terça-feira, 30 de julho de 2024

ПЕСНЯ О БУРЕВЕСТНИКЕ / CANÇÃO DO PÁSSARO DA TEMPESTADE (OU: CANÇÃO DO ALBATROZ), de Máximo Gorki

 




Над седой равниной моря ветер тучи собирает. Между тучами и морем гордо реет Буревестник, чёрной молнии подобный.

То крылом волны касаясь, то стрелой взмывая к тучам, он кричит, и — тучи слышат радость в смелом крике птицы.

В этом крике — жажда бури! Силу гнева, пламя страсти и уверенность в победе слышат тучи в этом крике.

Чайки стонут перед бурей, — стонут, мечутся над морем и на дно его готовы спрятать ужас свой пред бурей.

И гагары тоже стонут, — им, гагарам, недоступно наслажденье битвой жизни: гром ударов их пугает.

Глупый пингвин робко прячет тело жирное в утёсах... Только гордый Буревестник реет смело и свободно над седым от пены морем!

Всё мрачней и ниже тучи опускаются над морем, и поют, и рвутся волны к высоте навстречу грому.

Гром грохочет. В пене гнева стонут волны, с ветром споря. Вот охватывает ветер стаи волн объятьем крепким и бросает их с размаху в дикой злобе на утёсы, разбивая в пыль и брызги изумрудные громады.

Буревестник с криком реет, чёрной молнии подобный, как стрела пронзает тучи, пену волн крылом срывает.

Вот он носится, как демон, — гордый, чёрный демон бури, — и смеётся, и рыдает... Он над тучами смеётся, он от радости рыдает!

В гневе грома, — чуткий демон, — он давно усталость слышит, он уверен, что не скроют тучи солнца, — нет, не скроют!

Ветер воет... Гром грохочет...

Синим пламенем пылают стаи туч над бездной моря. Море ловит стрелы молний и в своей пучине гасит. Точно огненные змеи, вьются в море, исчезая, отраженья этих молний.

— Буря! Скоро грянет буря!

Это смелый Буревестник гордо реет между молний над ревущим гневно морем; то кричит пророк победы:

— Пусть сильнее грянет буря!..



Tradução de Luciana Oliveira de Barros:



Sobre a superfície cinzenta do mar,

O vento reúne

Pesadas nuvens.

Semelhante a um raio negro,

Entre as nuvens e o mar,

Paira orgulhoso o albatroz,

Mensageiro da tempestade.

E ora são as asas tocando as ondas,

Ora é uma flecha rasgando as nuvens,

Ele grita.

E as nuvens escutam a alegria

No ousado grito do pássaro.

Nesse grito - sede de tempestade!

Nesse grito - as nuvens escutam a fúria,

A chama da paixão,

A confiança na Vitória.

As gaivotas gemem diante da tempestade,

Gemem e lançam-se ao mar,

Para lá no fundo esconderem

O pavor da tempestade.

E os mergulhões também gemem.

A eles, mergulhões,

É inacessível a delícia da luta pela vida:

O barulho do trovão os amedronta...

O tolo pingüim, timidamente

Esconde seu corpo obeso entre as rochas...

Apenas o orgulhoso albatroz voa,

Ousado e livre sobre a espuma cinzenta do mar.

Tonitroa o trovão.

As ondas gemem na espuma da fúria.

E discutem com o vento.

Eis que o vento

Abraça uma porção de ondas

Com força e lança-as

Com maldade selvagem nas rochas,

Espalhando-as como a poeira,

Respingando uma noite de esmeraldas.

O albatroz paira a gritar

Como um raio negro,

Rompendo as nuvens como uma flecha,

Levantando espuma com suas asas.

Ei-lo voando rápido como um demônio;

Orgulhoso e negro demônio da tempestade;

Ri das nuvens, soluça de alegria!

Ele - sensível demônio -

Há muito vem escutando

Cansaço na fúria do trovão.

Tem certeza de que as nuvens não escondem,

Não, não escondem...

Uiva o vento... Ribomba o trovão...

Sobre o abismo do mar,

Um monte de nuvens pesadas

Brilham como centelhas.

O mar pega as flechas de relâmpagos

E as apaga em sua voragem.

Parecem cobras de fogo.

Os reflexos desses raios,

Rastejando sobre o mar e desaparecendo.

_ Tempestade!

Breve rebentará a tempestade!

Esse corajoso albatroz

Paira altivo entre os raios

E sobre o mar furiosamente urrando

Então grita o profeta da Vitória:

QUE MAIS FORTE ARREBENTE A TEMPESTADE!




(Ilustração: Robert Havell - Stormy Petrel, 1835)

sábado, 27 de julho de 2024

POR QUE CANTAMOS / POR QUE CANTAMOS, de Mario Benedetti

 




Si cada hora viene con su muerte

si el tiempo es una cueva de ladrones

los aires ya no son los buenos aires

la vida es nada más que un blanco móvil

usted preguntará por qué cantamos

si nuestros bravos quedan sin abrazo

la patria se nos muere de tristeza

y el corazón del hombre se hace añicos

antes aún que explote la vergüenza

usted preguntará por qué cantamos

si estamos lejos como un horizonte

si allá quedaron árbores y cielo

si cada noche es siempre alguna ausencia

y cada despertar un desencuentro

usted preguntará por qué cantamos

cantamos porque el río está sonando

y cuando suena el río / suena el río

cantamos porque el cruel no tiene nombre

y en cambio tiene nombre su destino



Tradução de Julio Luís Gehlen:



Se cada hora vem com sua morte

se o tempo é um covil de ladrões

os ares já não são tão bons ares

e a vida é nada mais que um alvo móvel



você perguntará por que cantamos

se nossos bravos ficam sem abraço

a pátria está morrendo de tristeza

e o coração do homem se fez cacos

antes mesmo de explodir a vergonha

você perguntará por que cantamos

se estamos longe como um horizonte

se lá ficaram árvores e céu

se cada noite é sempre alguma ausência

e cada despertar um desencontro

você perguntará por que cantamos

cantamos porque o rio está soando

e quando soa o rio / soa o rio

cantamos porque o cruel não tem nome

embora tenha nome seu destino





(Antologia poética,1988)



(Ilustrção: Georg Scholz - Krieger Verein, 1922)

quarta-feira, 24 de julho de 2024

HOMENS SEM MULHERES DE HARUKI MURAKAMI, de Aletheia Machado

 


A intertextualidade, as referências à cultura pop e aos carros, as músicas que compõem as atmosferas oníricas, a memória construída como âncora, o surrealismo e a profundidade sentimental dos personagens, a narrativa em linha reta, conduzindo o leitor direto para uma queda num vácuo, como passagem para outros mundos, são elementos que caracterizam Haruki Murakami e estão presentes nessa coletânea de sete contos, cujo título Homens sem Mulheres é uma homenagem-citação a Ernest Hemingway. Hemingway havia publicado, em 1927, uma coletânea de textos que trazia o seu célebre conto "Colinas Como Elefantes Brancos" e no caso do conto-título discutia a temática (ou a não-temática) do aborto. É um título resgatado por Murakami para dar centralidade urgente às mulheres ou a um mundo sem elas.

Se, por um lado, os homens são os narradores e padecem de uma inadequação plácida, de solidão dilacerante, de uma incompreensão atroz quanto ao universo feminino; por outro, são enganados, traídos, ludibriados ou simplesmente demonstram a impossibilidade de viverem sem as mulheres. Mas engana-se quem pensa que os textos são pesados ou soturnos. Dei ótimas gargalhadas com as incoerências ilógicas, as loucuras bizarras, as pontas soltas das histórias, tudo formando um todo estranhamente coeso e complexo - contos bem à Murakami. E, por mais que a mulher - assim me pareceu - seja a representação iconoclasta da perfídia mais que sórdida, ela é adorada, enaltecida, festejada, enobrecida, admirada, idolatrada. Sem as mulheres a vida é vazia, árida e sem sentido; não há sonhos ou imaginação. A mulher, apesar de fugidia e traiçoeira, cruel e irracionalmente fria, é o centro do universo masculino.

