domingo, 13 de outubro de 2024

O XERIFE E OS GUAJAJARAS (NO INTERIOR DO MARANHÃO), de Leonardo Froes

 




Os homens do Romeu Tuma,

prepotentes e embalados,

foram dar uma batida

na tribo dos guajajaras.

Queriam localizar,

pra acabar de vez com ela,

a plantação de maconha

que, segundo haviam dito,

esses índios cultivavam

no sertão do Maranhão.

Lá na aldeia de Coquinhos

os homens bravos do Tuma

já chegaram dando tiros,

matando cachorros mansos

que apenas comiam pulgas.

Curumins apavorados

corriam que nem cutia

da polvorosa imprevista,

enquanto cunhãs e velhas,

aflitas, choravam sem

entender o que é que havia.

“De que se trata?”, diziam

na língua dos guajajaras:

“Que querer aqui fazer

os ruins caramurus?”

Os de fora, dos seus carros

barulhentos que nem tanques

numa ofensiva de guerra,

iam só mandando bala

por entre as choças tranquilas,

furando bambus e sacos,

vasilhames e bacias

com pontaria certeira.

Mas o espírito das matas

(cinco séculos de fúria

sob contínuos massacres)

de repente correu solto

no meio dos guajajaras.

Armando-se de cacetes,

o desespero do orgulho

e a valentia das onças,

os índios antes perplexos

com a louca invasão dos brutos

pularam dando pauladas,

de peito nu e aberto,

contra os tiros da polícia.

E deram tanto, mas tanto,

foram tantas cacetadas

de toda uma raça extinta,

era tão justa a refrega

dos caboclos de Tupã,

tão fraternos e preciosos

os golpes do contra-ataque,

que não houve jamais como

o pelotão resistir.

Seus carros antes possantes

ficaram despedaçados

e nenhum tira escapou:

todos levaram porrada.

Sem armas nem munições,

que os índios depois tomaram,

a polícia foi em cana

metendo o rabo entre as pernas.

Com o bando da lei detido

numa palhoça de varas,

mais pauladas foram dadas,

dessa vez como castigo,

por um ancião da tribo

e o cadáver do cachorro

(nosso irmão e nosso espelho)

assassinado por eles

a seguir foi esfregado

na cara de cada um.

De Brasília, o Romeu Tuma

com seus capangas mais fortes

foi lá conversar com os índios

para soltar os reféns.

Encontrou os guajajaras

preparados para a guerra

com suas caras pintadas.

Talvez não tivesse visto,

mas ventos elementares

faziam tremer a terra

por toda a Barra do Corda.

Sob o calor dos coqueiros,

cocares de antigas lutas

na glória da resistência

faziam gestos simbólicos.

Por trás de cada cunhã

com riscos na face triste,

foram hordas de fantasmas

tomados de amor da terra

que o Romeu Tuma encontrou.

Bom de papo, bem treinado

nas rodinhas de Brasília

depois de muita conversa

conseguiu a liberdade

dos subalternos detidos.

Mas as armas dos seus homens

os guajajaras não deram.

E agora, depois de tanta

estripulia e arbítrio,

impõem uma condição

para entregá-las aos donos:

que os brancos também devolvam,

por estar em suas terras,

o povoado já famoso

e bem, enfim, guajajara

pelas ressonâncias do nome

que é São Pedro dos Cacetes.




(Ilustração: índios guajajaras - foto de Vincent Carelli, 1980)

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

LUCIEN CARR MATOU O AMIGO E O CRIME ESTEVE NA GÉNESE DA GERAÇÃO BEAT, de Isabel Lucas




Na madrugada de 13 de Agosto de 1944, um estudante da Universidade de Colúmbia e o seu mentor e protector, um homem 14 anos mais velho, envolveram-se numa discussão em Riverside Park, junto ao rio Hudson, perto do campus universitário, em Nova Iorque, e o mais novo acabou por atingir o mais velho no peito com dois golpes de navalha. São factos. Facto também é que o mais novo atou as mãos e os pés daquele que pensava ser já um cadáver, encheu-lhe os bolsos do fato de pedras e atirou-o ao rio. Outro facto: o rapaz terá corrido a pedir conselho sobre o que fazer a um grupo de amigos mais velhos - os futuros poetas da beat - e entregou-se às autoridades.

O rapaz de 19 anos seria condenado a 20 de prisão, mas acabou por passar apenas dois num centro de correcção e sair em liberdade aos 21. Chamava-se Lucien Carr, boa pinta, assediado pelos amigos homossexuais, admirado por todos pela sua cultura e sentido de humor, leitor compulsivo que apresentou os poemas de Rimbaud a outro amigo, Allen Ginsberg, e apresentou também Ginsberg a William S. Burroughs e os dois a Jack Kerouac. Sem saber, Carr esteve na génese do que viria a ser o núcleo da geração beat, mas o crime que cometeu afastou-o dela sem que nunca tivesse escrito um poema ou um texto segundo os critérios estilísticos desse grupo cuja regra de vida era não ter regras para a vida: seguir o impulso sem censura.

Lucien Carr é o centro do livro "escondido" que William S. Burroughs e Jack Kerouac escreveram em 1945, antes de publicarem o que quer que fosse, contando a sua versão do crime de Riverside Park, o policial e os hipopótamos cozeram nos seus tanques, agora editado em Portugal pela Quetzal e que a América só conheceu em 2008, depois da morte de Carr. Não é o grande livro de cada um, mas é o primeiro livro de um e de outro.

"Lucien Carr, com a sua paixão por Rimbaud, acabou, numa trágica ironia, por ser ele mesmo uma espécie de Rimbaud deste grupo, alguém que, ao se livrar do seu Verlaine, morreu para as artes antes da maioridade, mas permanecendo uma inspiração". Voz grave, estilo pausado, James W. Grauerholz, o executor testamentário de William S. Burroughs e amigo íntimo do autor de Naked Lunch, diz "olá" como quem diz holla. Está no Kansas, e quer fazer-se entender ao falar de um grupo e de uma história que o mudou também a ele. Diz-se fluente em espanhol, ensaia umas palavras em português, mas segue no seu sotaque cerrado a história de Carr que conheceu numa madrugada de copos em casa de Burroughs.

William S. Burroughs era o ídolo de James W. Grauerholz. Leu Naked Lunch com 14 anos e nunca mais deixou de seguir tudo o que Burroughs escreveu. Queria ser escritor e via ali o exemplo. "Em 1974, quando fui para Nova Iorque, recebi um telefonema de Allen Ginsberg. Dizia-me que Burroughs estava em Nova Iorque e queria conhecer-me; que precisava do um secretário. Deu-me o número dele e o meu herói convidou-me para jantar. Daí a umas semanas estava a viver com ele", conta-nos Grauerholz com o tom e o riso de quem narra umas memórias boas.

"Gostávamos um do outro e fomos íntimos durante algum tempo, mas eu precisava de estar com pessoas da minha idade e essa intimidada acabou tal como existia." Grauerholz tinha então 21 anos e Burroughs 60. Foi nesse período que conheceu Lucien Carr. Carr era editor da United Press. "Numa noite, muito tarde, tocaram à campainha, fui ver quem era e ouço uma voz a gritar: "O Burroughs está por aí?" Ele disse-lhe para entrar. Vestimo-nos à pressa. Lucien, bêbado, estava à procura do velho amigo e passámos o resto da noite a beber e a fumar. Achei-o muito divertido."

Voltaram a ver-se ao longo de décadas. Grauerholz e Burroughs deixaram de ser íntimos, mas nunca perderam a intimidade que Grauerholz compara à de um velho casal. Carr aparecia, mas não falava do que tinha acontecido na noite de 1944. "Acho natural. Tudo correu de forma muito má para Lucien. Ele continuava a gostar dos amigos, mas não queria fazer parte da visão beat", justifica sobre uma história que continua nebulosa e alimentou a imaginação e a obra dos amigos da Beat. Ele foi guardião dessa história e do livro que Burroughs escrevera com Kerouac, mas nunca fora publicado. Kerouac morrera em 1969. Burroughs ficou com o manuscrito, e quando nomeou Grauerholz seu executante testamentário pediu para que se cumprisse a vontade de Carr: que o livro só fosse publicado depois da morte do jornalista.

O que mais incomodava Carr não era, segundo Grauerholz, o facto de ter morto o seu companheiro e tutor, mas as alusões à sua homossexualidade. "Não é que Lucien Carr fosse homofóbico. Mas tinha construído uma vida depois daquele crime distante dos excessos desses dias. Tinha uma profissão, tinha casado duas vezes, tinha três filhos e era nesses papéis que queria ser conhecido."

Grauerholz regressa agora a um passado que não foi o dele, ao início da década de 40, quando Carr e Dave Kammerer eram inseparáveis. A história da relação de Lucian e Dave E. Kammerer vem sintetizada no posfácio de e os hipopótamos cozeram nos seus tanques pelo próprio Grauerholz. Está no livro com os protagonistas a terem outros nomes.

"Para quem acaba de chegar, eis os factos básicos: a relação entre Lucien Carr IV e David Kammerer começou em St. Louis, Missuri, em 1936, quando Lucien tinha 11 e Dave 25 anos. Oito anos, cinco estados, quatro escolas secundárias e duas faculdades mais tarde, a relação havia-se tornado demasiado intensa." O desenlace é o que se sabe ou se lerá, ou ainda se pode ver no filme Kill your Darlings, de John Krokidas, com Daniel Radcliffe, Ben Foster, Michael C. Hall. O filme tem estreia marcada para estes dias na América. "O guião é óptimo, alguns actores consultaram-me para construir as personagens. Estou curioso."

Feito o parêntesis, volta ao incómodo: "O William disse-me que estava certo de que eles nunca tinham tido nenhum contacto sexual. William conheceu Lucien era ele adolescente. Todos andavam pela Village. Dizia-me que ele tinha um intelecto precoce e Kammerer via nele um adorável protegé." Exemplo? Burroughs. Viu sempre nele um amigo leal logo desde o início. "Wiliam tinha emprestado o carro a Lucien para ele ir a St. Louis. Ele era de lá. A meio da viagem, houve um acidente. Lucien telefonou a William: "O teu carro está desfeito na estrada". Como resposta teve: "Ok, obrigada por me contares". Naquele dia impressionaram-se um ao outro e nunca mais deixaram de se respeitar.

Até ao fim. Burroughs morreu em 1997. Lucien Carr em 2005, vítima de cancro e quase desconhecido para o mundo. Cultivava a imagem do velho jornalista americano, "cínico, que bebia e fumava muito". Grauerholz sublinha o lado trágico da história de Carr. "Sim, era um Rimbaud. Os outros viveram a glória". Aquele que era "o mais inquieto" do grupo de rapazes, "uma força da natureza", "caleidoscópico" nos seus entusiasmos, o "talismã" do grupo que tinha em Kerouac o mais tranquilo, em Ginsberg a curiosidade, e o punchline em Burroughs "pagou um preço". "No fim da vida, se lhe perguntassem como queria ser lembrado, julgo que como um grande jornalista", arrisca James W. Grauerholz. Como era ele, afinal? "Não há um Lucien Carr. Há uma figura ambígua. É um exemplo de como alguém pode sobreviver à infância. Ele conseguiu uma segunda vida e viveu-a. É mau que depois de ter resgatado a sua vida ao caos, tenha sido um jornalista não muito conhecido e a infelicidade de ser apenas lembrado como o jovem que cometeu um crime... Mas, isto é a América. É a vida. Como eles eram? Está tudo em On The Road (1957)."



