segunda-feira, 5 de agosto de 2019

O PORÃO, de J. M. Coetzee






Nevou forte durante a noite. Saindo ao ar livre, ele fica aturdido pela súbita claridade. Para e se agacha, dominado pela sensação de estar girando, não da esquerda para a direita, mas de cima para baixo. Se tentar se mover, parece que será impelido para a frente e cairá. 

Isso só pode ser o prelúdio de um acesso. A crise vem se anunciando há dias, em sensações de tontura e palpitações, em exaustão e irritabilidade. A não ser que toda a situação em que ele vive possa ser chamada de crise. 

Parado na entrada do número 63, preocupado com o que acontece dentro de si, ele nada escuta, até que seu braço é agarrado com força. Com um susto, ele abre os olhos. Dá de cara com Nietcháiev. 

Nietcháiev sorri, mostrando os dentes. Seus furúnculos estão lívidos por causa do frio. Ele tenta se soltar, mas seu captor apenas o puxa para mais perto. 

“Isso é uma idiotice”, ele diz. “Deveria ter deixado Petersburgo enquanto podia. Certamente será preso.” 

Segurando-o pelo braço com uma das mãos e pelo pulso com a outra, Nietcháiev o faz girar. Lado a lado, como um cão relutante e seu dono, caminham pela rua Svechnoi. 

“Mas talvez o que você deseje secretamente é ser preso.” 

Nietcháiev usa um quepe preto cujas abas balançam quando ele mexe a cabeça. Fala num tom calmo, monótono. “Você está sempre atribuindo às pessoas motivos perversos, Fiódor Mikhailovitch. As pessoas não são assim. Pense um pouco: por que eu desejaria ser apanhado e preso? Além disso, quem olharia duas vezes para uma dupla como nós, pai e filho passeando?” E ele lhe dá um sorriso bem-humorado. 

Alcançam o final da Svechnoi; com uma leve pressão, Nietcháiev o conduz para a direita. 

“Tem alguma ideia do que sua amiga está passando?” 

“Minha amiga? Quer dizer a finlandesa? Ela não vai ceder. Confio nela.” 

“Não diria isso se a tivesse visto.” 

“O senhor a viu?” 

“A polícia a levou ao meu apartamento para me identificar.” 

“Não importa, não temo por ela; é corajosa, fará seu dever. Ela teve a oportunidade de conversar com a filhinha de sua senhoria?” 

“Com Matryona? Por que deveria?” 

“Por nada, por nada. Ela gosta de crianças. Ela mesma é uma criança: muito simples, muito franca.” 

“Fui interrogado pela polícia. Serei interrogado novamente. Não escondi nada; não esconderei nada. Estou lhe avisando, você não pode usar Pável contra mim.” 

“Não preciso usar Pável contra o senhor. Posso usar o senhor contra si mesmo.” 

Estão na rua Sadovaya, no coração do Mercado da Palha. Ele finca os calcanhares e para. “Você deu a Pável uma lista de pessoas que queria matar”, diz. 

“Já conversamos sobre a lista, não se lembra? Era uma de muitas listas. Vários exemplares de muitas listas.” 

“Não foi isso que perguntei. Quero saber...” 

Nietcháiev atira a cabeça para trás e ri. Um jato de vapor sai de sua boca. “O senhor quer saber se está incluído!?” 

“Quero saber se foi por isso que Pável se desentendeu com você. Porque viu que eu estava marcado e se recusou.” 

“Que ideia mais estrambótica, Fiódor Mikhailovitch! É claro que o senhor não está em lista nenhuma! O senhor é uma pessoa valiosa demais. De qualquer forma, aqui entre nós, não faz diferença que nomes estão nas listas. O que importa é que eles saibam que a desforra está a caminho e tremam de medo. O povo entende uma coisa dessas, e a aprova. O povo não está interessado em casos individuais. Desde tempos imemoriais o povo sofre; agora exige que seja a vez de eles sofrerem. Portanto, não se preocupe. Sua hora ainda não chegou. Na verdade, ficaríamos contentes de ter a colaboração de pessoas como o senhor.” 

“Pessoas como eu? Quem são as pessoas como eu? Espera que eu escreva panfletos para você?” 

“É claro que não. Seu talento não é para panfletos, o senhor é sincero demais para isso. Vamos andando. Quero levá-lo a certo lugar. Quero plantar uma semente em sua alma.” 

