segunda-feira, 16 de setembro de 2024

CAI O PANO DE 1968, O ANO QUE NÃO TERMINOU, de Zuenir Ventura

 



"Muitos são os que prendem; poucos os que soltam."

(General FIUZA E CASTRO, chefe do CIE)


O AI-5 começou a censurar antes de ser editado e a prender antes de ser anunciado publicamente. Na quinta-feira à noite, véspera da divulgação do ato, enquanto o marechal Costa e Silva se mantinha trancado no Laranjeiras vendo filme de bangue-bangue, ouvindo música clássica, fazendo palavras cruzadas, os seus censores invadiam as redações dos jornais, rádios e televisão de vários Estados. Na sexta-feira, 13, o Estado de S. Paulo era proibido de circular e o Jornal da Tarde tinha parte da sua edição apreendida. Também no Rio os leitores não encontraram alguns de seus jornais nas bancas, ou os encontraram totalmente censurados. O país, que era dirigido por Joel Silveira, conseguiu driblar a censura prévia, mas foi logo retirado das bancas, e seu diretor preso. O Correio da Manhã e o Jornal do Brasil circularam normalmente, mas à 1 hora da madrugada de sexta-feira, três homens chegaram à redação do Correio dizendo que queriam "ver como estavam as notícias". Como os intrusos não se identificassem, foram mandados embora. Poucos minutos depois, o quarteirão era cercado e a redação invadida por policiais do DOOPS e da Polícia Federal. Os agentes apreenderam os exemplares que estavam saindo das rotativas e só os liberaram às 4 horas. Pouco depois, o seu editor, Oswaldo Peralva, era preso. Simultaneamente, O Última Hora, era também visitado por uma turma de censores, antes de circular. Em Brasília, o Correio Brasiliense, único jornal então editado na capital, circulou sob censura prévia, sem o noticiário da votação na Câmara. Em Belo Horizonte, as 2 da madrugada, um oficial do Exército, acompanhado de cinco soldados armados de metralhadora, chegavam às oficinas de O Diário, da Arquidiocese de Belo Horizonte: Era uma operação nacional. Pouco depois da divulgação o Ato pela Voz do Brasil, chegavam ao Jornal do Brasil cinco majores da escola de comando de estado Maior, dirigindo-se à sala de redação, no 3 andar. Ao se apresentarem como censores, o editor-chefe Alberto Dines pediu licença e subiu ao " andar para se comunicar com o diretor Nascimento Brito. Começava a nascer naquele momento, uma edição histórica. "Eu achava que de alguma maneira a gente tinha que denunciar a censura. Era preciso caracterizar que o jornal estava censurado", lembra Dines: "Eu queria dizer ao leitor que ele não acreditasse no que ia ler." Era arriscado, mas Nascimento Brito aceitou a proposta. "A estratégia adotada", segundo Dines, "era mostrar de forma metafórica, figurada, com bom humor, que a gente estava sob censura." No dia 14, os leitores mais atentos do JB puderam perceber que o tradicional matutino da Condessa Pereira Carneiro apresentava mudanças que violentavam suas rigorosas normas de estilo e bom gosto. Nélson Rodrigues dizia que no dia em que o mundo acabasse, o caderno do JB noticiaria o fato "sem um ponto de exclamação". naquele sábado, porém, o jornal estava cheio de clichês e lugares comuns - como "balipodistas", "festejado jogador", "o colored Pelé" haviam sido abolidos do jornal desde pelo menos 1955, quando o JB realizou uma das mais importantes reformas gráficas e redacionais da imprensa brasileira. Mas havia surpresas mais estranhas. Apesar do sol de dezembro, por exemplo, a previsão meteorológica anunciava no alto à esquerda da primeira página: "Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos." No outro lado da página. aparecia em destaque uma irrelevância: "Ontem foi o dia dos cegos." A foto principal era de Costa e Silva na entrega das espadas aos novos guardas-marinha. Ele está rígido, inclinado para a frente como se fosse cair. Na outra, uma cena deslocada no tempo, com a seguinte legenda: "Garrincha foi expulso quando o Brasil vencia o Chile na Copa de 62." Pela primeira vez, no lugar dos editoriais, eram publicadas duas fotos: na maior, um lutador de judô, gigante, dominando um garoto. O título da foto: "Força hercúlea." É possível que nem todos os leitores tivessem percebido a intenção das brincadeiras, do deboche e dos absurdos da edição. Mas pelo menos um não gostou. No sábado à tarde, Dines estava na sua sala quando um dos majores da véspera entrou e foi logo dizendo: - Você me fez de palhaço; não admito; nunca ninguém fez isso comigo. A resposta do editor foi uma declaração de guerra: - Olha aqui. você ê meu hóspede e não admito que abuse de minha hospitalidade. Você se comporte ou te ponho daqui pra fora e você vai ter que censurar o jornal no banheiro. Felizmente, havia na sala um sereno tenente-coronel, chefe do grupo invasor, para impedir que os dois se atracassem. No fim da tarde, pouco depois do incidente, um dos diretores do jornal, o embaixador Sette Câmara, era detido por algumas horas pela Polícia Federal. A direção considerou a prisão uma afronta e suspendeu a circulação. Dines recorda que era o penúltimo sábado antes das festas natalinas, a edição estava carregada de publicidade e a decisão significava um enorme prejuízo. "Apesar disso, com a autorização da Condessa, o jornal correu o risco e abriu mão do faturamento." Como na época os matutinos não circulavam às segundas-feiras, os leitores do JB ficariam sem jornal dois dias seguidos, e o jornal sem faturamento. A solidariedade das agências de publicidade, no entanto, transferiu para a edição de terça-feira os anúncios que deveriam ter saído no domingo. Uma semana depois, como paraninfo de uma turma de jornalismo da PUC, Dines teve o seu discurso contra a censura discretamente gravado por dois agentes do CENIMAR. No dia 22, ele era preso e recolhido a um quartel do Exército para uma estada forçada de quatro dias. Joel Peralva e Dines seriam algumas das primeiras vítimas de uma guerra que apenas começava e que durante mais de sete anos iria opor a censura à imprensa. No dia 13, enquanto os censores assumiam praticamente a direção dos jornais, uma turma de incansáveis e onipresentes agentes se dedicavam à operação de caça às bruxas - ao arrastão. O advogado Hélio Saboya, que 20 anos depois seria secretário de Polícia Civil do Estado do Rio, lembra-se de que, logo depois de ser preso no dia 19 de dezembro, ouviu num quartel do Exército o então temido general Fiuza de Castro, chefe do Centro de Informações do Exército - CIE -, dizer ao telefone: "Muitos são os que prendem. poucos os que soltam." A frase, pronunciada com entonação bíblica, era uma epígrafe para aqueles tempos. Não é possível calcular o número exato de prisões até porque o AI-5 não gostava de registros e controles desse tipo mas se estima que, no período que se seguiu ao 13 de dezembro, algumas centenas de intelectuais, estudantes, artistas, jornalistas, tenham sido recolhidos às celas do DOPS, da PM e aos vários quartéis do Exército, da Marinha e da Aeronáutica em todo o país. Uma das primeiras ações do arrastão ocorreu bem antes da reunião do CSN. às 2h30min da tarde. em frente à Assembleia Legislativa, hoje Câmara dos Vereadores. Um homem de 29 anos saía daquela casa em direção à avenida 13 de Maio, quando foi parado pelo inspetor do DOPS Mário Borges, que lhe pediu os documentos. Ao ouvir a confirmação - "É você mesmo" - o rapaz saiu correndo até as escadarias da Assembleia, onde foi cercado por uma dezena de policiais e jogado dentro de um camburão. Enquanto se debatia, ele teve a presença de espírito de gritar: Meu nome é Rogério Monteiro de Souza, sou jornalista, meu nome é Rogério Monteiro de Souza, sou...." A porta do carro batendo não impediu que alguém ouvisse e comunicasse à sua família. Graças a esse expediente, o então assessor " comunista” dos deputados Alberto