segunda-feira, 11 de março de 2024

PABLITO CLAVÓ UN CLAVITO: UMA EVOCAÇÃO DO BAIXINHO ORELHUDO, de Mariana Enriquez

 



A primeira vez que ele apareceu foi na excursão das nove e meia da noite, a que se fazia de ônibus. Foi durante uma pausa do relato, enquanto percorriam o trecho que ia do restaurante que havia sido de Emilia Basil, esquartejadora, até o edifício onde morava Yiya Murano, envenenadora. De todos os tours por Buenos Aires que a empresa para a qual trabalhava oferecia, o de crimes e criminosos era o de maior sucesso. Acontecia quatro vezes por semana: duas de ônibus e duas a pé, duas em inglês e duas em espanhol. Pablo soube que, quando o designou como guia do tour de crimes, a empresa estava lhe dando uma promoção, embora o salário fosse o mesmo (sabia que, cedo ou tarde, se fizesse tudo direito, o valor também aumentaria). A mudança o alegrou muito: antes fazia o tour “Arquitetura Art Nouveau da Avenida de Mayo”, que era muito interessante, mas entediava depois de um tempo.

Tinha estudado em detalhes os dez crimes do circuito para poder narrá-los bem, com graça e suspense, e jamais tivera medo nem se impressionara. Por isso, em vez de terror, sentiu surpresa ao vê-lo. Era ele, sem dúvida, inconfundível. Os olhos grandes e úmidos que pareciam cheios de ternura, mas, na realidade, eram um poço escuro de idiotia. O colete escuro e a estatura baixa, os ombros mirrados e, nas mãos, aquela corda fina — a piola, como a chamavam então — com a qual havia mostrado à polícia, sem expressar emoção alguma, como tinha amarrado e asfixiado suas vítimas. E as orelhas enormes, pontiagudas e simpáticas de Cayetano Santos Godino, o Baixinho Orelhudo, o criminoso mais célebre do passeio, talvez o mais famoso da crônica policial argentina. Um assassino de crianças e de animais pequenos. Um assassino que não sabia ler nem fazer contas, que não distinguia os dias da semana e que guardava debaixo da cama uma caixa cheia de pássaros mortos.

Mas era impossível que estivesse ali, onde Pablo o via. O Baixinho Orelhudo tinha morrido em 1944, no antigo presídio de Ushuaia, na Terra do Fogo, no fim do mundo. O que poderia estar fazendo ali, na primavera de 2014, como passageiro fantasma de um ônibus que percorria os cenários de seus assassinatos? Porque sem dúvida era ele, impossível confundi-lo, o aparecido era idêntico às numerosas fotos de época que haviam sido conservadas. Além disso, havia iluminação suficiente para vê-lo bem: o ônibus ia com as luzes acesas. Estava parado quase no final do corredor, fazendo a demonstração com sua cordinha, encarando a ele, o guia, Pablo, com certa indiferença, porém com clareza.

Fazia um tempo que Pablo tinha contado sua história. Vinha contando-a havia duas semanas, e gostava muito. O Baixinho Orelhudo tinha assombrado uma Buenos Aires tão longínqua e diferente que era difícil sugestionar-se com a sua figura. E, no entanto, algo devia tê-lo impressionado vivamente, porque o Baixinho havia se apresentado, embora ninguém mais o visse — os passageiros conversavam, animados, e passavam o olhar por ele, sem reparar. Pablo sacudiu a cabeça, fechou os olhos com força e, ao abri-los, a figura do assassino com sua cordinha tinha desaparecido. Será que estou ficando louco?, pensou, e apelou à psicologia barata para chegar à conclusão de que o Baixinho lhe aparecia porque ele acabava de ter um filho e as crianças eram as únicas vítimas de Godino. As crianças pequenas. Pablo contava na excursão de onde, segundo acreditavam os forenses da época, vinha essa sanha: o primeiro filho dos Godino, irmão mais velho do Baixinho, tinha morrido aos dez meses na Calábria, Itália, antes de a família emigrar para a Argentina. A lembrança desse bebê morto o obcecava: em muitos dos crimes — e das tentativas, bem mais numerosas —, ele repetia a cerimônia do enterro. Aos peritos que o interrogaram depois de ser apanhado, disse: “Ninguém volta da morte. Meu irmãozinho nunca voltou. Simplesmente apodrece embaixo da terra.”