Nietcháiev pega seu braço e continuam a andar pela rua Sadovaya. Dois oficiais dos Dragões, de casacos verde-oliva, aproximam-se. Nietcháiev dá passagem, erguendo a mão em continência. Os oficiais fazem um gesto de cabeça. 

“Li seu livro Crime e castigo”, ele continua. “Foi ele que me deu a ideia. É um livro excelente. Nunca li nada parecido. Havia trechos que me assustavam. A doença de Raskolnikov, e assim por diante. O senhor deve ter escutado elogios de muita gente. Ainda assim, digo-lhe...” Ele fecha a mão sobre o peito e depois a afasta do corpo, como se estivesse arrancando o coração. 

A estranheza do gesto parece surpreendê-lo, pois ele se ruboriza. É o primeiro gesto não calculado que vê em Nietcháiev, e isso o surpreende. Um coração virgem, ele pensa, chocando-se consigo mesmo em seu ardor. Como aquela criatura do doutor Frankenstein ganhando vida. Ele sente um primeiro toque de pena daquele rapaz tenso, nada atraente. 

Agora estão no centro do Mercado da Palha. Nietcháiev o conduz pelas ruas estreitas, repletas de balcões de vendedores e carrinhos de mão, em meio a um forte cheiro de humanidade. 

Param junto a uma porta. Nietcháiev tira do bolso um cachecol de lã azul. 

“Devo lhe pedir que aceite ser vendado”, diz. 

“Aonde está me levando?” 

“Quero lhe mostrar uma coisa.” 

“Mas aonde está me levando?” 

“Aonde moro atualmente, entre o povo. Será mais fácil para nós dois. O senhor poderá relatar com a consciência limpa que não sabe onde me encontrar.” 

Com a venda amarrada, ele pode voltar ao prazer da vertigem. Nietcháiev o dirige; ele leva esbarrões dos pedestres e cai uma vez, mas o ajudam a levantar-se. 

Deixam a rua e entram em um pátio. De uma taverna vêm sons de canto, de um violão e gritos de alegria. Há um odor de esgoto e restos de peixe. 

Sua mão é conduzida para um corrimão. “Pise com cuidado”, diz Nietcháiev. “Está tão escuro aqui que não adiantaria tirar a venda.” 

Ele arrasta os pés como um velho. O ar está úmido e parado. De algum lugar vem o ruído de água pingando lentamente. É como entrar numa caverna. 

“Chegamos”, diz Nietcháiev. “Cuidado com a cabeça.” 

Eles param. Nietcháiev remove a venda. Estão sob uma escada de madeira sem iluminação. Diante deles há uma porta fechada. Nietcháiev bate quatro vezes, depois três. Esperam. Não há ruído, exceto o da água pingando. Nietcháiev repete o código. Sem resposta. “Teremos de esperar”, ele diz. “Venha.” Ele bate na porta do outro lado da escada, abre-a e deixa-o passar. 

Entram num porão tão baixo que o obriga a curvar-se, iluminado apenas por uma pequena janela forrada de papel, à altura da cabeça. O piso é de pedra; mesmo de pé ele pode sentir o frio insinuar-se pelas botas. Canos correm pelo rodapé. Há um cheiro de gesso molhado, de tijolos molhados. Embora seja improvável, parece haver cortinas d’água escorrendo pelas paredes. 

Na extremidade do porão foi estendida uma corda, da qual pendem roupas tão encardidas quanto o próprio lugar. Sob o varal há uma cama, na qual estão sentadas três crianças em posições idênticas, de costas para a parede, com os joelhos encolhidos até o queixo, os braços envolvendo os joelhos. Estão descalças e vestem camisolas de algodão. A mais velha tem os cabelos engordurados e despenteados; o muco cobre seu lábio superior, que ela lambe languidamente. Uma das outras crianças é apenas um bebê. Não há movimento algum, nenhum som deles. Com os olhos remelentos e sem curiosidade, observam os intrusos. 

Nietcháiev acende uma vela e a coloca num nicho na parede. 

“É aqui que você mora?” 

“Não. Mas isso não importa.” Ele começa a andar de um lado para outro. Novamente tem a impressão de uma energia enjaulada. Imagina Pável ao lado dele. Pável não tinha esse ímpeto. Já não é tão difícil entender por que Pável o aceitou como líder. 