Rajão, Ciro Kurtz e Fabiano Villanova, foi mais tarde localizado no Regimento de Cavalaria Marechal Caetano de Faria, aonde aliás voltou 20 anos depois para ser recebido com honras militares. Na primeira visita oficial àquele quartel, o governador Moreira Franco fez questão de levar o seu secretário de Estado. Também próximo à Assembleia, na calçada do Teatro Municipal, só que à noite, o ex-presidente Juscelino Kubitschek era preso por um grupo de oficiais do Exército, comandados por um certo coronel Elias, e conduzido ao 3° Regimento de Infantaria de São Gonçalo. Na véspera, JK havia participado no Maranhão de um banquete que o governador José Sarney dera em sua homenagem. Voltara ao Rio para paraninfar uma turma da Escola de Medicina no Municipal. O que se pretendia fazer com o ex-presidente, o escritor Carlos Heitor Cony pôde sentir nessa mesma noite ao ser preso no Leme. Conduzido para o Batalhão de Guardas, em São Cristóvão, ele assustou-se com a tropa embarcada num camburão. Cony contaria mais tarde: - Um oficial muito moço, levando-me para a cela, onde já estava o jornalista Joel Silveira, explicou-me: "Esse pessoal aí de fora vai ter hoje muito trabalho." - Que tipo de trabalho? indagou o prisioneiro. - Vamos fuzilar o Juscelino e o Lacerda. Não se sabe por que essa vontade não foi cumprida, mas em compensação Juscelino sofreu muito nesses dias em que esteve preso. Em janeiro, uma junta de quatro médicos - Drs. Aloysio Salles, Oswaldo Pinheiro Campos, Décio de Souza e Ruy Goyanna - assinou um laudo sobre o paciente: "Para seu adequado tratamento, julgamos absolutamente inconveniente a situação de reclusão em que se encontra." Fundamentando essa conclusão, os médicos forneciam o diagnóstico do doente: arteriosclerose coronariana, hipertensão arterial, diabete, gota, i infecção urinária redicivante pós operatória; rotura traumática do tendão de Aquiles esquerdo em período de imobilização, após tratamento cirúrgico; síndrome de depressão psíquica. Aos 66 anos e mesmo nesse estado, o criador de Brasília não perdia o humor, o que fez dele o mais doce e amoroso presidente que o Brasil já teve. Logo depois de deixar a prisão, ele se encontrou com Vitório Cabral, que se surpreendeu com o gesso na perna do amigo. Rindo, JK explicou: - Pois é, aqueles merdas me obrigavam a ficar horas e horas em pé respondendo a perguntas idiotas. O atual secretário de Planejamento do Estado do Rio comove-se com a lembrança: - Juscelino dizia isso sem ódio. quase brincando, com uma grandeza impressionante. Ele sabia que tudo aquilo ia sair na urina da História. De fato, todos os majores, coronéis e generais que maltrataram Juscelino Kubitschek naqueles tempos seguintes saíram, ao contrário dele, na urina da História. Quando soube o que estavam fazendo com seu amigo ex-presidente, o ministro das Relações Exteriores, Magalhães Pinto, foi protestar junto a Jayme Portella. O chefe da Casa Militar respondeu como se falasse em nome da fatalidade: "Nessas ocasiões, quando os ânimos estão exaltados, esses fatos acontecem." A prisão do criador de Brasília era o sinal de que ninguém estaria a salvo da caçada das personalidades mais respeitáveis até os banqueiros de bicho. Antes do Natal, nada menos que 150 bicheiros eram recolhidos às celas da Ilha Grande, entre eles, Natalino do Nascimento. o "Natal da Portela", presidente da Escola de Samba a que ligou o seu nome; Castor de Andrade, vice-presidente do Bangu, e Carlos Martins Teixeira, presidente do Madureira. O secretário de Segurança da Guanabara, general Luis França de Oliveira, estava confiante: "Nossa autoridade agora está apoiada em dispositivos legais mais eficientes." Fingia-se acreditar que começava ali, com a mistura na cadeia de cidadãos honrados e bicheiros, um processo de moralização que poria fim aos enriquecimentos ilícitos no país. Em muitos casos, os rumores, aparentemente alarmistas, eram apenas um aviso do que iria ocorrer em seguida. Com o deputado da Arena Raphael de Almeida Magalhães, ex-governador da Guanabara, ocorreu isso. Na noite do AIf 5, Raphael resolveu antecipar a comemoração dos 38 anos que faria no dia seguinte. Reuniu em seu apartamento uns poucos amigos - Maria da Conceição Tavares, Carlos Lessa, João Paulo de Almeida Magalhães - mas o telefone não parava. Primeiro, ligou Renato Archer, depois Carlos Lacerda, em seguida Teotônio Vilella. Quando chegou a vez de um repórter, Rafael respondeu: "Olha, já telefonaram tanto, perguntando se é verdade, que vou acabar acreditando." À 1 hora da madrugada, chegava o DOPS para levá-lo. O deputado foi o primeiro preso a chegar à Vila Militar. Um outro boato garantia na mesma noite que o ex-governador Carlos Lacerda também seria preso. Lacerda estava doente, recolhido ao seu apartamento no Flamengo, mas às 9 horas o secretário de Segurança da Guanabara telefonou a Portella reclamando que já havia recebido ordens do I Exército para prender dezenas de pessoas e até aquela hora nada em relação a Lacerda. Era uma falha imperdoável; logo Lacerda, contra quem o presidente e seu chefe da Casa Militar nutriam um ódio todo especial! O ex-governador nunca escondera a suspeita de que muito do comportamento de Costa e Silva já fazia supor que ele estivesse com arteriosclerose cerebral quando chegou ao governo. Lacerda chegou a escrever: "O general Portella é quem governa o Brasil, o marechal Costa e Silva é uma figura de proa, só." Lacerda teve que esperar apenas uma noite. No dia 14, ele acordou com um de seus médicos, o Dr. Jaime Rodrigues, à beira da cama. Como se encontrava em estado de pré-estafa, fazendo regime para emagrecer e tomando remédio para dormir, achou a presença natural. Mas o Dr. Jaime estava ali por outras razões: - Estão lá embaixo dois homens da Polícia para prendê-lo anunciou o médico. Além dos dois, havia também um oficial-médico, que queria examinar o prisioneiro. - Não rejeitou Lacerda. - Tenho meu médico; quero é tempo para me vestir. Como não pretendia parecer que estava retardando a prisão, vestiu-se rápido. Tirou o pijama e pegou a primeira roupa: "Vesti uma roupa preta, quente pra burro!" lembraria mais tarde. "E fazia um calor miserável." Entraram na Kombi da polícia e desceram no posto salvamar vizinho ao Iate Clube. Ao ser embarcado numa lancha, Lacerda teve dois pensamentos, um pior do que o outro: "Vão me mandar pra algum navio" e "só espero que não me joguem no fundo da baía." A lancha partiu na direção de Niterói. passou pelo Forte de Laje e ancorou no Forte de Santa Cruz - uma velha fortaleza do tempo dos portugueses, cheia de intermináveis escadas. Fazia um sol de rachar e o prisioneiro suava, de calor e de medo - medo de, mal alimentado, ter uma fraqueza qualquer: "Se desmaio aqui, estou totalmente desmoralizado," pensou. Quando finalmente chegaram à sala do comandante, verificou-se que a ordem de prisão era da polícia e não podia, portanto, ser acolhida por um oficial do Exército e ainda mais, comandante de um histórico Forte. Alguns telefonemas tentaram resolver o impasse: que o prisioneiro fosse então levado de volta. Assistente impassível daquele choque de autoridades, Lacerda perdeu enfim a paciência: - Não, agora espera aí: eu não sou boi de general. Se estou preso, estou preso, mas quero saber aonde vou. Não vou ficar passeando pela baía de Guanabara. Mais telefonemas, mais confabulações, e finalmente o anúncio do destino do prisioneiro: Regimento Caetano de Faria. Ao chegar a esse quartel, no centro do Rio, Lacerda lembrou-se do dia em que, 20 anos antes, fora visitar Virgílio de Melo Franco, Dario de Almeida Magalhães, Austregésilo de Athayde e Adauto Lúcio Cardoso, que estavam ali presos por terem conspirado contra a ditadura Vargas. Como era também dezembro e os presos estavam