(Ilustração: Carr, Burroughs e Ginsberg; foto da internet sem indicação de autoria)

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

EU TE AMO, de Tom Jobim e Chico Buarque



Ah, se já perdemos a noção da hora

Se juntos já jogamos tudo fora

Me conta agora como hei de partir



Se, ao te conhecer, dei pra sonhar, fiz tantos desvarios

Rompi com o mundo, queimei meus navios

Me diz pra onde é que inda posso ir



Se nós, nas travessuras das noites eternas

Já confundimos tanto as nossas pernas

Diz com que pernas eu devo seguir



Se entornaste a nossa sorte pelo chão

Se na bagunça do teu coração

Meu sangue errou de veia e se perdeu



Como, se na desordem do armário embutido

Meu paletó enlaça o teu vestido

E o meu sapato inda pisa no teu



Como, se nos amamos feito dois pagãos

Teus seios inda estão nas minhas mãos

Me explica com que cara eu vou sair



Não, acho que estás se fazendo de tonta

Te dei meus olhos pra tomares conta

Agora conta como hei de partir





(Ilustração: Apollonia Sainclair - a queen and her king)

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

A AMAZÔNIA, SEUS POVOS E A DEVASTAÇÃO, de Darcy Ribeiro

 


Uma das minhas maiores alegrias nos últimos anos foi ver generalizar-se a milhões de pessoas meu velho temor pelo destino da Amazônia. Felizmente, com o temor difundiu-se também um começo de esperança pela salvação do jardim da Terra. O fato é que a mídia, tão mercantilizada de nosso tempo, quase sempre incapaz de abraçar qualquer causa generosa, nesse caso se sensibilizou e mobilizou a opinião pública mundial para a defesa da floresta e dos povos da floresta.

A causa da Amazônia e a de seus índios e caboclos têm, para mim, um sabor biográfico. Vivi anos em aldeias indígenas na Amazônia e tenho o fundo da memória cheio de imagens do esplendor da floresta virgem, das singularidades da indianidade original e da tragédia dos povos da floresta.

A Amazônia é o maior ser vivente que jamais se viu. Uma enormidade de massa viva, nascendo e morrendo continuamente, nutrindo-se de ares, de águas e terra. Mas, sobretudo, de si mesma, numa autofagia em que se desfaz e refaz, enquanto se multiplica e se diversifica em miríades de vegetais e animais. De dia, aspira carbono e expira oxigênio. De noite, inverte o ciclo. Dia e noite, sua e exsuda, extrai da atmosfera o nitrogênio de que se nutre, numa interação contínua de seu folhame com o ar e com o sol.

Vista de cima, a mata é um arbóreo mar-oceano deitado no chão. Vista de dentro, é uma catedral, de milhões de colunas grossas e finas subindo da terra para o céu, fechando o horizonte. Olhando para o alto, ela é um pálio imenso de verdes frondes açoitadas pelo vento, tapando o céu. Sentida, lá de dentro, é um mundo sombrio, silente. Só de madrugada e ao anoitecer estruge, urra, canta, grita, chia, esturra, com as bocas e os bicos da bicharada, no pavor da noite que baixa, na alegria do dia que volta.

Onde a mata se deixa ver em grandes extensões, é um imensíssimo tapete de todos os tons de verde. Aqui e ali, salpicado de árvores amarelas, brancas, negras, azuis, rubras, escarlates, lilases, cinzentas. Um esplendor.

A Amazônia é, de fato, um mundo de águas plenas, variadíssimas. Há as transparentes, como espelho, são as de águas pretas. Há as turvas, pelo barro branco dissolvido. Há as acobreadas, as amareladas. Tamanho é seu agual, que a Amazônia contribui com um quinto das águas doces despejadas nos mares. Numa quadra do ano, a Amazônia é sobretudo chuva que chove semanas, dia e noite sem parar. Inunda toda a terra, engrossando igarapés que viram rios, exorbitam lagos e lagoas, num agual maior que muitos oceanos. Essa chuva imensa umedece tanto o ar que o mundo se converte numa espécie de aquário, por onde transitam gentes e bichos.

O mais extraordinário desse agual, quase sempre parado, em calmaria, é quando ele se eriça em águas revoltas com as ondas de maremoto das pororocas. Carrega, então, pedaços imensos da margem, formando ilhas flutuantes que navegam para o mar.

São as águas que regem a Amazônia. Descobri isso vivendo lá, dez anos, ao perceber que ela é, a um tempo, o Inferno Verde e o Paraíso Terrenal. Assim é, porque, depois da época das grandes chuvas, quando vem a cheia, o agual é tão imenso, que não se consegue pescar, nem caçar. Os índios com que eu convivia, dependem, nesse período, exclusivamente do parco produto de suas roças para comer. Emagrecem visivelmente. É o Inferno Verde. Ao contrário, na época das águas baixas, há peixe de se pegar com a mão. Frutas deliciosas, variadíssimas, em quantidade prodigiosa. Caça, também, há quanta se queira. É o Paraíso Terrenal. Tão prodigioso que chego a supor que, no futuro, uma das formas mais altas de turismo rico não será ir ver a Capela Sistina. Será tomar a namorada pela mão e entrar com ela na Floresta Amazônica, para viver um mês de vida de índio naquele jardim maravilhoso.

Mas a Amazônia não é uma, é mil. Sua característica maior talvez seja essa diversidade. Tanto a decorrente de sua adaptação ecológica a terras baixas e altas, frescas e secas, férteis e áridas, como a resultante da variedade infinita de espécies em que se desdobra. Supõe-se que somem mais de 2 milhões os artrópodes. Sessenta mil, só as plantas. Dois mil, as variedades de peixes conhecidos. Trezentos são os mamíferos. Ainda há os répteis, as aves e não sei quantos bichos mais.

Tal como a floresta, também variadíssima é a humanidade original da Amazônia. Seus povos indígenas se estruturavam em cerca de mil tribos, com população calculável de 2 a 3 milhões de pessoas, concentrada principalmente nas várzeas. Esses povos falavam mais de 500 línguas, classificadas em 20 troncos. Era uma Torre de Babel.

Ao longo de muitos milênios de ocupação da Amazônia, os povos indígenas acumularam um conhecimento minucioso da floresta e dos seres que ela abriga. Criaram diversas formas de adaptação humana, não destrutiva, através de formas avançadas de manejo que permitem enriquecer a floresta em lugar de degradá-la.

Com base nessa sabedoria indígena, combinada com alguma contribuição portuguesa e com um pouco do tempero africano, os caboclos gerados pela mestiçagem criaram um gênero de vida próprio, muito bem-adaptado à floresta. Moram em casas feitas de palha, dormem em redes, carregam suas cargas às costas em jamaxins trançados. Têm uma culinária genuína e primorosa, com uma variação de gostos extraordinária, que eles alcançam combinando e contrastando amargos, azedos, salgados e doces. Tenho, para mim, que será de festa o dia em que o mundo descobrir o gosto dos temperos amazônicos, como o tucupi e os seus 100 sorvetes feitos de frutas.

Ao contrário da indígena, a ocupação civilizada da Amazônia é essencialmente destrutiva. Principalmente quando derruba e queima extensões de centenas de milhares, até de 1 milhão de hectares, para converter a floresta em capinzais. Igualmente danosa é a queima de árvores da floresta para produzir o carvão, com fins energéticos, ou para a produção de ferro-gusa. Pior, talvez, é a poluição das águas pelo mercúrio usado nos garimpos de ouro; ele mata tudo.

A civilização europeia caiu sobre a Amazônia como uma peste a partir de 1600. Provocou, primeiro, imensa despopulação pela contaminação das doenças do homem branco, como a varíola, a caxumba, as doenças pulmonares, as cáries dentárias, antes desconhecidas. Hecatombe maior foi a provocada, depois, pela catequese, que aliciava índios, a ferro e fogo, concentrando-os nas missões, onde perdiam sua língua original e se destribalizavam, convertendo-se num povo de ninguéns.

Para os missionários, os índios eram uma massa de pagãos, que deviam ser salvos, destribalizando-os e reorganizando-os em sociedades pias. Para o colonizador, eles eram a mão de obra indispensável à sua própria prosperidade, porque lhes pareciam totalmente inúteis, enquanto não entrassem na produção de mercadorias.

A ação missionária de destribalização promovida principalmente pelos jesuítas, somada à mestiçagem, produziu um gênero humano novo: os caboclos. Eles falavam melhor o tupi – língua indígena adotada pelos missionários – que o português, e não tinham identidade própria, porque perderam a tribal, sem se inserirem em nenhuma comunidade humana que os aceitasse como membros.

Paralelamente ao drama dos povos indígenas atropelados e avassalados pela civilização, desenrolou-se e ainda prossegue uma tragédia humana de iguais dimensões. É a da população cabocla da Amazônia, gerada no mesmo processo civilizatório que dizimou os índios e os fez suceder ecologicamente no mesmo espaço pelos caboclos.

Ao longo de cinco séculos surgiu e se multiplicou uma vasta população de gentes destribalizadas, desculturadas e mestiçadas que é o fruto e a vítima principal da invasão europeia. Somam hoje mais de 3 milhões aqueles que conservam sua cultura adaptativa original de povos da floresta. Originaram-se principalmente das missões jesuíticas que, confinando índios tirados de diferentes tribos, inviabilizavam as suas culturas de origem e lhes impunham uma língua franca, o tupi, tomado dos primeiros grupos indígenas que eles catequizaram um século antes em regiões longínquas. Assim, uma língua indígena foi convertida pelos padres na língua da civilização, que passou a ser a fala da massa de catecúmenos. No curso de um processo de transfiguração étnica, eles se converteram em índios genéricos, sem língua nem cultura próprias, e sem identidade cultural específica. A eles se juntaram, mais tarde, grandes massas de mestiços, gestados por brancos em mulheres indígenas, que também não sendo índios nem chegando a serem europeus, e falando o tupi, se dissolveram na condição de caboclos.

A dupla função dessa massa cabocla foi a de mão de obra da exploração extrativista de drogas da mata exportadas para a Europa, que viabilizavam a pobre economia da região. Foi também instrumento de captura e de dizimação das populações indígenas autônomas, contra as quais desenvolveram uma agressividade igual ou pior que a dos europeus. Tão tremenda, porém, foi a opressão civilizatória que pesou sobre eles próprios, que acabaram por alçar-se numa guerra étnica, a Cabanagem (1835-40), a mais cruenta da história americana, que custou mais de 100 mil vidas dos caboclos nela envolvidos. Nessa luta, eles viveram a situação paradoxal de quem pode ganhar mil batalhas mas não pode perder nenhuma. Com efeito, venceram muitas vezes e tomaram as principais cidades da Amazônia, inclusive Belém e Manaus, mas acabaram dominados, sofrendo um terrível genocídio.