“Deixe-me lhe dizer por que o trouxe aqui, Fiódor Mikhailovitch”, Nietcháiev começa. “No quarto ao lado temos uma prensa manual. Ilegal, é claro. O idiota que tem a chave saiu, infelizmente, apesar de ter prometido esperar aqui. Ofereço-lhe para usar a prensa antes de deixar Petersburgo. Seja o que o senhor queira dizer, podemos distribuir milhares de cópias em questão de horas. Em uma ocasião como esta, quando estamos à beira de grandes coisas, uma contribuição do senhor pode ter um efeito enorme. Seu nome é respeitado, especialmente entre estudantes. Se o senhor estiver disposto a escrever, com seu nome verdadeiro, a história de como seu enteado perdeu a vida, talvez os estudantes saiam às ruas em revolta.” Ele para de andar e o encara diretamente. “Sinto muito que Pável Isaev tenha morrido. Ele era um bom camarada. Mas não podemos olhar só para o passado. Devemos usar sua morte para acender uma chama. Ele concordaria comigo. Ele lhe pediria para fazer bom uso de sua raiva.” 

Enquanto diz essas palavras, parece se dar conta de que foi longe demais. Corrige-se, mas sem convicção. “Sua raiva e sua dor, quero dizer. Assim ele não terá morrido em vão.” 

Acender uma chama: é demais! Ele se vira para sair. Mas Nietcháiev o segura e puxa para trás. “O senhor ainda não pode sair!”, diz entre os dentes cerrados. “Como pode abandonar a Rússia e voltar para uma desprezível existência burguesa? Como pode ignorar um espetáculo como este”, ele acena com a mão, indicando o porão, “um espetáculo que pode ser multiplicado mil vezes, um milhão de vezes por este país? O que aconteceu com o senhor? Não lhe restou nenhuma centelha? Não vê o que está diante de seus olhos?” 

Ele se vira e examina o porão úmido. O que vê? Três crianças com frio, famintas, esperando o anjo da morte. “Vejo tão bem quanto você”, ele diz. “Até melhor.” 

“Não! O senhor acha que vê, mas não! Ver não é apenas questão de olhar, é uma questão de compreender corretamente. Tudo o que o senhor vê são as miseráveis circunstâncias materiais deste porão, no qual nem mesmo um rato ou uma barata deveriam ser condenados a viver. Vê três crianças patéticas e esfaimadas; se esperar, também verá a mãe delas, que para trazer para casa uma crosta de pão tem de se vender nas ruas. O senhor está vendo como vivem os mais pobres dos pobres de Petersburgo. Mas isso não é ver, isso é apenas um detalhe! O senhor não identifica as forças que determinam a vida a que estas pessoas estão condenadas! Forças: é para isso que o senhor é cego!” 

Com um dedo, ele desenha uma linha desde o chão a seus pés (inclina-se para tocar o chão, e seu dedo fica molhado), passando pela janela obscura até o céu. 

“As linhas terminam aqui, mas onde o senhor acha que começam? Começam nos ministérios, no tesouro, nas bolsas de valores e nos bancos mercantis. Começam nas chancelarias da Europa. As linhas de força começam lá e se irradiam em todas as direções, terminando em porões como este, nestas pobres vidas subterrâneas. Se o senhor escrevesse isso, realmente despertaria o mundo. Mas é claro que — ele dá uma risada amarga —, se escrevesse, não lhe permitiriam publicar. Eles o deixarão escrever histórias sobre o mudo sofrimento dos pobres, para tranquilizar seu coração, e o aplaudirão, mas a verdade real jamais o deixarão publicar. É por isso que estou lhe oferecendo esta prensa. Comece! Conte-lhes sobre seu enteado e por que ele foi sacrificado.” 

Sacrificado. Talvez sua mente tenha estado vagando, talvez ele esteja apenas cansado, mas não compreende como ou por quem Pável foi sacrificado. Tampouco se emociona com a veemência sobre as linhas. E não está disposto a ser repreendido. “Eu vejo o que vejo”, diz friamente. “Não vejo linha alguma.” 