"Perder uma mulher é isso. Em alguns casos, perder uma mulher é perder todas as mulheres. Assim nos tornamos homens sem mulheres." Fiquei pensando, ao ler os contos de Murakami: para abandonar é preciso ter sido abandonado? Onde começaria esse ciclo? Com as mulheres? Numa determinada idade? Com o primeiro amor? Todas as mulheres que vêm na sequência de uma perda não fazem mais sentido, não se encaixam, não podem ser levadas a sério? Afinal, quem são essas primeiras e poderosas mulheres de Murakami? No fundo todos se abandonam, nada é perene e durável, tudo é irreversível: a vida caminha, como o leitor, para um abismo, para uma queda, para um outro mundo paralelo onde inexiste o homem com a mulher (ou a mulher com o homem). "Um dia, de repente, você vai ser um dos homens sem mulheres. Esse dia chegará subitamente, sem nenhum aviso prévio nem sinal, sem premonição nem pressentimento, sem uma tosse que seja ou uma batida na porta. Ao virar a esquina, você vai descobrir que já está ali. Mas não poderá voltar atrás. Uma vez que virar a esquina, será o único mundo para você. Nesse mundo você estará entre os homens sem mulheres. Em um plural infinitamente indiferente."

Vamos aos contos:

Drive My Car. É uma referência a uma música dos Beatles. Nesse conto, um ator de teatro, viúvo, com problemas de visão, contrata uma mulher, mais jovem e feia, para ser sua motorista. Naturalmente, revelações catárticas surgem da convivência no espaço exíguo do Saab 900.

" - Mas será que nós conseguimos compreender alguém por completo? Mesmo que amemos esse alguém profundamente?

(...)

- Talvez eu tivesse um ponto cego fatal. (...) Talvez algo importante de dentro dela tenha passado despercebido aos meus olhos. Não, mesmo que os meus olhos estivessem vendo, talvez não estivessem enxergando de verdade."

Yesterday. Título que faz outra referência aos Beatles é o fio da memória de Tanimura. Seu amigo excêntrico, Kitaru, cantava essa canção, fazendo paródias e substituições, no dialeto de Kansai, que aprendeu depois de adulto. Tanimura, ao contrário, havia feito questão de esquecer esse dialeto, apesar de vir de Osaka, onde o dialeto é falado, para reinventar-se em Tókio ("Queria testar minhas novas possibilidades. E, para mim, abandonar o dialeto de Kansai e aprender uma nova língua era um meio prático (e ao mesmo tempo simbólico) para isso. Afinal, as palavras que falamos formam o nosso caráter."). O cerne do conto é a relação em crise de Kitaru com a namorada perfeita, Erika. Kitaru pede que o amigo saia com sua namorada para mantê-lo informado sobre os novos interesses da jovem que havia ingressado na universidade; enquanto ele, Kitaru, estava perdido, sem saber que rumo tomar na vida.

"Como era curiosa [a musica Yesterday cantada por Kitaru], eu continuei a me lembrar bem dela por um tempo, mas depois ela foi ficando vaga até que me esqueci quase por completo. Só me lembro de fragmentos, e já nem tenho mais certeza se estão corretos. Afinal, a memória é, inevitavelmente, algo sempre recriado".

Órgão Independente. Um escritor quer deixar registrada a vida de um cirurgião estético, Dr. Tokai, que tem uma vida confortável, abastada, cheia de privilégios, alegrias fortuitas e sexo casual. Mantém vários casos ao mesmo tempo com mulheres casadas e solteiras, sem assumir nenhum compromisso ou vínculo mais sólido, até que se apaixona por uma mulher mais jovem e casada, e sua vida perde todo o sentido porque ela o abandona.

"Não tenho nenhuma insatisfação com a minha vida pessoal. Tenho muitos amigos e por enquanto sou saudável. Gozo a vida à minha maneira. Mas nos últimos dias tenho me perguntado muito: afinal, quem sou eu? Penso nisso muito seriamente. Se tirarem de mim a habilidade e a carreira de cirurgião, bem como essa vida confortável que levo hoje, e me lançarem no mundo como uma pessoa anônima, sem nada, quem eu seria?"

"Há um poema clássico japonês que diz: 'Depois do nosso encontro, percebo o quanto meu coração era livre de aflições', disse Tokai."

Sherazade. A contadora de história de Murakami, neste conto, recebe o nome de Sherazade, numa referência às As Mil e Uma Noites, porque não revela seu nome ao narrador. Ela é uma mulher de mais ou menos 35 anos, casada, com filhos, que abastece e cuida da casa de Habara, além de cozinhar as refeições do rapaz que vive recluso na House -- não se sabe bem por que está ali e onde é esse lugar. Ele desconhece quaisquer informações acerca da vida pessoal daquela mulher diligente com as tarefas domésticas e com o sexo que praticam. Ao final do coito, Sherazade sempre lhe conta uma longa história que é interrompida às 16h30, para que possa voltar para sua vida cotidiana; e, dessa forma, Sherazade prolonga por dias suas narrativas, conduzindo Habara para outros mundos, fora da prisão de si mesmo.

"Outra coisa que deixava Habara confuso era o fato de que o sexo com Sherazade e a história contada por ela estavam intrinsecamente relacionados. Uma coisa não podia ser separada da outra. Habara nunca havia experimentado essa sensação de estar tão ligado - ou firmemente costurado - a uma relação sexual que não podia ser considerada muito ardente, com uma mulher por quem não se sentia especialmente atraído, e isso o deixava um pouco confuso."

"Mas o que era mais difícil para Habara não era a falta de sexo em si, mas a possibilidade de não poder mais compartilhar um momento íntimo com as mulheres. Perdê-las, no final das contas, era isso. Um momento especial, que anula a realidade mesmo fazendo parte dela: era o que as mulheres proporcionavam."

Kino. É o conto que mais se assemelha aos livros que já li de Murakami: Kafka à beira-mar e 1Q84. O extraordinário brota do cotidiano, e Kino embarca em outra dimensão. Ao descobrir que sua mulher o traía com um colega de trabalho, abandona seu emprego e sua casa e monta um bar, onde cria uma atmosfera intimista e aconchegante. Coloca para tocar seus vinis, ouvindo solos de piano de Art Tatum, Coleman Hawkins, Billie Holiday e tantos outros. Lê os livros que sempre quis ler e deixa a vida passar. Vê os fregueses, alguns incomuns, entrarem e saírem de seu estabelecimento. Até que um dia, debaixo do salgueiro, em frente ao bar que tinha se tornado uma espécie de porto seguro para Kino, surgem cobras, referidas no texto como animais mitológicos e inteligentes, mas que servem como metáfora das mulheres e de seus sentimentos subliminares. Momentaneamente, Kino vê, como única solução, a fuga; para aprender, mais adiante, que as fugas são sempre inverossímeis e irreais. Não é possível escapar do que se sente ou de si mesmo: o confronto com grandes questões íntimas nos aguarda a todos, em algum momento da vida.

"Desde o começo ele levara uma vida sem realização. Não conseguia fazer os outros felizes e, naturalmente, fazer a si mesmo feliz. Para começar, Kino não sabia bem no que consistia a felicidade. Não conseguia perceber claramente as sensações de dor, ira, decepção ou resignação. A única coisa que podia fazer, com muita dificuldade, era encontrar um local a que pudesse se prender, para impedir que o coração, que havia perdido a profundidade e o peso, ficasse perdido a esmo. O barzinho chamado Kino no fundo de um beco se tornou esse lugar concreto. E se tornou um espaço estranhamente confortável - o que foi apenas uma consequência."

