem a liberdade de estar triste. Perto dele todo mundo precisa estar alegre… Porque ele não consegue estar triste, o alegrinho não consegue ouvir a beleza dos noturnos de Chopin, nem sentir as sutilezas da poesia da Cecília Meireles, nem gozar o silêncio triste da beleza do crepúsculo. Sempre alegrinho, na sua alma não há espaço para sentir a compaixão. Para haver compaixão, é preciso saber estar triste. Porque compaixão é sentir a tristeza de um outro.

Houve um menino que chorou ao ler a estória O patinho que não aprendeu a voar. Aconteceu assim: o seu pai comprou o livro esperando que eu, o autor, fosse um alegrinho e que o livro iria fazer seu filho dar muitas risadas. Voltou no dia seguinte muito bravo. Trazia o livro na mão, para devolvê-lo. Ao invés de dar risadas, no fim da estória o seu filho pôs-se a chorar. A estória é, de fato, triste. Eu a escrevi para o meu filho que estava passando por uma crise de vagabundagem. O seu prazer nas vagabundagens era tanto que ele não queria saber de aprender. O patinho também não queria saber de aprender. Não pôde voar com seus irmãos quando chegou a estação das migrações.

O menininho tinha razões para chorar? Não. As razões do seu choro não eram dele. Eram do patinho. Ele sofria o sofrimento do patinho. O seu coração batia junto ao coração do patinho. Mas o patinho não existia. Era apenas um personagem inventado de uma estória do mundo do “era uma vez”. E o menino sabia disso. Mas, a despeito disso, ele chorava. Aqui está um dos grandes mistérios da alma humana: a alma se alimenta com coisas que não existem.

Eu havia levado minha filha de seis anos para ver o E. T. Ao fim do filme ela chorava convulsivamente. Jantou chorando. Resolvi fazer uma brincadeira: “Vamos no jardim ver a estrelinha do E. T.!”. Fomos, mas o céu estava coberto de nuvens. Não se via a estrelinha do E. T. Improvisei. Corri para trás de uma árvore e disse: “O E. T. está aqui!”. Ela me disse: “Não seja tolo, papai. O E. T. não existe!”. Contra-ataquei: “Não existe? E por que você estava chorando se ele não existe?”. Veio a resposta definitiva: “Eu estava chorando porque o E. T. não existe…”.

Volto então à pergunta que fiz sem saber a resposta. O menino chorou ao ler a estória do patinho. Mas o patinho não existia. Minha filha chorou ao ver o filme do E. T. Mas o E. T. não existia. Pensei então que um caminho para se ensinar compaixão, que é o mesmo caminho para se ensinar a tristeza, são as artes que trazem à existência as coisas que não existem: a literatura, o cinema, o teatro. As artes produzem a beleza. E a beleza enche os olhos d’água…

Meus amigos podem ficar tranquilos. Sou triste sim. Mas minha tristeza “é natural e justa e é o que deve estar na alma…”. Volto às Escrituras Sagradas: “Com a tristeza do rosto se faz melhor o coração”. É isso que desejo ensinar aos meus alunos…



(Pimentas – para provocar um incêndio, não é preciso fogo)


(Ilustração: Edward Hopper).     

terça-feira, 20 de maio de 2025

LA PHILOSOPHIE / A FILOSOFIA, de Sully Prudhomme

 


Cette femme qui, triste, en soi-même descend,

Debout, le front penché, c’est la Philosophie.

Solitaire, dans l’ombre elle entre, et se confie,

La main sur la poitrine, à l’appui qu’elle y sent.



La terre, les saisons, l’azur resplendissant,

Toutes les voluptés trompeuses de la vie,

Les choses qu’on peut voir, ne lui font point envie,

Elle réclame et cherche un éternel absent.



Vierge auguste, je t’aime et je connais ta peine.

En approchant de toi, je retiens mon haleine,

Pour que nul souffle humain ne trouble ton labeur,



Car j’attends de ta bouche à se taire obstinée

Le mot que je désire et dont pourtant j’ai peur,

Le mot de ma naissance et de ma destinée.



Tradução de Antônio Sales:



Uma triste mulher, que em si mesma, silente,

Se abisma, em pé, curvada – eis a Filosofia.

Solitária, na sombra entra, e ali se confia

Aos impulsos da fé que em seu íntimo sente.



A terra, as estações, o azul resplandecente,

A volúpia falaz que da vida irradia,

Tudo o que o nosso olhar percebe, a deixa fria:

Ela reclama e busca um sempiterno ausente.



Virgem augusta, eu te amo e o teu pesar compreendo;

De ti me aproximando, o meu hálito prendo,

Para não perturbar o teu labor divino,



Porque de tua boca eu espero o segredo

Que desejo saber e de que tenho medo:

– Minha origem qual é e qual é meu destino?