Sobre esses caboclos vencidos caíram depois duas ondas de violência. A primeira veio com a extraordinária valorização da borracha no mercado mundial que os recrutou e avassalou, lançando simultaneamente sobre eles gentes vindas de toda a parte para explorar a nova riqueza. Nessa instância, perderam sua língua própria, adotando o português, mas mantiveram a consciência de sua identidade diferenciada e o seu modo de vida de povo da floresta. A segunda onda ocorre em nossos dias com a nova invasão da Amazônia pela sociedade brasileira, em sua expansão sobre aquela fronteira florestal. Seu efeito maior tem sido o desalojamento dos caboclos das terras que ocupavam, expulsando mais da metade deles para a vida urbana famélica de Belém e Manaus. Os índios que sobreviveram já aprenderam a resistir ao avassalamento. Os caboclos, não.

Da segunda metade do século passado até 1913, o mundo rodou sobre pneus de borracha da Amazônia. O vale todo se dinamizou em progresso, as matas foram invadidas por uma massa enorme de gente, vinda principalmente do Nordeste árido. Pobre gente que se desgastou no aprendizado de uma forma brutal e infecunda de ocupação, ignorando toda a sabedoria indígena sobre o que a mata podia dar, só atenta para as árvores esparsas que davam látex, comendo conservas e enlatados, de fato morrendo de fome e de beribéri.

No curso da Segunda Guerra Mundial, quando os aliados perderam acesso aos seringais plantados do Oriente, os seringais nativos da Amazônia foram de novo postos em produção. Outras multidões de nordestinos foram lá lançadas para sofrer e morrer da mesma miséria. Mas também para exterminar as tribos indígenas que sobreviviam nos altos dos rios, agora alcançados pela civilização, que escravizava os homens, roubava mulheres e crianças e saqueava as roças. Nisso, como em tudo, a civilização para a Amazônia é sempre uma praga – quanto mais grassa, mais destrói e mata.

A Amazônia brasileira, cobrindo 40% do nosso território, tem mais de 3 milhões de quilômetros quadrados, mas só retém 8% da população brasileira, ou seja, uns 12 milhões de caboclos e novos imigrantes recém-chegados. Metade dessa população se encontra principalmente em Belém e Manaus. Os índios se reduziram a 5% do que eram e hoje mal alcançam 100 mil. Esses poucos índios e alguns contados caboclos que permanecem na mata guardam parte da copiosa sabedoria adaptativa dos povos da floresta amazônica. É com base nela que se poderá implantar, amanhã, formas ecologicamente equilibradas de ocupação humana que permitam, no futuro, àquelas populações viverem da floresta, deixando-a viver. A característica distintiva das formas indígenas de adaptação e a sua incompatibilidade com o modo de vida da civilização mercantil. A incompatibilidade essencial das formas empresariais de ocupação da Amazônia e sua incapacidade de conviver com a floresta sem matá-la.

São exemplos disso as explorações de minérios do Amapá, o grande projeto capitalista do rio Jari, e, ultimamente, o complexo de Carajás. Em cada um deles foram aplicados muitíssimos milhões de dólares, que deram lugar a comunidades misérrimas, que podiam estar em qualquer parte do planeta, desenraizadas que são da floresta e de suas formas ecologicamente sustentáveis de ocupação.

A ditadura militar, que dominou o Brasil por 20 anos a partir de 1964, com a obsessão de se opor à reforma agrária proposta pelo governo que derrubou, loteou a Amazônia em imensos fazendões de 100 mil, de 500 mil e de 1 milhão de hectares dados a grandes empresas subsidiadas para derrubar a mata e transformá-la em capinzais, ou no que quisessem. O outro assalto ditatorial foi cortar a Amazônia de leste a oeste em enormes e improvisadas estradas rodoviárias. Os fazendões resultaram num desastre porque a terra, desnuda e queimada, exposta ao sol e às chuvas, converteu-se num areal pedregoso, em desertificação. As estradas foram prontamente consumidas pela floresta.

Essa loucura ecológica teve o mérito inesperado de chamar a atenção do mundo, com as gigantescas queimadas que acenderam, para a destruição da Amazônia e para o impiedoso genocídio das populações indígenas dela decorrente. A opinião pública encontrou modos de manifestar seu horror àquela hecatombe, contribuindo decisivamente para que o governo brasileiro aplacasse o furor incendiário. Não é verdade que aquelas queimadas pusessem em risco a vida do planeta, porque elas contribuíam com menos de 5% do CO² lançado na atmosfera. Elas eram graves, porém, por estarem destruindo o mais belo e portentoso jardim do planeta Terra.

Mas que ninguém duvide dessa capacidade destrutiva. Nos primeiros séculos, o Brasil conseguiu liquidar com a Floresta Atlântica, que cobria mais de 8 mil quilômetros de extensão ao longo da costa. E nos primeiros 50 anos deste século, arrasou com a floresta mais pujante que se conheceu, a do Vale do Rio Doce. Essas destruições foram realizadas por pobre gente, que derrubava a mata com machados e queimava com fósforos, em troca do direito de plantar nelas milho e feijão por três anos, até que o fazendeiro-proprietário surgisse para semear capim. Hoje, com drogas desfolhantes, com serras mecânicas, com grandes tratores atados com correntes náuticas, as florestas podem ser tombadas com ferocidade 50 a 100 vezes maior. É, portanto, perfeitamente possível acabar com o mundo imenso de verdor que é a Floresta Amazônica.

Dentre as formas de desflorestamento e destruição que estão em marcha, se destacam as queimadas para produzir carvão vegetal, com que se possa fundir o ferro-gusa. Esse é um fato tanto mais lamentável, porque uma exploração sensata da Floresta Amazônica, inclusive para produzir biomassa energética, poderia coexistir com a floresta e ocupar muita gente. Isso se aprendêssemos a explorá-la, sem destruí-la, como fazem há séculos os escandinavos.

Outra catástrofe é o represamento de águas para hidrelétricas na Planície Amazônica. A mais desastrosa delas, Balbina, inundou 3 mil quilômetros quadrados de matas para produzir menos de 200 MW de energia, que se podia obter com 5% da madeira inundada e perdida, que somava 3 milhões de metros cúbicos.

Uma outra agressão à Amazônia é a garimpagem de ouro, que ocupa e miserabiliza, talvez, meio milhão de pessoas. O extrativismo começou em Serra Pelada, há duas décadas, e logo se fez a maior exploração manual a céu aberto que jamais se viu.

Lá, mais de 100 mil garimpeiros produziam, anualmente, dez toneladas de ouro. Esgotado o mineral acessível, quando o buraco alcançou profundidade tal que se tornou impossível ir buscá-lo, lá, à mão, aquela multidão de garimpeiros se espalhou pelo Madeira, pelo Tapajós, indo até para Roraima, invadindo as terras dos Yanomami.

Esses índios constituem o último grupo silvícola que sobreviveu à brutalidade da expansão europeia. Eram, também, com seus 15 mil índios, o maior deles. Seu desgaste começou quando o presidente do próprio órgão de proteção aos índios do Brasil, a Funai, decidiu dar a cada um dos 14 subgrupos de Yanomami pequenas reservas, deixando toda a terra restante disponível para invasão por fazendeiros e garimpeiros. Estes entraram e rapidamente fizeram um arraso, tanto apodrecendo as águas com o mercúrio que utilizam no garimpo, como invadindo as aldeias, prostituindo as índias, roubando crianças e transmitindo as formas mais virulentas de malária e oncocercose.

O grave é que essas formas destrutivas de ação sobre a floresta são as que correspondem à economia da civilização. Ela não tem outra forma de lucrar com a mata, senão essa. Há, porém, formas outras, ecologicamente satisfatórias, de ocupação humana da Amazônia para os índios e para os caboclos. Essas nunca se puseram em prática, porque, no Brasil, índios e caboclos nunca tiveram e não têm direito a nada. Suas razões de fracos jamais foram ouvidas e há pouca esperança de que sejam.

Esse foi o caso do seringueiro Chico Mendes, assassinado porque queria enriquecer os seringais nativos com seringueiras plantadas para dar melhores condições de vida aos seringueiros. Outro era o plano dos seus assassinos, que ambicionavam aquelas terras dos velhos seringais do Acre tão só para usá-las na forma das empresas que o capitalismo amazonense e a civilização são capazes de criar, vale dizer, matando a mata para implantar grandes fazendas.

A maior ameaça que pesa sobre a Amazônia é que ela se oferece às crescentes populações brasileiras como uma fronteira aberta, sobre a qual tende a expandir-se. Isso significa que muitos milhões de pessoas, desalojadas pelo latifúndio e pelo minifúndio de suas regiões de origem, vão avançar Amazônia adentro. Se lá entrarem, sem qualquer preparo prévio, sem qualquer plano cuidadosamente experimentado de vivificação da floresta, só terá futuro a obra destrutiva.

Ultimamente, viemos todos tomando consciência de que o mundo é um único ecossistema interativo. Nele, terras e mares, ilhas e continentes, florestas e desertos, com suas floras e faunas, se integram numa interdependência simbiótica em que todos e cada um dependem de todos e de cada um. Nesse complexo vital, a imensa Amazônia se destaca, assinaladamente, como pedaço grande e precioso de nosso nicho, o planeta Terra, berço de todos os homens.

Em consequência, gente de todas as latitudes passou a se interessar e a dar opiniões sobre a Amazônia. Primeiro, culpando o desflorestamento e as queimadas pelo efeito estufa, que está esquentando perigosamente a Terra. O que não é verdade. Alguns ousados chegam a propor tutela nos países amazônicos, como se alguma nação do mundo houvesse preservado a natureza original de suas províncias. Outros, mais sensatos, falam da necessidade de uma cooperação internacional para ajudar na preservação desse jardim da Terra.

Apesar de muito desgastada por cinco séculos de civilização, a Amazônia ainda detém cerca de 1,5 milhão de quilômetros quadrados de floresta original intocada, que constitui o maior núcleo planetário de biodiversidade. Nele se abriga a metade dos seres vivos, distribuídos em milhões de espécies, que representam uma terça parte do estoque genético com que conta a humanidade. Constitui, assim, um imenso banco de germoplasma, de que dependeremos, cada vez mais, daqui para o futuro, tanto para a produção de fármacos essenciais, como de alimentos, de madeiras e de muita coisa mais.

