quinta-feira, 8 de abril de 2021
OITAVA NOVELA: A HISTÓRIA DE NASTAGIO DEGLI ONESTI, de Giovanni Boccaccio
Em Ravena, antiquíssima cidade da Romanha, houve outrora muitos nobres e ricos, entre os quais um jovem chamado Nastagio degli Onesti que, com a morte do pai e de um tio, ficou desmedidamente rico. Não tendo mulher, tal como ocorre aos jovens apaixonou-se por uma filha de messer Paolo Traversaro, moça muitíssimo mais nobre que ele, que Nastagio tinha a esperança de conquistar com ações; estas, embora imensas, belas e louváveis, não só não adiantavam nada como até parecia que o prejudicavam, tão cruel, dura e esquiva se mostrava a jovem amada, que se tornara altiva e desdenhosa, talvez em razão da singular beleza ou da nobreza, a ponto de não gostar dele e de nada do que ele gostasse. Para Nastagio isso era tão difícil de suportar que várias vezes, depois de muito lastimar, teve ele desejos de matar-se. Por fim, abstendo-se disso, tomou frequentes decisões de esquecê-la totalmente ou, se pudesse, de sentir por ela o ódio que ela tinha por ele. Mas em vão se propunha tais coisas, pois parecia que, quanto mais a esperança minguava, tanto mais o amor aumentava.
Como o rapaz continuasse amando e gastando desmesuradamente, alguns amigos e parentes acharam que ele em breve consumiria a si mesmo e às suas coisas; por isso, diversas vezes lhe pediram e aconselharam que saísse de Ravena e fosse para algum outro lugar onde ficasse durante certo tempo, pois, fazendo isso, diminuiria o amor e os gastos. Nastagio frequentemente zombou desse conselho, mas foi tão instado por eles que, não podendo dizer não tantas vezes, prometeu que o faria; e, mandando fazer grandes preparativos, como se fosse para a França, para a Espanha, ou para algum outro lugar distante, montou a cavalo e, acompanhado por muitos amigos, saiu de Ravena e foi para um lugar a cerca de três milhas da cidade, chamado Chiassi; para ali mandou levar pavilhões e tendas, disse àqueles que o acompanhavam que queria ficar lá, e que voltassem para Ravena. Portanto, vivendo em tendas, Nastagio começou a levar a melhor e mais magnificente vida que já se viu, convidando ora estes, ora aqueles para cear ou almoçar, como era costume.
Certa sexta-feira, porém, quase chegava maio e o tempo estava belíssimo, ele começou a pensar naquela mulher cruel e, ordenando a todos os criados que o deixassem só para poder meditar mais à vontade, foi dando um passo após outro, sempre a pensar, e acabou por se transportar ao pinhal. Havia já quase passado a quinta hora do dia, e ele, tendo penetrado cerca de meia milha pelo pinhal, sem se lembrar de comer nem de coisa nenhuma, de repente teve a impressão de ouvir choro e lamentos altos de mulher; assim se desfizeram seus doces pensamentos, e ele, erguendo a cabeça para ver o que era, admirou-se por estar no pinhal; além disso, olhando à frente, viu chegar correndo por um bosquezinho denso, cheio de arbustos e espinheiros, em direção ao lugar onde estava, uma belíssima jovem nua, desgrenhada e toda arranhada por ramos e espinhos, chorando e gritando por piedade; ao lado dela, viu dois grandes e ferozes mastins, que a perseguiam implacavelmente e, sempre que a alcançavam, a mordiam com crueldade; atrás, viu chegar, montado num ginete negro, um cavaleiro moreno, de semblante muito irado, que, com um estoque na mão, a ameaçava de morte com palavras assustadoras e vis. Diante daquilo, ele se encheu de admiração e espanto e, sentindo compaixão da desventurada mulher, teve desejo de libertá-la da angústia e da morte, caso pudesse. Mas, estando sem armas, recorreu a um galho de árvore à guisa de porrete e começou a investir contra os cães e a enfrentar o cavaleiro. Mas o cavaleiro, vendo isso, gritou-lhe de longe:
– Nastagio, não se meta, deixe que os cães e eu façamos o que essa mulher malvada mereceu.