Samsa apaixonado. Murakami subverte a clássica história de Franz Kafka, transformando um inseto num humano, ser esse que terá que aprender a viver de acordo com essa nova condição, num mundo em conflito. Gregor Samsa terá que lidar com sentimentos e sensações contraditórios, terá que aprender a vestir-se e a caminhar, terá que começar do zero, decifrando os códigos sociais que o cercam. Terá que compreender o que é amar uma mulher e ver beleza noutro ser, semelhante, mas inusitadamente diferente.

"Em seguida, pegou um bule de metal e despejou café numa xícara branca de porcelana. O cheiro forte o fez se lembrar de algo. Não era uma lembrança direta, já passara por várias modificações. Parecia que ele observava o próprio presente estando no futuro, como se fosse uma lembrança; havia essa estranha dualidade do tempo. Parecia que a experiência e a lembrança circulavam dentro de um ciclo fechado, indo e vindo."

Homens sem mulheres. Uma ligação na madrugada, e uma voz de homem dá a notícia ao personagem-narrador do suicídio de uma mulher. Descobrimos que o homem que telefona é o marido da vítima, e que quem atendeu a chamada é o ex-namorado de Eme, morta inexplicavelmente. Voltamos à infância ou ao momento seminal do encontro dos dois namorados - na verdade, Eme deveria ter sido seu primeiro amor inocente, aos catorze anos, mas se desencontraram, como tantos casais perfeitos se desencontram na vida. Ela o abandona. Ele nunca mais havia ouvido falar de Eme, mas ela havia deixado uma marca indelével em sua vida. Toda a tristeza da perda de anos atrás é rememorada.

"Será que alguém consegue entender o tamanho da minha agonia, a profundidade do abismo em que caí quando ela partiu? Creio que não. Nem eu consigo mais me lembrar direito. O quanto eu sofri: Como foi a dor do meu coração? Como seria bom se existisse uma máquina neste mundo capaz de medir corretamente a tristeza. Assim seria possível deixá-la registrada em números. Seria perfeito se essa máquina coubesse na palma da mão. Penso nisso toda vez que vou calibrar o pneu."

Divertido, sensual, intrigante, inteligente, inexplicavelmente coerente, Homens sem mulheres é um autêntico Murakami.






(Ilustração: escultura de Kazuhiko Tanaka – Loneliness)

domingo, 21 de julho de 2024

O GATO E O VERSO, de Luiza Aparecida Mendo

 





Eu escrevo

ele descreve

piruetas,

carvão e neve

E quando encontro a rima

Lá vem o danado

em cima do meu teclado

Insistiu tanto o bichano

que conseguiu o que queria:

ser minha própria poesia!





(Ilustração : Pierre Auguste Renoir- femme au chat – 1875)

quinta-feira, 18 de julho de 2024

HOMENS SEM MULHERES, de Haruki Murakami

 




Depois da uma da madrugada o telefone toca e me acorda. Um barulho de telefone no meio da noite é sempre feroz. Parece que alguém está tentando destruir o mundo com um devastador instrumento de metal. Como um membro da humanidade, preciso impedi-lo. Por isso me levanto da cama, vou até a sala e atendo o telefone.

A voz grave de um homem me dá a notícia. Uma mulher deixou este mundo para sempre. A voz era de seu marido. Pelo menos foi o que ele disse. E depois comunicou: “Minha mulher se matou na quarta-feira da semana passada. Em todo caso, achei que tinha que avisá-lo”. Em todo caso . Não percebi um pingo de emoção na voz dele. Parecia o texto de um telegrama. Praticamente sem nenhum espaço entre as palavras. Um genuíno comunicado. Um fato sem ornamentos. Ponto final.

O que respondi a ele? Devo ter dito alguma coisa, mas não me lembro. De qualquer forma, seguiu-se um silêncio. Um silêncio como se observássemos um buraco fundo que havia entre nós no meio da rua. Ele desligou o telefone sem falar mais nada. Como se pousasse com cuidado uma frágil obra de arte no chão. Eu permaneci de pé no mesmo lugar por um tempo, segurando o telefone na mão, sem que isso tivesse algum significado especial. Usava uma camiseta branca e uma cueca azul.

Não sei como ele ficou sabendo de mim. Será que ela lhe disse que eu era um ex-namorado? Para quê? E como ele descobriu meu telefone de casa (se o número não constava da lista telefônica)? Para começar, por que eu recebi a notícia? Por que o marido tinha que me ligar só para avisar da morte dela? Não creio que ela tenha pedido isso em testamento. Fomos namorados há muito tempo. E, desde que terminamos, nunca mais nos vimos. Nem sequer falamos ao telefone.

Bem, isso não importa. O problema é que ele não me deu nenhuma explicação. Achou que tinha que me dar a notícia do suicídio dela. E de alguma forma conseguiu meu telefone. Mas achou que não havia necessidade de me explicar os detalhes. Parecia que a intenção dele era me deixar entre o conhecimento e a ignorância. Por quê? Para me fazer refletir?

Sobre o quê?

Não sei. Os pontos de interrogação só aumentavam. Como quando uma criança pressiona aleatoriamente seu carimbo de borracha no caderno.

De modo que até hoje não sei o motivo do seu suicídio nem o meio que ela escolheu para acabar com a própria vida. Mesmo querendo saber, não tenho como. Não sabia onde ela morava. Para começar, nem sabia que era casada. Naturalmente não sabia seu novo sobrenome (o homem não o disse ao telefone). Por quanto tempo ela tinha sido casada? Teria filho(s)?

Mas aceitei a notícia do jeito que ela me foi dada. Não desconfiei de nada.

Depois que terminamos nossa relação, ela continuou vivendo neste mundo, (provavelmente) apaixonou-se por alguém, casou-se e, por algum motivo e de alguma forma, deu fim à própria vida na quarta-feira passada. Em todo caso. De fato havia algo na voz dele que estava profundamente atado ao mundo dos mortos. Consegui ouvir essa conexão vívida em meio ao silêncio noturno. Consegui enxergar também a tensão da linha bem esticada e o seu brilho intenso. Nesse sentido — de forma intencional ou não —, foi uma opção acertada ele me ligar depois de uma da madrugada. Se fosse uma da tarde, provavelmente as coisas não teriam sido assim.

Quando finalmente devolvi o telefone ao gancho e voltei à cama, minha mulher estava acordada.

— Que telefonema foi esse? Quem morreu? — ela disse.

— Ninguém morreu. Foi engano — eu disse. Com uma voz sonolenta e lânguida.

Mas claro que ela não acreditou nas minhas palavras. Pois na minha voz também havia um vestígio de morte. O choque provocado por uma morte recente possui um forte poder de contágio. Ele é transmitido através da linha telefônica na forma de pequenos tremores, muda o tom das palavras e faz com que o mundo se sincronize com a sua vibração. Mas minha mulher não disse mais nada. Deitamos em meio ao breu da noite e ficamos prestando atenção na quietude que havia ali, cada um absorto em seus pensamentos.

Então ela foi a terceira ex-namorada minha que optou por acabar com a própria vida. Pensando bem, ou melhor, mesmo não pensando bem, é uma taxa de mortalidade muito alta. É inacreditável. Afinal, eu não namorei tantas mulheres assim. Não consigo mesmo compreender por que elas acabaram com a própria vida tão novas, uma após a outra, e por que elas precisaram acabar com a própria vida. Espero que a causa não esteja em mim. Espero que eu não tenha nenhuma relação com a morte delas. Espero também que elas não tenham me considerado uma testemunha, um historiador. Espero isso do fundo do coração. E, como posso dizer, ela — a terceira ex-namorada (provisoriamente vou chamála de Eme, por conveniência) — não era, de jeito nenhum, o tipo de pessoa que cometeria suicídio. Afinal, ela era protegida e vigiada pelos marinheiros destemidos do mundo inteiro.