incomunicáveis, ele levara uma cesta de Natal comprada na Casa Lidador. Pensando nisso - "Como é engraçada a vida!" -Lacerda foi conduzido a uma enfermaria improvisada em cela, onde já estava o ex-comunista Oswaldo Peralva e aonde chegaria logo depois o histórico comunista Mário Lago, inimigo político do anticomunista Lacerda, Apesar do calor, Mário chegou de calça de veludo e com cara de vilão: fora preso durante a gravação de uma novela e não tivera permissão nem para trocar de calça, nem para tirar a maquilagem do rosto. - Ô Mário, preso fala um com o outro, não é? A partir desse aperto de mão, os dois ficaram amigos para o resto da vida. Logo que chegou, Lacerda decidiu que faria alguma coisa contra aquela prisão. Carregando a culpa de ter sido um dos motores do golpe que acabou dando nesse golpe dentro do golpe, Lacerda se sentia na obrigação, mais do que qualquer um outro, de protestar. Descobrir a maneira não exigia muita imaginação, só coragem: greve de fome. Durante os sete dias em que esteve preso, Lacerda não comeu, inaugurando no ano uma forma de protesto que iria ser comum nos tempos seguintes. Quando começou a sua, tudo indicava que seria uma inutilidade. O seu irmão Maurício o desestimulou com o convincente argumento de que os jornais não estavam noticiando a greve, o sol estava maravilhoso e as praias cheias de pessoas despreocupadas. Terminava com uma comparação que se tornaria famosa: - Você vai morrer estupidamente. Você quer fazer Shakespeare na terra de Dercy Gonçalves. Graças, porém, à pressão internacional e a muitas cartas, inclusive uma, desassombrada, de uma jovem de 17 anos, Cristina, filha do preso, Costa e Silva soltou Lacerda - afinal, o nosso tropicalista presidente nascera na terra de Dercy. RIo dia 13 de dezembro, o editor hélio Silveira, costumeiro frequentador de cadeia desde 64, não tinha dúvida de que seria preso outra vez - tanto que tomou todas as precauções. No almoço com amigos na Editora, combinara que, se ocorresse alguma coisa, eles se reuniriam à noite numa garçonnière no Leme - um apartamento para encontros amorosos clandestinos, muito usado numa época de raros motéis. Ênio saiu de casa, onde certamente iriam procurá-lo, e seguiu de carro com o filho até um ponto; aí tomou um táxi e foi para o esconderijo, achando que despistara os possíveis perseguidores. Dez minutos depois da sua chegada, o prédio era cercado e cercado ficou durante toda a noite. De vez em quando, um soldado subia para forçar a porta e gritar: "Comuna safado, ou você sai por bem ou por mal!" A porta, porém, tinha uma sólida tranca de ferro. "Era uma garçonnière à prova de qualquer marido ciumento", recorda Ênio. Às 6 horas da manhã, entretanto, o editor resolveu telefonar para o advogado Heleno Fragoso. Depois de uma longa negociação com as autoridades militares e com os sitiantes, o advogado conseguiu um acordo segundo o qual Ênio, em sua companhia, se entregaria na Polícia do Exército, onde já estivera preso por três vezes. "Ao chegar a pé", conta Ênio, "aconteceu uma coisa absurda: eu fui imediatamente detido... e o Heleno também." O advogado ainda tentou explicar que estava no exercício de sua profissão, que fora graças à sua intermediação que a situação tinha-se resolvido. A explicação só serviu para impacientar o oficial: - Não interessa, vai tirando os óculos, o cinto e os sapatos. Saboya e Fragoso não seriam os únicos. Às 19h30min do sábado, em Goiânia, um outro advogado, o grande Sobral Pinto, fazia hora para a solenidade de formatura de uma turma da qual era paraninfo. O calor estava insuportável, e ele resolveu se pôr à vontade no quarto do hotel. De chinelo, sem meias, em mangas de camisa e calças de pijama, Sobral repousava sentado, quando, de repente, a porta foi praticamente arrombada, e apareceu um major. O advogado pôde ver que atrás dele havia seis homens em fila. O major não cumprimentou: - Eu trago uma ordem do presidente Costa e Silva para o senhor me acompanhar. Sentado estava, sentado Sobral ficou. - Meu amigo, o marechal Costa e Silva pode dar ordens ao senhor. Ele é marechal, o senhor major. Mas eu sou paisano, sou civil. O presidente da República não manda no cidadão. Se esta é a ordem, então o senhor pode se retirar porque eu não vou. A primeira reação do militar foi de espanto: - O senhor está preso! - gritou o major, achando que não se tinha feito entender. - Preso coisa nenhuma! Só então o major percebeu que precisaria usar a força. A um grito de "prendam!", quatro dos seis homens que estavam na porta se atiraram sobre o velho sentado. Sobral foi agarrado e arrastado até o elevador, agarrado e arrastado passou pelo salão do hotel e, esperneando, foi jogado no banco de trás de um carro, cercado por dois agentes e com mais dois na frente, além do motorista. Estavam todos exaustos. Ao comandar aquele sequestro, o major certamente aprendeu que a bravura cívica podia ter 75 anos, pesar 67 quilos e andar de pijama e de chinelo. A mesma lição seria aprendida pelo coronel Comandante do quartel para onde Sobral foi arrastado. - O senhor é patriota? É possível até que o coronel não quisesse ofender o advogado; ele talvez estivesse esperando uma resposta óbvia para iniciar um diálogo mais descontraído. O que ouviu, porém, afastava qualquer possibilidade de entendimento: - O senhor engula o que está dizendo! Eu sou patriota, o senhor não. O senhor vive à custa do Estado, eu não. Aos 95 anos, Sobral Pinto se lembra com prazer dessas peraltices, como se elas tivessem ocorrido quando ele era adolescente, e não aos 75 anos: "Havia dois oficiais no gabinete: um alto e outro até mais baixo do que eu. Eu tive a impressão de que o alto ia me agredir, porque o menor disse: "fica quieto, você está louco!" E não deixou que ele chegasse até mim." Reconstituindo esses episódios, Sobral se exalta, reproduz os diálogos, gesticula e chega a chutar sem querer o chinelo sobre o neto, o jornalista Guilherme Fiuza, que toma o seu depoimento. - Retirem esse homem e ponham na prisão - ordenou o coronel, temendo a reação dos seus subordinados. Conduzido para uma cela onde não havia nem cadeira, nem cama, nem mesa, com dois soldados de baioneta calada na porta, Sobral voltou a protestar e conseguiu ser transferido para o quarto do oficial de dia. Uma hora depois, traziam o terno preto, o chapéu de sempre, a pasta, o colete e o pale tó, e informavam que ele poderia vesti-los para ir para Brasília. Antes de embarcar no mesmo carro com os mesmos policiais, Sobral ainda aprontaria mais uma cena de insubordinação civil. Verificamos que nos bolsos do seu colete tem dinheiro observou o tenente que trouxera as roupas - o senhor faça o obséquio de contar para ver se falta alguma coisa. - Não vou examinar coisa nenhuma. Os senhores são brutais e violentos, mas não são ladrões. O dinheiro deve estar aí. ÀS duas horas da madrugada de domingo, depois de umas três horas de viagem, vestido todo de preto como o país se acostumara a vê-lo, chegava a um quartel de Brasília o indomável guerreiro da dignidade. Ali ele encontraria outros presos famosos, como o colunista Carlos Castelo Branco. A recordação desses episódios vinte anos depois torna inevitável a imagem de que naquele sufocante quarto de um quinto andar de hotel, em Goiana, começava uma batalha que ia ser de todo o país nos anos seguintes: a luta do direito contra a força. Mas, Sobral Pinto ainda ia dar mais trabalho. no quarto dia de prisão, terça-feira, um oficial foi buscá-lo para prestar depoimento. - Não vou, não tenho que prestar depoimento nenhum. Vocês me arrastem, mas eu não vou. Como já sabia com quem estava falando, o oficial saiu às pressas para pedir socorro a seu superior, um paciente coronel, que foi até a cela: - Doutor Sobral, não me imponha a