(O Soneto, ensaio de Cruz Filho, 1961)



(Ilustração: Rodin - o pensador na porta do inferno)

sábado, 17 de maio de 2025

A ORIENTAÇÃO DOS GATOS, de Julio Cortázar

 


Quando Alana e Osíris me olham não posso reclamar da menor dissimulação, do menor jogo duplo. Me olham de frente, Alana com sua luz azul e Osíris com seu raio verde. Também se olham assim entre si, Alana acariciando o lombo negro de Osíris que levanta o focinho do prato de leite e mia satisfeito, mulher e gato conhecendo-se desde planos que me escapam, que minhas carícias não conseguem rebaixar. Já faz tempo que renunciei a todo domínio sobre Osíris, somos bons amigos desde uma distância infranqueável; mas Alana é minha mulher e a distância entre nós é outra, algo que ela não parece sentir mas que se interpõe na minha felicidade quando Alana me olha, quando me olha de frente igual a Osíris e me sorri ou me fala sem a menor reserva, se doando em cada gesto e em cada coisa como se doa no amor, aí onde todo o seu corpo é como seus olhos, uma entrega absoluta, uma reciprocidade ininterrupta.

É estranho; mesmo renunciando entrar em cheio no mundo de Osíris, meu amor por Alana não aceita essa crueza de coisa concluída, de casal para sempre, de vida sem segredos. Por detrás desses olhos azuis tem mais, no fundo das palavras e dos gemidos e dos silêncios se esconde um outro reino, respira outra Alana. Nunca lhe disse isso, gosto demais dela para arranhar essa superfície de felicidade na qual tantos dias, tantos anos já se deslizaram. À minha maneira me obstino em compreender, em descobrir; observo-a mas sem espiar; sigo-a mas sem desconfiar; amo uma maravilhosa estátua mutilada, um texto inconcluso, um fragmento de céu na janela da vida.

Houve um tempo em que a música me pareceu o caminho que me levaria de verdade até Alana, quando a via escutar nossos discos de Bartók, de Duke Ellington, de Gal Costa, uma paulatina transparência me afundava nela, exposta pela música com uma nudeza distinta, transformada cada vez mais em Alana porque Alana não pode ser somente essa mulher que sempre me olhava em cheio sem ocultar nada. Contra Alana, além de Alana eu a buscava para amá-la melhor; e se num princípio a música me deixou entrever outras Alanas, chegou o dia em que frente a uma gravura de Rembrandt eu a vi mudar ainda mais, como se um jogo de nuvens no céu aterrasse bruscamente as luzes e sombras de uma paisagem. Senti que com a pintura ela era levada além de si mesma para esse único espectador que podia medir a instantânea metamorfose nunca repetida, a entrevisão de Alana em Alana. Interesses involuntários, Keith Jarret, Beethoven e Aníbal Troilo me haviam ajudado a chegar mais perto, só que frente a um quadro ou uma gravura Alana se despojava ainda mais disso que acreditava ser, por um momento estava num mundo imaginário para inadvertidamente sair de si mesma, indo de uma pintura a outra, comentando ou calada, jogo de cartas que cada nova contemplação embaralhava para aquele que, sigiloso e atento, um pouco atrás e levando-a pelo braço, via se sucederem as rainhas e os ases, espadas e paus, Alana.

O que se podia fazer com Osíris? Dar seu leite, deixá-lo em seu novelo preto satisfeito e ronronante; mas a Alana eu podia levá-la até essa galeria de quadros como fiz ontem, mais uma vez assistir a um teatro de espelho e de câmaras escuras, de imagens tensas na tela frente a essa outra imagem de alegres jeans e blusinha vermelha que depois de apagar o cigarro na entrada ia de quadro em quadro, se detendo exatamente à distância que sua visão requeria, virando para mim a cada tanto para comentar ou comparar. Jamais poderia descobrir que eu não estava aí pelos quadros, que um pouco atrás ou de lado minha maneira de observar não tinha nada a ver com a sua. Jamais se daria conta que o seu lento e reflexivo passar de quadro em quadro a transformava ao ponto de me obrigar a fechar os olhos e lutar para não apertá-la nos braços delirante, em uma loucura de corrida em plena rua. Desenvolta, leve em sua naturalidade de prazer e descobrimento, suas paradas e suas demoras se inseriam em um tempo diferente do meu, alheio à espera crispada de minha sede.