Não posso contar em detalhes como era Eme, onde e como nos conhecemos e o que fizemos. Peço desculpas, mas, se revelar esses detalhes, terei problemas. Provavelmente causarei transtornos às pessoas próximas que (ainda) estão vivas. Por isso agora só posso revelar que há muito tempo tivemos uma relação bem íntima durante um período, mas por alguma razão acabamos nos afastando.

Para falar a verdade, conheci Eme quando eu tinha catorze anos. Na realidade não foi bem assim, mas pelo menos agora quero presumir isso. Nos conhecemos numa sala de aula quando tínhamos catorze anos. Se não me engano, na aula de biologia. A matéria era amonites, celacantos ou algo assim. Ela estava sentada ao meu lado. Eu disse: “Esqueci minha borracha. Você me empresta se tiver uma sobrando?”. Ela partiu a dela ao meio e me deu a metade. Com um sorriso nos lábios. Literalmente me apaixonei num piscar de olhos. Ela era a garota mais bonita que eu havia visto até então. Pelo menos foi isso que pensei naquela hora. Quero pensar que Eme foi uma garota assim para mim. Que nos conhecemos desse jeito na sala de aula da escola. Pelo intermédio secreto e irresistível de amonite, celacanto ou algo assim. Pois, partindo desse pressuposto, muitas coisas fazem sentido.

Eu tinha catorze anos, funcionava bem como um produto recém-saído da fábrica e naturalmente tinha uma ereção toda vez que soprava um vento quente do oeste. Afinal, estava nessa idade. Mas ela não me causava uma ereção. Ela simplesmente suplantava todos os tipos de vento. Não só os ventos do oeste: ela era incrível a ponto de anular qualquer vento vindo de qualquer direção. Não podia ter uma ereção imunda diante de uma garota tão perfeita assim. Era a primeira vez na vida que tinha esse tipo de sentimento em relação a uma garota.

Sinto que foi assim que conheci Eme. Na verdade não foi assim, mas presumindo isso as coisas fazem sentido. Eu tinha catorze anos, ela também. Essa era a idade correta para nos conhecermos. Na verdade, nosso encontro deveria ter acontecido dessa forma.

Mas depois Eme sumiu de repente. Para onde teria ido? Perdi Eme. Aconteceu alguma coisa e, quando eu estava distraído olhando para o lado, ela partiu para algum lugar. Até um tempo atrás ela estava logo ali, mas quando me dei conta já havia desaparecido. Possivelmente foi levada para Marselha ou Costa do Marfim, seduzida por algum marinheiro esperto. Minha decepção foi mais profunda do que qualquer mar que eles atravessaram. Mais profunda do que qualquer mar onde habitam lulas gigantescas e dragões. Fiquei decepcionado comigo mesmo. Não conseguia acreditar em mais nada. Que coisa! Amava tanto a Eme. Ela era tão importante para mim. Precisava tanto dela. Por que fui olhar para o lado?

Mas, em contrapartida, desde então Eme passou a estar em todo lugar. Eu a via em toda parte. Ela estava em vários lugares, em vários momentos e em várias pessoas. Sei disso. Guardei a metade da borracha em um saco plástico e a carregava sempre comigo. Como se fosse um talismã. Como se fosse uma bússola que me indicava a direção. Se a carregar no meu bolso, um dia conseguirei encontrar Eme em algum lugar deste mundo. Acreditava nisso. Ela só foi levada para longe a bordo de um grande navio, seduzida pelas falácias de um marinheiro experiente. Ela era uma pessoa que queria sempre acreditar em algo. Que era capaz de partir uma borracha nova no meio sem hesitar e oferecer a metade.

Tentei reunir o maior número possível de fragmentos dela em vários lugares, através de várias pessoas. Mas não passavam de fragmentos. Por mais que juntasse, fragmentos não passavam de fragmentos. A essência dela era sempre fugidia, como uma miragem. E o horizonte era infinito. Tanto na terra como no mar. Fui atrás dela incessantemente. Fui a Bombaim, Cidade do Cabo, Reykjavík e até Bahamas. Fui a todas as cidades portuárias. Mas, quando eu chegava, ela já tinha partido. Na cama desarrumada ainda restava um pouco do seu calor. A echarpe com estampa de pequenas espirais que ela usara ainda estava sobre o encosto da cadeira. O livro aberto estava virado para baixo sobre a mesa. A meia-calça um pouco úmida pendurada no banheiro. Mas ela não estava lá. Os ágeis marinheiros do mundo todo sentiam meu cheiro e rapidamente a escondiam em algum lugar. Naturalmente eu já não tinha mais catorze anos. Estava mais bronzeado e mais resistente. Minha barba estava mais densa, e eu sabia a diferença entre uma metáfora e uma comparação. Mas uma parte de mim não mudava, permanecia com catorze anos. E essa eterna parte adolescente aguardava sem pressa o vento do oeste acariciar o meu pênis inocente. Certamente, o lugar onde soprava o vento do oeste era onde Eme estaria.

Eme era assim para mim.

Não era de ficar em um só lugar.

Mas também não era o tipo de pessoa que cometeria suicídio.

Nem eu sei direito o que estou querendo dizer aqui. Possivelmente estou tentando descrever a essência e não um fato. Mas descrever a essência e não um fato é como marcar encontro com alguém no lado oposto da lua. É um lugar completamente escuro e não tem nenhuma sinalização. Além de tudo, é vasto demais. Enfim, o que eu quero dizer é que Eme era uma mulher por quem eu deveria ter me apaixonado com catorze anos. Mas na realidade eu me apaixonei por ela muito tempo depois, e nessa época (infelizmente) ela já não estava mais com catorze anos. Nós erramos o momento de nos conhecermos. Como quem erra a data do encontro. O horário e o local estão certos. Mas a data, não.

Mas dentro de Eme também habitava a menina de catorze anos. Essa menina dentro dela não era, em absoluto, parcial — era inteira. Se prestasse atenção, eu conseguia ver de relance essa menina transitar dentro de Eme. Quando transávamos, Eme ora envelhecia, ora virava menina nos meus braços. Ela sempre transitava assim no tempo individual. Eu amava essa Eme. Nessas horas eu a abraçava com força a ponto de ela sentir dor. Talvez eu a abraçasse forte demais. Mas eu tinha que fazer isso. Não queria que ela partisse.

Mas naturalmente chegou a hora de perdê-la mais uma vez. Afinal, os marinheiros do mundo inteiro estavam de olho nela. Sozinho eu não seria capaz de protegê-la. Qualquer um dá uma olhada para o lado de vez em quando. Eu precisava dormir e ir ao banheiro. Precisava lavar a banheira também. Cortar a cebola e tirar o talo da vagem. Precisava calibrar os pneus do carro. Assim, acabamos nos afastando. Ou, melhor dizendo, ela me deixou. Certamente havia a sombra inegável do marinheiro. Uma sombra densa e autônoma que, sozinha, parecia subir facilmente a parede de um prédio. A banheira, a cebola, a calibragem não passavam de fragmentos da metáfora que essa sombra espalhava pelo chão, como se fossem tachinhas.

Será que alguém consegue entender o tamanho da minha agonia, a profundidade do abismo em que caí quando ela partiu? Creio que não. Nem eu consigo mais me lembrar direito. O quanto eu sofri? Como foi a dor do meu coração? Como seria bom se existisse uma máquina neste mundo capaz de medir corretamente a tristeza. Assim seria possível deixá-la registrada em números. Seria perfeito se essa máquina coubesse na palma da mão. Penso nisso toda vez que vou calibrar o pneu.