humilhação de ter que repetir o que fizeram com o senhor em Goiana. olha aqui a ordem que recebi de apresentá-lo ao coronel Jansen e ao tenente coronel Melo. Serei obrigado a chamar um sargento para levá-lo. Não faça isso comigo, me poupe essa humilhação. - Tá bom, diante disso eu vou. Se aqueles oficiais achavam que estava tudo resolvido, enganaram-se. Na hora de prestar o seu depoimento, o advogado disse: - Não dou. É um desaforo que o Exército, depois de ter me imposto essa humilhação, ainda tenha a petulância de querer devassar minha consciência. Em hipótese nenhuma! Eu não declaro nada. o Hábil coronel perguntou então ao advogado se ele concordaria em escrever o que acabava de dizer. A proposta foi aceita, mas com a condição de receber uma cópia: - Quando eu sair, quero escrever uma carta a esse ditador que está fingindo que é o presidente da República. Eu quero terminar a carta com essa declaração. Se naquele ano fosse instituído um prêmio física e cívica, os milhares de estudantes que enfrentaram a polícia nas ruas iam ter um sério concorrente na pessoa desse jovem insubordinado chamado Heráclito Fontoura Sobral Pinto. Enquanto, na madrugada de sábado, Sobral ainda se encontrava preso em Goiânia e Ênio Silveira era cercado, outro personagem nosso conhecido, o jovem Antônio Calmon, aguardava no apartamento de um amigo a chegada de um fornecedor muito especial. Ao contrário de Calmon, esse seu amigo já era consumidor assíduo de um certo pó que só no ano seguinte entraria na moda. Às 2 horas da madrugada, atrasado, chegava o tão aguardado vendedor de cocaína. O traficante, que era também agente policial, tinha 50 razões para o atraso. Naquela noite ele fora requisitado para um infindável plantão: "prender subversivos". Ele estava admirado: Esses comunistas vivem bem pra caralho. Tive no apartamento de um tal de Ênio Silveira e em várias outras casas. Como vivem bem! Um dinheiro extra convenceu-o facilmente a deixar ver a lista dos 50 nomes que ele estava encarregado de prender. Até as 7 horas da manhã, Calmon ficou no telefone tentando avisar as futuras vítimas. Gláuber Rocha, Millôr Fernandes e Paulo Francis foram alguns dos nomes que Calmon não conseguiu avisar. Os dois primeiros já tinham saído de casa e Francis estava nos Estados Unidos, ou melhor, não estava: Às 6 da manhã do dia 14, ele desembarcava no Galeão, vindo de Nova York, depois de um giro pela Tchecoslováquia, Alemanha Oriental e Paris. Esperavao um amigo com a edição daquele dia do JB. Uma olhada rápida na primeira página, bastou-lhe para concluir: "ó, meu Deus, estamos perdidos." Foi para casa, fez a barba, mas não chegou a acabar de tomar banho. Às oito e meia, um capitão e um sargento chegavam no seu apartamento no Posto 6, em Copacabana, e levavam-no para a Vila Militar, onde passaria dois meses, ao lado, entre outros, do poeta Ferreira Gullar. Quando Francis chegou à Vila, Gullar já estava lá desde a noite anterior. Ao sair de noite da sucursal de O Estado de S. Paulo, um colega de redação o avisara para não ir para casa. Mas o poeta não deu atenção; além do mais, tinha alguns convidados esperando: Vianinha, sua mulher Maria Lúcia, João das Neves, Pichin Pla. Denoi de Oliveira, enfim, quase todo o Grupo Opinião. Ao tocarem a campainha, só estavam o dono da casa, sua mulher Teresa, os três filhos e o casal Víanna. Mal abriram a porta, dois homens invadiram a sala: um capitão e um cabo. Apresentaram uma carteira e anunciaram que Ferreira Gullar estava preso. Se fosse hoje, o capitão seria logo reconhecido. Ele era ninguém menos que o depois famoso Capitão Guimarães, um dos maiores banqueiros de bicho do Rio, presidente da Liga Independente das Escolas de Samba e ex-presidente da Vila Isabel, onde aliás foi sucedido pela comunista Ruça. mulher do compositor Martinho da Vila. A esse respeitável cidadão carioca a contravenção deve, entre outras contribuições, a introdução da informática no jogo do bicho. Mas no dia 13 de dezembro de 68, o capitão Guimarães era um simples servidor do glorioso Exército brasileiro. - Cadê a ordem de prisão? - exigiu a folgada Teresa. O oficial não se deu ao trabalho de muitas explicações. Apontando para a televisão ligada, respondeu displicentemente: - Está aí. No vídeo, o ministro Gama e Silva lia a sentença de morte da democracia: - O presidente da República poderá... Gullar viu que não adiantava protelar. Já vestindo o paletó, perguntou: - Posso tomar um copo de leite? Podia. Foi à cozinha. abriu a geladeira, pegou a caderneta de endereços e jogou dentro do congelador. Enquanto isso, os oficiais remexiam a casa. O perigo era o corredor. Apartamento de dois quartos e uma sala mínima, os livros estavam empilhados ali, A um sinal da mãe, Luciana, de 13 anos, foi à estante e pegou A Voz Operária, jornal comunista que seus pais distribuíam. - O que é que você está fazendo? - perguntou Guimarães. Luciana fingiu indignação: - Invadem a minha casa e eu não posso nem estudar! Puxou os jornais junto com alguns livros e foi para o quarto. Nesse momento, tocaram a campainha outra vez. Pichin Plá, acompanhada de João das Neves e Denoi, não chegou a perceber os estranhos: - a ditadura, hein? - disse no seu portunhol a argentina Pichin, recompondo-se logo que o capitão lhe perguntou quem era. - Soy aeromoça. Gullar foi colocado num carro, junto com mais um policial armado, e rumaram em direção a dois outros endereços próximos dali: a rua Bulhões de Carvalho, em Copacabana, e a avenida Vieira Souto, esquina da rua Aníbal de Mendonça, em Ipanema. No primeiro, obviamente, não encontraram Francis. No segundo, não puderam entrar: o prédio de Millôr não tinha porteiro noturno. Foram então para a Vila Militar, onde o poeta passou a sua primeira noite, ao lado entre outros, de um indignado Antônio Callado. Preso por ter o mesmo nome do escritor, esse Callado implorava a Gullar: - O senhor, que é jornalista, fala com os homens que eu nunca escrevi nada, nem livro, nem artigo, eu mal sei escrever. Graças a esse equívoco, o "verdadeiro" Antônio Callado, o romancista, pôde ficar mais uns dias em liberdade. As 11 e meia do dia seguinte, Gullar emocionou-se: "De repente, eu ouço uns passos, olho, era o Francis." Limpo, apesar do banho incompleto, bem-vestido, ainda com ares de Nova York, Paulo Francis teve o seu primeiro choque na hora do almoço. "Quando ele encarou o prato". conta Gullar, "e viu aquele feijão aguado, aquela água chilra, aquela carne cheia de nervos, malcozida, fedorenta. ele disse: "Gullar, eu vou morrer de fome. Não vou conseguir comer isso, não". Com mais doze horas de experiência sobre o amigo, Gullar aconselhou: - Guarda o pão, Francis, começa a comer pão. Na noite anterior, tinha acontecido o mesmo com ele. Não comera nada, mas agora estava cheio de apetite: - Já tomei o café da manhã e acho que vou almoçar. -O poeta quase acrescentou: "E muito bem." Apesar de tudo, o exigente Francis se adaptou logo às suas novas condições de vida: no dia seguinte já estava sem camisa e no outro, só de cueca. No dia de Natal, os oficiais da Vila organizaram um banquete, e, claro, não sobrou comida para os presos. Às duas da tarde, só com o café da manhã no estômago, Paulo Francis, de cueca samba-canção, batendo nas grades com a caneca e a colher, protestava: - Cadê a comida, porra! Cadê a comida! Gullar e Francis, que já estavam na cela ao lado com um agitado jovem de nome Perfeito Fortuna, iriam em breve ganhar duas célebres companhias: Caetano Veloso e Gilberto Gil. Os compositores tinham sido presos em São Paulo, levados para a PE do Exército, na rua Barão de Mesquita, na Tijuca, e, de lá, transferidos para a Vila. A prisão dos dois envolveu uma cuidadosa operação interestadual, Caetano mal havia-se deitado quando, as 6 horas da