Não contamos com outra reserva de vida para refazer, amanhã, a vida, se ela sofrer qualquer ameaça fatal das que são previsíveis, como a atômica e o efeito estufa, ou das imprevisíveis, e até de muitas hoje impensáveis, que podem sobrevir. Instituições diversas estão medindo, há décadas, as dimensões da devastação da Amazônia. Uns falam de 8%, outros falam de 12% a faixa já destruída. Dentro das avaliações mais moderadas, porém, admitem que se esteja destruindo uma Itália de floresta por ano.

A capacidade destrutiva da tecnologia moderna, que cresce cada vez mais, pode e até tende a nos conduzir a esse desastre. A principal arma contra ele, a principal tábua de salvação com que contamos, é, nada mais nada menos, que a opinião pública mundial. Já desperta para o jardim da Terra, ela reclama, às vezes, com base em argumentos errôneos, mas suas reclamações tendem a repercutir no mundo dos ricos, indiferente às vozes do mundo dos pobres.



(O Brasil como problema)



(Ilustração: Antonio Parreiras - conquista do Amazonas, 1907)

terça-feira, 1 de outubro de 2024

CHAMBRE NOIRE / QUARTO ESCURO, de Pierre Reverdy

 


Un trou dans la lumière et la porte l’encadre


Tout est noir

Les yeux se sont remplis d’um sombre désespoir

On rit

Mais la morte passe

Dans son écharpe ténébreuse

Et dans le sillon creux

Une bête peureuse

Qui se débat pour fuir

Vers le fond du jardin où la porte est ouverte

Mais—quelqu’un vient d’entrer

Sans oser dire um mot

La lune est toute gonflée d’eau

Dans la nuit les nuages montent

J’attends l’heure qui sonne

Et je peux écouter

La fin d’un autre conte



Tradução de André Caramuru Aubert:



Um buraco na luz e a porta a enquadra

Tudo está escuro

Os olhos se preenchem de um sombrio desespero

Nós rimos

Mas a morte passa

Com sua echarpe tenebrosa

E em seus profundos sulcos

Uma fera assustada

Que luta para escapar

Pelos fundos do jardim onde a porta está aberta

Mas — alguém acabou de entrar

Sem sequer falar palavra

A lua está toda cheia d’água

Na noite as nuvens embarcam

Eu escuto a hora que soa

E posso ouvir

O fim de um outro conto



(Ilustração: Marcel Janco - Vue de l’univers, 1931)

sábado, 28 de setembro de 2024

CARTA PARA A IRMÃ TANIA KAUFMANN, de Clarice Lispector

 


   
Berna, 6 janeiro 1948



Minha florzinha,



Recebi sua carta desse estranho Bucsky, datada de 30 de dezembro. Como fiquei contente, minha irmãzinha, com certas frases suas. Não diga porém: descobri que ainda há muita coisa viva em mim. Mas não, minha querida! Você está toda viva! Somente você tem levado uma vida irracional, uma vida que não parece com você. Tania, não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma. Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso – nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro.

Nem sei como lhe explicar, querida irmã, minha alma. Mas o que eu queria dizer é que a gente é muito preciosa, e que é somente até certo ponto que a gente pode desistir de si própria e se dar aos outros e às circunstâncias. Depois que uma pessoa perder o respeito de si mesma e o respeito de suas próprias necessidades – depois disso fica-se um pouco um trapo. Eu queria tanto, tanto estar junto de você e conversar, e contar experiências minhas e de outros. Você veria que há certos momentos em que o primeiro dever a realizar é em relação a si mesmo. Eu mesma não queria contar a você como estou agora, porque achei inútil. Pretendia apenas lhe contar o meu novo caráter, ou falta de caráter, um mês antes de irmos para o Brasil, para você estar prevenida. Mas espero de tal forma que no navio ou avião que nos levar de volta eu me transforme instantaneamente na antiga que eu era, que talvez nem fosse necessário contar. Querida, quase quatro anos me transformaram muito.

Do momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade e todo interesse pelas coisas. Você já viu como um touro castrado se transforma num boi? assim fiquei eu…, em que pese a dura comparação… Para me adatar (sic) ao que era inadatável (sic), para vencer minhas repulsas e meus sonhos, tive que cortar meus aguilhões – cortei em mim a força que poderia fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei também minha força. Espero que você nunca me veja assim resignada, porque é quase repugnante. Espero que no navio que nos leve de volta, só a ideia de ver você e de retomar um pouco minha vida – que não era maravilhosa mas era uma vida – eu me transforme inteiramente. Mariazinha, mulher do Milton, um dia desses encheu-se de coragem, como ela disse, e me perguntou: você era muito diferente, não era? Ela disse que me achava ardente e vibrante, e que quando me encontrou agora se disse: ou esta calma excessiva é uma atitude ou então ela mudou tanto que parece quase irreconhecível. Uma outra pessoa disse que eu me movo com uma lassidão de mulher de cinquenta anos. Tudo isso você não vai ver nem sentir, queira Deus. Não haveria nem necessidade de lhe dizer, então… Mas não pude deixar de querer lhe mostrar o que pode acontecer com uma pessoa que fez pacto com todos, e que se esqueceu de que o nó vital de uma pessoa deve ser respeitado.

Minha irmãzinha, ouça meu conselho, ouça meu pedido: respeite a você mais do que aos outros, respeite suas exigências, respeite mesmo o que é ruim em você – respeite sobretudo o que você imagina que é ruim em você – pelo amor de Deus, não queira fazer de você uma pessoa perfeita – não copie uma pessoa ideal, copie você mesma – é esse o único meio de viver. Eu tenho tanto medo de que aconteça com você o que aconteceu comigo, pois nós somos parecidas. Juro por Deus que se houvesse um céu, uma pessoa que se sacrificou por covardia – será punida e irá para um inferno qualquer. Se é que uma vida morna não será punida por essa mesma mornidão. Pegue para você o que lhe pertence, e o que lhe pertence é tudo aquilo que sua vida exige. Parece uma moral amoral. Mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesma. Espero em Deus que você acredite em mim. Gostaria mesmo que você me visse e assistisse a minha vida sem eu saber – pois somente saber de sua presença me transformaria e me daria vida e alegria. Isso seria uma lição para você. Ver o que pode suceder quando se pactuou com a comodidade de alma. Tenha coragem de se transformar, minha querida, de fazer o que você deseja – seja sair nos week-end, seja o que for. Me escreva sem a preocupação de falar coisas neutras – porque como poderíamos fazer bem uma a outra sem esse mínimo de sinceridade?

Que o ano novo lhe traga todas as felicidades, minha querida. Receba um abraço de muita saudade, de enorme saudade de sua irmã



(Correspondências de Clarice Lispector; organização de Teresa Montero)



(Ilustração: Giorgio de Chirico: Clarice Lispector, 1944, Roma)

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

ÍNDIAS, de Marco Lucchesi

 




As praias livres de Coromandel.

E de repente

Começo a perder-me no golfo sinuoso

de teus seios, Déli: sublime / selvagem.

Sob este céu azul da Prússia

como terra molhada pela chuva

eu bebo tua férvida nudez



(Clio)



(Ilustração: Golaap Sundari - final do século XIX)

domingo, 22 de setembro de 2024

UMA PEQUENA CRÔNICA POLÍTICA DOS ANOS 80, NA FRANÇA, de Annie Ernaux

 



Sem nos darmos conta, a letargia tinha chegado ao fim.

As pessoas passavam a enxergar a sociedade e a política com o filtro do escárnio divertido do comediante Coluche. As crianças viam todos os programas dele que tinham sido “proibidos” e todo mundo repetia “este é novo, acaba de sair”. A relação que ele tinha com a França estava em total sintonia com a nossa e fazia todo mundo “chorar de rir”. Ficamos contentíssimos quando ele quis se candidatar a presidente, mesmo não levando a sério a ideia de votar nele, que seria uma espécie de sacrifício do sufrágio universal. Recebemos, felizes, a notícia de que o arrogante Giscard d’Estaing tinha recebido diamantes de um chefe de Estado africano suspeito de esconder os cadáveres de seus inimigos no congelador de casa. Por uma inversão cuja origem tinha se perdido, já não era D’Estaing que representava a verdade, o progresso e a juventude, mas, sim, Mitterrand, que era a favor das rádios livres, de um reembolso para quem fizesse um aborto, da aposentadoria aos sessenta anos, das 39 horas de trabalho, da abolição da pena de morte etc. Ao seu redor pairava agora uma aura soberana que ganhava força com o retrato que circulava dele em uma cidadezinha com uma torre de igreja ao fundo, imagem que trazia uma verdade enraizada em antigas memórias.

Ficávamos calados por superstição. Confessar que acreditávamos de verdade na chegada da esquerda ao poder podia dar azar. O slogan “eleições, armadilha para idiotas” pertencia ao passado.

Mesmo vendo surgir na tela da tevê o estranho rosto pontilhado de François Mitterrand, ainda não acreditávamos. Então, percebemos que toda nossa vida adulta tinha passado sob governos que não nos diziam nada, 23 anos que pareciam, com exceção de um mês de maio, uma torrente sem esperança, cujos momentos de felicidade não vinham da política. Havia um sentimento de rancor que era como se alguma coisa tivesse sido roubada de nossa juventude. Depois de todo este tempo, em uma noite nebulosa de um domingo de maio que apagava o fracasso do outro, nos reconciliávamos com a História, ao lado de um grupo enorme de pessoas, jovens, mulheres, operários, professores, artistas e homossexuais, enfermeiras, carteiros, e tínhamos vontade de escrevê-la outra vez. Muitos momentos poderiam ter dado certo, 1936, a Frente Popular dos pais, a Libertação, 1968. Precisávamos de lirismo e de emoção, da rosa e do Panteão, de Jean Jaurès e de Jean Moulin, das canções “Les corons” e “Temps des cerises”, de Pierre Bachelet. Aquelas palavras vibravam e pareciam sinceras porque não se ouvia nenhuma delas havia muito tempo. Era necessário ocupar o passado outra vez, retomar a Bastilha, se embebedar de símbolos e de nostalgia antes de enfrentar o futuro. As lágrimas de alegria de Mendès France ao abraçar Mitterrand eram nossas. Foi engraçado ver os mais ricos assustados fugindo para a Suíça para esconder seu dinheiro, e foi preciso tranquilizar as secretárias que estavam persuadidas de que seu apartamento seria estatizado. O atentado contra João Paulo II, baleado por um turco, foi inoportuno e seria esquecido.

Tudo parecia possível. Tudo era novidade. Víamos com curiosidade os quatro ministros comunistas, como se fossem espécies exóticas, que nos deixavam perplexos por não terem o ar soviético e falarem sem o sotaque de Georges Marchais ou de André Lajoinie. Era comovente ver deputados de cachimbo e barba como os estudantes dos anos 1960. O clima das coisas estava mais leve, a vida, mais jovem. Algumas palavras voltavam à moda (burguesia, classe social) e a linguagem se libertava. Nas férias, na estrada, ouvindo as fitas cassete do Iron Maiden e as aventuras de David Grosexe no programa Carbono 14, tínhamos a sensação de que diante de nós se abria um novo tempo.