E, no final das contas, ela morreu. Um telefonema no meio da noite me dá a notícia. Não sei o lugar, o meio, o motivo nem o objetivo, mas de qualquer forma Eme resolveu dar fim à própria vida e conseguiu. Partiu (provavelmente) em silêncio deste mundo real. Mesmo os marinheiros do mundo todo, fazendo uso de toda sua falácia habilidosa, não conseguem mais resgatar — nem sequestrar — Eme, que está no profundo mundo dos mortos. Você também, se prestar atenção no meio da noite, conseguirá ouvir o canto fúnebre dos marinheiros ao longe.

Com a morte dela, sinto que perdi para sempre a parte de mim que tinha catorze anos. Como a camisa aposentada de beisebol, a parte de mim que tinha catorze anos foi arrancada da minha vida pelas raízes. Ela foi guardada em algum cofre robusto que foi fechado com uma chave complexa e afundado no mar. Possivelmente ele não será aberto no próximo bilhão de anos. Está sendo observado em silêncio pelos amonites e celacantos. O encantador vento do oeste já parou. Os marinheiros do mundo inteiro estão lamentando a morte dela. E os antimarinheiros do mundo inteiro também.

Quando recebi a notícia da morte de Eme, senti que eu era o segundo homem mais solitário do mundo.

O homem mais solitário do mundo deveria ser o marido dela. Deixo reservado esse posto para ele. Não sei como é o marido dela. Não sei a idade, a profissão, se é que tem alguma, não tenho nenhuma informação sobre ele. Só sei que ele tem a voz grave. Mas esse fato não me diz nada concreto. Seria ele marinheiro?

Ou não? Se for o último caso, temos uma parceria. Mas se for o primeiro... Mesmo assim eu me compadeço dele. Gostaria de ajudá-lo de alguma forma.

Mas não tenho como me aproximar dele. Não sei o seu nome nem onde mora. Talvez ele já tenha perdido nome e endereço. Afinal, é o homem mais solitário do mundo. Durante minha caminhada, sento na frente de uma estátua de unicórnio (no meu trajeto sempre passo pelo parque em que ela está) e, observando o chafariz com água refrescante, penso muito no marido dela. E imagino, a meu modo, como é ser o homem mais solitário do mundo. Eu já sei como é ser o segundo mais solitário. Mas ainda não sei como é ser o homem mais solitário do mundo. Há um abismo entre ser o segundo mais solitário e o mais solitário do mundo. Possivelmente. Ele não é só profundo. É assustadoramente largo. Tão largo que há, no fundo do abismo, um monte alto formado por cadáveres de pássaros que não conseguiram atravessar de uma ponta à outra e caíram.

Um dia, de repente, você vai ser um dos homens sem mulheres. Esse dia chegará subitamente, sem nenhum aviso prévio nem sinal, sem premonição nem pressentimento, sem uma tosse que seja ou uma batida na porta. Ao virar a esquina, você vai descobrir que já está ali. Mas não poderá voltar atrás. Uma vez que virar a esquina, será o único mundo para você. Nesse mundo você estará entre os “homens sem mulheres”. Em um plural infinitamente indiferente.

Somente os homens sem mulheres conseguem compreender o tamanho da dor e do sofrimento de ser homens sem mulheres. É perder o vento encantador do oeste. É ser privado para sempre — um bilhão de anos talvez seja um tempo aproximado de “para sempre” — dos catorze anos. É ouvir o canto melancólico e doloroso dos marinheiros ao longe. É se esconder no fundo do mar escuro junto dos amonites e celacantos. É ligar depois da uma da madrugada para a casa de alguém. É receber um telefonema depois da uma da madrugada. É marcar um encontro com um desconhecido em algum lugar entre o conhecimento e a ignorância. É derramar lágrimas na pista seca enquanto calibra o pneu.

De qualquer forma, na frente dessa estátua de unicórnio, eu rezo para que ele consiga se recuperar um dia. Rezo para que ele se lembre somente das coisas verdadeiramente importantes — que, por acaso, nós chamamos de essência — e que ele consiga se esquecer da maioria dos fatos complementares. Desejo que ele se esqueça até do fato de ter se esquecido desses fatos. Desejo isso do fundo do coração. Não é incrível? O segundo homem mais solitário do mundo está se compadecendo do homem mais solitário do mundo (que nunca conheceu), e está rezando por ele.

Mas por que ele teve o trabalho de me ligar? Não o estou censurando, mas até hoje tenho essa dúvida, que pode ser chamada de fundamental. Por que ele sabia de mim? Por que se importou comigo? Acho que a resposta é simples. Provavelmente Eme falou de mim, falou algo de mim ao marido. Só pode ter sido isso. Não faço a menor ideia do que ela lhe contou. Que valor, que significado eu possuo, como ex-namorado, para ela (ter o trabalho de) fazer comentários sobre mim? Seria algo grave relacionado à sua morte? Será que minha existência lançou alguma sombra sobre a morte dela? Talvez Eme tenha comentado que o meu pênis tem um formato bonito. Ela costumava apreciar o meu pênis na cama no início da tarde. Colocava-o na palma da mão com cuidado, como quem admira uma joia antiga incrustada em uma coroa indiana. “O formato é muito bonito”, ela dizia. Não sei bem se dizia a verdade.

Será que o marido de Eme ligou para mim por causa disso? Depois de uma da madrugada, em respeito ao formato do meu pênis? Não, não pode ser. Além do quê, o meu pênis não tem nada de mais. Na melhor das hipóteses, pode-se dizer que é comum. Pensando bem, o senso estético de Eme nunca foi muito confiável. Seu senso de valores era curioso e bem diferente do de outras pessoas.

Possivelmente (eu só posso imaginar) ela lhe contou que, na sala de aula da escola, me dera a metade da sua borracha. Sem nenhum motivo particular, sem malícia, como se fosse uma lembrança singela. Mas, nem é preciso dizer, ele ficou com ciúmes quando soube disso. Mesmo que Eme tenha transado com dezenas de marinheiros, ele sentiu ciúmes bem mais intensos de mim, que ganhei a metade da borracha dela. É normal. O que são dezenas de marinheiros destemidos? Afinal, Eme e eu tínhamos catorze anos, e nessa época eu tinha uma ereção só com o soprar do vento oeste. Oferecer a metade da borracha nova a um rapaz assim é uma coisa bem grave. É como oferecer uma dúzia de celeiros velhos a um grande tornado.

Desde então, toda vez que passo diante da estátua do unicórnio, permaneço um tempo sentado ali e penso nos homens sem mulheres. Por que nesse lugar? Por que unicórnio? Quem sabe o unicórnio também faça parte dos homens sem mulheres. Pois nunca vi um casal de unicórnios. Ele — com certeza é macho — está sempre sozinho, com o chifre pontudo levantado vigorosamente para o alto. Talvez devêssemos elegê-lo representante dos homens sem mulheres e considerá-lo símbolo da solidão que carregamos. Talvez devêssemos marchar silenciosamente nas avenidas do mundo inteiro munidos de distintivos com formato de unicórnio no peito ou no boné. Sem músicas, sem bandeiras, sem confetes. Possivelmente (acho que estou usando essa palavra em excesso. Possivelmente).

É muito fácil ser um dos homens sem mulheres. Basta amar profundamente uma mulher e ser abandonado por ela. Na maioria das vezes (como você sabe), são os marinheiros astutos que as levam. Eles seduzem as mulheres com bajulações e as carregam rapidamente para Marselha ou para a Costa do Marfim. Não há praticamente nada que possamos fazer diante deles. Ou elas podem dar fim à própria vida, sem a ajuda dos marinheiros. Nesse caso também não há quase nada que possamos fazer. Os marinheiros tampouco.