manhã, foi chamado pela empregada: três senhores queriam falar com o dono da casa. Aliás, já estavam falando. As indiscretas visitas, na porta do quarto, no andar de cima, ordenavam que o compositor se vestisse e os acompanhasse. Eles tinham pressa, inclusive porque, como diziam, ainda precisavam passar na casa de Gilberto Gil. O problema é que Gil estava no quarto ao lado. Como tinham ficado conversando até tarde Caetano, Dedé, sua irmã Sandra e o namorado desta, Gil - dormiram todos ali, embora o apartamento de Gil fosse perto. Por isso, enquanto se vestia, a preocupação de Caetano foi avisar o amigo: "Se manda, porque eles não sabem que você está aqui." Ao recordar aquela manhã, Caetano não se esquece de que Gil poderia ter fugido: entregou-se por solidariedade. "Ele viu que eu estava com medo e não queria me deixar sozinho." Gil saiu da casa do amigo na avenida São Luís e foi para o seu apartamento na Praça da República esperar a polícia. A captura dos dois em São Paulo foi feita não por oficiais do II, mas do I Exército, que os colocaram num camburão e os levaram para o que viria a ser um dos mais tenebrosos "valhacoutos" de torturas do Rio - para usar a expressão que, na boca do deputado Moreira Alves, tanto ofendeu os brios militares. Ali, na Prisão da Barão de Mesquita, mais do que Gil Caetano passou alguns dos seus piores dias. Ênio Silveira, companheiro de prisão dos compositores, não gosta de lembrar a cena em que os soldados " encenaram o fuzilamento de Caetano e, em seguida, rasparam o seu cabelo a zero, num ritual de crueldade assistido por uma oficialidade de sádicos. Aquela sofrida e torturada passagem pelo Rio - de janeiro, fevereiro e março - teve sua revanche artística. Antes de serem soltos da Vila Militar, sob a condição de deixarem o país, Gil e Caetano compuseram uma espécie de despedida do inferno: o exuberante Aquele abraço e a pungente Irene. Ironicamente, dois dos políticos mais caçados daqueles dias conseguiram fugir, apesar do cerco: os deputados Márcio Moreira Alves e Hermano Alves. Às 4 horas da tarde do dia 12, logo depois da desinterdição do aeroporto de Brasília - que o governo mandara fechar para manter na cidade os deputados arenistas decolava um avião particular levando a bordo o foragido Marcito. Ao cair da noite, o aparelho descia em Ribeirão Preto, onde o aguardava um advogado, amigo da família Moreira Alves, com um Volkswagen e um revólver na cintura: Gil Macieira. Os dois rumaram para a bela Fazenda Conselheiro Prado, onde, no dia 13, são e salvo, Marcito acordou, tomou banho de piscina e se empanturrou de jabuticabas que os 50 pés da fazenda forneciam à vontade. À 1 hora da tarde, o deputado Francisco Amaral, advogado de sindicatos ferroviários, era recebido pela primeira vez no cenáculo dos Prado para buscar o deputado subversivo e levá-lo para outro esconderijo. Depois de ouvir a leitura do AI-5 na casa de Amaral, Marcito achou que era mais seguro mudar de pouso. Foram então para o apartamento de quarto e sala oferecido por um dentista de apelido Grama - José Roberto Magalhães Teixeira -, que duas décadas mais tarde seria prefeito de Campinas. Durante 15 dias, Marcito ficou escondido nessa garçonnière, tendo como único contato com o exterior o dentista, que lhe trazia comida e jornais todos os dias. Foi também Grama que se dispôs a ir ao Rio estabelecer contato com a família Moreira Alves através de Antônio Callado. "Minha tia Maria do Carmo Nabuco foi no cofre", relembra Marcito, "pegou uns caraminguás que tinham sobrado de sua última viagem à Europa, entregou à tia Graciema, que passou para Joaquim Pedro (o cineasta), que entregou a Callado." Os caraminguás eram 3 mil dólares, que chegaram ao fugitivo acompanhados de dois bilhetes; um, em inglês, de d. Maria do Carmo: "O sangue é mais denso do que a água." O ditado inglês queria dizer, no caso, que as relações de família eram mais fortes do que as ideológicas. O outro, de Callado, era em código sertanejo: "Cumpadre: estão de olho gordo nos vitelos que você criou na fazenda. Acho bom você por eles ao abrigo, porque senão podem levá-los pro matadouro." Pouco antes do Natal, Marcito resolveu procurar seu melhor amigo em São Paulo, José Gregori, que lhe deu logo um uísque, mas parecia meio hesitante em oferecer-lhe abrigo. A situação se esclareceu quando o dono da casa informou: - As minhas três filhas estão num quarto e no outro você vai ver quem está. Estava Hermano Alves. A solução foi ligar para Oscar Pedroso Horta, cuja casa porém funcionava como um bar: "A toda hora chegava alguém para tomar um uísque", como conta Marcito. Ofendido com a recusa do asilo oferecido, mesmo assim Horta não desistiu de ajudar, telefonando para u amigo João Leite, "o único delegado honesto da polícia de São Paulo", segundo Marcito. Além de policial, Leite era também um excelente autor de contos e, mais do que tudo, um grande boêmio. "Quando você me chamou", ele disse para Horta. Eu sabia que era peixe grande, mas não imaginava que fosse tubarão." O tubarão acabou num apartamentozinho em cima do La Licorne, um misto de boate e elegante casa de prostituição. "Ele morava sozinho, em cima do La Licorne", conta Marcito, "porque adorava uma putazinha." O esconderijo funcionou até a noite de Natal, quando antes da meia noite, bateram à porta. João Leite e Marcito que estavam tomando um vinhozinho e jogando biriba levaram um susto. Quando, cheio de apreensão, o dono foi atender, viu entrar pela porta, seguro pelas pernas, um enorme peru assado: - Clandestino tem que comer peru no Natal - disse, já meio bêbado, o portador do presente, o sociólogo Sérgio Buarque de Hollanda, acompanhado da mulher, Maria Amélia. Passada a alegria da visita e do presente, Marcito disse para o seu hospedeiro: "Se o Sérgio, de porre, já está sabendo onde eu estou, daqui a pouco a cana vem aí." Como não queria sair do Brasil, Marcito tentou vários esquemas para ficar. Ligou para os amigos dominicanos - Frei Betto não estava em São Paulo - e mandou contatar Marighella. - Diga a esse menino que, se quiser fazer alguma coisa pelo Brasil, que venha assaltar banco conosco respondeu logo o líder guerrilheiro, que, com os assaltos, achava ter começado a revolução no Brasil. A solução foi recorrer de novo a Pedroso Horta, um sábio: - Olha aqui, Marcito, você pode continuar com esses seus contatos aí com os dominicanos. Mas se você quiser sair do país, o caminho é o contrabando. Por essa rota. Pedro Horta já tinha dado fuga ao ex-governador Ademar de Barros. Na Madrugada de 29 de dezembro, por 1.500 dólares, um bimotor decolava de Jundiaí, levando Márcio Moreira Alves com destino ao Paraguai. Hermano preferiu ficar. Asilou-se dias depois na embaixada da Argélia, numa das muitas operações de asilo que o jornalista Darwin Brandão contaria naqueles tempos. Enquanto esperava que o avião desembarcasse as caixas de uísque escocês, Marcito descobriu por que a sua fuga fora tão barata: -Eu era um carregamento de retorno. No dia seguinte, Hermano e Marcito tinham os seus mandatos cassados - eles e mais nove deputados. "Aconselhado pela unanimidade do Conselho de Segurança Nacional, o presidente não só cassava os deputados como suspendia também os direitos políticos do ex-governador Carlos Lacerda. Havia mais nomes na primeira lista depois do AI-5, disse, mas Costa e Silva não quis aumentar o número de punições "para evitar intranquilidade na passagem de ano". Ele prometia "outras decisões revolucionárias da mesma natureza, oportunamente". Era, digamos, uma indulgência para durar até o réveillon. Assim, debaixo de uma apagada e vil tristeza, o ano chegava ao fim - o ano, o capítulo e o livro. Os dois últimos por falta de autor-, também ele, como todo mundo, levado pelo arrastão.