Até esse momento tudo havia sido um vago anúncio, Alana frente a Rembrandt. Mas agora minha esperança começava a se cumprir quase insuportavelmente, desde nossa chegada Alana se entregou às pinturas com uma inocência atroz de um camaleão, passando de um estado a outro sem saber que um espectador à espreita registrava na sua atitude, na inclinação de sua cabeça, no movimento de suas mãos ou lábios o cromatismo interior que a recorria até mostrar-se outra, aí onde a outra era sempre Alana se somando à Alana, as cartas se amontoando até completar o baralho. Ao seu lado, avançando aos poucos pelas paredes da galeria, eu a observava dar-se a cada pintura, meus olhos multiplicavam um triângulo fulminante que se estendia entre ela e o quadro e do quadro a mim mesmo para voltar a ela e assimilar a transformação, essa auréola diferente que a envolvia um momento para depois ceder a uma aurora nova, a uma tonalidade que a expunha à sua verdadeira, última nudez. Impossível prever até onde se repetiria essa osmose, quantas novas Alanas me levariam por fim à síntese da qual sairíamos os dois extasiados, ela sem saber e acendendo um novo cigarro antes de me pedir para tomar alguma coisa, eu sabendo que minha longa busca havia chegado a um porto e que meu amor envolveria desde então o visível e o invisível, aceitaria o olhar limpo de Alana sem incertezas de portas fechadas, de personagens censurados.

Frente a uma barca solitária e um primeiro plano de rochas negras, ela ficou imóvel por um longo tempo, um ondular imperceptível das mãos a fazia como que nadar no ar, buscar o mar aberto, uma fuga de horizontes. Eu já não podia estranhar que essa outra pintura onde uma cerca de pontas agudas restringia o acesso às árvores que a margeavam a fizesse recuar como buscando um ponto de observação, de repente era a repulsa, a negação de um limite inaceitável. Pássaros, monstros marinhos, janelas entregues ao silêncio ou deixando entrar um simulacro da morte, cada nova pintura arrasava com Alana despojando-a de sua cor anterior, arrancando dela as modulações da liberdade, do voo, dos grandes espaços, afirmando sua negativa ante a noite e o nada, sua ansiedade solar, seu impulso quase terrível de fênix. Fiquei atrás sabendo que não seria possível suportar seu olhar, sua surpresa interrogativa quando visse no meu rosto o deslumbramento da confirmação, porque isso também era eu, isso era o meu projeto Alana, minha vida Alana, isso havia sido desejado por mim e refreado por um presente de cidade e de parcimônia, isso era agora enfim Alana, enfim Alana e eu desde agora, desde já. Gostaria de tê-la nua em meus braços, amá-la de tal maneira que tudo ficasse claro, e que dessa interminável noite de amor, nós que já conhecíamos tantas, nascesse a primeira alvorada da vida.

Chegávamos ao final da galeria, me aproximei da porta de saída ainda escondendo o rosto, esperando que o ar e as luzes da rua me retornassem ao que Alana conhecia de mim. Vi que se deteve diante de um quadro que outros visitantes me haviam ocultado, ficou imóvel demoradamente olhando uma pintura de uma janela e um gato. Uma última transformação fez dela uma lenta estátua nitidamente separada dos demais, de mim mesmo que me aproximava indeciso buscando seus olhos perdidos na tela. Vi que o gato era idêntico a Osíris e que olhava ao longe algo que a parede da janela não nos deixava ver. Imóvel em sua contemplação, parecia menos imóvel que a imobilidade de Alana. De alguma forma senti que o triângulo se havia quebrado, quando Alana voltou a cabeça para mim o triângulo já não existia, ela tinha ido ao quadro mas não estava de volta, seguia ao lado do gato olhando além da janela onde ninguém podia ver nada do que eles viam, o que somente Alana e Osíris viam cada vez que me olhavam de frente.



(Tradução de Bruno Angelo)


(Ilustração: Martine Clouet)

quarta-feira, 14 de maio de 2025

PORTUGAL / PORTUGAL, de Miguel de Unamuno


     

Del Atlántico mar en las orillas

desgreñada y descalza una matrona

se sienta al pié de sierra que corona

triste pinar. Apoya en las rodillas

los codos y en las manos las mejillas

y clava ansiosos ojos de leona

en la puesta del sol. El mar entona

su trágico cantar de maravillas.

Dice de luengas tierras y de azares

mientras ella sus piés en las espumas

bañando sueña en el fatal imperio

que se le hundió en los tenebrosos mares,

y mira como entre agoreras brumas

se alza Don Sebastián rey del misterio.



Tradução de José Bento:



Do atlântico mar na praia areosa

uma matrona descalça e desgrenhada

senta-se ao pé de uma serra coroada

por triste pinheiral. Nos joelhos pousa



os cotovelos e nas mãos a ansiosa

face, e olhos de leoa desconfiada

crava no poente; o mar dá a toada

trágica, de altos feitos sonorosa.



Fala de vastas terras e de azares

enquanto ela, seus pés nessas espumas

banhando, sonha no fatal império



que se sumiu nos tenebrosos mares,

e olha como entre agoureiras brumas

se ergue D. Sebastião, rei do mistério.



