quarta-feira, 24 de julho de 2024

HOMENS SEM MULHERES DE HARUKI MURAKAMI, de Aletheia Machado

 


A intertextualidade, as referências à cultura pop e aos carros, as músicas que compõem as atmosferas oníricas, a memória construída como âncora, o surrealismo e a profundidade sentimental dos personagens, a narrativa em linha reta, conduzindo o leitor direto para uma queda num vácuo, como passagem para outros mundos, são elementos que caracterizam Haruki Murakami e estão presentes nessa coletânea de sete contos, cujo título Homens sem Mulheres é uma homenagem-citação a Ernest Hemingway. Hemingway havia publicado, em 1927, uma coletânea de textos que trazia o seu célebre conto "Colinas Como Elefantes Brancos" e no caso do conto-título discutia a temática (ou a não-temática) do aborto. É um título resgatado por Murakami para dar centralidade urgente às mulheres ou a um mundo sem elas.

Se, por um lado, os homens são os narradores e padecem de uma inadequação plácida, de solidão dilacerante, de uma incompreensão atroz quanto ao universo feminino; por outro, são enganados, traídos, ludibriados ou simplesmente demonstram a impossibilidade de viverem sem as mulheres. Mas engana-se quem pensa que os textos são pesados ou soturnos. Dei ótimas gargalhadas com as incoerências ilógicas, as loucuras bizarras, as pontas soltas das histórias, tudo formando um todo estranhamente coeso e complexo - contos bem à Murakami. E, por mais que a mulher - assim me pareceu - seja a representação iconoclasta da perfídia mais que sórdida, ela é adorada, enaltecida, festejada, enobrecida, admirada, idolatrada. Sem as mulheres a vida é vazia, árida e sem sentido; não há sonhos ou imaginação. A mulher, apesar de fugidia e traiçoeira, cruel e irracionalmente fria, é o centro do universo masculino.

"Perder uma mulher é isso. Em alguns casos, perder uma mulher é perder todas as mulheres. Assim nos tornamos homens sem mulheres." Fiquei pensando, ao ler os contos de Murakami: para abandonar é preciso ter sido abandonado? Onde começaria esse ciclo? Com as mulheres? Numa determinada idade? Com o primeiro amor? Todas as mulheres que vêm na sequência de uma perda não fazem mais sentido, não se encaixam, não podem ser levadas a sério? Afinal, quem são essas primeiras e poderosas mulheres de Murakami? No fundo todos se abandonam, nada é perene e durável, tudo é irreversível: a vida caminha, como o leitor, para um abismo, para uma queda, para um outro mundo paralelo onde inexiste o homem com a mulher (ou a mulher com o homem). "Um dia, de repente, você vai ser um dos homens sem mulheres. Esse dia chegará subitamente, sem nenhum aviso prévio nem sinal, sem premonição nem pressentimento, sem uma tosse que seja ou uma batida na porta. Ao virar a esquina, você vai descobrir que já está ali. Mas não poderá voltar atrás. Uma vez que virar a esquina, será o único mundo para você. Nesse mundo você estará entre os homens sem mulheres. Em um plural infinitamente indiferente."

Vamos aos contos:

Drive My Car. É uma referência a uma música dos Beatles. Nesse conto, um ator de teatro, viúvo, com problemas de visão, contrata uma mulher, mais jovem e feia, para ser sua motorista. Naturalmente, revelações catárticas surgem da convivência no espaço exíguo do Saab 900.

" - Mas será que nós conseguimos compreender alguém por completo? Mesmo que amemos esse alguém profundamente?

(...)

- Talvez eu tivesse um ponto cego fatal. (...) Talvez algo importante de dentro dela tenha passado despercebido aos meus olhos. Não, mesmo que os meus olhos estivessem vendo, talvez não estivessem enxergando de verdade."