Pablo relatava o primeiro simulacro de enterro numa das paradas do circuito: a esquina da rua Loria com a San Carlos, onde o Baixinho havia atacado Ana Neri, de dezoito meses, sua vizinha no cortiço da rua Liniers, que não existia mais, mas o terreno onde o prédio ficava era uma parada do percurso, com uma breve contextualização na qual se explicavam aos turistas as condições de vida daqueles imigrantes recém-chegados que escapavam da pobreza europeia amontoados em cortiços úmidos, sujos, ruidosos, promíscuos, sem ventilação. O ambiente ideal para os crimes do Baixinho, porque o desconforto e a desordem acabam por mandar as crianças para a rua: viver naqueles cômodos era tão insuportável que as pessoas ficavam na calçada, especialmente os filhos, que vadiavam por ali.

Ana Neri. O Baixinho a levou ao terreno baldio, golpeou-a com uma pedra e, após deixá-la inconsciente, tentou enterrá-la. Um policial o flagrou no meio da tarefa, e ele rapidamente inventou uma mentira: alegou estar tentando ajudar a garotinha, que tinha sido atacada por outra pessoa. O policial acreditou, talvez porque o Baixinho Orelhudo também fosse um menino: tinha, então, nove anos.

Ana demorou seis meses para se recuperar do ataque.

Não foi o único com simulacro de enterro: em setembro de 1908, pouco depois de deixar a escola — e de terem início seus aparentes ataques de epilepsia; nunca se comprovou em definitivo a que se deviam as convulsões que o Baixinho sofria —, Godino levou Severino González até um terreno baldio em frente ao colégio Sagrado Corazón. No terreno havia um pequeno curral para cavalos. O Baixinho submergiu o menino no tanque onde os animais bebiam água e tentou cobri-lo com uma tampa de madeira. Um simulacro mais sofisticado: a imitação do caixão de defunto. Outra vez um policial que passava impediu o crime e outra vez o Baixinho mentiu, dizendo que, na realidade, estava ajudando o menino. Mas, naquele mês, o Baixinho estava descontrolado. No dia 15 de setembro atacou um bebê de vinte meses, Julio Botte. Encontrou-o na porta de casa, na rua Colombres, 632. Queimou-lhe a pálpebra de um dos olhos com um cigarro que tinha na mão. Dois meses depois, os pais do Baixinho não suportaram mais sua presença nem suas ações, e eles mesmos o entregaram à polícia. Em dezembro, acabou na colônia penal de Marcos Paz para menores. Ali aprendeu a escrever um pouco, mas se destacou sobretudo por jogar gatos e botinas nos caldeirões fumegantes quando os cozinheiros se descuidavam. O Baixinho cumpriu três anos no reformatório de Marcos Paz. Saiu com mais vontade de matar do que nunca, e logo conseguiria o primeiro, e desejado, assassinato.

Pablo sempre terminava o capítulo do Baixinho com o interrogatório a que a polícia o submetera depois da detenção. Parecia impressionar muito os turistas. Lia-o, para que o efeito realista fosse maior. Na noite em que o Baixinho apareceu no ônibus, Pablo sentiu certo incômodo antes de repetir as palavras dele, mas decidiu dizê-las do mesmo jeito. O criminoso só o encarava e brincava com a corda: não o ameaçava.

— O senhor não sente remorso pelos feitos que cometeu?

— Não entendo o que os senhores estão perguntando.

— Não sabe o que é remorso?

— Não, senhores.

— O senhor sente tristeza ou pena pela morte dos garotinhos Giordano, Laurora e Vainikoff?

— Não, senhores.

— Acha que tem o direito de matar crianças?

— Não sou o único, outros também fazem isso.

— Por que matava as crianças?

— Porque gostava.

Esta última resposta provocava a reprovação coletiva dos passageiros, que em geral pareciam contentes quando Pablo trocava de criminoso e passava à mais compreensível Yiya Murano, que envenenou as melhores amigas porque lhe deviam dinheiro. Uma assassina por ambição. Fácil de entender. O Baixinho, ao contrário, incomodava a todos.

Naquela noite, quando chegou em casa, Pablo não contou à esposa que tinha visto o espectro do Baixinho. Também não contou aos colegas, mas isso era normal: não queria ter problemas no trabalho. Por outro lado, afligia-o não poder falar da aparição à esposa. Dois anos antes, teria contado. Dois anos antes, quando ainda podiam confessar um ao outro qualquer coisa sem medo, sem receio. Era uma das tantas coisas que tinham mudado desde o nascimento do bebê.