Salamanca, 28 IX 1910



(Antologia Poética, 2003)


(Ilustração: Cristóvão de Morais - D. Sebastião O Desejado, 1571)

domingo, 11 de maio de 2025

O MILITAR QUE VIA TUDO A DOBRAR, de Joseph Heller

 



Yossarian devia a sua boa saúde ao exercício, ao ar puro, ao trabalho de equipa e ao bom desportivismo, e fora para se esquivar a tudo isso que descobrira o hospital. Quando o oficial de educação física do Campo Lowery ordenou que destroçassem para a calistenia, o soldado raso Yossarian, ao invés, apresentou-se no dispensário, com uma dor no lado direito.

– Põe-te a andar – indicou o médico de serviço, concentrado num problema de palavras cruzadas.

– Não o podemos mandar pôr-se a andar – acudiu um cabo. – Saiu uma nova directiva acerca das afecções abdominais. Temos de manter o paciente em observação durante cinco dias, porque morreram muitos depois de os mandarmos porem-se a andar.

– Está bem – resmungou o médico. – Mantenham-no em observação durante cinco dias e depois que se ponha a andar.

Despiram Yossarian e levaram-no para uma enfermaria, onde se sentia feliz quando ninguém das proximidades roncava. De manhã, um interno inglês jovem e solícito assomou à entrada para lhe perguntar pelo fígado.

– Desconfio que é o apêndice que me incomoda – esclareceu Yossarian.

– O apêndice não serve – advertiu o outro, em tom autoritário revestido de pedantismo. – Se estiver inflamado, podemos extraí-lo e você regressa ao activo sem demora. Mas se se queixar do fígado, pode iludir-nos durante semanas. O fígado representa um vasto e hediondo mistério, para nós. Se alguma vez comeu fígado frito, compreende o que quero dizer. Os estudos mais recentes permitem-nos concluir que ele existe de facto e fazer uma ideia geral da sua acção, quando funciona devidamente. Para além disso, ainda navegamos nas trevas. No fundo, o que é um fígado? O meu pai, por exemplo, morreu de cancro no fígado e não esteve doente uma única vez até ao momento em que isso o matou. Nunca tinha sentido a mínima dor. Até certo ponto, não fiquei muito contente, porque não o podia ver. Manifestava um apetite sexual voraz pela minha mãe, sabe.

– Que faz um médico inglês aqui?

– Amanhã explico-lhe, quando vier observá-lo – declarou, com uma risada. – E largue esse saco de gelo, antes que morra de pneumonia.

Yossarian não o tornou a ver. Era uma das coisas agradáveis acerca de todos os médicos dos hospitais: os pacientes nunca os viam segunda vez. Entravam, saíam e desapareciam para sempre. Em lugar do interno inglês, no dia seguinte apareceu um grupo de médicos que ele nunca vira, que lhe perguntaram pelo apêndice.

– Não tenho nada no apêndice – informou ele. – O médico de ontem disse que se tratava do fígado.

– Talvez seja o fígado – admitiu o oficial de cabelos brancos que chefiava o grupo. – Que indica a contagem dos glóbulos vermelhos?

– Não foi feita nenhuma.

– Então, tratem disso imediatamente. Não podemos correr riscos com um paciente nesta condição. Temos de nos proteger, para a eventualidade de morrer. – Inscreveu algumas palavras na pequena prancheta aos pés da cama e dirigiu-se a Yossarian. – Entretanto, não largues o saco de gelo. Lembra-te desta importante recomendação.

– Não tenho saco de gelo.

– Então, pede-o. Tem de haver um por aí, algures. E se a dor se tornar insuportável, previne.

Transcorridos dez dias, outro grupo de médicos procurou Yossarian com más notícias: estava de perfeita saúde e tinham de lhe dar alta. Foi salvo no momento crítico por um paciente na correnteza de camas em frente, que começou a ver tudo a dobrar. Sem aviso prévio, sentou-se na cama e bradou:

– Vejo tudo a dobrar!

Uma enfermeira soltou um uivo de pavor e um servente desmaiou, enquanto acudiam médicos de todos os lados, munidos de seringas, lanternas, martelos de borracha e pequenas tinas metálicas, além de um carro carregado de instrumentos. Não havia espaço suficiente em torno do paciente para se instalarem, pelo que houve necessidade de se colocarem em fila, pois o contingente aumentou com a incorporação de alguns especialistas, ouvindo-se protestos de impaciência provenientes dos retardatários, receosos de que não existisse nada de interessante para observar quando chegasse a sua vez. Um coronel de fronte larga e óculos de aros de tartaruga não tardou a elaborar um diagnóstico.

– Só pode ser meningite – declarou em tom enfático, fazendo sinal aos outros para que retrocedessem –, embora não exista nenhuma razão de peso que o indique.

– Nesse caso, porque optou pela meningite? – quis saber um major, com um leve sorriso. – Porque não nos contentamos com nefrite aguda?