(1968: o ano que não terminou)



(Ilustração: artistas protestam contra a Ditadura Militar em fevereiro de 1968. Na foto: Tônia Carreiro, Eva Wilma, Odete Lara, Norma Bengell e Cacilda Becker)

sexta-feira, 13 de setembro de 2024

A ANGÚSTIA DA DEFINIÇÃO E A DEFINIÇÃO DA ANGÚSTIA, de Nilza Amaral



Tentar conceituar o universo é entrar em angústia existencial. Começando pela definição do ser e do nome que ele carrega. Como diferenciaríamos o pássaro do sapo, ou do urso se não soubéssemos o seu nome? Neruda já perguntou se a rosa teria o mesmo perfume se assim não se chamasse. Como poderemos saber que aqueles seres extintos e que causam tanta curiosidade no mundo moderno, chamavam-se dinossauros? Por que não podemos simplesmente chamá-los de lagartões? Por que não posso chamar o homem de mulher? Quais as palavras mais apropriadas para se criar uma história, uma vez que a criação é ilimitada mas a língua não o é?

Em meus tempos de faculdade quando optei por estudar Linguística, conheci a Semiótica e a Semântica. Daí para a loucura foi uma tênue e frágil linha que consegui ultrapassar. Conheci muitos autores tentando conceituar o ser e suas denominações. Falou-se até de uma tal de Lady Welby (1887-1912), que tentou implantar a ciência das significações através de frenética correspondência a respeito de suas teorias com os estudiosos do assunto. Alguns a levaram a sério entre eles Ogden e Richards que escreveram o livro The meaning of meaning (tradução literal: A significação do significado). Essa foi uma das primeiras tentativas de melhorar a linguagem, porém essa nova ciência ficou incompleta e desapareceu de vista até renascer no século passado.

Há autores que tentam fugir da conceituação pré-estabelecida e criam um código próprio, correndo os riscos inerentes. Os escritores podem usar códigos individuais, como James Joyce que, em Finnegans Wake, desviou-se do uso comum da língua, criando uma língua especial e arriscando-se a não ser entendido. Quem assistiu ao filme, na versão sem cortes e em inglês, pôde verificar a implantação de um código desconhecido. Na edição do livro, que foi publicado em português, havia um glossário para auxiliar na decodificação. Dos autores brasileiros, Guimarães Rosa inovou a literatura com seus neologismos e sua linguagem regionalista, tornando-se "uma leitura difícil".

Umberto Eco, em Kant e o Ornitorrinco (título bem escolhido como frase de efeito), discorreu sobre esse assunto que vem atormentando os filósofos, escritores e estudiosos da palavra desde Platão e, através de histórias e fábulas, tentando deixar de lado as formas acadêmicas e partindo para o que ele chama de investigações, tenta conceituar o ser. Apesar da tradução apresentar falhas (o problema da significação e interpretação), apontadas por críticos, gostei de ler a obra.

Diz Eco que Kant nada tem a ver com o ornitorrinco, apenas imagina o quanto o filósofo ficaria perplexo ao ver aquele animal que nunca chegou a conhecer e que possuía bico de pato, garras, olho de pássaro e botava ovos. Talvez tão perplexo quanto Marco Polo que, ao deparar em Java com um animal que ele nunca havia visto (que nós sabemos agora que era o rinoceronte), e o comparando a animais conhecidos distingue o corpo, as quatro patas e o chifre. Chega à conclusão, pela sua cultura, de que é um unicórnio, mas honestamente afirma estranhar esses unicórnios estranhos pois não são brancos nem ágeis, têm pelos de búfalo, o chifre é negro e desgracioso, a língua espinhosa e a cabeça parecida com a do javali.

A literatura também contribui para o processo de angústia e depressão do escritor uma vez que escrever é um processo de solidão, que precisa ser assumido pelo menos enquanto a obra se completa, seja ela a poesia, o romance, a filosofia. Embora a história possa conter ação, o escritor estará ali, estático, confinado ao computador, à máquina de escrever ou ao lápis, até que ela se complete. E quando completa, surge o processo angustiante de saber defini-la, de averiguar a sua utilidade. Há quem afirme que, para uma obra literária ser convincente, terá que trazer o peso das emoções vividas pelo autor que o transmitirá às personagens. Se na história o personagem se suicida, e o autor não experimentou essa sensação de morte, consciente ou inconscientemente, a personagem não convencerá. Com todas as implicações de angústia ligadas à literatura, não concordo com a afirmação, mesmo que estudiosos digam que a morte escolhida para o herói resulte de um estado psíquico latente existente no autor. Na literatura é necessário o distanciamento, a separação entre a realidade e a ficção.

Freud afirmou que não acreditava na necessidade de definir a angústia porque todos deveriam ter experimentado, uma vez que fosse, essa sensação, ou melhor, esse estado afetivo.

O que é afinal um ser, e como posso identificá-lo através de uma palavra? E a história, para que serve uma história? Sem querer entrar nas classificações eruditas, maçantes e enfadonhas, deixo os conceitos para os leitores que quiserem se aventurar por essa floresta espessa permeada pela angústia do não conhecimento.

Como já afirmei em outras vezes, felizes os poetas (embora seja sabido que a literatura deve englobar a narração e a poesia sem que uma anule a outra), que não dão definições apresentando-nos um universo único onde as palavras representam as imagens, pois, se estas são formadas na imaginação, cabe a quem lê a sua própria representação.

Para confirmar essa minha assertiva, deixo vocês com o poema de José Saramago, o mais recente prêmio Nobel de literatura, que pela amostra prova que entende tanto de um como de outro gênero.

FALA DO VELHO DO RESTELO AO ASTRONAUTA

Aqui na terra a fome continua

A miséria e o luto

A miséria e o luto e outra vez a fome



Acendemos cigarros em fogos de napalm

E dizemos amor sem saber o que seja.

Mas fizemos de ti a prova da riqueza,

Ou talvez da pobreza, e da fome outra vez.

E pusemos em ti eu nem sei que desejos

De mais alto que nós, de melhor e mais puro.

No jornal soletramos de olhos tensos

Maravilhas de espaço e de vertigem.

Salgados oceanos que circundam

Ilhas mortas de sede onde não chove.

Mas a terra, astronauta, é boa mesa

(E as bombas de napalm são brinquedos)

Onde come brincando só a fome



Só a fome, astronauta, só a fome.



(Ilustração: Francisco de Goya: self portrait with dr. Arrieta)

terça-feira, 10 de setembro de 2024

RECADO, de Al Berto (*)

 

   


ouve-me

que o dia te seja limpo e

a cada esquina de luz possas recolher

alimento suficiente para a tua morte



vai até onde ninguém te possa falar

ou reconhecer - vai por esse campo

de crateras extintas - vai por essa porta

de água tão vasta quanto a noite



deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te

e as loucas aveias que o ácido enferrujou

erguerem-se na vertigem do voo - deixa

que o outono traga os pássaros e as abelhas

para pernoitarem na doçura

do teu breve coração - ouve-me



que o dia te seja limpo

e para lá da pele constrói o arco de sal

a morada eterna - o mar por onde fugirá

o etéreo visitante desta noite



não esqueças o navio carregado de lumes

de desejos em poeira - não esqueças o ouro

o marfim - os sessenta comprimidos letais

ao pequeno-almoço



(*) Pseudónimo de Alberto Raposo Pidwell Tavares, poeta, pintor, editor e animador cultural português.

(Ilustração: Carel Fabritius - sentinela, 1654)

sábado, 7 de setembro de 2024

O CASO DO POEMA ROUBADO, de Cora Rónai

 


Há coisa de dois ou três meses apareceu, no portão do sítio, um pacote grande, embrulhado num saco de lixo preto. Ninguém viu quem trouxe. Amanheceu e estava lá. Assim que foi notado, ficaram todos da casa, bípedes e quadrúpedes, muito cabreiros com a sua presença. Nos dias de hoje, ninguém vê com confiança ou simpatia pacotes grandes, embrulhados em sacos de lixo pretos.

Os cachorros cheiraram e latiram, os gatos mantiveram distância, o Dirceu olhou de longe, cutucou com uma vareta, chamou Mamãe. O conteúdo parecia ser duro, sólido, como madeira. Não era nada morto, com certeza. E não parecia ser bomba, muito embora ninguém da família tenha a mais remota ideia de como seja uma bomba, salvo pelo que se vê no cinema e nos desenhos animados.

Finalmente, depois de mais cutucadas e de muita hesitação, o pacote foi trazido para dentro, e aberto com o cuidado que a desconfiança recomendava. Quando o conteúdo se revelou, surpresa total: quem poderia imaginar que um poema roubado há 30 anos voltasse ao lar daquela maneira?!

Quando o sítio ficou pronto, em princípios dos anos 60, uma das primeiras providências dos meus pais foi espalhar pelo jardim e pela floresta uma dúzia de poemas. Papai os selecionava, Mamãe os pintava em tabuletas e ambos escolhiam juntos, com capricho, as árvores e os cantinhos onde seriam expostos. Passear pelo sítio era como entrar numa pequena antologia sentimental.

Com o tempo, as tabuletas foram sumindo. Algumas queimaram junto com as suas árvores nos incêndios que, há alguns anos, eram comuns na região e que, apesar dos esforços do pessoal lá de casa, eventualmente atingiam partes do terreno. Outras foram vítimas do tempo. A maioria, porém, desapareceu sem deixar vestígios.

O poema devolvido chama-se "Casa antiga", foi escrito em 1964 por minha madrinha Cecília Meireles e dedicado a Nora e Paulo Rónai:

Forrarei tua casa já tão antiga

Com um papel que imita as paredes de tijolo.

Ficará tão lindo como se estivéssemos na Holanda.