“Então poderia muito bem continuar vendado! Quer que lhe dê uma aula? O senhor está perturbado pelo rosto hediondo da fome, da doença e da miséria. Mas a fome, a doença e a miséria não são o inimigo. São apenas formas em que as forças reais se manifestam no mundo. A fome não é uma força, é um meio, como a água é um meio. Os pobres vivem em sua fome como os peixes vivem na água. As forças reais têm origem nos centros de poder, no conluio de interesses que neles ocorre. O senhor me disse que tinha medo de que seu nome estivesse em nossas listas. Garanto-lhe mais uma vez, juro para o senhor, não está. Nossas listas indicam apenas as aranhas e as sanguessugas que estão no centro das teias. Quando essas aranhas e suas teias forem destruídas, crianças como estas ficarão livres. Em toda a Rússia as crianças poderão sair de seus porões. Haverá comida, roupas e casas, casas decentes para todos. E também haverá trabalho, muito trabalho! A primeira tarefa será demolir os bancos, as bolsas de valores, os ministérios, arrasá-los de maneira tão completa que jamais possam ser reconstruídos.” 

As crianças, que em princípio pareciam escutar, perderam o interesse. A menor escorregou de lado e dormiu no colo da irmã. A menina é mais jovem que Matryona, mas também, ele se espanta, mais apática, mais aquiescente. Já teria começado a dizer sim aos homens? 

Algo em sua observação silenciosa também parece estranho. Nietcháiev não falou com elas desde que chegou, ou deu qualquer sinal de conhecê-las. Espécimes da pobreza urbana — não passariam disso para ele? Quer que lhe dê uma aula? Ele se lembra do comentário malicioso da princesa Obolenskaya: que o jovem Nietcháiev quis ser professor, mas não passou nos exames e então se dedicou à revolução para vingar-se dos examinadores. Seria Nietcháiev apenas mais um coração pedagógico, como seu mentor Jean-Jacques? 

E as linhas. Ele ainda não tem certeza do que Nietcháiev quis dizer com “linhas”. Não é preciso que lhe digam que os banqueiros acumulam dinheiro, que a ambição faz o coração encolher. Mas Nietcháiev insiste em mais alguma coisa. O quê? Séries de números passando pela janela de papel e atingindo aquelas crianças em seus estômagos vazios? 

Sua cabeça começa a girar novamente. Dar-lhe uma aula. Ele respira fundo. “Tem cinco rublos?”, pergunta. 

Nietcháiev apalpa o bolso distraidamente. 

“Essa menina...”, ele mostra a criança. “Se você lhe der um bom banho, cortar seu cabelo e lhe puser um vestido novo, posso lhe indicar um estabelecimento onde esta noite, esta mesma noite, ela poderia lhe conseguir cem rublos por seu investimento de cinco. E se você a alimentar adequadamente, a mantiver limpa e não a usar demais ou deixar que adoeça, poderia continuar ganhando cinco rublos por noite durante cinco anos, pelo menos. Facilmente.” 

“O quê?...” 

“Escute-me. Há crianças suficientes nos porões de Petersburgo, e cavalheiros suficientes nas ruas, com dinheiro no bolso e atração por carne jovem, para trazer prosperidade a todos os pobres da cidade. Só é preciso ter cabeça fria. Nas costas de seus filhos, o povo dos porões poderia ser erguido à luz do dia.” 

“Qual é o sentido dessa parábola depravada?” 

“Eu não falo em parábolas. Como você, sinto-me ultrajado pelo sofrimento dos inocentes. Não o estou enganando, Serguei Gennadevitch. Durante muito tempo não pude acreditar que meu filho fosse seu seguidor. Agora começo a compreender o que ele viu em você. Você nasceu com o espírito da justiça, e ele ainda não foi sufocado. Tenho certeza de que se essa criança, essa garotinha, fosse atraída para um beco por um dos libertinos de Petersburgo, e você os encontrasse, se a estivesse vigiando, por exemplo, não hesitaria em cravar uma faca nas costas do homem para salvá-la. Ou, se fosse tarde demais para salvá-la, pelo menos para vingá-la. 

“Isto não é uma parábola: é uma história sobre as crianças e suas utilidades. Com a ajuda de uma criança, as ruas de Petersburgo poderiam se livrar de uma sanguessuga, talvez até de um banqueiro sanguessuga. E no devido tempo a esposa e os filhos do morto também poderiam acabar nas ruas, provocando assim uma nova medida de nivelamento.” 

“Seu porco!” 