Por mais longe que se voltasse no passado, não dava para encontrar um momento com tantas coisas transformadas em tão poucos meses (algo que logo seria esquecido, não sendo mais concebível voltar à situação anterior). A pena de morte foi abolida, fixou-se o reembolso pela Interrupção Voluntária da Gravidez, os imigrantes clandestinos tiveram sua situação regularizada, a homossexualidade foi autorizada, os feriados se alongaram para uma semana, a semana de trabalho foi reduzida em uma hora etc. Mas a tranquilidade estava abalada. O governo solicitava dinheiro, nós emprestávamos, ele desvalorizava o dinheiro, impedia os francos de saírem do país para estabilizar a moeda. O clima das coisas estava ficando duro, o discurso — “rigor” e “austeridade” — ficava punitivo, como se ter mais tempo, dinheiro e direitos fosse algo ilegítimo, e já estivesse na hora de voltar a uma ordem natural imposta pelos economistas. Mitterrand não falava mais das “pessoas de esquerda”. As pessoas também já não gostavam mais tanto dele. Ele não era uma Thatcher, que tinha deixado Bobby Sands morrer e tinha mandado soldados para serem mortos nas Malvinas, mas dia 10 de maio se tornou uma lembrança incômoda, quase ridícula. As nacionalizações, os aumentos de salário, a redução do tempo de trabalho, tudo o que tínhamos achado que fora feito pela justiça e pelo advento de outra sociedade nos parecia agora apenas uma grande festa de comemoração da Frente Popular, de culto aos ideais escondidos em que talvez nem mesmo os adeptos acreditassem. A mudança esperada não ocorreu. Outra vez, o Estado se afastava de nós.




(Os anos; tradução de Marília Garcia)



(Ilustração: François Mitterrand - 27 de maio de 1981)

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

TERNURA, de Lila Ripoll

 



 

Eu te amo com a ternura das mães

que embalam os filhos pequeninos.

E te amo sem desejos.

 

Perto de ti meus sentidos desaparecem.

Meu corpo tem castidades de santa e de menina.

 

Quando falas nenhuma sobra se interpõe entre nós dois

Fico presa à palavra de tua boca

e à palavra de teus olhos.

Nada existe fora de nós. Longe de nós...

Tu és o Princípio e o Fim. O Tempo e o Espaço

Cada palavra tua mais espiritualiza

o meu sentimento e a minha ternura.

 

Tenho vontade de que meus braços se transformem

num grande berço,

para embalar teu sono de homem triste.

 

Nenhuma estrela brilha mais clara que os teus olhos

na minha alma,

e que a tua palavra no meu coração.

 

Nenhum homem foi amado com tanta pureza sem pecado,

nem tanta adoração!

 

Nenhuma mulher vestiu de tanta castidade

seu corpo e sua alma,

para a tristeza de um amor que quer viver,

e quer morrer.

 

(Céu Vazio)


(Ilustração: escultura de Maria Martins, foto de Vicente de Mello)


 

segunda-feira, 16 de setembro de 2024

CAI O PANO DE 1968, O ANO QUE NÃO TERMINOU, de Zuenir Ventura

 



"Muitos são os que prendem; poucos os que soltam."

(General FIUZA E CASTRO, chefe do CIE)