– Porque sou especialista de meningites e não de nefrites agudas. E garanto que não vou ceder a famintos de rins como vocês sem luta renhida. Aliás, fui o primeiro a aparecer.

Por fim, chegaram a um consenso. Admitiram que não faziam a menor ideia do que sofria o militar que via tudo a dobrar e levaram-no para um quarto particular ao fundo do corredor, ao mesmo tempo que colocavam todos os outros ocupantes da enfermaria em situação de quarentena.

O Dia de Acção de Graças [1] chegou e terminou sem problemas, enquanto Yossarian continuava no hospital. O único inconveniente foi o peru ao jantar, e mesmo assim estava muito saboroso. Foi o Dia de Acção de Graças mais racional da sua vida, e ele prometeu a si próprio passar todos os futuros na atmosfera tranquila de um hospital. Faltou à promessa logo no ano seguinte, pois passou-o num quarto de hotel, entretido em diálogo intelectual com a mulher do tenente Scheisskopf, que envergava o uniforme de Dons Duz para o efeito e admoestou maliciosamente Yossarian por se revelar cínico e pouco respeitador do Dia de Acção de Graças, embora ela também não fosse uma crente fanática.

– Talvez seja tão ateia como tu – especulou, condescendente. – Apesar disso, penso que todos temos muitas coisas pelas quais nos mostremos gratos, e não devemos envergonhar-nos de o demonstrar.

– Indica uma coisa pela qual me deva mostrar grato –desafiou ele, sem interesse especial.

– Bem... – A mulher do tenente Scheisskopf pareceu cismar por um momento. – Eu, por exemplo.

– Deixa-te de brincadeiras.

– Não te sentes grato por minha causa? – inquiriu, arqueando as sobrancelhas. – Não sou obrigada a ir para a cama contigo, como sabes – proclamou com dignidade glacial. – O meu marido tem todo um esquadrão cheio de cadetes da aviação que deliravam por poderem ir para a cama com a mulher do seu comandante, só para enaltecerem o ego.

Yossarian decidiu mudar de assunto.

– Estás a mudar de assunto – acusou diplomaticamente.– Aposto que sou capaz de mencionar duas coisas que me entristecem por cada uma que te alegra. – Mostra-te grato por me possuíres – insistiu ela.

– E estou, podes crer, mas também me entristece o facto de não poder voltar a possuir Doris Duz. Ou as centenas de outras raparigas que verei e desejarei na minha breve vida e não poderei levar para a cama.

– Mostra-te grato por teres saúde.

– E amargurado por não a ter eternamente.

– Mostra-te grato por estares vivo.

– E furioso por ter de morrer.

– As coisas podiam ser muito piores.

– E muitíssimo melhores – afirmou ele, acalorado.

– Só indicas uma coisa – protestou ela. – Disseste que indicarias duas por cada uma das minhas.

– E não me venhas com a fábula de que Deus escreve direito por linhas tortas. Não vejo o que há de extraordinário nisso. Quanto a mim, não escreve absolutamente nada. Entretém-se a brincar. Ou então esqueceu-se de nós por completo. É desse tipo de Deus que vocês falam: um rústico simplório, um campónio desajeitado, desmiolado e presumido. Que reverência se pode sentir por um ser supremo que considera necessário incluir fenómenos como o flegma e a cárie dentária no Seu sistema de criação divina? Que confusão lhe invadia os miolos quando privou do poder pessoas veneráveis e idosas para controlar os seus movimentos? Por que carga de água criou a dor?

– A dor? – repetiu a mulher do tenente Scheisskopf, pegando na palavra vitoriosamente. – A dor é um sintoma útil. Uma advertência dos perigos do corpo.

– E quem criou os perigos? – Yossarian soltou uma risada cáustica. – Não haja dúvida de que se mostrou caritativo quando nos concedeu a dor! Porque não se serviu antes de uma campainha de porta para nos prevenir ou de um dos seus coros celestiais? Ou de um sistema de tubos de néon azuis e vermelhos colocados no meio da testa de cada pessoa? Qualquer fabricante de máquinas de discos que se preza faria melhor. Porque não Ele?

– Não te parece que as pessoas ficavam ridículas com luzes coloridas na testa?

– Achas que têm melhor aspecto contorcendo-se com dores ou tornadas estúpidas com morfina? Que colossal e imortal trapalhão! Quando consideramos a oportunidade e poder de que dispôs para efectuar um trabalho excelente e vemos com o que se saiu, a Sua incompetência é quase inacreditável. Nota-se bem que nunca teve de trabalhar para ganhar a vida. Nenhum homem de negócios digno desse nome incluiria um trapalhão desses na sua folha de salários, nem mesmo para paquete!

A mulher do tenente Scheisskopf empalidecera de incredulidade e fitava-o com uma expressão de alarme.

