segunda-feira, 29 de agosto de 2022

A VIDA É SONHO, de Bruno Eduardo da Rocha Brito

 


Há uma antiga lenda que reza que, uma vez a cada cem anos, assiduamente, o demônio e o judeu errante se encontram para conversar e beber numa taverna em algum lugar de Londres, possivelmente desde o final do século XIV. Entretanto, no dia de seu costumeiro encontro secular no ano de 1589, os dois não eram as únicas celebridades a colocarem a conversa em dia, pois outra dupla, que ao longo dos anos acabaria se tornando igualmente lendária, ali estava discutindo em voz alta, sobre teatro, talento e pactos com poderes obscuros. À mesa ao lado sentavam-se Christopher Marlowe e William Shakespeare.

A essa altura, Marlowe já colhia os louros de seu reconhecimento pela Trágica História do Doutor Fausto, sendo saudado como o maior dramaturgo de seu tempo; Shakespeare, por outro lado, lamentava o total “desastre” dos versos de sua primeira peça, a primeira parte de Henrique VI, queixando-se ao amigo sobre sua própria falta de talento e chegando mesmo ao ponto de dizer-lhe que barganharia, “como seu Fausto”, para ser igualmente talentoso, ou pelo menos, dar sonhos imorredouros aos homens.

Acontece que o “demônio” estava logo ao lado, conversando com seu amigo imortal, e ouviu atento o desejo do jovem ator: foi então que ele se ergueu e caminhou rumo à mesa onde se reuniam os dois poetas, um homem muito alto e de pele muito branca, com olhos sombrios e a voz negra como a noite, e perguntou por William.

William: Já nos vimos antes?

O Demônio: Sim. Mas os homens esquecem, quando estão despertos. Ouvi sua conversa, Will. Você gostaria de escrever grandes peças? De criar novos sonhos para instigar as mentes dos homens? É esse o seu desejo?

William: Sim.

O Demônio: Então vamos conversar.

A partir desse encontro, William encontrou seu tão desejado talento. Começou a ter sonhos para dar sonhos aos homens, sonhos esses que sobreviveriam a si mesmos e a todos que por eles passassem, por toda a eternidade. Quanto ao homem misterioso com quem conversara na taverna, este apenas encomendou para si duas peças: essas deveriam ser Sonho de uma Noite de Verão e sua última criação, A Tempestade, ambas tendo como centro o “sonhar”. Pois o patrono e benfeitor de William Shakespeare não era o reles Mefistófeles do doutor Fausto: ele era o Sonho em pessoa. Foi assim que o maior de todos os poetas ingleses tornou-se o instrumento através do qual o Senhor das Histórias poderia eternizar os sonhos nos corações dos homens.

A história desse pacto, pertencente à um conto ainda maior sobre o encontro entre dois seres imortais, é uma criação do romancista e quadrinista inglês Neil Gaiman, e faz parte de sua obra mais famosa e bem-sucedida, a série de histórias em quadrinhos The Sandman publicada entre as décadas de oitenta e noventa. Essa série se dedica a contar os feitos e a desventuras de uma entidade que é a manifestação física do sonho – o “Sandman” do título, ou “homem-da-areia”, é um personagem folclórico inglês que derrama areia nos olhos das crianças para adormecê-las e dar-lhes bons sonhos. Contudo, Gaiman não se dedica apenas a contar “aventuras” em que seu herói se envolve, ou sua história pessoal, seus amores frustrados e sua relação tensa com a família (seus seis irmãos, a saber: a Morte, o Destino, a Destruição, o Desejo, o Desespero e o Delírio, seres que antecedem mesmo a existência dos deuses, ou mesmo do universo em si), mas também faz questão de mostrar os efeitos causados pelo seu caminhar entre todas as pessoas; e é nessas histórias, normalmente, que o brilho de sua “mitologia pessoal” se mostra em toda a sua intensidade.

Ora, o Sonho recebe e acolhe a todos em seu reino, o Sonhar, por mais que as mentes despertas jamais tenham lembrança desses encontros. Os piores pesadelos da humanidade derivam de si. Tanto os deuses quanto os animais buscam refúgio em seus braços. Seus passos ecoam à noite em toda parte, seja no mármore outrora real dos fóruns do Império Romano, seja pelos corredores desesperados do fictício Asilo Arkham. Todos estão sujeitos à ação do Sonho, e de seus irmãos: tanto o imperador Augusto quanto o mendigo que se acreditava Imperador dos Estados Unidos. Tanto a deusa egípcia Bast quanto o palhaço psicótico de origem desconhecida que aterroriza Gotham City. E, principalmente, tanto os artistas quanto as fadas que estes, descuidadamente, creem ser suas criações próprias. Criadores e criaturas, sãos e loucos, homens reais e ficcionais, todos se encontram em pé de igualdade diante do Senhor dos Sonhos.



(Roberto Piva, Panfletário do Caos, dissertação de mestrado apresentada à Universidade Federal de Pernambuco, em 2009)


(Ilustração: Eric Lacombe - dark abstract portraits)


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