Forrarei tua casa assim, mas por dentro,

De modo que, longe de todas as vistas,

Será como se estivéssemos ao ar livre, no jardim.

E deixarei uma parede quebrada -- não uma porta, não uma janela:

Uma parede quebrada por onde passe um ramo de goiabeira

Carregado de flores e vespas.

Parecerá que estamos sonhando,

E estamos sonhando mesmo,

E parecerá que estamos vivendo,

E a vida não é mesmo um sonho impossível?

Dentro do pacote, junto com a tabuleta, veio um bilhete escrito em letra pouco cultivada, na folha arrancada de um caderno. Dizia o seguinte:

"Quando era menino achei este quadro lindo, pelo poema. Peço perdão por ter roubado este quadro. Hoje me converti a Jesus e sinto necessidade de devolvê-lo. Sinto-me envergonhado pela minha atitude. Mas era só um menino. Peço perdão a Deus e a vocês. E que vocês também consigam perdoar."

Não havia nome, assinatura, nada. Ficamos com muita pena, pois teríamos gostado de conhecer e abraçar o menino antigo que roubou o poema e o homem correto que o devolveu, passados tantos anos. Mal sabe ele que nos deu um presente muito maior do que o que levou: um mundo onde crianças roubam poemas e adultos os devolvem é um mundo de beleza e de esperança.



(O Globo, Segundo Caderno, 04.01.2007)



(Ilustração: Cecília Meireles; foto da internet sem indicação de autoria)

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

CANTO A ELISA BRANCO, de Lila Ripoll (*)

 




Pesadas grades, hirtas e escuras,

estão paradas

e perfiladas

junto às janelas da cela escura,

que esconde Elisa — a de nome simples,

de nome claro, de nome branco,

a de alma clara.



Passam soldados,

voltam soldados,

e os doces olhos da prisioneira

são águas claras que não se turvam.



Pesadas grades,

hirtas e escuras,

estão paradas e perfiladas

como soldados

junto às janelas.



Elisa Branco

— na cela escura —

está rodeada de pensamentos

puros e claros como seu nome.



Que importam grades junto às janelas?

e esses soldados que passam, passam?

e os sons soturnos

que marcam, marcam

os duros passos das sentinelas?



Elisa Branco sorri e espera.

Não sente o peso de escuras grades,

nem ouve a marcha de duros passos,

que dia e noite,

que noite e dia,

passa e repassa

junto às janelas da cela escura.



Elisa Branco confia e espera —

Elisa simples,

de nome claro,

de nome branco,

de alma clara.



(*) Elisa Branco Batista (Barretos, 29 de dezembro de 1912[ - São Paulo, 8 de junho de 2001) foi uma militante comunista brasileira. Admiradora de Luís Carlos Prestes, filiou-se ao PCB e fez parte da Federação das Mulheres de São Paulo e do Movimento Brasileiro dos Partidários da Paz.


(Ilustração: Frida Kahlo - La Cene)

domingo, 1 de setembro de 2024

CARTA A ADOLFO CASAIS MONTEIRO, de Fernando Pessoa

 


Caixa Postal 147


Lisboa, 13 de Janeiro de 1935.

Meu prezado Camarada:

Muito agradeço a sua carta, a que vou responder imediata e integralmente. Antes de, propriamente, começar, quero pedir-lhe desculpa de lhe escrever neste papel de cópia. Acabou-se-me o decente, é domingo, e não posso arranjar outro. Mas mais vale, creio, o mau papel que o adiamento.

Em primeiro lugar, quero dizer-lhe que nunca eu veria «outras razões» em qualquer coisa que escrevesse, discordando, a meu respeito. Sou um dos poucos poetas portugueses que não decretou a sua própria infalibilidade, nem toma qualquer crítica, que se lhe faça, como um acto de lesa-divindade. Além disso, quaisquer que sejam os meus defeitos mentais, é nula em mim a tendência para a mania da perseguição. À parte isso, conheço já suficientemente a sua independência mental, que, se me é permitido dizê-lo, muito aprovo e louvo. Nunca me propus ser Mestre ou Chefe-Mestre, porque não sei ensinar, nem sei se teria que ensinar; Chefe, porque nem sei estrelar ovos. Não se preocupe, pois, em qualquer ocasião, com o que tenha que dizer a meu respeito. Não procuro caves nos andares nobres.

Concordo absolutamente consigo em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo fiz com um livro da natureza de «Mensagem». Sou, de facto, um nacionalista místico, um sebastianista racional. Mas sou, à parte isso, e até em contradição com isso, muitas outras coisas. E essas coisas, pela mesma natureza do livro, a «Mensagem» não as inclui.

Comecei por esse livro as minhas publicações pela simples razão de que foi o primeiro livro que consegui, não sei porquê, ter organizado e pronto. Como estava pronto, incitaram-me a que o publicasse: acedi. Nem o fiz, devo dizer, com os olhos postos no prémio possível do Secretariado, embora nisso não houvesse pecado intelectual de maior. O meu livro estava pronto em Setembro, e eu julgava, até, que não poderia concorrer ao prémio, pois ignorava que o prazo para entrega dos livros, que primitivamente fora até fim de Julho, fora alargado até ao fim de Outubro. Como, porém, em fim de Outubro já havia exemplares prontos da «Mensagem», fiz entrega dos que o Secretariado exigia. O livro estava exactamente nas condições (nacionalismo) de concorrer. Concorri.

Quando às vezes pensava na ordem de uma futura publicação de obras minhas, nunca um livro do género de «Mensagem» figurava em número um. Hesitava entre se deveria começar por um livro de versos grande — um livro de umas 350 páginas —, englobando as várias subpersonalidades de Fernando Pessoa ele mesmo, ou se deveria abrir com uma novela policiária, que ainda não consegui completar.

Concordo consigo, disse, em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo fiz, com a publicação de «Mensagem». Mas concordo com os factos que foi a melhor estreia que eu poderia fazer. Precisamente porque essa faceta — em certo modo secundária — da minha personalidade não tinha nunca sido suficientemente manifestada nas minhas colaborações em revistas (excepto no caso do Mar Português parte deste mesmo livro) — precisamente por isso convinha que ela aparecesse, e que aparecesse agora. Coincidiu, sem que eu o planeasse ou o premeditasse (sou incapaz de premeditação prática), com um dos momentos críticos (no sentido original da palavra) da remodelação do subconsciente nacional. O que fiz por acaso e se completou por conversa, fora exactamente talhado, com Esquadria e Compasso, pelo Grande Arquitecto.

(Interrompo. Não estou doido nem bêbado. Estou, porém, escrevendo directamente, tão depressa quanto a máquina mo permite, e vou-me servindo das expressões que me ocorrem, sem olhar a que literatura haja nelas. Suponha — e fará bem em supor, porque é verdade — que estou simplesmente falando consigo).

Respondo agora directamente às suas três perguntas: (1) plano futuro da publicação das minhas obras, (2) génese dos meus heterónimos, e (3) ocultismo.

Feita, nas condições que lhe indiquei, a publicação da «Mensagem», que é uma manifestação unilateral, tenciono prosseguir da seguinte maneira. Estou agora completando uma versão inteiramente remodelada do Banqueiro Anarquista, essa deve estar pronta em breve e conto, desde que esteja pronta, publicá-la imediatamente. Se assim fizer, traduzo imediatamente esse escrito para inglês, e vou ver se o posso publicar em Inglaterra. Tal qual deve ficar, tem probabilidades europeias. (Não tome esta frase no sentido de Prémio Nobel imanente). Depois — e agora respondo propriamente à sua pergunta, que se reporta a poesia — tenciono, durante o verão, reunir o tal grande volume dos poemas pequenos do Fernando Pessoa ele mesmo, e ver se o consigo publicar em fins do ano em que estamos. Será esse o volume que o Casais Monteiro espera, e é esse que eu mesmo desejo que se faça. Esse, então, será as facetas todas, excepto a nacionalista, que «Mensagem» já manifestou.

Referi-me, como viu, ao Fernando Pessoa só. Não penso nada do Caeiro, do Ricardo Reis ou do Álvaro de Campos. Nada disso poderei fazer, no sentido de publicar, excepto quando (ver mais acima) me for dado o Prémio Nobel. E contudo — penso-o com tristeza — pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental, vestida da música que lhe é própria, pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida. Pensar, meu querido Casais Monteiro, que todos estes têm que ser, na prática da publicação, preteridos pelo Fernando Pessoa, impuro e simples!