Yesterday. Título que faz outra referência aos Beatles é o fio da memória de Tanimura. Seu amigo excêntrico, Kitaru, cantava essa canção, fazendo paródias e substituições, no dialeto de Kansai, que aprendeu depois de adulto. Tanimura, ao contrário, havia feito questão de esquecer esse dialeto, apesar de vir de Osaka, onde o dialeto é falado, para reinventar-se em Tókio ("Queria testar minhas novas possibilidades. E, para mim, abandonar o dialeto de Kansai e aprender uma nova língua era um meio prático (e ao mesmo tempo simbólico) para isso. Afinal, as palavras que falamos formam o nosso caráter."). O cerne do conto é a relação em crise de Kitaru com a namorada perfeita, Erika. Kitaru pede que o amigo saia com sua namorada para mantê-lo informado sobre os novos interesses da jovem que havia ingressado na universidade; enquanto ele, Kitaru, estava perdido, sem saber que rumo tomar na vida.

"Como era curiosa [a musica Yesterday cantada por Kitaru], eu continuei a me lembrar bem dela por um tempo, mas depois ela foi ficando vaga até que me esqueci quase por completo. Só me lembro de fragmentos, e já nem tenho mais certeza se estão corretos. Afinal, a memória é, inevitavelmente, algo sempre recriado".

Órgão Independente. Um escritor quer deixar registrada a vida de um cirurgião estético, Dr. Tokai, que tem uma vida confortável, abastada, cheia de privilégios, alegrias fortuitas e sexo casual. Mantém vários casos ao mesmo tempo com mulheres casadas e solteiras, sem assumir nenhum compromisso ou vínculo mais sólido, até que se apaixona por uma mulher mais jovem e casada, e sua vida perde todo o sentido porque ela o abandona.

"Não tenho nenhuma insatisfação com a minha vida pessoal. Tenho muitos amigos e por enquanto sou saudável. Gozo a vida à minha maneira. Mas nos últimos dias tenho me perguntado muito: afinal, quem sou eu? Penso nisso muito seriamente. Se tirarem de mim a habilidade e a carreira de cirurgião, bem como essa vida confortável que levo hoje, e me lançarem no mundo como uma pessoa anônima, sem nada, quem eu seria?"

"Há um poema clássico japonês que diz: 'Depois do nosso encontro, percebo o quanto meu coração era livre de aflições', disse Tokai."

Sherazade. A contadora de história de Murakami, neste conto, recebe o nome de Sherazade, numa referência às As Mil e Uma Noites, porque não revela seu nome ao narrador. Ela é uma mulher de mais ou menos 35 anos, casada, com filhos, que abastece e cuida da casa de Habara, além de cozinhar as refeições do rapaz que vive recluso na House -- não se sabe bem por que está ali e onde é esse lugar. Ele desconhece quaisquer informações acerca da vida pessoal daquela mulher diligente com as tarefas domésticas e com o sexo que praticam. Ao final do coito, Sherazade sempre lhe conta uma longa história que é interrompida às 16h30, para que possa voltar para sua vida cotidiana; e, dessa forma, Sherazade prolonga por dias suas narrativas, conduzindo Habara para outros mundos, fora da prisão de si mesmo.

"Outra coisa que deixava Habara confuso era o fato de que o sexo com Sherazade e a história contada por ela estavam intrinsecamente relacionados. Uma coisa não podia ser separada da outra. Habara nunca havia experimentado essa sensação de estar tão ligado - ou firmemente costurado - a uma relação sexual que não podia ser considerada muito ardente, com uma mulher por quem não se sentia especialmente atraído, e isso o deixava um pouco confuso."

"Mas o que era mais difícil para Habara não era a falta de sexo em si, mas a possibilidade de não poder mais compartilhar um momento íntimo com as mulheres. Perdê-las, no final das contas, era isso. Um momento especial, que anula a realidade mesmo fazendo parte dela: era o que as mulheres proporcionavam."