Chamava-se Joaquín: tinha seis meses, mas Pablo continuava dizendo “o bebê”. Amava-o — ou pelo menos era o que acreditava —, mas o filho não lhe dava muita atenção, ainda estava agarrado à mãe, e ela não ajudava, não ajudava nem um pouco. Tinha se transformado em outra pessoa. Temerosa, desconfiada, obsessiva. Às vezes, Pablo se perguntava se ela estaria sofrendo de depressão pós-parto. Outras vezes, ficava apenas de mau humor e recordava com nostalgia e um pouco — um muito — de irritação os anos anteriores ao bebê.

Agora, tudo era diferente. Ela não o escutava mais, por exemplo. Fingia ouvir, sorria e fazia que sim com a cabeça, mas estava pensando em comprar abóbora e cenoura para o bebê, ou se perguntando se a irritação que o bebê tinha na pele podia ter sido causada pela fralda descartável ou se por acaso se tratava de uma doença eruptiva. Nem o escutava nem queria fazer sexo, porque estava dolorida depois da episiotomia, que não terminava de cicatrizar, e, para completar, o bebê dormia na cama do casal: havia um quarto esperando por ele, mas ela não tinha coragem de deixá-lo dormir sozinho, tinha medo da “síndrome da morte súbita”. Pablo tivera que escutá-la falar dessa morte repentina durante horas enquanto tentava, em vão, acalmar a ansiedade dela, justo dela, que nunca tivera medo, que uma vez ou outra o acompanhara escalando montanhas e dormira em abrigos enquanto nevava do lado de fora. Ela, que tinha comido cogumelos com ele, um fim de semana inteiro de alucinação, aquela mesma mulher, agora chorava por uma morte que não havia chegado e possivelmente não chegaria nunca.

Pablo não lembrava por que ter um filho tinha parecido uma boa ideia. Ela não falava de outra coisa. Acabaram as conversas sobre os vizinhos, os filmes, os escândalos familiares, o trabalho, a política, a comida, as viagens. Agora só falava do bebê e fazia de conta que escutava quando tratavam de outros temas. A única coisa que parecia registrar, como se despertasse de um torpor, era o nome do Baixinho Orelhudo. Como se sua mente se iluminasse com a imagem dos olhos do idiota assassino; como se conhecesse aqueles dedos magros que seguravam a corda. Dizia que Pablo estava obcecado pelo Baixinho. Ele não via a coisa assim. Ocorria que os outros assassinos do tour macabro por Buenos Aires eram chatos. A cidade não tinha grandes assassinos, com exceção dos grandes ditadores, não incluídos no passeio por correção política. Alguns dos facínoras de que Pablo falava tinham cometido crimes atrozes, mas bastante comuns segundo qualquer catálogo de violência patológica. O Baixinho era diferente. Era raro. Não tinha outros motivos além de seu desejo e parecia uma espécie de metáfora, o lado obscuro da orgulhosa Argentina do Centenário, um presságio do mal por vir, um anúncio de que havia muito mais que palácios e fazendas no país, uma bofetada no provincianismo das elites que julgavam que só coisas boas podiam chegar da pomposa e desejada Europa. O mais bonito era que o Baixinho não tinha a mínima consciência disso: simplesmente gostava de atacar crianças e acender fogueiras. Porque também era piromaníaco; agradava-lhe ver as chamas e observar o trabalho dos bombeiros, “sobretudo quando caíam no fogo”, como tinha dito a um dos interrogadores.

A história que irritara a esposa envolvia fogo: ela acabou se levantando da mesa, gritando que nunca mais lhe falasse sobre o Baixinho, nunca mais, por motivo algum. Gritara isso enquanto abraçava o bebê, como se tivesse medo de que o Baixinho se materializasse e o atacasse. Depois, se trancara no quarto e o deixara comendo sozinho. Ele a mandou mentalmente à merda. A história era mesmo impressionante; não para armar tanto escândalo, achava ele, mas muito brutal de fato. Ocorreu no dia 7 de março de 1912. Uma menina de cinco anos, Reina Bonita Vainikoff, filha de imigrantes judeus letões, estava espiando a vitrine de uma sapataria perto de sua casa, na avenida Entre Ríos. Usava um vestido branco. O Baixinho se aproximou enquanto ela estava absorvida pela visão dos sapatos. Levava na mão um fósforo aceso. Tocou com a chama o vestido da menina, que se incendiou. Da calçada em frente, o avô da garotinha a viu envolta em chamas. Atravessou a rua correndo, desesperado. Não conseguiu sequer chegar perto da neta: transtornado, não deu atenção ao tráfego. Foi atropelado por um carro e morreu. Um fato estranhíssimo, dada a baixa velocidade dos veículos naquela época.