Creio que respondi à sua primeira pergunta.

Se fui omisso, diga em quê. Se puder responder, responderei. Mais planos não tenho, por enquanto. E, sabendo eu o que são e em que dão os meus planos, é caso para dizer, Graças a Deus!

Passo agora a responder à sua pergunta sobre a génese dos meus heterónimos. Vou ver se consigo responder-lhe completamente.

Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histero-neurasténico. Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenómenos de abulia que a histeria, propriamente dita, não enquadra no registo dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos — felizmente para mim e para os outros — mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior e de contacto com outros; fazem explosão para dentro e vivo — os eu a sós comigo. Se eu fosse mulher — na mulher os fenómenos histéricos rompem em ataques e coisas parecidas — cada poema de Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico de mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem — e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia…

Isto explica, tant bien que mal, a origem orgânica do meu heteronimismo. Vou agora fazer-lhe a história directa dos meus heterónimos. Começo por aqueles que morreram, e de alguns dos quais já me não lembro — os que jazem perdidos no passado remoto da minha infância quase esquecida.

Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em todas, não devemos ser dogmáticos). Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, carácter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as coisas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real. Esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar.

Lembro, assim, o que me parece ter sido o meu primeiro heterónimo, ou, antes, o meu primeiro conhecido inexistente — um certo Chevalier de Pas dos meus seis anos, por quem escrevia cartas dele a mim mesmo, e cuja figura, não inteiramente vaga, ainda conquista aquela parte da minha afeição que confina com a saudade. Lembro-me, com menos nitidez, de uma outra figura, cujo nome já me não ocorre mas que o tinha estrangeiro também, que era, não sei em quê, um rival do Chevalier de Pas… Coisas que acontecem a todas as crianças? Sem dúvida — ou talvez. Mas a tal ponto as vivi que as vivo ainda, pois que as relembro de tal modo que é mister um esforço para me fazer saber que não foram realidades.

Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação. Teve várias fases, entre as quais esta, sucedida já em maioridade. Ocorria-me um dito de espírito, absolutamente alheio, por um motivo ou outro, a quem eu sou, ou a quem suponho que sou. Dizia-o, imediatamente, espontaneamente, como sendo de certo amigo meu, cujo nome inventava, cuja história acrescentava, e cuja figura — cara, estatura, traje e gesto — imediatamente eu via diante de mim. E assim arranjei, e propaguei, vários amigos e conhecidos que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de trinta anos de distância, oiço, sinto, vejo. Repito: oiço, sinto, vejo… E tenho saudades deles.

(Em eu começando a falar — e escrever à máquina é para mim falar —, custa-me a encontrar o travão. Basta de maçada para si, Casais Monteiro! Vou entrar na génese dos meus heterónimos literários, que é, afinal, o que V. quer saber. Em todo o caso, o que vai dito acima dá-lhe a história da mãe que os deu à luz).

Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis).

Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro — de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira — foi em 8 de Março de 1914 — acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente… Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.

Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir — instintiva e subconscientemente — uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos — a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.

Criei, então, uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda se passa. Se algum dia eu puder publicar a discussão estética entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles são diferentes, e como eu não sou nada na matéria.

Quando foi da publicação de «Orpheu», foi preciso, à última hora, arranjar qualquer coisa para completar o número de páginas. Sugeri então ao Sá-Carneiro que eu fizesse um poema «antigo» do Álvaro de Campos — um poema de como o Álvaro de Campos seria antes de ter conhecido Caeiro e ter caído sob a sua influência. E assim fiz o Opiário, em que tentei dar todas as tendências latentes do Álvaro de Campos, conforme haviam de ser depois reveladas, mas sem haver ainda qualquer traço de contacto com o seu mestre Caeiro. Foi dos poemas que tenho escrito, o que me deu mais que fazer, pelo duplo poder de despersonalização que tive que desenvolver. Mas, enfim, creio que não saiu mau, e que dá o Álvaro em botão…

Creio que lhe expliquei a origem dos meus heterónimos. Se há porém qualquer ponto em que precisa de um esclarecimento mais lúcido — estou escrevendo depressa, e quando escrevo depressa não sou muito lúcido —, diga, que de bom grado lho darei. E, é verdade, um complemento verdadeiro e histérico: ao escrever certos passos das Notas para recordação do meu Mestre Caeiro, do Álvaro de Campos, tenho chorado lágrimas verdadeiras. É para que saiba com quem está lidando, meu caro Casais Monteiro!

Mais uns apontamentos nesta matéria… Eu vejo diante de mim, no espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Construí-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil. Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão nem educação quase alguma. Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (às 1.30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora, está certo). Este, como sabe, é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inactividade. Caeiro era de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mas seco. Álvaro de Campos é alto (1,75 m de altura, mais 2 cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara rapada todos — o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um vago moreno mate; Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo. Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase nenhuma — só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó. Ricardo Reis, educado num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria. Álvaro de Campos teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre.

Como escrevo em nome desses três?… Caeiro por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstracta, que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. (O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de ténue à minha, é igual a esta, e o português perfeitamente igual; ao passo que Caeiro escrevia mal o português, Campos razoavelmente mas com lapsos como dizer «eu próprio» em vez de «eu mesmo», etc., Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado. O difícil para mim é escrever a prosa de Reis — ainda inédita — ou de Campos. A simulação é mais fácil, até porque é mais espontânea, em verso).

Nesta altura estará o Casais Monteiro pensando que má sorte o fez cair, por leitura, em meio de um manicómio. Em todo o caso, o pior de tudo isto é a incoerência com que o tenho escrito. Repito, porém: escrevo como se estivesse falando consigo, para que possa escrever imediatamente. Não sendo assim, passariam meses sem eu conseguir escrever.

Falta responder à sua pergunta quanto ao ocultismo (escreveu o poeta). Pergunta-me se creio no ocultismo. Feita assim, a pergunta não é bem clara; compreendo porém a intenção e a ela respondo. Creio na existência de mundos superiores ao nosso e de habitantes desses mundos, em experiências de diversos graus de espiritualidade, subtilizando até se chegar a um Ente Supremo, que presumivelmente criou este mundo. Pode ser que haja outros Entes, igualmente Supremos, que hajam criado outros universos, e que esses universos coexistam com o nosso, interpenetradamente ou não. Por estas razões, e ainda outras, a Ordem Extrema do Ocultismo, ou seja, a Maçonaria, evita (excepto a Maçonaria anglo-saxónica) a expressão «Deus», dadas as suas implicações teológicas e populares, e prefere dizer «Grande Arquitecto do Universo», expressão que deixa em branco o problema de se Ele é criador, ou simples Governador do mundo. Dadas estas escalas de seres, não creio na comunicação directa com Deus, mas, segundo a nossa afinação espiritual, poderemos ir comunicando com seres cada vez mais altos. Há três caminhos para o oculto: o caminho mágico (incluindo práticas como as do espiritismo, intelectualmente ao nível da bruxaria, que é magia também), caminho místico, que não tem propriamente perigos, mas é incerto e lento; e o que se chama o caminho alquímico, o mais difícil e o mais perfeito de todos, porque envolve uma transmutação da própria personalidade que a prepara, sem grandes riscos, antes com defesas que os outros caminhos não têm. Quanto a «iniciação» ou não, posso dizer-lhe só isto, que não sei se responde à sua pergunta: não pertenço a Ordem Iniciática nenhuma. A citação, epígrafe ao meu poema Eros e Psique, de um trecho (traduzido, pois o Ritual é em latim) do Ritual do Terceiro Grau da Ordem Templária de Portugal, indica simplesmente — o que é facto — que me foi permitido folhear os Rituais dos três primeiros graus dessa Ordem, extinta, ou em dormência desde cerca de 1881. Se não estivesse em dormência, eu não citaria o trecho do Ritual, pois se não devem citar (indicando a ordem) trechos de Rituais que estão em trabalho.

Creio assim, meu querido camarada, ter respondido, ainda com certas incoerências, às suas perguntas. Se há outras que deseja fazer, não hesite em fazê-las. Responderei conforme puder e o melhor que puder. O que poderá suceder, e isso me desculpará desde já, é não responder tão depressa.

Abraça-o o camarada que muito o estima e admira.

Fernando Pessoa

1935



(Escritos Íntimos, Cartas e Páginas Autobiográficas).



(Ilustração: Júlio Pomar - Fernando Pessoa)