De uma forma ou de outra, você também vai ser um dos homens sem mulheres. De repente. E, uma vez que você se tornar um dos homens sem mulheres, a cor da solidão se impregnará no seu corpo. Como se fosse uma mancha de vinho tinto em um tapete de cor clara. Por maior que seja o seu conhecimento sobre arrumação doméstica, limpar essa mancha será um trabalho assustadoramente árduo. A mancha pode clarear um pouco com o tempo, mas permanecerá lá até o seu último suspiro. Ela terá a qualificação de mancha e até poderá adquirir direito à voz pública na condição de mancha. Você não terá outra opção a não ser conviver com a lenta mudança da sua cor, junto com o seu contorno polissêmico.

Nesse mundo a ressonância do som é diferente. A secura da garganta é diferente. O crescer da barba é diferente. O atendimento do funcionário do Starbucks é diferente. O solo de Clifford Brown também parece diferente. O fechar da porta do metrô também é diferente. A distância para caminhar entre Omotesandô e Aoyama Icchôme também é muito diferente. Mesmo que depois você encontre outra mulher, por mais encantadora que ela seja (ou melhor, quanto mais encantadora ela for), você estará sempre pensando no momento em que irá perdê-la. A sombra sugestiva dos marinheiros, o som da língua estrangeira que eles falam (grego? estoniano? tagalo?) deixa você inseguro. Os nomes exóticos dos portos do mundo todo o amedrontam. Isto porque você já sabe o que é ser parte dos homens sem mulheres. Você é um tapete persa de cor clara e a solidão é uma mancha de bordeaux que jamais sai. Assim, a solidão é trazida da França, e a dor da ferida é trazida do Oriente Médio. Para os homens sem mulheres, o mundo é uma mescla vasta e dolorosa, é a personificação do outro lado da lua.

Eme e eu namoramos por cerca de dois anos. Não foi muito tempo. Mas foram dois anos intensos. Foram só dois anos, podemos dizer. Ou também podemos dizer: foram dois longos anos. Naturalmente isso varia conforme o ponto de vista. Eu disse namoramos, mas só nos encontrávamos duas ou três vezes por mês. Ela tinha os motivos dela, e eu tinha os meus. E, infelizmente, não estávamos mais com catorze anos. Esses vários motivos acabaram com a nossa relação. Por mais forte que a abraçasse para não perdê-la, a sombra densa e escura do marinheiro espalhava as tachinhas pontiagudas da metáfora.

O que lembro ainda hoje é que Eme amava “músicas de elevador”. Músicas que lembram as que tocam em elevadores — como Percy Faith, Mantovani, Raymond Lefèvre, Frank Chacksfield, Francis Lai, 101 Strings, Paul Mauriat, Billy Vaughn, esse tipo de música. Ela gostava dessas músicas, inofensivas (do meu ponto de vista). Instrumentos de corda elegantes, flautas que pairam agradavelmente no ar, metais com surdina, um som de harpa que acaricia o coração. Melodia charmosa que jamais se desfaz, harmonia agradável como um doce, gravação com ressonância adequada.

Quando dirigia sozinho, eu costumava ouvir rock ou blues. Derek and Dominos, Otis Redding e The Doors. Mas Eme não me deixava colocar essas músicas de jeito nenhum . Ela sempre trazia uma dúzia de fitas com músicas de elevador em uma sacola de papel e as tocava uma em seguida da outra. Passeávamos aleatoriamente de carro e enquanto isso ela mexia os lábios em silêncio, acompanhando “13 Jours en France”, de Francis Lai. Seus lábios sensuais e encantadores com batom suave. Ela tinha quase dez mil fitas com músicas de elevador. E tinha um conhecimento colossal sobre músicas inofensivas do mundo todo. Seria capaz de abrir um “museu de músicas de elevador”.

Era assim também na hora do sexo. Sempre colocava uma música de elevador para tocar. Quantas vezes ouvi “Theme from a Summer Place”, de Percy Faith, ao fazer amor com ela? Fico sem jeito de revelar isso, mas até hoje me excito quando escuto essa música. Minha respiração se acelera e meu rosto fica quente. Devo ser o único homem na face da Terra que fica excitado escutando a introdução dessa música. Não, talvez o marido dela também fique. Vamos deixar reservado um espaço para ele. Vamos reformular a frase. Deve haver só dois homens (incluindo eu) na face da Terra que ficam excitados escutando a introdução dessa música. Assim está melhor.

Espaço.

— Eu gosto desse tipo de música — disse Eme certa vez. — Por questão de espaço.

— Questão de espaço?

— O que eu quero dizer é que, quando ouço esse tipo de música, sinto que estou num espaço amplo e vazio. Esse lugar é realmente espaçoso e não há divisórias. Não há parede nem teto. E aí não preciso pensar em nada, não preciso dizer nada, não preciso fazer nada. Basta estar ali. Basta fechar os olhos e entregar o corpo ao belo som das cordas. Não há dor de cabeça, sensibilidade ao frio, menstruação ou ovulação. Nesse lugar tudo é belo, tranquilo e não há estagnação. Nada mais é exigido.

— É como se estivesse no céu?

— É — disse Eme. — Acho que as músicas de Percy Faith tocam como pano de fundo no céu. Olha, você pode fazer mais carinho nas minhas costas?

— Posso. Claro — eu disse.

— Seu carinho nas costas é muito bom.

Eu e Henry Mancini nos entreolhamos sem que ela percebesse. Com um leve sorriso nos lábios.

Obviamente eu também perdi as músicas de elevador. Penso nisso toda vez que dirijo sozinho. Imagino que uma garota desconhecida poderia abrir de repente a porta do passageiro enquanto estou no sinal vermelho, sem dizer nada, sem olhar para mim, e inserir sem permissão a fita com a música “13 Jours en France”. Até chego a sonhar com isso. Mas, naturalmente, isso não acontece. Para começar, nem tenho mais toca-fitas. Hoje, quando dirijo, escuto as músicas do iPod conectado com o cabo USB . Claro que não tenho as músicas de Francis Lai nem de 101 Strings. Tenho apenas Gorillaz e Black Eyed Peas.

Perder uma mulher é isso. Em alguns casos, perder uma mulher é perder todas as mulheres. Assim nos tornamos homens sem mulheres. Perdemos também Percy Faith, Francis Lai e 101 Strings. Perdemos amonites e celacantos. Obviamente também perdemos suas costas charmosas. Eu costumava acariciar de forma compenetrada as costas de Eme acompanhando o compasso ternário suave de “Moon River”, conduzida por Henry Mancini. “Waitin’ ‘round the bend, my huckleberry friend... ” Mas tudo isso já desapareceu. Só restaram a metade da borracha velha e o canto triste dos marinheiros ao longe. E o unicórnio do lado do chafariz que mantém seu chifre para o alto, solitário.

Espero que agora Eme esteja no céu — ou em algum lugar parecido — escutando “Theme from a Summer Place”. Espero que ela esteja envolvida carinhosamente nessa música espaçosa e sem divisórias. Espero que não esteja tocando Jefferson Airplane (possivelmente Deus não é tão cruel a esse ponto. Espero). E desejo que, escutando “Theme from A Summer Place” tocada em pizzicato, ela se lembre de mim de vez em quando. Mas não espero tanto. Mesmo sem mim, rezo para que ela esteja vivendo feliz e tranquila junto com as imortais músicas de elevador.

Como um dos homens sem mulheres, eu rezo do fundo do coração. Parece que não há nada que eu possa fazer agora a não ser rezar. Por enquanto. Possivelmente.



