Tu, em quem liberal a natureza
Uniu uma alma grande a um peito humano,
Tu que vês, doce amigo, caro Armindo,
Os míseros mortais vagar sem tino
De desejo em desejo, de erro em erro
No imenso barulho das cidades,
Donde a risonha paz e a irmã justiça
Banidas pelo vicio vão fugindo;
Foge do alvergue das paixões e crimes;
E pois que a primavera deixa a nuvem,
E fresca desce sobre os nossos campos,
Companheiro vem ser da natureza.
Se anos inteiros lá na corte gastas
Com rostos mil fingidos, vem uma hora
Gastá-la co'a amizade. — Verdes freixos,
Que a casa me rodeiam, sombra amena
Copados guardam para ti. — As ninfas
Colhem as novas flores, que do seio
Da terra o almo sol resplandecente
Lá desde o assento seu, raiando, cria.
Com elas tecem mil gentis grinaldas
Para ornarem-te a fronte, ò caro Armindo!
Ah! se a terna Delmira inda te lembra,
Deixa essas Márcias, deixa essas Nerinas,
Nevados corações, que amor não sentem.
Longe de nós, Armindo, esses amores
Que acasos geram, que desfaz uma hora:
Longe de nós, Armindo, esses amores
Prodigamente dados, que a vontade
Enjeita por fastio ou por cansaço.
Amor não quer atletas furiosos,
Que à meta corram desbocadamente.
Folga de amantes vivos, mas prudentes:
Otil descanso, e férvidos prazeres ...
Então os meigos beijos voadores,
Co'as asas buliçosas refrescando
As amorosas faces inflamadas,
Renovam a paixão, dão-lhe energia.
Doces meiguices, brincos engraçados,
Tudo precisa amor; muito lhe servem.
De pâmpanos frondosos coroando
Nossas cabeças, rubicunda a face,
Sentados com Delmira em brando musgo
À sombra da floresta, rodeados
De festivo esquadrão de cupidinhos,
De desejos gentis, de leves risos,
Com o loiro Madeira, que desterra
Negra melancolia pensadora,
Bassareo Evohé, nós gritaremos.
Lá quando a tarde foge amedrontada
Do inverno irado, que seus ventos junta,
E a noite principia a abrir as asas;
Voltando para a casa sossegados
Com teu modo socrático, mordendo
Irás no velho mundo, que empeiora.
Graciosas pinturas delicadas
De puros Zeros, que per si não vivem,
Do político Mévio barrigudo,
Dignas do grande Pope irás fazendo.
Desmiolada cabeça, em cujo oco
Podem melhor girar trezentos mundos
Do que no espaço do divino Newton!
Quantos pequenos embriões das letras
No vasto alcáçar da benigna deusa
Alojados verás à perna solta!
Apática manada que vegeta,
Enquanto poucos vivem. — Grande deusa!
Coeterna do caos! mãe dos asnos!
Estupidez afável que derramas
No calejado peito de teus filhos
Insípida alegria. — Ou abrindo a fonte
Fazes correr em bicas mil palavras,
Escoltadas de símbolos, de enigmas;
A cuja vista tímida a verdade,
Coitadinha verdade! espavorida
Desampara a cadeira de Minerva;
Reina no mundo, pois, nascente deusa,
E ao redor de teu trono bocejando
Teus gordos filhos vejas descansados
Mil sonolentos vivas entoarem!
Eu não desejo, nem deseja Armindo
No altar da razão queimar-te incenso.
Vem pois, amado amigo, e a natureza
Contemplemos uma hora. Solitária
Nos campos mora, longe das cidades.
Já sentados à sombra de altos freixos,
Depois que o sol do seu doirado trono
Aclara os céus, e os zéfiros lascivos
Faz ciciar nos campos florescentes;
Já lá sobre o rochedo alcantilado,
Que os prados do contorno senhoreia,
Donde a águia veloz, cortando os ventos,
Demanda as regiões de empíreo éter,
Por todas estas cenas da natura
Errar deixemos livre o pensamento.
Tu, amável verdura, que atavias
Os campos geniais na primavera,
Ah! faze com que Armindo solitário
Entre a vária paisagem matizada
Veja correr seus dias na inocência.
Pura amizade, cândidos amores
Já esperam por ti, meu caro Armindo:
Com Almena e Delmira, de mãos dadas,
Em ameno passeio gastaremos
As horas da manhã! Que lindas cenas!
Eis em seu carro d'oiro a branca aurora
As trevas afugenta do horizonte,
E debilmente ainda os campos cora!
Eis as mansas ovelhas temerosas
Fazem soar os prados co'os balidos,
Acordando os pastores preguiçosos!
No bosque verdejante filomela
Gorjeando se queixa docemente!
Já o bando voador em meigos laços
Com mil lascivos namorados beijos
Impelido de amor se une ditoso;
Laços gentis da próvida natura!
No brando seio os zéfiros travessos
Vénus aquenta do noturno frio.
Ela mesma destila orvalho puro,
E com liquidas pérolas borrifa
Os tenrinhos botões das novas rosas!
O' alma do universo, ó Vénus bela!
Por ti respira tudo o que tem vida.
A um teu aceno só milhões de seres.
Já nos profundos reinos do oceano,
Já na face da terra, ou lá nos ares
Renovam a cadeia do universo!
Tu viver fazes a matéria inteira!
Todos quantos respiram, vivem, sentem
Na terra e mar, nas regiões do vento,
Obedecem teus mandos, grande deusa!
Sim, meu Armindo, vem passar teus dias
Nos ternos braços da fiel Delmira.
Tu e mais ela, eu e mais Almena,
Ignorados da turba viveremos
Da singela virtude acompanhados,
Enquanto com quimeras vis, ridículas,
Frenéticos mortais a vida estragam
No seio de mil males e mil crimes.
Ah! escapa ao naufrágio! ah! busca o porto!
Assim Voltaire, o vate dos filósofos,
Cansado de lutar com vis intrigas,
As cortes desprezando, retirado
Na aprazível Ferney, viveu contente:
Assim o pensador Rousseau sublime
Herborizando terminou seus dias:
Imitemo-los também, meu caro Armindo!
(Poesias de Américo Elísio. Org. Sérgio B. Holanda, 1946).
(Ilustração: Angelica Kauffmann - Diana and her nymphs bathing - 1778-82)
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