E, enquanto dizia isso, os cães agarraram fortemente a jovem pelos flancos e a detiveram; o cavaleiro chegou e apeou. Nastagio, aproximando-se dele, disse:
– Não sei quem é você, que me conhece; mas digo-lhe que é muita covardia um cavaleiro armado querer matar uma mulher nua e pôr os cães no seu encalço como se ela fosse uma fera selvagem; e sem dúvida eu a defenderei o quanto puder.
O cavaleiro então disse:
– Nastagio, fui de sua cidade, e você ainda era pequeno quando eu, que me chamava messer Guido degli Anastagi, estava muito mais apaixonado por essa mulher do que você está agora pela filha dos Traversari, e, por causa da atrocidade e da crueldade dela, a minha desgraça chegou a tal ponto que um dia, desesperado, me matei com este estoque que está vendo em minha mão e estou condenado às penas eternas. Não muito tempo depois, ela, que ficou felicíssima com minha morte, morreu também e, não se arrependendo do pecado da crueldade e da alegria que sentiu com os meus tormentos, por achar que não tinha havido pecado, mas merecimento, também foi condenada às penas do inferno e assim está. Pois, tão logo ela desceu ao inferno, recebemos os dois uma pena: ela está condenada a fugir de mim, e eu, que já a amei tanto, estou condenado a segui-la como inimiga mortal, e não como mulher amada; e, sempre que a alcanço, devo matá-la com este estoque que usei para me matar, abri-la pelas costas, arrancar do corpo o coração duro e frio, no qual nunca puderam entrar amor nem piedade e, como você verá em breve, dá-lo junto com as outras vísceras de comer a estes cães. Depois, não demora muito para que ela – conforme querem a justiça e o poder de Deus – ressurja como se nunca tivesse estado morta e recomece a dolorosa fuga, enquanto os cães e eu a seguimos. E todas as sextas-feiras a esta hora eu a alcanço aqui e aqui faço a carnificina que verá; e nos outros dias não pense que descansamos, mas eu a alcanço em outros lugares nos quais ela pensou ou agiu contra mim com crueldade; e eu, que passei de amante a inimigo, como está vendo, preciso segui-la dessa maneira durante tantos anos quantos foram o meses em que ela usou de crueldade contra mim. Por isso, deixe que execute a justiça divina, não queira opor-se àquilo que você não poderia combater.
Nastagio, ao ouvir essas palavras, intimidou-se totalmente e quase não lhe sobrou pelo do corpo que não se arrepiasse; então recuou e começou a olhar a mísera moça e a esperar, temeroso, o que o cavaleiro ia fazer. Este, terminando de falar, de estoque em punho arremeteu como cão raivoso contra a moça que, ajoelhada e fortemente retida pelos dois mastins, gritava por piedade, e feriu-a com toda a força no meio do peito, varando-a até o outro lado. A jovem, ao receber esse golpe, caiu de bruços, sempre chorando e gritando; e o cavaleiro, pegando uma faca, abriu-a nas costas e, extraindo-lhe o coração e todas as outras coisas em torno dele, atirou-o aos dois mastins, que o comeram imediatamente com muita fome. Não demorou muito para que a jovem, como se nada daquilo tivesse acontecido, se pusesse em pé de repente e começasse a fugir em direção ao mar, com os cães atrás, sempre a mordê-la; e o cavaleiro, voltando a montar e a empunhar seu estoque, começou a segui-la, de modo que em pouco tempo se afastaram e Nastagio deixou de vê-los.
Depois de ver essas coisas, Nastagio ficou um bom tempo entre apiedado e amedrontado; passado algum tempo, veio-lhe à mente que aquilo poderia lhe ser muito útil, pois ocorria todas as sextas-feiras; por isso, marcando bem o lugar, voltou até onde estavam seus empregados e, quando lhe pareceu oportuno, mandou chamar vários parentes e amigos e lhes disse:
– Durante muito tempo vocês me incentivaram a deixar de amar aquela minha inimiga e a pôr fim aos meus gastos; estou disposto a isso desde que me façam um favor, que é o seguinte: sexta-feira que vem, arranjem tudo para que messer Paolo Traversaro, esposa, filha e todas as parentes, bem como outras mulheres que queiram, venham almoçar aqui comigo. O motivo deste meu desejo vocês entenderão então.