(Homens sem mulheres; tradução de Eunice Suenaga)



(Ilustração : escultura de Edgar Tolson - Temptation of Adam – 1974)

segunda-feira, 15 de julho de 2024

POEMONTAGEM PARA AUGUSTO DOS ANJOS, de Sebastião Uchoa Leite

 


 sombra magra de esqueleto esquálido

ossos destroços se carcomem o homem

úmeros números negros de homem húmus

um grande verme passeia essa epiderme

 

agregado abstrato abstrações abstrusas

criptógama cápsula e ventres podres

dentre as tênebras de obscuro orbe

qual minha origem? pergunto na vertigem

 

sonda hedionda assombra a minha sombra

essa futura ossatura e agras vísceras

incógnitas criptas do ovo primitivo

plasma do cosmo treva do nirvana

 

homem engrenagem da língua paralítica

no orbe oval de gosmas amarelas

eu perdido no cosmos corpo inerme

de mim diverso um coveiro do verso

 

(Antilogia,1979)

 

(Ilustração: Flávio Tavares - Augusto dos Anjos)

 

sexta-feira, 12 de julho de 2024

UMA CIDADE TRISTE DE UNIFORMES AZUIS E JALECOS BRANCOS, de Maura Lopes Cançado

 


Fui ao gabinete de doutor Paim. Recebeu-me neutro. Olhou-me como se eu fosse um irracional, nada me perguntou. Antes, falou para si mesmo: " — Está magra e abatida. Fiquei aborrecido quando aquele rapazola (Carlos Fernando Fortes de Almeida) veio tirá-la. Isto não acontecerá mais, só deixará o hospital estando em condições. Você não tem família nem alguém que a ampare. Vai ter agora um médico que te ajudará. Doutor A. é um rapaz estudioso, já te recomendei a ele. Suba à Seção Tillemont Fontes, você ficará lá com ele (mudando de tom): ninguém vai fazer-lhe mal, por que tem tanto medo? Ninguém te quer mal. Tenha confiança em doutor A.". Pensei: como sabe que não tenho família nem quem me ampare? Agiu como se tudo soubesse, ou como se fosse desnecessário ouvir-me. Julga que sou oligofrênica? E ainda teve coragem de perguntar-me por que tenho medo daqui. Como finge ignorar a realidade. Então, por que se tem medo de um hospício? Entanto:

—Ninguém te quer mal. NINGUÉM TE QUER MAL". Subi ao terceiro andar, à Seção Tillemont Fontes. Ninguém me quer mal, pensava com força, como a proteger-me de todos, principalmente de dona Júlia, a enfermeira-chefe — que tem sua residência nesta seção e me detesta.

Conheci o médico e hoje falei com ele pela terceira vez. O tratamento que me faz tem o nome de psicoterapia. Não sei ainda quem é este homem de boas maneiras que me analisa. Preciso ganhar sua confiança. Deve estar tentando o mesmo comigo. Quando entrei a primeira vez no consultório disse-me: — Estou às suas ordens". Achei-o sofisticado, olhei-o com ironia e respondi: — Sou eu quem está às suas ordens". Ele ignora que manjo um pouco de psicanálise, já comecei um tratamento com outro médico e a primeira frase que ouvi foi esta: " Estou às suas ordens". Doutor A. deve estar muito prevenido contra mim. Fiz e sofri misérias, aqui dentro. Gostaria de sentir-me mais à vontade perto dele, expor-lhe claramente minhas necessidades. Ninguém no mundo necessita mais de um amigo do que eu. Ele é correto e cerimonioso. Mostro-me petulante e cínica. Dona Dalmatie acha-o pouco inteligente. Espero que ela esteja enganada. Já pratiquei esgrima, vejo-nos perfeitamente equipados: En garde. Preciso desarmar-me, ficar curada, deixar para sempre o hospital.

Há tempos escrevi um conto, no qual dizia ser aqui "uma cidade triste de uniformes azuis e jalecos brancos". Esta cidade se compõe de seis edifícios, abrigando, normalmente, creio, dois mil e quinhentos habitantes (não estou bem certa do número). Doentes mentais, ou como tais considerados. Além do hospital onde me encontro existem: IP (Instituto de Psiquiatria), onde se fazem internações (estive lá dois meses. É caótico). Bloco Médico-Cirúrgico, Isolamento (Hospital Braule Pinto — doenças contagiosas, tuberculose principalmente), Hospital Pedro II e Instituto de Neuropsiquiatria Infantil. O Isolamento fica aqui perto. A noite, se não consigo dormir, ouço gritos dos doentes de lá. Não compreendo um hospital abrigando tuberculosos no Engenho de Dentro, onde o clima é o mais quente do Rio. Há também o Serviço de Ocupação Terapêutica do Centro. Serve, ou devia servir, a todos os hospitais. Aqui estou de novo nesta "cidade triste", é daqui que escrevo. Não sei se rasgarei estas páginas, se as darei ao médico, se as guardarei para serem lidas mais tarde. Não sei se têm algum valor. Ignoro se tenho algum valor, ainda no sofrimento. Sou uma que veio voluntariamente para esta cidade — talvez seja a única diferença. Com o que escrevo poderia mandar aos "que não sabem" uma mensagem do nosso mundo sombrio. Dizem que escrevo bem. Não sei. Muitas internadas escrevem. O que escrevem não chega a ninguém — parecem fazê-lo para elas mesmas. Jamais consegui entender-lhes as mensagens. Isto talvez não tenha a menor importância. Mas e eu? Serei obriga¬da a repetir sempre que não sei? E verdade: "NÃO SEI". Estou no Hospício. O desconhecimento me cerca por todos os lados. Percebo uma barreira em minha frente que não me deixa ir além de mim mesma. Há nisto tudo um grande erro. Um erro? De quem? Não sei. Mas de quem quer que seja, ainda que meu, não poderei perdoar. E terrível, deus. Terrível.

Faz muito frio. Estou em minha cama, as pernas encolhidas sob o cobertor ralo. Escrevo com um toquinho de lápis emprestado por minha companheira de quarto, dona Marina. O quarto é triste e quase nu: duas camas brancas de hospital. Meu vestido é apenas o uniforme de fazenda rala sobre o corpo. Não uso soutien, lavei-o, está secando na cabeceira da cama. Encolhida de frio e perplexidade, procuro entender um pouco. Mas não sei. E hospício, deus — e tenho frio.

Estranha a minha situação no hospital. Pareço ter rompido completamente com o passado, tudo começa do instante em que vesti este uniforme amorfo, ou, depois disto nada existindo — a não ser uma pausa branca e muda. Estou aqui e sou. E a única afirmativa, calada e neutra como os corredores longos. Ou não sou e estou aqui? — Cada momento existe independente, tal colcha formada de retalhos diferentes: os quadradinhos sofrem alteração, se observados isolados. Entanto, formam um todo. Agora escrevo. Antes fui ao banheiro, abri a torneira da pia e tomei água. Eu tomava água. Deitada, olhei longamente o quadrado branco do teto. O teto branco quadrado. De manhã bem cedo virei-me na cama, lenta: um momento. Mantive-me atenta e quieta durante muito tempo — olhos bem abertos. No corredor a guarda gritava com as mulheres. A guarda gritava. Os dias deslizam difíceis — custa. Me entrego. E me esqueço. Ou não me esqueço? As vezes as coisas ameaçam chegar até mim, transpondo as portas (mas não. Por quê? Hein? Quando? NADA). Sinto medo. Parece reinar uma ameaça constante no ar. Ou sou eu quem se alerta para o primeiro gesto? Ando pelo quarto. Completo um instante. Depois outro quadradinho: penso fino e reto, sem ameaças, livre de pesar pelo que está guardado ou morto. Penso no amanhã de manhã: o médico. O médico é o campo luminoso onde vou todos os dias. Ou sou eu quem se ilumina perto dele?