“Não, você está me interpretando mal na história. Não sou o porco, não sou o homem que é esfaqueado como um porco no beco. Volto a dizer: não é uma parábola, mas uma história. Histórias podem versar sobre outras pessoas: você não é obrigado a encontrar nelas um lugar para si mesmo. Mas se o espírito da justiça não lhe permite ignorar o sofrimento de crianças inocentes, mesmo em histórias, há várias outras maneiras de punir as aranhas que as atacam. Não é necessário ser criança, por exemplo, para atrair um homem para um beco escuro. Basta raspar a barba, empoar o rosto, pôr um vestido e ter o cuidado de ficar na sombra.” 

Então Nietcháiev sorri, ou melhor, range os dentes. “Isto parece saído de um livro! É tudo parte do seu perverso faz-de-conta.” 

“Talvez. Mas ainda tenho uma pergunta a fazer. Hoje você tem liberdade para se disfarçar e ser quem você quiser, seguir os desígnios do espírito de justiça (espírito que, acredito, ainda habita seu coração). Qual será a situação amanhã, quando a tempestade da Vingança do Povo terminar seu trabalho e todos estiverem nivelados? Você ainda estará livre para ser quem desejar? Cada um de nós estará finalmente livre para ser quem desejar?” 

“Não haverá mais necessidade disso.” 

“Necessidade de se fantasiar? Nem mesmo no carnaval?” 

“Que conversa estúpida. Não haverá necessidade de carnaval.” 

“Nada de carnaval? Nem de feriados?” 

“Haverá dias de recreação. As pessoas terão a opção de descansar ou ir para o campo ajudar na colheita.” 

“Sim, já ouvi falar na época da colheita. Sem dúvida cantaremos enquanto trabalhamos. Mas volto à minha pergunta. E eu, qual é meu lugar na sua utopia? Ainda terei permissão para me vestir de mulher, se o espírito me invadir, ou como um jovem de terno branco, ou terei permissão para apenas um nome, um endereço, uma idade, uma filiação?” 

“Não sou eu quem vai lhe dizer. O povo lhe dará a resposta. O povo lhe dirá o que é permitido.” 

“Mas o que diz você, Serguei Gennadevitch? Pois se você não é alguém do povo, quem é e que futuro terá? Ainda terei a liberdade de passar-me por quem quer que eu deseje, por um rapaz, por exemplo, que passa as horas vagas ditando listas de pessoas de quem não gosta, e inventando punições sanguinolentas para elas, ou como o vendedor cuja função é encomendar serragem para pôr sob a guilhotina? Terei essa liberdade? Ou devo ter em mente o que o ouvi dizer em Genebra: que se tivéssemos Copérnicos suficientes, que se surgisse outro Copérnico, deveriam lhe arrancar os olhos?” 

“O senhor está louco. O senhor não é Copérnico.” 

“Tem razão, não sou Copérnico. Quando olho para o céu vejo apenas as estrelas que nos observavam quando nascemos e nos vigiarão quando morrermos, por mais que nos disfarcemos, por mais profundos que sejam os porões onde nos escondermos.” 

“Não estou me escondendo. Simplesmente me fundi com as pessoas invisíveis desta cidade e com as condições que me produziram. Só que o senhor não consegue ver essas condições.” 

“Posso ser franco? Você está dizendo absurdos. Talvez eu não veja linhas e números no céu, mas não sou cego.” 

“O pior cego é aquele que não quer ver! O senhor vê crianças esfaimadas num porão; recusa-se a ver o que determina as condições de vida dessas crianças. Como pode chamar isso de ver? Mas, é claro, o senhor e as pessoas que lhe pagam têm interesse em crianças famintas, de olhos vazios. É sobre isso que o senhor e elas gostam de ler: crianças tristes, de olhar vazio e vozinhas pipiantes. Bem, vou lhe contar a verdade sobre a fome. Quando olham para o senhor, sabe o que essas crianças de olhar vazio veem? Pergunte a elas! Vou lhe dizer. Veem caras gordas e uma língua suculenta. Esses inocentes cairiam como ratos sobre o senhor e o devorariam se não soubessem que é bastante forte para derrotá-las. Mas o senhor prefere não reconhecer isso. Prefere ver três anjinhos numa breve visita à Terra. 