Eles acharam que era coisa simples de fazer e prometeram que o fariam; e, voltando a Ravena, no momento oportuno convidaram as pessoas que Nastagio queria e, mesmo sendo difícil levar a sua amada, ela acabou indo com os outros. Nastagio mandou preparar um almoço magnífico e ordenou que as mesas fossem postas debaixo dos pinheiros ao redor daquele lugar onde ele vira a dilaceração da mulher cruel; e, convidando os homens e as mulheres a sentarem-se à mesa, organizou tudo de tal modo que a jovem amada se sentasse bem em frente ao local onde o fato deveria ocorrer.
Havia já chegado o último prato quando todos começaram a ouvir o desesperado estrépito da caçada da jovem e, espantando-se muito, perguntavam o que era aquilo; como ninguém soubesse dizer, levantaram-se todos e foram olhar o que seria; então viram a pobre moça, o cavaleiro e os cães, e não demorou muito para que estes chegassem aonde estavam os convidados. Então estes começaram a gritar para os cães e o cavaleiro, e muitos se adiantaram para ajudar a jovem, mas o cavaleiro, falando-lhes como falara a Nastagio, não só os fez recuar como também os encheu de pavor de espanto; e, fazendo o mesmo que fizera da outra vez, provocou triste pranto em todas as mulheres que ali estavam, como se aquilo fosse feito contra elas mesmas (e muitas havia lá que eram parentes da jovem sofredora e do cavaleiro, e que se lembravam do amor e da morte dele). Terminado aquilo tudo, depois que a mulher e o cavaleiro foram embora, todos os que haviam visto a cena começaram a conversar sobre muitas e várias coisas, mas entre os que mais tinham ficado assustados estava a cruel jovem que Nastagio amava e que vira e ouvira tudo distintamente e sabia que a si mesma mais que a qualquer outra pessoa aquelas coisas diziam respeito, pois se lembrava da crueldade de que sempre usara com Nastagio; de modo que já tinha a impressão de se ver a fugir dele, que a seguia irado, e de ter os mastins no seu encalço.
E foi tamanho o medo nela causado que, para evitar que aquilo lhe acontecesse, assim que se apresentou a ocasião oportuna (o que ocorreu naquela mesma noite), ela – em quem o ódio se transmudara em amor – mandou em segredo uma fiel camareira falar com Nastagio, pedindo-lhe em seu nome que fizesse o favor de ir falar com ela, pois estava disposta a fazer tudo o que fosse do seu agrado. Nastagio mandou dizer que aquilo lhe dava muito gosto, mas que, desde que fosse do agrado dela, ele queria ter sua vontade satisfeita com honra para ela, e que a vontade dele era tê-la por mulher. A jovem, sabendo que só dependera dela não ter sido mulher de Nastagio, mandou responder que aceitava. Assim, sendo ela mesma a mensageira, disse ao pai e à mãe que ficaria contente em ser esposa de Nastagio, com o que eles ficaram muito felizes.
No domingo seguinte Nastagio a desposou e, celebradas as bodas, viveu feliz com ela muito tempo. Aquele medo não deu ensejo apenas a esse bom efeito; ao contrário, todas as mulheres de Ravena ficaram tão amedrontadas, que a partir de então se tornaram muito mais compreensivas do que antes tinham sido com os desejos dos homens.
(Decameron; tradução de Ivone C. Benedetti)
(Ilustrações: Sandro Boticelli pintou 4 painéis ilustrando a história de Boccaccio:
1 - Nastagio degli Onesti encontra a mulher e o cavaleiro no pinhal de Ravena
2 - Nastagio degli Onesti - matando a mulher
3 - Nastagio degli Onesti - o banquete na floresta
4 - Nastagio degli Onesti - o casamento)
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