Reina Bonita também morreu, mas depois de dezesseis dias de dolorosa agonia.

O assassinato da pobre Reina Bonita não era o crime favorito de Pablo. Ele gostava — essa era a palavra, fazer o quê? — do de Jesualdo Giordano, de três anos. Sem dúvida era o que mais horror causava aos turistas, e talvez fosse por isto que lhe agradava: porque era prazeroso contá-lo e esperar a reação, sempre espantada, da plateia. Foi o crime pelo qual apanharam o Baixinho, além do mais, porque cometeu um erro fatal.

O Baixinho, como já era de costume, levou Jesualdo a um terreno baldio. Enforcou-o com treze voltas de corda. O menino resistiu com força; chorava e gritava. O Baixinho declarou à polícia que tentou fazer com que ele se calasse porque não queria ser interrompido como em outras ocasiões: “O menino, eu agarrei com os dentes aqui, perto da boca, e o sacudi como fazem os cachorros com os gatos”. Essa imagem incomodava os turistas, que se remexiam nos bancos e diziam “Meu Deus” em voz baixa. Não obstante, nunca lhe haviam pedido para interromper o relato. Depois de enforcar Jesualdo, o Baixinho o cobriu com uma placa e saiu para a rua. Mas algo o atormentava, uma ideia ardia em sua mente. De modo que, em seguida, voltou à cena do crime. Levava um prego. Pregou-o na cabeça do menino, que já estava morto.

No dia seguinte, cometeu seu erro fatal. Sabe-se lá por que, compareceu ao velório do menino que havia matado. Disse, mais tarde, que queria ver se ainda tinha o prego na cabeça. Confessou esse desejo quando o levaram para acompanhar a autópsia, depois da denúncia do pai do menino morto. Quando viu o cadáver, o Baixinho fez uma coisa muito estranha: tapou o nariz e cuspiu, como se sentisse nojo, embora o corpo ainda não tivesse entrado em estado de decomposição. Os legistas, por algum motivo que a crônica policial da época não explica, fizeram-no ficar nu.

O Baixinho tinha uma ereção de dezoito centímetros. Acabara de fazer dezesseis anos.

Essa parte ele não podia contar à esposa. Uma vez havia tentado lhe falar das reações dos turistas diante do último crime do Baixinho, mas antes mesmo de começar o relato se deu conta de que ela não o estava escutando. Reclamou que precisavam mudar para uma casa maior quando o bebê crescesse. Não queria criá-lo num apartamento. Queria quintal, piscina, sala de jogos e um bairro tranquilo onde o menino pudesse brincar na rua. Ela sabia perfeitamente que este último quase não existia numa cidade com o tamanho e a intensidade de Buenos Aires, e mudar para um subúrbio rico e aprazível estava muito distante de sua realidade. Quando terminou de enumerar seus desejos para o futuro, pediu-lhe que mudasse de trabalho. Isso não, disse ele. Sou licenciado em turismo, gosto do que faço, não vou pedir demissão; eu me divirto, são poucas horas e estou aprendendo. O salário é uma miséria. Não, não é uma miséria, irritou-se Pablo. Acreditava estar ganhando bem, o suficiente para manter decentemente a família. Quem era aquela mulher desconhecida? Em outros tempos ela havia jurado que, com ele, era capaz de viver num hotel, na rua, embaixo de uma árvore. Tudo era culpa do bebê. Modificara a esposa por completo. E por quê? Se era um menino sem graça, enfadonho, dorminhoco, que, quando estava acordado, chorava quase sem parar. Por que não trabalha você, então, se quer mais dinheiro, disse Pablo à mulher. E ela pareceu se eriçar, gritou como se tivesse ficado louca. Gritou que precisava cuidar do bebê, o que é que ele queria, abandoná-lo com uma babá ou com a louca da mãe dele? Minha mãe não está louca, pensou Pablo, e, para não voltar a brigar aos gritos, saiu à calçada para fumar. Esta era outra coisa: desde que havia nascido o bebê, ela não o deixava fumar no apartamento.

