quinta-feira, 30 de junho de 2022

“DORMIR É PARA OS FRACOS”, de Jonathan Crary

 




Em meados do século XVIII, o sono se desprendeu da posição estável que ocupara nas concepções aristotélicas e renascentistas, hoje obsoletas. Sua incompatibilidade com modernas noções de produtividade e racionalidade passou a ser notada, e Descartes, Hume e Locke foram apenas alguns dos filósofos que desprezavam o sono por sua irrelevância para o funcionamento da mente e para a busca de conhecimento. Foi desvalorizado em face do privilégio conferido à consciência e à vontade, a noções de utilidade, objetividade e ações em interesse próprio. Para Locke, o sono era uma lamentável, ainda que inevitável, interrupção das prioridades que Deus estabeleceu para os seres humanos: a industriosidade e a racionalidade. No primeiro parágrafo de seu Tratado da natureza humana, Hume compara o sono à febre e à loucura – é um dos obstáculos ao conhecimento. Em meados do século XIX, a relação assimétrica entre sono e vigília passou a ser caracterizada segundo modelos hierárquicos nos quais o primeiro era tratado como uma regressão a um modo inferior e mais primitivo, no qual era inibida a atividade cerebral supostamente superior e mais complexa. Schopenhauer é um dos raros pensadores que viraram essa hierarquia contra si mesma e afirmaram que apenas no sono é possível encontrar “o verdadeiro cerne” da existência humana.

Em muitos aspectos, status incerto do sono está relacionado à dinâmica particular da modernidade, que invalida qualquer organização da realidade fundada em conceitos binários complementares. A força homogeneizadora do capitalismo é incompatível com qualquer estrutura inerente de diferenciação.: sagrado-profano, carnaval-dia-útil, natureza-cultura, máquina-organismo e por aí vai. Assim, tornam-se inaceitáveis quaisquer reminiscências do sono como algo de certa forma “natural”. As pessoas continuarão a dormir, é claro, e mesmo nas megalópoles em expansão haverá intervalos noturnos de relativo sossego. No entanto, o sono é agora uma experiência desvinculada de ideias de necessidade e natureza. Ao contrário, e como tantas outras coisas, é tratado como uma função variável, mas controlada, que só pode ser definida em termos instrumentais e fisiológicos. Pesquisas recentes mostram que cresce exponencialmente o número de pessoas que acordam uma ou mais vezes durante a noite para consultar mensagens ou acessar seus dados. Existe uma expressão recorrente e aparentemente inócua, inspirada nas máquinas: o sleep mode. A ideia de um aparelho de consumo reduzido e de prontidão transforma o sentido mais amplo do sono em mera condição adiada ou diminuída de operacionalidade e acesso. Ela supera a lógica do desligado/ligado, de maneira que nada está de fato “desligado” e nunca há um estado real de repouso.

O sono é uma afirmação irracional e intolerável de que não é irrestrita a compatibilidade de seres vivos com as forças supostamente irresistíveis da modernização. Um dos conhecidos truísmos do pensamento crítico contemporâneo é que não existem características naturais inalteráveis – nem mesmo a morte, segundo aqueles que preveem quer em breve estaremos transferindo os dados de nossa mente para uma forma digital de imortalidade. Acreditar que existam traços essenciais que distinguem seres vivos de máquinas é, dizem-nos críticos célebres, ingênuo e delirante. Por que alguém protestaria, pode-se argumentar, se novas drogas nos permitissem trabalhar por cem horas seguidas? Menos sono não permitiria mais oportunidades de “viver a vida ao máximo”? Alguém poderia contestar que os seres humanos foram feitos para dormir à noite, que nossos corpos estão alinhados com a rotação diária do planeta e que comportamentos que reagem às estações e à luz do Sol existem na maioria dos organismos vivos. A resposta provavelmente seria: isso é uma bobagem new age perniciosa, ou pior, uma nefasta nostalgia por certo retorno heideggeriano à terra. No paradigma neoliberal globalista, dormir é, acima de tudo, para os fracos.



(24/7: capitalismo tardio e os fins do sono; tradução de Joaquim Toledo Jr.)



(Ilustração: Joseph Wright - Arkwright's Cotton Mills by Night, c.1782)

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