O AI-5 começou a censurar antes de ser editado e a prender antes de ser anunciado publicamente. Na quinta-feira à noite, véspera da divulgação do ato, enquanto o marechal Costa e Silva se mantinha trancado no Laranjeiras vendo filme de bangue-bangue, ouvindo música clássica, fazendo palavras cruzadas, os seus censores invadiam as redações dos jornais, rádios e televisão de vários Estados. Na sexta-feira, 13, o Estado de S. Paulo era proibido de circular e o Jornal da Tarde tinha parte da sua edição apreendida. Também no Rio os leitores não encontraram alguns de seus jornais nas bancas, ou os encontraram totalmente censurados. O país, que era dirigido por Joel Silveira, conseguiu driblar a censura prévia, mas foi logo retirado das bancas, e seu diretor preso. O Correio da Manhã e o Jornal do Brasil circularam normalmente, mas à 1 hora da madrugada de sexta-feira, três homens chegaram à redação do Correio dizendo que queriam "ver como estavam as notícias". Como os intrusos não se identificassem, foram mandados embora. Poucos minutos depois, o quarteirão era cercado e a redação invadida por policiais do DOOPS e da Polícia Federal. Os agentes apreenderam os exemplares que estavam saindo das rotativas e só os liberaram às 4 horas. Pouco depois, o seu editor, Oswaldo Peralva, era preso. Simultaneamente, O Última Hora, era também visitado por uma turma de censores, antes de circular. Em Brasília, o Correio Brasiliense, único jornal então editado na capital, circulou sob censura prévia, sem o noticiário da votação na Câmara. Em Belo Horizonte, as 2 da madrugada, um oficial do Exército, acompanhado de cinco soldados armados de metralhadora, chegavam às oficinas de O Diário, da Arquidiocese de Belo Horizonte: Era uma operação nacional. Pouco depois da divulgação o Ato pela Voz do Brasil, chegavam ao Jornal do Brasil cinco majores da escola de comando de estado Maior, dirigindo-se à sala de redação, no 3 andar. Ao se apresentarem como censores, o editor-chefe Alberto Dines pediu licença e subiu ao " andar para se comunicar com o diretor Nascimento Brito. Começava a nascer naquele momento, uma edição histórica. "Eu achava que de alguma maneira a gente tinha que denunciar a censura. Era preciso caracterizar que o jornal estava censurado", lembra Dines: "Eu queria dizer ao leitor que ele não acreditasse no que ia ler." Era arriscado, mas Nascimento Brito aceitou a proposta. "A estratégia adotada", segundo Dines, "era mostrar de forma metafórica, figurada, com bom humor, que a gente estava sob censura." No dia 14, os leitores mais atentos do JB puderam perceber que o tradicional matutino da Condessa Pereira Carneiro apresentava mudanças que violentavam suas rigorosas normas de estilo e bom gosto. Nélson Rodrigues dizia que no dia em que o mundo acabasse, o caderno do JB noticiaria o fato "sem um ponto de exclamação". naquele sábado, porém, o jornal estava cheio de clichês e lugares comuns - como "balipodistas", "festejado jogador", "o colored Pelé" haviam sido abolidos do jornal desde pelo menos 1955, quando o JB realizou uma das mais importantes reformas gráficas e redacionais da imprensa brasileira. Mas havia surpresas mais estranhas. Apesar do sol de dezembro, por exemplo, a previsão meteorológica anunciava no alto à esquerda da primeira página: "Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos." No outro lado da página. aparecia em destaque uma irrelevância: "Ontem foi o dia dos cegos." A foto principal era de Costa e Silva na entrega das espadas aos novos guardas-marinha. Ele está rígido, inclinado para a frente como se fosse cair. Na outra, uma cena deslocada no tempo, com a seguinte legenda: "Garrincha foi expulso quando o Brasil vencia o Chile na Copa de 62." Pela primeira vez, no lugar dos editoriais, eram publicadas duas fotos: na maior, um lutador de judô, gigante, dominando um garoto. O título da foto: "Força hercúlea." É possível que nem todos os leitores tivessem percebido a intenção das brincadeiras, do deboche e dos absurdos da edição. Mas pelo menos um não gostou. No sábado à tarde, Dines estava na sua sala quando um dos majores da véspera entrou e foi logo dizendo: - Você me fez de palhaço; não admito; nunca ninguém fez isso comigo. A resposta do editor foi uma declaração de guerra: - Olha aqui. você ê meu hóspede e não admito que abuse de minha hospitalidade. Você se comporte ou te ponho daqui pra fora e você vai ter que censurar o jornal no banheiro. Felizmente, havia na sala um sereno tenente-coronel, chefe do grupo invasor, para impedir que os dois se atracassem. No fim da tarde, pouco depois do incidente, um dos diretores do jornal, o embaixador Sette Câmara, era detido por algumas horas pela Polícia Federal. A direção considerou a prisão uma afronta e suspendeu a circulação. Dines recorda que era o penúltimo sábado antes das festas natalinas, a edição estava carregada de publicidade e a decisão significava um enorme prejuízo. "Apesar disso, com a autorização da Condessa, o jornal correu o risco e abriu mão do faturamento." Como na época os matutinos não circulavam às segundas-feiras, os leitores do JB ficariam sem jornal dois dias seguidos, e o jornal sem faturamento. A solidariedade das agências de publicidade, no entanto, transferiu para a edição de terça-feira os anúncios que deveriam ter saído no domingo. Uma semana depois, como paraninfo de uma turma de jornalismo da PUC, Dines teve o seu discurso contra a censura discretamente gravado por dois agentes do CENIMAR. No dia 22, ele era preso e recolhido a um quartel do Exército para uma estada forçada de quatro dias. Joel Peralva e Dines seriam algumas das primeiras vítimas de uma guerra que apenas começava e que durante mais de sete anos iria opor a censura à imprensa. No dia 13, enquanto os censores assumiam praticamente a direção dos jornais, uma turma de incansáveis e onipresentes agentes se dedicavam à operação de caça às bruxas - ao arrastão. O advogado Hélio Saboya, que 20 anos depois seria secretário de Polícia Civil do Estado do Rio, lembra-se de que, logo depois de ser preso no dia 19 de dezembro, ouviu num quartel do Exército o então temido general Fiuza de Castro, chefe do Centro de Informações do Exército - CIE -, dizer ao telefone: "Muitos são os que prendem. poucos os que soltam." A frase, pronunciada com entonação bíblica, era uma epígrafe para aqueles tempos. Não é possível calcular o número exato de prisões até porque o AI-5 não gostava de registros e controles desse tipo mas se estima que, no período que se seguiu ao 13 de dezembro, algumas centenas de intelectuais, estudantes, artistas, jornalistas, tenham sido recolhidos às celas do DOPS, da PM e aos vários quartéis do Exército, da Marinha e da Aeronáutica em todo o país. Uma das primeiras ações do arrastão ocorreu bem antes da reunião do CSN. às 2h30min da tarde. em frente à Assembleia Legislativa, hoje Câmara dos Vereadores. Um homem de 29 anos saía daquela casa em direção à avenida 13 de Maio, quando foi parado pelo inspetor do DOPS Mário Borges, que lhe pediu os documentos. Ao ouvir a confirmação - "É você mesmo" - o rapaz saiu correndo até as escadarias da Assembleia, onde foi cercado por uma dezena de policiais e jogado dentro de um camburão. Enquanto se debatia, ele teve a presença de espírito de gritar: Meu nome é Rogério Monteiro de Souza, sou jornalista, meu nome é Rogério Monteiro de Souza, sou...." A porta do carro batendo não impediu que alguém ouvisse e comunicasse à sua família. Graças a esse expediente, o então assessor " comunista” dos deputados Alberto Rajão, Ciro Kurtz e Fabiano Villanova, foi mais tarde localizado no Regimento de Cavalaria Marechal Caetano de Faria, aonde aliás voltou 20 anos depois para ser recebido com honras militares. Na primeira visita oficial àquele quartel, o governador Moreira Franco fez questão de levar o seu secretário de Estado. Também próximo à Assembleia, na calçada do Teatro Municipal, só que à noite, o ex-presidente Juscelino Kubitschek era preso por um grupo de oficiais do Exército, comandados por um certo coronel Elias, e conduzido ao 3° Regimento de Infantaria de São Gonçalo. Na véspera, JK havia participado no Maranhão de um banquete que o governador José Sarney dera em sua homenagem. Voltara ao Rio para paraninfar uma turma da Escola de Medicina no Municipal. O que se pretendia fazer com o ex-presidente, o escritor Carlos Heitor Cony pôde sentir nessa mesma noite ao ser preso no Leme. Conduzido para o Batalhão de Guardas, em São Cristóvão, ele assustou-se com a tropa embarcada num camburão. Cony contaria mais tarde: - Um oficial muito moço, levando-me para a cela, onde já estava o jornalista Joel Silveira, explicou-me: "Esse pessoal aí de fora vai ter hoje muito trabalho." - Que tipo de trabalho? indagou o prisioneiro. - Vamos fuzilar o Juscelino e o Lacerda. Não se sabe por que essa vontade não foi cumprida, mas em compensação Juscelino sofreu muito nesses dias em que esteve preso. Em janeiro, uma junta de quatro médicos - Drs. Aloysio Salles, Oswaldo Pinheiro Campos, Décio de Souza e Ruy Goyanna - assinou um laudo sobre o paciente: "Para seu adequado tratamento, julgamos absolutamente inconveniente a situação de reclusão em que se encontra." Fundamentando essa conclusão, os médicos forneciam o diagnóstico do doente: arteriosclerose coronariana, hipertensão arterial, diabete, gota, i infecção urinária redicivante pós operatória; rotura traumática do tendão de Aquiles esquerdo em período de imobilização, após tratamento cirúrgico; síndrome de depressão psíquica. Aos 66 anos e mesmo nesse estado, o criador de Brasília não perdia o humor, o que fez dele o mais doce e amoroso presidente que o Brasil já teve. Logo depois de deixar a prisão, ele se encontrou com Vitório Cabral, que se surpreendeu com o gesso na perna do amigo. Rindo, JK explicou: - Pois é, aqueles merdas me obrigavam a ficar horas e horas em pé respondendo a perguntas idiotas. O atual secretário de Planejamento do Estado do Rio comove-se com a lembrança: - Juscelino dizia isso sem ódio. quase brincando, com uma grandeza impressionante. Ele sabia que tudo aquilo ia sair na urina da História. De fato, todos os majores, coronéis e generais que maltrataram Juscelino Kubitschek naqueles tempos seguintes saíram, ao contrário dele, na urina da História. Quando soube o que estavam fazendo com seu amigo ex-presidente, o ministro das Relações Exteriores, Magalhães Pinto, foi protestar junto a Jayme Portella. O chefe da Casa Militar respondeu como se falasse em nome da fatalidade: "Nessas ocasiões, quando os ânimos estão exaltados, esses fatos acontecem." A prisão do criador de Brasília era o sinal de que ninguém estaria a salvo da caçada das personalidades mais respeitáveis até os banqueiros de bicho. Antes do Natal, nada menos que 150 bicheiros eram recolhidos às celas da Ilha Grande, entre eles, Natalino do Nascimento. o "Natal da Portela", presidente da Escola de Samba a que ligou o seu nome; Castor de Andrade, vice-presidente do Bangu, e Carlos Martins Teixeira, presidente do Madureira. O secretário de Segurança da Guanabara, general Luis França de Oliveira, estava confiante: "Nossa autoridade agora está apoiada em dispositivos legais mais eficientes." Fingia-se acreditar que começava ali, com a mistura na cadeia de cidadãos honrados e bicheiros, um processo de moralização que poria fim aos enriquecimentos ilícitos no país. Em muitos casos, os rumores, aparentemente alarmistas, eram apenas um aviso do que iria ocorrer em seguida. Com o deputado da Arena Raphael de Almeida Magalhães, ex-governador da Guanabara, ocorreu isso. Na noite do AIf 5, Raphael resolveu antecipar a comemoração dos 38 anos que faria no dia seguinte. Reuniu em seu apartamento uns poucos amigos - Maria da Conceição Tavares, Carlos Lessa, João Paulo de Almeida Magalhães - mas o telefone não parava. Primeiro, ligou Renato Archer, depois Carlos Lacerda, em seguida Teotônio Vilella. Quando chegou a vez de um repórter, Rafael respondeu: "Olha, já telefonaram tanto, perguntando se é verdade, que vou acabar acreditando." À 1 hora da madrugada, chegava o DOPS para levá-lo. O deputado foi o primeiro preso a chegar à Vila Militar. Um outro boato garantia na mesma noite que o ex-governador Carlos Lacerda também seria preso. Lacerda estava doente, recolhido ao seu apartamento no Flamengo, mas às 9 horas o secretário de Segurança da Guanabara telefonou a Portella reclamando que já havia recebido ordens do I Exército para prender dezenas de pessoas e até aquela hora nada em relação a Lacerda. Era uma falha imperdoável; logo Lacerda, contra quem o presidente e seu chefe da Casa Militar nutriam um ódio todo especial! O ex-governador nunca escondera a suspeita de que muito do comportamento de Costa e Silva já fazia supor que ele estivesse com arteriosclerose cerebral quando chegou ao governo. Lacerda chegou a escrever: "O general Portella é quem governa o Brasil, o marechal