No dia seguinte à discussão, o Baixinho voltou ao ônibus. Dessa vez estava mais perto dele, quase ao lado do motorista, que claramente não o via. Pablo não se sentia diferente, só um pouco inquieto: temia que algum dos turistas também fosse capaz de ver o Baixinho espectral e causasse histeria no ônibus.

Quando apareceu, com a corda nas mãos, estavam numa das últimas paradas do percurso, a casa da rua Pavón. Ali havia sido encontrada uma das vítimas mais velhas do Baixinho, um de seus ataques mais esquisitos. Arturo Laurora, treze anos, estrangulado com a própria camisa; o corpo foi encontrado dentro de uma casa abandonada. Estava sem calça e com as nádegas machucadas, mas não tinha sido violado. Enquanto Pablo contava o caso, o Baixinho espectral, parado a seu lado, aparecia e desaparecia, tremia, perdia os contornos, como se fosse feito de fumaça ou névoa.

Pela primeira vez em muitas noites, alguém quis fazer uma pergunta. Pablo sorriu para o curioso com toda a falsidade que era capaz de conjurar. O turista — que, por seu sotaque, era caribenho — queria saber se o Baixinho havia posto um prego na cabeça de suas vítimas em alguma outra oportunidade. Não, respondeu Pablo. Que se saiba, foi só aquela vez. É muito estranho, disse o homem. E arriscou dizer que, se a carreira criminal do Baixinho tivesse sido mais longa, talvez o prego tivesse se convertido em sua marca, em sua assinatura. Quem sabe, respondeu Pablo com cordialidade, enquanto via como o Baixinho espectral acabava de se esfumar. Mas nunca vamos saber, não é verdade? O caribenho coçou o queixo.

Pablo voltou para casa pensando no prego e num travalínguas que sua mãe lhe havia ensinado quando era criança: Pablito clavó un clavito. /¿Qué clavito clavó Pablito?/ Un clavito chiquitito.* Abriu a porta do apartamento e se deparou com a cena habitual dos últimos meses: a televisão ligada, um prato com desenhos de Ben 10 e restos de abóbora, uma mamadeira meio vazia e a luz de seu quarto acesa. Assomou à porta. A mulher e o filho dormiam na cama, juntos. Sentiu que não os conhecia.

Pablo caminhou até o quarto que ele mesmo havia decorado para o filho antes que nascesse. Estava tão vazio que lhe deu frio. O berço imóvel estava escuro. Parecia o quarto de um menino morto, conservado intacto por uma família de luto. Pablo se perguntou o que aconteceria se o menino morresse, como a esposa parecia temer. Sabia a resposta.

Apoiou-se na parede vazia, onde vários meses antes, ainda antes do nascimento, antes que sua esposa se transformasse em outra pessoa, tinha planejado pendurar um móbile, um universo que giraria acima do berço do bebê para entretê-lo durante a noite. A lua, o sol, Júpiter, Marte e Saturno, os planetas e os satélites e as estrelas brilhando na escuridão. Mas nunca o pendurara porque a esposa não queria que o bebê dormisse ali e não havia meio de convencê-la. Tocou a parede e encontrou o prego, que continuava esperando. Arrancou-o com um puxão seco e o enfiou no bolso. Pensou que propiciaria um grande golpe de efeito para seu relato. Ele o tiraria do bolso justo quando contasse o crime do menino Jesualdo Giordano, no momento preciso, quando o Baixinho voltava e o cravava na cabeça do menino já morto. Numa dessas, algum turista ingênuo até acreditaria que se tratava do mesmo prego, perfeitamente conservado cem anos depois do assassinato. Sorriu ao pensar em seu pequeno triunfo e decidiu deitar no sofá da sala, longe da mulher e do filho, com o prego entre os dedos.



* “Pablito pregou um preguinho. Que preguinho pregou Pablito? Um preguinho pequenininho”, em tradução livre. (N. T.)



(As coisas que perdemos no fogo; tradução de José Geraldo Couto)



(Ilustração : Eric Lacombe - dark abstract portraits)

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