– Não te aconselho a falares assim d’Ele, querido – advertiu numa inflexão suave e hostil. – Pode castigar-te.

– Não me está já a castigar? Não podemos permitir que se safe. Não, senhor! Não podemos permitir que se safe com toda a amargura que nos causou. Um dia, hei-de obrigá-Lo a pagar tudo junto. E sei quando. No dia do Juízo Final. Sim, nessa altura estarei suficientemente perto para agarrar aquele labrego pelo pescoço...

– Cala-te! Cala-te! – bradou a mulher do tenente Scheisskopf, batendo-lhe com os punhos na cabeça. – Pára com isso!

Yossarian refugiou-se atrás do braço levantado, enquanto ela continuava a dar livre curso à fúria feminina durante uns segundos, até que lhe segurou os pulsos com firmeza e obrigou-a a reclinar-se na cama.

– Por que diabo estás tão abespinhada? – perguntou, divertido. – Julgava que não acreditavas em Deus.

– E não acredito – soluçou ela. – Mas o Deus no qual não acredito é bondoso, justo, misericordioso e não o homem estúpido e mal-intencionado que tu pintas.

– Muito bem. – Ele soltou-lhe os pulsos e deu uma gargalhada. – Vamos instaurar um pouco mais de liberdade religiosa entre nós. Tu não acreditas no Deus que quiseres e eu não acredito no Deus que quiser. Combinado?

Era o Dia de Acção de Graças mais ilógico de que conseguia recordar-se, e os seus pensamentos regressaram com nostalgia à alciónica quarentena de catorze dias no hospital, no ano anterior. No entanto, esse idílio também terminara com uma nota trágica: continuava de boa saúde no final da quarentena e anunciaram-lhe que ia ter alta e devia voltar para a guerra. Quando ouviu a má notícia, sentou-se na cama e vociferou:

–Vejo tudo a dobrar!

Tornou a estabelecer-se pandemónio na enfermaria. Os especialistas acudiram aceleradamente de todos os lados e envolveram-no num círculo de escrutínio tão apertado, que Yossarian notava o alento húmido das diferentes entranhas incidindo desconfortavelmente em cada centímetro quadrado do seu corpo.

Esquadrinharam-lhe os olhos e os ouvidos com focos luminosos de largura milimétrica, atacaram-lhe as pernas e os pés com martelos de borracha e forquetas vibratórias, extraíram-lhe sangue das veias e mostraram-lhe diversos objectos para ver na periferia do seu campo visual.

O chefe da equipa de médicos era um indivíduo de aspecto digno e solícito, que ergueu um dedo diante do nariz de Yossarian e perguntou:

– Quantos dedos vês?

– Dois.

– E agora? – volveu, mostrando dois.

– Dois.

– E agora? – Desta vez, não mostrou nenhum.

– Dois – persistiu Yossarian.

O semblante do médico alterou-se num largo sorriso.

– Com a breca! – exclamou, radiante. – Ele vê de facto tudo a dobrar!

Transferiram Yossarian para uma maca e levaram-no para o quarto onde se encontrava o outro militar que via tudo a dobrar, após o que colocaram os restantes ocupantes da enfermaria em regime de quarentena por mais catorze dias.

– Vejo tudo a dobrar! – bradou o militar que via tudo a dobrar, quando introduziram Yossarian no quarto.

– Vejo tudo a dobrar! – redarguiu este último no mesmo tom, piscando o olho.

– As paredes! As paredes! Afastem as paredes!

– As paredes! As paredes! Afastem as paredes!

Um dos médicos fingiu que empurrava uma das paredes e perguntou, solícito:

– Está bem assim?

O militar que via tudo a dobrar assentiu com uma inclinação de cabeça e afundou-a no travesseiro, enquanto Yossarian o imitava, contemplando-o com profunda humildade e admiração. Não lhe restavam dúvidas de que se achava em presença de um mestre. O seu talentoso companheiro de quarto merecia obviamente ser estudado e emulado. Durante a noite, o talentoso companheiro de quarto morreu e ele decidiu que não merecia a pena seguir-lhe o exemplo àquele extremo.

– Vejo tudo a dobrar! – apressou-se a gritar.

Acudiu novo grupo de especialistas, acompanhados de toda a bateria de instrumentos, e o chefe apressou-se a perguntar:

– Quantos dedos vês? – E ergueu um.

– Um.

– E agora? – Mostrou dois.

– Um.

– E agora? – Exibiu três.

– Um.

Voltou-se para os colegas, com uma expressão de assombro.

– Só vê uma coisa! Conseguimos que melhorasse muito!

