domingo, 7 de abril de 2024

EPISTOLA, de José Bonifácio de Andrada e Silva

 


 



Escrita de Coimbra no começo da primavera de 1785.





. . . Nor ye who live

In luxury and ease, in pomp and pride,

Think these lost themes unworthy of your ear.

THOMPSON. SEASONS.





Tu, em quem liberal a natureza

Uniu uma alma grande a um peito humano,

Tu que vês, doce amigo, caro Armindo,

Os míseros mortais vagar sem tino

De desejo em desejo, de erro em erro

No imenso barulho das cidades,

Donde a risonha paz e a irmã justiça

Banidas pelo vicio vão fugindo;

Foge do alvergue das paixões e crimes;

E pois que a primavera deixa a nuvem,

E fresca desce sobre os nossos campos,



Companheiro vem ser da natureza.

Se anos inteiros lá na corte gastas

Com rostos mil fingidos, vem uma hora

Gastá-la co'a amizade. — Verdes freixos,

Que a casa me rodeiam, sombra amena

Copados guardam para ti. — As ninfas

Colhem as novas flores, que do seio

Da terra o almo sol resplandecente

Lá desde o assento seu, raiando, cria.

Com elas tecem mil gentis grinaldas

Para ornarem-te a fronte, ò caro Armindo!

Ah! se a terna Delmira inda te lembra,

Deixa essas Márcias, deixa essas Nerinas,

Nevados corações, que amor não sentem.

Longe de nós, Armindo, esses amores

Que acasos geram, que desfaz uma hora:

Longe de nós, Armindo, esses amores

Prodigamente dados, que a vontade

Enjeita por fastio ou por cansaço.



Amor não quer atletas furiosos,

Que à meta corram desbocadamente.

Folga de amantes vivos, mas prudentes:

Otil descanso, e férvidos prazeres ...

Então os meigos beijos voadores,

Co'as asas buliçosas refrescando

As amorosas faces inflamadas,

Renovam a paixão, dão-lhe energia.

Doces meiguices, brincos engraçados,

Tudo precisa amor; muito lhe servem.



De pâmpanos frondosos coroando

Nossas cabeças, rubicunda a face,

Sentados com Delmira em brando musgo

À sombra da floresta, rodeados

De festivo esquadrão de cupidinhos,

De desejos gentis, de leves risos,

Com o loiro Madeira, que desterra

Negra melancolia pensadora,

Bassareo Evohé, nós gritaremos.

Lá quando a tarde foge amedrontada

Do inverno irado, que seus ventos junta,

E a noite principia a abrir as asas;

Voltando para a casa sossegados

Com teu modo socrático, mordendo

Irás no velho mundo, que empeiora.

Graciosas pinturas delicadas

De puros Zeros, que per si não vivem,

Do político Mévio barrigudo,

Dignas do grande Pope irás fazendo.

Desmiolada cabeça, em cujo oco

Podem melhor girar trezentos mundos

Do que no espaço do divino Newton!

Quantos pequenos embriões das letras

No vasto alcáçar da benigna deusa

Alojados verás à perna solta!

Apática manada que vegeta,

Enquanto poucos vivem. — Grande deusa!

Coeterna do caos! mãe dos asnos!

Estupidez afável que derramas

No calejado peito de teus filhos

Insípida alegria. — Ou abrindo a fonte

Fazes correr em bicas mil palavras,

Escoltadas de símbolos, de enigmas;

A cuja vista tímida a verdade,

Coitadinha verdade! espavorida

Desampara a cadeira de Minerva;

Reina no mundo, pois, nascente deusa,

E ao redor de teu trono bocejando

Teus gordos filhos vejas descansados

Mil sonolentos vivas entoarem!

Eu não desejo, nem deseja Armindo

No altar da razão queimar-te incenso.

Vem pois, amado amigo, e a natureza

Contemplemos uma hora. Solitária

Nos campos mora, longe das cidades.

Já sentados à sombra de altos freixos,

Depois que o sol do seu doirado trono

Aclara os céus, e os zéfiros lascivos

Faz ciciar nos campos florescentes;

Já lá sobre o rochedo alcantilado,

Que os prados do contorno senhoreia,

Donde a águia veloz, cortando os ventos,

Demanda as regiões de empíreo éter,

Por todas estas cenas da natura

Errar deixemos livre o pensamento.



Tu, amável verdura, que atavias

Os campos geniais na primavera,

Ah! faze com que Armindo solitário

Entre a vária paisagem matizada

Veja correr seus dias na inocência.

Pura amizade, cândidos amores

Já esperam por ti, meu caro Armindo:

Com Almena e Delmira, de mãos dadas,

Em ameno passeio gastaremos

As horas da manhã! Que lindas cenas!

Eis em seu carro d'oiro a branca aurora

As trevas afugenta do horizonte,

E debilmente ainda os campos cora!

Eis as mansas ovelhas temerosas

Fazem soar os prados co'os balidos,

Acordando os pastores preguiçosos!

No bosque verdejante filomela

Gorjeando se queixa docemente!

Já o bando voador em meigos laços

Com mil lascivos namorados beijos

Impelido de amor se une ditoso;

Laços gentis da próvida natura!

No brando seio os zéfiros travessos

Vénus aquenta do noturno frio.

Ela mesma destila orvalho puro,

E com liquidas pérolas borrifa

Os tenrinhos botões das novas rosas!

O' alma do universo, ó Vénus bela!

Por ti respira tudo o que tem vida.

A um teu aceno só milhões de seres.

Já nos profundos reinos do oceano,

Já na face da terra, ou lá nos ares

Renovam a cadeia do universo!

Tu viver fazes a matéria inteira!

Todos quantos respiram, vivem, sentem

Na terra e mar, nas regiões do vento,

Obedecem teus mandos, grande deusa!



Sim, meu Armindo, vem passar teus dias

Nos ternos braços da fiel Delmira.

Tu e mais ela, eu e mais Almena,

Ignorados da turba viveremos

Da singela virtude acompanhados,

Enquanto com quimeras vis, ridículas,

Frenéticos mortais a vida estragam

No seio de mil males e mil crimes.

Ah! escapa ao naufrágio! ah! busca o porto!

Assim Voltaire, o vate dos filósofos,

Cansado de lutar com vis intrigas,

As cortes desprezando, retirado

Na aprazível Ferney, viveu contente:

Assim o pensador Rousseau sublime

Herborizando terminou seus dias:

Imitemo-los também, meu caro Armindo!





(Poesias de Américo Elísio. Org. Sérgio B. Holanda, 1946).



(Ilustração: Angelica Kauffmann - Diana and her nymphs bathing - 1778-82)

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