Costa e Silva é uma figura de proa, só." Lacerda teve que esperar apenas uma noite. No dia 14, ele acordou com um de seus médicos, o Dr. Jaime Rodrigues, à beira da cama. Como se encontrava em estado de pré-estafa, fazendo regime para emagrecer e tomando remédio para dormir, achou a presença natural. Mas o Dr. Jaime estava ali por outras razões: - Estão lá embaixo dois homens da Polícia para prendê-lo anunciou o médico. Além dos dois, havia também um oficial-médico, que queria examinar o prisioneiro. - Não rejeitou Lacerda. - Tenho meu médico; quero é tempo para me vestir. Como não pretendia parecer que estava retardando a prisão, vestiu-se rápido. Tirou o pijama e pegou a primeira roupa: "Vesti uma roupa preta, quente pra burro!" lembraria mais tarde. "E fazia um calor miserável." Entraram na Kombi da polícia e desceram no posto salvamar vizinho ao Iate Clube. Ao ser embarcado numa lancha, Lacerda teve dois pensamentos, um pior do que o outro: "Vão me mandar pra algum navio" e "só espero que não me joguem no fundo da baía." A lancha partiu na direção de Niterói. passou pelo Forte de Laje e ancorou no Forte de Santa Cruz - uma velha fortaleza do tempo dos portugueses, cheia de intermináveis escadas. Fazia um sol de rachar e o prisioneiro suava, de calor e de medo - medo de, mal alimentado, ter uma fraqueza qualquer: "Se desmaio aqui, estou totalmente desmoralizado," pensou. Quando finalmente chegaram à sala do comandante, verificou-se que a ordem de prisão era da polícia e não podia, portanto, ser acolhida por um oficial do Exército e ainda mais, comandante de um histórico Forte. Alguns telefonemas tentaram resolver o impasse: que o prisioneiro fosse então levado de volta. Assistente impassível daquele choque de autoridades, Lacerda perdeu enfim a paciência: - Não, agora espera aí: eu não sou boi de general. Se estou preso, estou preso, mas quero saber aonde vou. Não vou ficar passeando pela baía de Guanabara. Mais telefonemas, mais confabulações, e finalmente o anúncio do destino do prisioneiro: Regimento Caetano de Faria. Ao chegar a esse quartel, no centro do Rio, Lacerda lembrou-se do dia em que, 20 anos antes, fora visitar Virgílio de Melo Franco, Dario de Almeida Magalhães, Austregésilo de Athayde e Adauto Lúcio Cardoso, que estavam ali presos por terem conspirado contra a ditadura Vargas. Como era também dezembro e os presos estavam incomunicáveis, ele levara uma cesta de Natal comprada na Casa Lidador. Pensando nisso - "Como é engraçada a vida!" -Lacerda foi conduzido a uma enfermaria improvisada em cela, onde já estava o ex-comunista Oswaldo Peralva e aonde chegaria logo depois o histórico comunista Mário Lago, inimigo político do anticomunista Lacerda, Apesar do calor, Mário chegou de calça de veludo e com cara de vilão: fora preso durante a gravação de uma novela e não tivera permissão nem para trocar de calça, nem para tirar a maquilagem do rosto. - Ô Mário, preso fala um com o outro, não é? A partir desse aperto de mão, os dois ficaram amigos para o resto da vida. Logo que chegou, Lacerda decidiu que faria alguma coisa contra aquela prisão. Carregando a culpa de ter sido um dos motores do golpe que acabou dando nesse golpe dentro do golpe, Lacerda se sentia na obrigação, mais do que qualquer um outro, de protestar. Descobrir a maneira não exigia muita imaginação, só coragem: greve de fome. Durante os sete dias em que esteve preso, Lacerda não comeu, inaugurando no ano uma forma de protesto que iria ser comum nos tempos seguintes. Quando começou a sua, tudo indicava que seria uma inutilidade. O seu irmão Maurício o desestimulou com o convincente argumento de que os jornais não estavam noticiando a greve, o sol estava maravilhoso e as praias cheias de pessoas despreocupadas. Terminava com uma comparação que se tornaria famosa: - Você vai morrer estupidamente. Você quer fazer Shakespeare na terra de Dercy Gonçalves. Graças, porém, à pressão internacional e a muitas cartas, inclusive uma, desassombrada, de uma jovem de 17 anos, Cristina, filha do preso, Costa e Silva soltou Lacerda - afinal, o nosso tropicalista presidente nascera na terra de Dercy. RIo dia 13 de dezembro, o editor hélio Silveira, costumeiro frequentador de cadeia desde 64, não tinha dúvida de que seria preso outra vez - tanto que tomou todas as precauções. No almoço com amigos na Editora, combinara que, se ocorresse alguma coisa, eles se reuniriam à noite numa garçonnière no Leme - um apartamento para encontros amorosos clandestinos, muito usado numa época de raros motéis. Ênio saiu de casa, onde certamente iriam procurá-lo, e seguiu de carro com o filho até um ponto; aí tomou um táxi e foi para o esconderijo, achando que despistara os possíveis perseguidores. Dez minutos depois da sua chegada, o prédio era cercado e cercado ficou durante toda a noite. De vez em quando, um soldado subia para forçar a porta e gritar: "Comuna safado, ou você sai por bem ou por mal!" A porta, porém, tinha uma sólida tranca de ferro. "Era uma garçonnière à prova de qualquer marido ciumento", recorda Ênio. Às 6 horas da manhã, entretanto, o editor resolveu telefonar para o advogado Heleno Fragoso. Depois de uma longa negociação com as autoridades militares e com os sitiantes, o advogado conseguiu um acordo segundo o qual Ênio, em sua companhia, se entregaria na Polícia do Exército, onde já estivera preso por três vezes. "Ao chegar a pé", conta Ênio, "aconteceu uma coisa absurda: eu fui imediatamente detido... e o Heleno também." O advogado ainda tentou explicar que estava no exercício de sua profissão, que fora graças à sua intermediação que a situação tinha-se resolvido. A explicação só serviu para impacientar o oficial: - Não interessa, vai tirando os óculos, o cinto e os sapatos. Saboya e Fragoso não seriam os únicos. Às 19h30min do sábado, em Goiânia, um outro advogado, o grande Sobral Pinto, fazia hora para a solenidade de formatura de uma turma da qual era paraninfo. O calor estava insuportável, e ele resolveu se pôr à vontade no quarto do hotel. De chinelo, sem meias, em mangas de camisa e calças de pijama, Sobral repousava sentado, quando, de repente, a porta foi praticamente arrombada, e apareceu um major. O advogado pôde ver que atrás dele havia seis homens em fila. O major não cumprimentou: - Eu trago uma ordem do presidente Costa e Silva para o senhor me acompanhar. Sentado estava, sentado Sobral ficou. - Meu amigo, o marechal Costa e Silva pode dar ordens ao senhor. Ele é marechal, o senhor major. Mas eu sou paisano, sou civil. O presidente da República não manda no cidadão. Se esta é a ordem, então o senhor pode se retirar porque eu não vou. A primeira reação do militar foi de espanto: - O senhor está preso! - gritou o major, achando que não se tinha feito entender. - Preso coisa nenhuma! Só então o major percebeu que precisaria usar a força. A um grito de "prendam!", quatro dos seis homens que estavam na porta se atiraram sobre o velho sentado. Sobral foi agarrado e arrastado até o elevador, agarrado e arrastado passou pelo salão do hotel e, esperneando, foi jogado no banco de trás de um carro, cercado por dois agentes e com mais dois na frente, além do motorista. Estavam todos exaustos. Ao comandar aquele sequestro, o major certamente aprendeu que a bravura cívica podia ter 75 anos, pesar 67 quilos e andar de pijama e de chinelo. A mesma lição seria aprendida pelo coronel Comandante do quartel para onde Sobral foi arrastado. - O senhor é patriota? É possível até que o coronel não quisesse ofender o advogado; ele talvez estivesse esperando uma resposta óbvia para iniciar um diálogo mais descontraído. O que ouviu, porém, afastava qualquer possibilidade de entendimento: - O senhor engula o que está dizendo! Eu sou patriota, o senhor não. O senhor vive à custa do Estado, eu não. Aos 95 anos, Sobral Pinto se lembra com prazer dessas peraltices, como se elas tivessem ocorrido quando ele era adolescente, e não aos 75 anos: "Havia dois oficiais no gabinete: um alto e outro até mais baixo do que eu. Eu tive a impressão de que o alto ia me agredir, porque o menor disse: "fica quieto, você está louco!" E não deixou que ele chegasse até mim." Reconstituindo esses episódios, Sobral se exalta, reproduz os diálogos, gesticula e chega a chutar sem querer o chinelo sobre o neto, o jornalista Guilherme Fiuza, que toma o seu depoimento. - Retirem esse homem e ponham na prisão - ordenou o coronel, temendo a reação dos seus subordinados. Conduzido para uma cela onde não havia nem cadeira, nem cama, nem mesa, com dois soldados de baioneta calada na porta, Sobral voltou a protestar e conseguiu ser transferido para o quarto do oficial de dia. Uma hora depois, traziam o terno preto, o chapéu de sempre, a pasta, o colete e o pale tó, e informavam que ele poderia vesti-los para ir para Brasília. Antes de embarcar no mesmo carro com os mesmos policiais, Sobral ainda aprontaria mais uma cena de insubordinação civil. Verificamos que nos bolsos do seu colete tem dinheiro observou o tenente que trouxera as roupas - o senhor faça o obséquio de contar para ver se falta alguma coisa. - Não vou examinar coisa nenhuma. Os senhores são brutais e violentos, mas não são ladrões. O dinheiro deve estar aí. ÀS duas horas da madrugada de domingo, depois de umas três horas de viagem, vestido todo de preto como o país se acostumara a vê-lo, chegava a um quartel de Brasília o indomável guerreiro da dignidade. Ali ele encontraria outros presos famosos, como o colunista Carlos Castelo Branco. A recordação desses episódios vinte anos depois torna inevitável a imagem de que naquele sufocante quarto de um quinto andar de hotel, em Goiana, começava uma batalha que ia ser de todo o país nos anos seguintes: a luta do direito contra a força. Mas, Sobral Pinto ainda ia dar mais trabalho. no quarto dia de prisão, terça-feira, um oficial foi buscá-lo para prestar depoimento. - Não vou, não tenho que prestar depoimento nenhum. Vocês me arrastem, mas eu não vou. Como já sabia com quem estava falando, o oficial saiu às pressas para pedir socorro a seu superior, um paciente coronel, que foi até a cela: - Doutor Sobral, não me imponha a humilhação de ter que repetir o que fizeram com o senhor em Goiana. olha aqui a ordem que recebi de apresentá-lo ao coronel Jansen e ao tenente coronel Melo. Serei obrigado a chamar um sargento para levá-lo. Não faça isso comigo, me poupe essa humilhação. - Tá bom, diante disso eu vou. Se aqueles oficiais achavam que estava tudo resolvido, enganaram-se. Na hora de prestar o seu depoimento, o advogado disse: - Não dou. É um desaforo que o Exército, depois de ter me imposto essa humilhação, ainda tenha a petulância de querer devassar minha consciência. Em hipótese nenhuma! Eu não declaro nada. o Hábil coronel perguntou então ao advogado se ele concordaria em escrever o que acabava de dizer. A proposta foi aceita, mas com a condição de receber uma cópia: - Quando eu sair, quero escrever uma carta a esse ditador que está fingindo que é o presidente da República. Eu quero terminar a carta com essa declaração. Se naquele ano fosse instituído um prêmio física e cívica, os milhares de estudantes que enfrentaram a polícia nas ruas iam ter um sério concorrente na pessoa desse jovem insubordinado chamado Heráclito Fontoura Sobral Pinto. Enquanto, na madrugada de sábado, Sobral ainda se encontrava preso em Goiânia e Ênio Silveira era cercado, outro personagem nosso conhecido, o jovem Antônio Calmon, aguardava no apartamento de um amigo a chegada de um fornecedor muito especial. Ao contrário de Calmon, esse seu amigo já era consumidor assíduo de um certo pó que só no ano seguinte entraria na moda. Às 2 horas da madrugada, atrasado, chegava o tão aguardado vendedor de cocaína. O traficante, que era também agente policial, tinha 50 razões para o atraso. Naquela noite ele fora requisitado para um infindável plantão: "prender subversivos". Ele estava admirado: Esses comunistas vivem bem pra caralho. Tive no apartamento de um tal de Ênio Silveira e em várias outras casas. Como vivem bem! Um dinheiro extra convenceu-o facilmente a deixar ver a lista dos 50 nomes que ele estava encarregado de prender. Até as 7 horas da manhã, Calmon ficou no telefone tentando avisar as futuras vítimas. Gláuber Rocha, Millôr Fernandes e Paulo Francis foram alguns dos nomes que Calmon não conseguiu avisar. Os dois primeiros já tinham saído de casa e Francis estava nos Estados Unidos, ou melhor, não estava: Às 6 da manhã do dia 14, ele desembarcava no Galeão, vindo de Nova York, depois de um giro pela Tchecoslováquia, Alemanha Oriental e Paris. Esperavao um amigo com a edição daquele dia do JB. Uma olhada rápida na primeira página, bastou-lhe para concluir: "ó, meu Deus, estamos perdidos." Foi para casa, fez a barba, mas não chegou a acabar de tomar banho. Às oito e meia, um capitão e um sargento chegavam no seu apartamento no Posto 6, em Copacabana, e levavam-no para a Vila