26-10-1959



(Hospício é Deus)



(Ilustração: Francisco de Goya - Casa de loucos)

terça-feira, 9 de julho de 2024

IL CUORE: INTERLÓQUIO MILANÊS, de Haroldo de Campos

 

 





1.

à

consorte-cirurgiã

do cirurgião que estuda

(anatomiza) o

coração das baleias (um raro

hobby lombardo)

pergunto: de que cor é o formidável

balênico

(balordo?)

músculo cardial do

piramídeo monstro?

    
                        (montanhosa mole

                           de carne congelada

                           que a alfândega libera

                           - estupefacta!

                           procedente do mais

                           interno fundo dos profundos

                          arcanos equóros da noruega)





2.

responde-me: vermelho-

-escuro tendendo para o roxo

colore nero viola

iodo vinho

tinto arrolhado em

frasco fosco

                        (estamos em milão:

                        chove sobre o chiostro verde-

                        grama

                        deste palazzo degli ucelli

                        via capuccio

                        número (talvez)

                       dezoito (sulla destra) onde

                       se comemora o aniversário (compleanno)

                       refinadíssimo do

                       padrone della casa





                      um party ao ar aberto

                      luz seral

                      no chiostro retangular

                      música em surdina

                      convivas chiachierando

                     com toques pervasivos

                    de fellini)



3.

sim - reitera a

cirurgiã-assistente

(cônjuge) toda charme

e ciência:

roxo foncé

- não vermelho vivo

escarlate berrante mas

de um tinto carregado

profundo-escuro-sanguinosa

massa muscular agora

rígida que um dia palpitou sub-

oceânica ou

já emersa do vórtice quando

gigântea rege

o hídrico fluxo do

esguicho d'água

alto arremessando-o contra o céu -

plúmbeo-translúcida

cúpula chuvosa do homérico mar salino -

quando (mamífero prodígio)

a arrogante bucaneira capitânea

se ejeta do centro aquoso

e já respira





4.

roxo-profundo o coração?

(eu aparteando) - pode ser -

do cachalote energumênico ou

o miocárdio (chi lo sà) da

orca feroz que exsurta

pavoneia o seu gáudio turbinoso

- admito:





5.

concordo até

mesmo (ex corde) - mas

o de moby dick

o da baleia branca que navega

- dogaresa

sereníssima -

na paz pelaginosa de seus glaucos

domínios

o coração cetáceo da abadessa

do mar-alto           este





só pode ser azul

puro azul pulsante

safira compulsa e celestina

azur

azurro

blau

sky blue

batendo - desdenhoso

do arpão colérico de ahab -

até remergulhando rebater

contra a líquida pretidão onde

                                            afinal se engolfa



(Entremilênios)



(Ilustração: Olena Abakumova - blue whale, 2023)

sábado, 6 de julho de 2024

PERDA E RECUPERAÇÃO DO CABELO, de Julio Cortázar

 



Para lutar contra o pragmatismo e a horrível tendência à consecução de fins úteis, meu primo mais velho defende a prática de arrancar um bom fio da cabeça, dar-lhe um nó no meio e deixá-lo cair suavemente pelo buraco da pia. Se o cabelo ficar preso no ralo que costuma haver nesses buracos, bastará abrir um pouco a torneira para que se perca de vista.

Sem perda de um instante, deve-se iniciar a tarefa de recuperação do cabelo. A primeira operação se resume em desmontar o sifão da pia para ver se o cabelo ficou agarrado em alguma das sinuosidades do cano. Se não for encontrado, deve-se abrir o pedaço de cano que vai do sifão ao encanamento do esgoto principal. É certo que nessa parte aparecerão muitos cabelos e será preciso contar com a ajuda do resto da família para examiná-los um por um à procura do que tem o nó. Se não aparecer, colocar-se á o interessante problema de quebrar o encanamento até o andar de baixo, mas isso significa um esforço maior, pois durante oito ou dez anos será necessário trabalhar em algum ministério ou numa casa de comércio para juntar o dinheiro que permita comprar os quatro apartamentos situados embaixo do de meu primo mais velho, tudo isso com a extraordinária desvantagem de que enquanto se trabalha durante esses oito ou dez anos não se poderá evitar a penosa sensação de que o cabelo não esteja mais no encanamento, e que só por um remoto acaso permaneça preso em alguma saliência enferrujada do cano.

Chegará o dia em que poderemos quebrar os canos de todos os apartamentos, e, durante meses, viveremos cercados por bacias e outros recipientes cheios de cabelos molhados, assim como de curiosos e mendigos, aos quais pagaremos generosamente para que procurem, separem, classifiquem e nos tragam os cabelos possíveis, a fim de alcançarmos a certeza desejada. Se o cabelo não aparecer, entraremos numa etapa muito mais vaga e complicada, porque o trecho seguinte nos leva aos esgotos maiores da cidade. Depois de comprar uma roupa especial, aprenderemos a nos esgueirar pela rede a altas horas da noite, armados com uma poderosa lanterna e uma máscara de oxigênio, e exploraremos as galerias menores e maiores, se possível ajudados por marginais com quem teremos travado relação e a quem precisaremos dar grande parte do dinheiro que ganhamos durante o dia em um ministério ou numa casa comercial.

Frequentemente teremos a sensação de haver chegado ao fim da tarefa, porque encontraremos (ou nos trarão) cabelos semelhantes ao que procuramos; mas como não se conhece nenhum caso em que um cabelo tenha um nó no meio sem a intervenção da mão humana, acabaremos quase sempre por comprovar que o nó em causa é um simples engrossamento do diâmetro do cabelo (embora tampouco conheçamos algum caso parecido) ou um depósito de algum silicato ou óxido qualquer, provocado por uma longa permanência numa superfície húmida. É provável que avancemos assim por diversos trechos de esgotos menores e maiores, até chegarmos a esse lugar onde ninguém se atreveria a penetrar: o esgoto principal que desemboca no rio, na junção torrencial dos detritos na qual nenhum dinheiro, nenhum barco, nenhum suborno nos permitirão continuar a busca.

Mas antes disso, e talvez muito antes, a poucos centímetros do buraco da pia, por exemplo, na altura do apartamento do segundo andar, ou no primeiro encanamento subterrâneo, pode acontecer que encontremos o cabelo. Basta pensar na alegria que isso nos provocaria, no cálculo espantado de esforços economizados por pura sorte, para justificar, para exigir praticamente uma tarefa semelhante, que todo professor consciente deveria aconselhar a seus alunos desde a mais tenra infância, em vez de secar-lhes a alma com a regra de três composta ou com as tristezas de Cancha Rayada (1).


Nota:

(1) Episódio histórico, também chamado na Argentina El desastre de Cancha Rayada, batalha perdida pelas forças do General San Martín no Chile, para os espanhóis, em abril de 1817, pouco antes da vitória de Maipú. (Nota da Tradutora).



(Histórias de Cronópios e de Famas. Tradução de Glória Rodríguez).



(Ilustração : Wassily Kandinsky - Composition X – 1939)

quarta-feira, 3 de julho de 2024

POEMA DE FIM DE TARDE, de Aryana Frances

 


 

É estranho:

Mas sinto que caminho para a derrota sem a glória ter sido iniciada.

 

Faço o seu caminho, imagino qual o lado da calçada que escolheu, sinto o seu cheiro e sigo.

Te sigo mentalmente.

Vejo os lugares que me contou, sinto o quanto perdi, mas é tarde.

 

É tudo estranho e tarde.

Caminhos belos não bem regados e podados

Viram o inóspito caminho do meu coração.

 

(Derivantes e delirantes)

 

(Ilustração: Jean Béraud)