– E não era sem tempo – anunciou o médico com o qual Yossarian se encontrou a sós a seguir, um homem constituído como um torpedo, com as faces por barbear e um maço de cigarros no bolso do peito da bata branca, que fumava sem interrupção, encostado à parede. – Estão lá fora uns familiares para te ver. Não te preocupes – acrescentou, com uma risada. – Não são familiares teus. É a mãe, pai e irmão do fulano que morreu. Viajaram todo o dia desde Nova Iorque para ver um militar moribundo e tu és o único disponível que temos.

– Que história vem a ser essa? – retorquiu Yossarian, desconfiado. – Não estou moribundo.

– Claro que estás. Todos estamos. Para onde diabo julgas que caminhamos?

– Não vieram para me ver – objectou. – Vieram para ver o filho.

– Têm de se contentar com o que houver. Pela parte que nos toca, um rapaz moribundo é igual a qualquer outro. Para um cientista, todos os moribundos são iguais. Quero apresentar-te uma proposta. Deixa-los entrar para te verem por uns minutos e não digo a ninguém que mentiste acerca dos sintomas do fígado.

– Está ao corrente disso? – articulou Yossarian, encolhendo-se.

– Com certeza. Não somos tapados de todo. – O médico sorriu cordialmente e acendeu novo cigarro. – Como queres que alguém acredite que sofres do fígado, se apalpas as tetas das enfermeiras sempre que se te depara uma oportunidade? Tens de abdicar do sexo, se queres convencer as pessoas de uma doença dessas.

– É um preço levado da breca só para continuar vivo. Porque não me denunciou, se sabia isso?

– Para quê? – retrucou, admirado. – Estamos todos envolvidos neste negócio da ilusão. Nunca recuso ajudar um companheiro de conspiração a sobreviver, se concorda em me pagar na mesma moeda. Essas pessoas vieram de muito longe e eu não gostava de as desapontar. No fundo, sou um sentimentalista.

– Mas vieram ver o filho.

– Chegaram demasiado tarde. Talvez nem notem a diferença.

– E se começarem a chorar?

– É provavelmente o que farão. Foi, aliás, uma das razões por que vieram. Ficarei à escuta do outro lado da porta e tratarei de intervir se as coisas se complicarem.

– Parece-me uma insensatez – observou Yossarian. – Afinal, porque querem ver o filho morrer?

– Nunca consegui compreender isso – admitiu o médico–, mas é como reagem sempre. Então, que dizes? A única coisa que tens de fazer é conservar-te quieto por uns minutos e morrer um pouco. Achas que é pedir muito?

– Está bem, se for só por uns minutos e prometer ficará à escuta. – Yossarian começou a entusiasmar-se com a ideia. – Porque não me aplica umas ligaduras, para criar ambiente?

– Tens razão. Bem pensado.

Envolveram-no em ligaduras e uma equipa de serventes instalou estores castanhos em cada uma das duas janelas e baixou-os para mergulhar o quarto numa penumbra deprimente. Yossarian sugeriu flores e o médico incumbiu um servente de ir buscar um pequeno ramo que exalava um odor pungente e enjoativo. Quando estava tudo em ordem, mandaram entrar os visitantes.

Surgiram em passos hesitantes, como se pensassem que incomodavam, em bicos dos pés e com expressões de humilde desculpa nos olhos, primeiro a mãe e o pai e a seguir o irmão, um marinheiro de ombros largos e semblante granítico. O homem e a mulher avançavam em atitudes rígidas, lado a lado, como se surgissem de um daguerreótipo de aniversário familiar, embora esotérico, da parede. Eram ambos baixos, mirrados e altivos. Pareciam feitos de ferro e tecido velho preto. A mulher tinha rosto oval alongado e bronzeado, com cabelos pretos de indícios grisalhos severamente separados ao meio e penteados para trás com austeridade, sem qualquer ornamentação. A boca era flácida e os lábios comprimidos e estreitos. O marido conservava-se empertigado e embaraçado num fato escuro demasiado apertado. Era corpulento e musculoso a uma escala reduzida e exibia um bigode grisalho irrepreensível no rosto contraído. Tinha olhos congestionados e húmidos e parecia tragicamente constrangido, de chapéu na mão calejada. A pobreza e trabalho árduo haviam produzido estragos indeléveis nos dois. Por seu turno, o filho parecia que procurava um pretexto para lutar com alguém. O barrete branco achava-se equilibrado na cabeça com uma inclinação insolente, cerrava os punhos e movia os olhos por tudo o que havia no quarto com a fronte enrugada numa expressão truculenta.

O trio adiantou-se com timidez, conservando-se junto, como numa tentativa para se apoiarem mutuamente, num cortejo fúnebre, até que se encontraram junto da cama e fixaram os olhos em Yossarian. Seguiu-se um silêncio sinistro e excruciante que ameaçava prolongar-se eternamente. Por fim, incapaz de o suportar por mais tempo, ele aclarou a voz ruidosamente e o homem murmurou:

– Está com um aspecto horrível.

– É natural, pai. Está doente.