Militar, onde passaria dois meses, ao lado, entre outros, do poeta Ferreira Gullar. Quando Francis chegou à Vila, Gullar já estava lá desde a noite anterior. Ao sair de noite da sucursal de O Estado de S. Paulo, um colega de redação o avisara para não ir para casa. Mas o poeta não deu atenção; além do mais, tinha alguns convidados esperando: Vianinha, sua mulher Maria Lúcia, João das Neves, Pichin Pla. Denoi de Oliveira, enfim, quase todo o Grupo Opinião. Ao tocarem a campainha, só estavam o dono da casa, sua mulher Teresa, os três filhos e o casal Víanna. Mal abriram a porta, dois homens invadiram a sala: um capitão e um cabo. Apresentaram uma carteira e anunciaram que Ferreira Gullar estava preso. Se fosse hoje, o capitão seria logo reconhecido. Ele era ninguém menos que o depois famoso Capitão Guimarães, um dos maiores banqueiros de bicho do Rio, presidente da Liga Independente das Escolas de Samba e ex-presidente da Vila Isabel, onde aliás foi sucedido pela comunista Ruça. mulher do compositor Martinho da Vila. A esse respeitável cidadão carioca a contravenção deve, entre outras contribuições, a introdução da informática no jogo do bicho. Mas no dia 13 de dezembro de 68, o capitão Guimarães era um simples servidor do glorioso Exército brasileiro. - Cadê a ordem de prisão? - exigiu a folgada Teresa. O oficial não se deu ao trabalho de muitas explicações. Apontando para a televisão ligada, respondeu displicentemente: - Está aí. No vídeo, o ministro Gama e Silva lia a sentença de morte da democracia: - O presidente da República poderá... Gullar viu que não adiantava protelar. Já vestindo o paletó, perguntou: - Posso tomar um copo de leite? Podia. Foi à cozinha. abriu a geladeira, pegou a caderneta de endereços e jogou dentro do congelador. Enquanto isso, os oficiais remexiam a casa. O perigo era o corredor. Apartamento de dois quartos e uma sala mínima, os livros estavam empilhados ali, A um sinal da mãe, Luciana, de 13 anos, foi à estante e pegou A Voz Operária, jornal comunista que seus pais distribuíam. - O que é que você está fazendo? - perguntou Guimarães. Luciana fingiu indignação: - Invadem a minha casa e eu não posso nem estudar! Puxou os jornais junto com alguns livros e foi para o quarto. Nesse momento, tocaram a campainha outra vez. Pichin Plá, acompanhada de João das Neves e Denoi, não chegou a perceber os estranhos: - a ditadura, hein? - disse no seu portunhol a argentina Pichin, recompondo-se logo que o capitão lhe perguntou quem era. - Soy aeromoça. Gullar foi colocado num carro, junto com mais um policial armado, e rumaram em direção a dois outros endereços próximos dali: a rua Bulhões de Carvalho, em Copacabana, e a avenida Vieira Souto, esquina da rua Aníbal de Mendonça, em Ipanema. No primeiro, obviamente, não encontraram Francis. No segundo, não puderam entrar: o prédio de Millôr não tinha porteiro noturno. Foram então para a Vila Militar, onde o poeta passou a sua primeira noite, ao lado entre outros, de um indignado Antônio Callado. Preso por ter o mesmo nome do escritor, esse Callado implorava a Gullar: - O senhor, que é jornalista, fala com os homens que eu nunca escrevi nada, nem livro, nem artigo, eu mal sei escrever. Graças a esse equívoco, o "verdadeiro" Antônio Callado, o romancista, pôde ficar mais uns dias em liberdade. As 11 e meia do dia seguinte, Gullar emocionou-se: "De repente, eu ouço uns passos, olho, era o Francis." Limpo, apesar do banho incompleto, bem-vestido, ainda com ares de Nova York, Paulo Francis teve o seu primeiro choque na hora do almoço. "Quando ele encarou o prato". conta Gullar, "e viu aquele feijão aguado, aquela água chilra, aquela carne cheia de nervos, malcozida, fedorenta. ele disse: "Gullar, eu vou morrer de fome. Não vou conseguir comer isso, não". Com mais doze horas de experiência sobre o amigo, Gullar aconselhou: - Guarda o pão, Francis, começa a comer pão. Na noite anterior, tinha acontecido o mesmo com ele. Não comera nada, mas agora estava cheio de apetite: - Já tomei o café da manhã e acho que vou almoçar. -O poeta quase acrescentou: "E muito bem." Apesar de tudo, o exigente Francis se adaptou logo às suas novas condições de vida: no dia seguinte já estava sem camisa e no outro, só de cueca. No dia de Natal, os oficiais da Vila organizaram um banquete, e, claro, não sobrou comida para os presos. Às duas da tarde, só com o café da manhã no estômago, Paulo Francis, de cueca samba-canção, batendo nas grades com a caneca e a colher, protestava: - Cadê a comida, porra! Cadê a comida! Gullar e Francis, que já estavam na cela ao lado com um agitado jovem de nome Perfeito Fortuna, iriam em breve ganhar duas célebres companhias: Caetano Veloso e Gilberto Gil. Os compositores tinham sido presos em São Paulo, levados para a PE do Exército, na rua Barão de Mesquita, na Tijuca, e, de lá, transferidos para a Vila. A prisão dos dois envolveu uma cuidadosa operação interestadual, Caetano mal havia-se deitado quando, as 6 horas da manhã, foi chamado pela empregada: três senhores queriam falar com o dono da casa. Aliás, já estavam falando. As indiscretas visitas, na porta do quarto, no andar de cima, ordenavam que o compositor se vestisse e os acompanhasse. Eles tinham pressa, inclusive porque, como diziam, ainda precisavam passar na casa de Gilberto Gil. O problema é que Gil estava no quarto ao lado. Como tinham ficado conversando até tarde Caetano, Dedé, sua irmã Sandra e o namorado desta, Gil - dormiram todos ali, embora o apartamento de Gil fosse perto. Por isso, enquanto se vestia, a preocupação de Caetano foi avisar o amigo: "Se manda, porque eles não sabem que você está aqui." Ao recordar aquela manhã, Caetano não se esquece de que Gil poderia ter fugido: entregou-se por solidariedade. "Ele viu que eu estava com medo e não queria me deixar sozinho." Gil saiu da casa do amigo na avenida São Luís e foi para o seu apartamento na Praça da República esperar a polícia. A captura dos dois em São Paulo foi feita não por oficiais do II, mas do I Exército, que os colocaram num camburão e os levaram para o que viria a ser um dos mais tenebrosos "valhacoutos" de torturas do Rio - para usar a expressão que, na boca do deputado Moreira Alves, tanto ofendeu os brios militares. Ali, na Prisão da Barão de Mesquita, mais do que Gil Caetano passou alguns dos seus piores dias. Ênio Silveira, companheiro de prisão dos compositores, não gosta de lembrar a cena em que os soldados " encenaram o fuzilamento de Caetano e, em seguida, rasparam o seu cabelo a zero, num ritual de crueldade assistido por uma oficialidade de sádicos. Aquela sofrida e torturada passagem pelo Rio - de janeiro, fevereiro e março - teve sua revanche artística. Antes de serem soltos da Vila Militar, sob a condição de deixarem o país, Gil e Caetano compuseram uma espécie de despedida do inferno: o exuberante Aquele abraço e a pungente Irene. Ironicamente, dois dos políticos mais caçados daqueles dias conseguiram fugir, apesar do cerco: os deputados Márcio Moreira Alves e Hermano Alves. Às 4 horas da tarde do dia 12, logo depois da desinterdição do aeroporto de Brasília - que o governo mandara fechar para manter na cidade os deputados arenistas decolava um avião particular levando a bordo o foragido Marcito. Ao cair da noite, o aparelho descia em Ribeirão Preto, onde o aguardava um advogado, amigo da família Moreira Alves, com um Volkswagen e um revólver na cintura: Gil Macieira. Os dois rumaram para a bela Fazenda Conselheiro Prado, onde, no dia 13, são e salvo, Marcito acordou, tomou banho de piscina e se empanturrou de jabuticabas que os 50 pés da fazenda forneciam à vontade. À 1 hora da tarde, o deputado Francisco Amaral, advogado de sindicatos ferroviários, era recebido pela primeira vez no cenáculo dos Prado para buscar o deputado subversivo e levá-lo para outro esconderijo. Depois de ouvir a leitura do AI-5 na casa de Amaral, Marcito achou que era mais seguro mudar de pouso. Foram então para o apartamento de quarto e sala oferecido por um dentista de apelido Grama - José Roberto Magalhães Teixeira -, que duas décadas mais tarde seria prefeito de Campinas. Durante 15 dias, Marcito ficou escondido nessa garçonnière, tendo como único contato com o exterior o dentista, que lhe trazia comida e jornais todos os dias. Foi também Grama que se dispôs a ir ao Rio estabelecer contato com a família Moreira Alves através de Antônio Callado. "Minha tia Maria do Carmo Nabuco foi no cofre", relembra Marcito, "pegou uns caraminguás que tinham sobrado de sua última viagem à Europa, entregou à tia Graciema, que passou para Joaquim Pedro (o cineasta), que entregou a Callado." Os caraminguás eram 3 mil dólares, que chegaram ao fugitivo acompanhados de dois bilhetes; um, em inglês, de d. Maria do Carmo: "O sangue é mais denso do que a água." O ditado inglês queria dizer, no caso, que as relações de família eram mais fortes do que as ideológicas. O outro, de Callado, era em código sertanejo: "Cumpadre: estão de olho gordo nos vitelos que você criou na fazenda. Acho bom você por eles ao abrigo, porque senão podem levá-los pro matadouro." Pouco antes do Natal, Marcito resolveu procurar seu melhor amigo em São Paulo, José Gregori, que lhe deu logo um uísque, mas parecia meio hesitante em oferecer-lhe abrigo. A situação se esclareceu quando o dono da casa informou: - As minhas três filhas estão num quarto e no outro você vai ver quem está. Estava Hermano Alves. A solução foi ligar para Oscar Pedroso Horta, cuja casa porém funcionava como um bar: "A toda hora chegava alguém para tomar um uísque", como conta Marcito. Ofendido com a recusa do asilo oferecido, mesmo assim Horta não desistiu de ajudar, telefonando para u amigo João Leite, "o único delegado honesto da polícia de São Paulo", segundo Marcito. Além de policial, Leite era também um excelente autor de contos e, mais do que tudo, um grande boêmio. "Quando você me chamou", ele disse para Horta. Eu sabia que era peixe grande, mas não imaginava que fosse tubarão." O tubarão acabou num apartamentozinho em cima do La Licorne, um misto de boate e elegante casa de prostituição. "Ele morava sozinho, em cima do La Licorne", conta Marcito, "porque adorava uma putazinha." O esconderijo funcionou até a noite de Natal, quando antes da meia noite, bateram à porta. João Leite e Marcito que estavam tomando um vinhozinho e jogando biriba levaram um susto. Quando, cheio de apreensão, o dono foi atender, viu entrar pela porta, seguro pelas pernas, um enorme peru assado: - Clandestino tem que comer peru no Natal - disse, já meio bêbado, o portador do presente, o sociólogo Sérgio Buarque de Hollanda, acompanhado da mulher, Maria Amélia. Passada a alegria da visita e do presente, Marcito disse para o seu hospedeiro: "Se o Sérgio, de porre, já está sabendo onde eu estou, daqui a pouco a cana vem aí." Como não queria sair do Brasil, Marcito tentou vários esquemas para ficar. Ligou para os amigos dominicanos - Frei Betto não estava em São Paulo - e mandou contatar Marighella. - Diga a esse menino que, se quiser fazer alguma coisa pelo Brasil, que venha assaltar banco conosco respondeu logo o líder guerrilheiro, que, com os assaltos, achava ter começado a revolução no Brasil. A solução foi recorrer de novo a Pedroso Horta, um sábio: - Olha aqui, Marcito, você pode continuar com esses seus contatos aí com os dominicanos. Mas se você quiser sair do país, o caminho é o contrabando. Por essa rota. Pedro Horta já tinha dado fuga ao ex-governador Ademar de Barros. Na Madrugada de 29 de dezembro, por 1.500 dólares, um bimotor decolava de Jundiaí, levando Márcio Moreira Alves com destino ao Paraguai. Hermano preferiu ficar. Asilou-se dias depois na embaixada da Argélia, numa das muitas operações de asilo que o jornalista Darwin Brandão contaria naqueles tempos. Enquanto esperava que o avião desembarcasse as caixas de uísque escocês, Marcito descobriu por que a sua fuga fora tão barata: -Eu era um carregamento de retorno. No dia seguinte, Hermano e Marcito tinham os seus mandatos cassados - eles e mais nove deputados. "Aconselhado pela unanimidade do Conselho de Segurança Nacional, o presidente não só cassava os deputados como suspendia também os direitos políticos do ex-governador Carlos Lacerda. Havia mais nomes na primeira lista depois do AI-5, disse, mas Costa e Silva não quis aumentar o número de punições "para evitar intranquilidade na passagem de ano". Ele prometia "outras decisões revolucionárias da mesma natureza, oportunamente". Era, digamos, uma indulgência para durar até o réveillon. Assim, debaixo de uma apagada e vil tristeza, o ano chegava ao fim - o ano, o capítulo e o livro. Os dois últimos por falta de autor-, também ele, como todo mundo, levado pelo arrastão.



(1968: o ano que não terminou)



(Ilustração: artistas protestam contra a Ditadura Militar em fevereiro de 1968. Na foto: Tônia Carreiro, Eva Wilma, Odete Lara, Norma Bengell e Cacilda Becker)