“Quanto mais falo com o senhor, Fiódor Mikhailovitch, menos entendo como pode ter escrito sobre Raskolnikov. Raskolnikov pelo menos estava vivo, até sucumbir à febre ou fosse o que fosse. Sabe como o vejo agora? Como um cavalo velho com viseiras, andando em círculos, empurrando a mesma velha história todos os dias. Que direito tem de me falar sobre disfarces? O senhor não conseguiria disfarçar-se para salvar sua vida. Não passa de um velho ressecado, um cavalo velho e seco no fim da vida. Não é hora de tentar compartilhar a existência dos oprimidos, em vez de sentar-se em casa escrevendo sobre eles e contando seu dinheiro? Mas vejo que está começando a se impacientar. Suponho que queira correr para casa e colocar este porão e estas crianças num caderno antes que a memória falhe. O senhor me enoja!” 

Ele faz uma pausa, aproxima-se, espia. “Fui longe demais, Fiódor Mikhailovitch?”, continua mais suavemente. “Estou ultrapassando os limites da decência, revelando o que não deve ser revelado, que enxergamos através do senhor, todos nós, e também seu enteado? Por que esse silêncio? A faca chegou muito perto do osso?” Ele tira o cachecol do bolso. “Devemos colocar novamente a venda?” 

Perto do osso? Sim, talvez. Não a acusação em si, mas a voz que ele escuta por trás dela: a de Pável. Pável queixando-se a seu amigo, e seu amigo guardando as palavras como veneno. 

Desanimado, ele afasta o cachecol. “Por que está tentando me provocar?”, indaga. “Não me trouxe aqui para me mostrar sua prensa, ou para me mostrar crianças esfaimadas. São apenas pretextos. O que quer realmente de mim? Quer me deixar furioso a ponto de sair e entregá-lo à polícia? Por que não deixou Petersburgo? Em vez de fugir como uma pessoa sensata, comporta-se como Jesus diante de Jerusalém, esperando pela chegada de um asno para entregá-lo nas mãos de seus perseguidores. Está querendo que eu faça o papel do asno? Imagina-se um príncipe escondido, o príncipe e o mártir, esperando ser chamado. Quer roubar a Páscoa de Jesus. Esta é a segunda vez que me tenta, e não estou tentado.” 

“Pare de mudar de assunto! Estamos falando sobre a Rússia, não sobre Jesus. E pare de tentar me culpar. Se me trair, será apenas porque me odeia.” 

“Eu não o odeio. Não tenho motivos para isso.” 

“Sim, tem! Quer vingar-se de mim porque eu abro os olhos das pessoas para o que o senhor realmente é, o senhor e sua geração.” 

“E como somos realmente, eu e minha geração?” 

“Vou lhe dizer. Seu tempo terminou. Só que, em vez de sair tranquilamente de cena, querem arrastar o mundo inteiro consigo. Ressentem-se porque as rédeas estão passando às mãos de homens mais jovens e mais fortes, que farão um mundo melhor. É assim que vocês são na verdade. E não me venha com a história de que o senhor foi um revolucionário mandado para a Sibéria por causa de suas opiniões. Sei com certeza que mesmo na Sibéria o senhor foi tratado como um aristocrata. Não partilhou os sofrimentos do povo, foi tudo uma farsa. Vocês, velhos, me enojam! No dia em que eu fizer trinta e cinco anos, darei um tiro na cabeça, juro!” 

Essas últimas palavras saíram com uma força tão petulante que ele não consegue evitar um sorriso; o próprio Nietcháiev fica rubro de surpresa. 

“Espero que até lá tenha a oportunidade de ser pai, para que saiba como é beber deste cálice.” 

“Nunca serei pai”, Nietcháiev murmura. 

“Como sabe? Não pode ter certeza. Tudo o que o homem faz é plantar a semente; depois disso ela tem vida própria.” 

Nietcháiev sacode a cabeça decididamente. O que ele quer dizer? Que não planta sua semente? Que fez votos de castidade, como Jesus? 

“É impossível ter certeza”, ele repete suavemente. “A semente torna-se filho, o príncipe torna-se rei. Quando um dia você se sentar no trono (se ainda não tiver estourado seus miolos), e a Terra estiver cheia de principezinhos, escondidos em porões, tramando contra você, o que vai fazer? Enviar soldados para decepar a cabeça deles?” 