– Giuseppe... – aventurou a mãe, que se sentara numa cadeira, com os dedos artríticos entrelaçados.

– O meu nome é Yossarian.

– O nome dele é Yossarian, mãe. Não me reconheces, Yossarian? Sou o teu irmão John. Não sabes quem sou?

– Claro que sei. És o meu irmão John.

– Ele reconhece-me! Sabe quem sou, pai. Está aqui o pai, Yossarian. Cumprimenta-o.

– Olá, pai – proferiu Yossarian.

– Olá, Giuseppe.

– O nome dele é Yossarian, pai.

– Não me conformo com o seu aspecto horrível – volveu o homem.

– Ele está muito doente, pai. O médico diz que vai morrer.

– Fiquei sem saber se devia acreditar ou não. Sabes como esses tipos se enganam.

– Giuseppe... – tornou a murmurar a mãe, numa inflexão de angústia.

– O nome dele é Yossarian, querida. Ela já não tem muito boa memória. Como te estão a tratar, filho? Não te falta nada?

– Tratam-me bem – afirmou Yossarian.

– Óptimo. Não te deixes espezinhar por ninguém. Vales tanto como os outros, apesar de descenderes de italianos. Estás em plena posse de todos os teus direitos.

Yossarian estremeceu e fechou os olhos, para não ter de olhar para o irmão John, começando a sentir-se indisposto.

– Repara agora no seu aspecto horrível – indicou o pai.

– Guiseppe... – murmurou a mãe.

– O nome dele é Yossarian – interrompeu o irmão, com impaciência. – Não te lembras?

– Não tem importância – interveio Yossarian. – Ela pode tratar-me por Giuseppe, se quiser.

– Guiseppe... – tornou ela.

– Não te preocupes, Yossarian – recomendou o irmão. –Há-de resolver-se tudo pelo melhor.

– Não te preocupes, mãe – disse Yossarian. – Há-de resolver-se tudo pelo melhor.

– Esteve cá um padre? – quis saber o irmão.

– Esteve – mentiu Yossarian, voltando a estremecer.

– Ainda bem. O essencial é que recebas tudo a que tens direito. Viemos de Nova Iorque e receávamos não chegar a tempo.

– A tempo de quê?

– De te ver antes de morreres.

– Que diferença fazia isso?

– Não queríamos que morresses sozinho.

– Que diferença fazia isso?

– Deve estar a delirar – murmurou o irmão. – Diz sempre a mesma coisa.

– Tem graça – observou o homem. – Sempre me convenci de que se chamava Giuseppe e descubro agora que é Yossarian. Tem mesmo muita graça.

– Consola-o, mãe – solicitou o irmão. – Diz alguma coisa para o animar.

– Giuseppe...

– Não é Giuseppe, mãe. Yossarian.

– Que interessa isso? – argumentou ela, no mesmo tom lúgubre, sem erguer os olhos. – Está a morrer.

Os olhos inchados marejaram-se e começou a chorar, inclinando o corpo para a frente e para trás, com as mãos pousadas no regaço, como borboletas caídas. O pai e o irmão principiaram igualmente a chorar. Por sua vez, Yossarian lembrou-se de repente porque choravam e imitou-os. Um médico que ele nunca vira entrou naquele momento para anunciar aos visitantes que tinham de se retirar e o pai empertigou-se formalmente para se despedir.

– Guiseppe... – começou.

– Yossarian – corrigiu o filho.

– Yossarian...

– Guiseppe – corrigiu Yossarian.

– Em breve, vais morrer...

Yossarian recomeçou a chorar, porém o médico lançou-lhe um olhar turvo do fundo do quarto e ele dominou-se.

Entretanto, o pai prosseguia solenemente, de cabeça inclinada para o peito:

– Quando falares com o homem lá em cima, dá-lhe um recado meu. Diz-Lhe que não está certo que as pessoas morram quando são jovens. Diz-Lhe que, se têm mesmo de morrer, que seja na velhice. Não te esqueças. Penso que Ele não sabe que não está certo, porque toda a gente O julga bom e isto já dura há muito tempo.

– E não te deixes espezinhar por ninguém lá em cima – advertiu o irmão. – Todos te aceitarão no Céu, apesar de descenderes de italianos.

– Agasalha-te bem – recomendou a mãe, que parecia saber do que falava.



Nota

[1] Feriado celebrado na última quinta-feira de Novembro, nos Estados Unidos, em que é costume comer peru. (N. do T.)



(Catch-22 / Artigo 22; tradutor não identificado pela editora)



Observação do blog: O texto acima é o décimo oitavo capítulo da edição portuguesa, que teve como título ARTIGO 22. Na tradução brasileira, ARDIL 22).



(Ilustração: Bruno Frankewitz - Ala B 64º Hospital Geral Britânico - Segunda Guerra Mundial)