Kino. É o conto que mais se assemelha aos livros que já li de Murakami: Kafka à beira-mar e 1Q84. O extraordinário brota do cotidiano, e Kino embarca em outra dimensão. Ao descobrir que sua mulher o traía com um colega de trabalho, abandona seu emprego e sua casa e monta um bar, onde cria uma atmosfera intimista e aconchegante. Coloca para tocar seus vinis, ouvindo solos de piano de Art Tatum, Coleman Hawkins, Billie Holiday e tantos outros. Lê os livros que sempre quis ler e deixa a vida passar. Vê os fregueses, alguns incomuns, entrarem e saírem de seu estabelecimento. Até que um dia, debaixo do salgueiro, em frente ao bar que tinha se tornado uma espécie de porto seguro para Kino, surgem cobras, referidas no texto como animais mitológicos e inteligentes, mas que servem como metáfora das mulheres e de seus sentimentos subliminares. Momentaneamente, Kino vê, como única solução, a fuga; para aprender, mais adiante, que as fugas são sempre inverossímeis e irreais. Não é possível escapar do que se sente ou de si mesmo: o confronto com grandes questões íntimas nos aguarda a todos, em algum momento da vida.

"Desde o começo ele levara uma vida sem realização. Não conseguia fazer os outros felizes e, naturalmente, fazer a si mesmo feliz. Para começar, Kino não sabia bem no que consistia a felicidade. Não conseguia perceber claramente as sensações de dor, ira, decepção ou resignação. A única coisa que podia fazer, com muita dificuldade, era encontrar um local a que pudesse se prender, para impedir que o coração, que havia perdido a profundidade e o peso, ficasse perdido a esmo. O barzinho chamado Kino no fundo de um beco se tornou esse lugar concreto. E se tornou um espaço estranhamente confortável - o que foi apenas uma consequência."

Samsa apaixonado. Murakami subverte a clássica história de Franz Kafka, transformando um inseto num humano, ser esse que terá que aprender a viver de acordo com essa nova condição, num mundo em conflito. Gregor Samsa terá que lidar com sentimentos e sensações contraditórios, terá que aprender a vestir-se e a caminhar, terá que começar do zero, decifrando os códigos sociais que o cercam. Terá que compreender o que é amar uma mulher e ver beleza noutro ser, semelhante, mas inusitadamente diferente.

"Em seguida, pegou um bule de metal e despejou café numa xícara branca de porcelana. O cheiro forte o fez se lembrar de algo. Não era uma lembrança direta, já passara por várias modificações. Parecia que ele observava o próprio presente estando no futuro, como se fosse uma lembrança; havia essa estranha dualidade do tempo. Parecia que a experiência e a lembrança circulavam dentro de um ciclo fechado, indo e vindo."

Homens sem mulheres. Uma ligação na madrugada, e uma voz de homem dá a notícia ao personagem-narrador do suicídio de uma mulher. Descobrimos que o homem que telefona é o marido da vítima, e que quem atendeu a chamada é o ex-namorado de Eme, morta inexplicavelmente. Voltamos à infância ou ao momento seminal do encontro dos dois namorados - na verdade, Eme deveria ter sido seu primeiro amor inocente, aos catorze anos, mas se desencontraram, como tantos casais perfeitos se desencontram na vida. Ela o abandona. Ele nunca mais havia ouvido falar de Eme, mas ela havia deixado uma marca indelével em sua vida. Toda a tristeza da perda de anos atrás é rememorada.

"Será que alguém consegue entender o tamanho da minha agonia, a profundidade do abismo em que caí quando ela partiu? Creio que não. Nem eu consigo mais me lembrar direito. O quanto eu sofri: Como foi a dor do meu coração? Como seria bom se existisse uma máquina neste mundo capaz de medir corretamente a tristeza. Assim seria possível deixá-la registrada em números. Seria perfeito se essa máquina coubesse na palma da mão. Penso nisso toda vez que vou calibrar o pneu."

Divertido, sensual, intrigante, inteligente, inexplicavelmente coerente, Homens sem mulheres é um autêntico Murakami.






(Ilustração: escultura de Kazuhiko Tanaka – Loneliness)

Nenhum comentário:

Postar um comentário