Nietcháiev sorri com desdém. “Está tentando me enraivecer com suas parábolas idiotas. Sei sobre seu próprio pai. Pável Isaev me contou que era um tirano mesquinho, que todos o odiavam, até que seus próprios camponeses o mataram. O senhor acha que porque o senhor e seu pai se odiavam a história do mundo consiste apenas em pais e filhos que guerreiam entre si. Não entende o significado da revolução. Revolução é o fim de tudo o que é velho, incluindo pais e filhos. É o fim das heranças e dinastias, e continua se renovando, se for a verdadeira revolução. A cada geração a velha revolução é superada e a história recomeça. Essa é a ideia nova, a verdadeira ideia nova. Ano Um. Carte blanche. Quando tudo é reinventado, tudo apagado e renascido: lei, moral, família, tudo. Quando todos os prisioneiros são libertados, todos os crimes perdoados. A ideia é tão tremenda que vocês não conseguem entender, o senhor e sua geração. Ou melhor, compreendem-na bem demais e querem sufocá-la no berço.” 

“E o dinheiro? Quando você perdoar os crimes, redistribuirá o dinheiro?” 

“Faremos mais que isso. De tempos em tempos, quando as pessoas menos esperarem, declararemos inválido o dinheiro existente e imprimiremos um novo. Esse foi o erro dos franceses: permitir que o antigo dinheiro continuasse circulando. Os franceses não fizeram uma verdadeira revolução porque não tiveram a coragem de ir até o fim. Livraram-se dos aristocratas, mas não eliminaram a antiga maneira de pensar. Em nossas escolas ensinaremos o modo de pensar do povo, que foi reprimido todo esse tempo. Todos voltarão à escola, até mesmo os professores. Os camponeses serão professores e os professores serão alunos. Em nossas escolas formaremos novos homens e novas mulheres. Todos renascerão com um novo coração.” 

“E Deus? O que Deus pensará disso?” 

O rapaz dá uma risada de puro prazer. 

“Deus? Deus terá inveja.” 

“Então acreditam nisso?” 

“É claro que acreditamos! Senão, de que valeria? Bastaria incendiar tudo, transformar o mundo em cinzas. Não; nós iremos até Deus, nos colocaremos diante de seu trono e o dispensaremos. E ele virá! Ele não terá alternativa, terá de escutar. Então estaremos todos juntos, finalmente em condições de igualdade.” 

“E os anjos?” 

“Os anjos ficarão à nossa volta em círculos, cantando hosanas. Os anjos estarão em êxtase. Também serão libertados, para andar pela Terra como gente comum.” 

“E as almas dos mortos?” 

“O senhor faz tantas perguntas! As almas dos mortos também, Fiódor Mikhailovitch, se quiser. Teremos as almas dos mortos caminhando novamente pela Terra. Pável Isaev também, se quiser. Não há limites para o que pode ser feito.” 

Que charlatão! Mas ele não sabe mais quem está no comando, se ele está brincando com Nietcháiev ou Nietcháiev com ele. Todas as barreiras parecem estar desmoronando ao mesmo tempo: a barreira das lágrimas, a barreira do riso. Se Anna Serguêievna estivesse ali — o pensamento surge espontaneamente —, poderia lhe dizer as palavras que faltaram todo esse tempo. 

Ele dá um passo à frente, e com uma força que parece a de um gigante abraça Nietcháiev. Puxando o rapaz, prendendo seus braços ao lado do corpo, aspirando o cheiro acre de sua pele furunculosa, ele o beija nas faces esquerda e direita. Tocando-se os quadris e os peitos, continua a abraçá-lo. 

Há um ruído de passos na escada. Nietcháiev se desprende. “Então chegaram!”, exclama. Seus olhos brilham em triunfo. Ele se volta. Na entrada está uma mulher vestida de preto, com um discrepante chapeuzinho branco. Na luz difusa, através das lágrimas, ele não consegue definir sua idade. 

Nietcháiev parece desapontado. “Ah!”, diz. “Desculpe-nos! Entre!” 

Mas a mulher continua onde está. Debaixo do braço traz algo embrulhado num pano branco. O nariz das crianças é mais aguçado que o dele. De repente, sem dizer palavra, elas descem da cama e passam pelos dois homens. A garota abre o pano e o cheiro de pão fresco invade o quarto. Sem uma palavra, ela parte pedaços e os coloca nas mãos de seus irmãos. Encostadas à saia da mãe, com os olhos vagos, elas mastigam. Como animais, ele pensa: sabem de onde vem a comida e não se importam.  



(O mestre de Petersburgo; tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves) 



(Ilustração: Debora Arango (1907-2005), lunch of the poor)



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