domingo, 11 de agosto de 2019

A MORTE DE GEORGE, de Philip Roth





Dizem que eu sou "autocomplacente"— eles, que não são autocomplacentes. Os torturados, é claro, de mim só querem distância. Sem dúvida, nenhum homem casado jamais se abre comigo. Com eles não há nenhuma afinidade. Talvez eles troquem confidências uns com os outros, se bem que tenho lá minhas dúvidas — não sei até onde vai a solidariedade masculina hoje em dia. O heroísmo deles não se limita a suportar estoicamente suas renúncias cotidianas, porém exige também que exibam uma imagem falsa de suas vidas, do modo mais enfático. Suas vidas verdadeiras, as vidas ocultas, só aparecem para seus terapeutas. Não estou dizendo que todos eles estejam contra mim e queiram ver minha caveira por eu levar a vida que levo, mas creio que não há dúvida de que não sou universalmente admirado. Agora que George morreu, só encontro solidariedade em mulheres como Elena, que já foram minhas namoradas. 

Elas não podem me oferecer o que George me dava, mas ao que parece eu não exijo demais da tolerância delas. 

A idade dele? George estava com cinqüenta e cinco. Derrame. Teve um derrame. Eu estava presente quando a coisa aconteceu. Eu e mais oitocentas pessoas. Foi no auditório da Hebraica da 92a Street em setembro. Uma noite de sábado, em setembro. Ele ia fazer uma leitura de poemas. Era eu que o estava apresentando no palco. Ele estava sentado numa cadeira nos bastidores, gostando da minha apresentação, concordando com a cabeça. Com aquele seu terno apertado de agente funerário, ele espichava as pernas compridas e magras — George, aquele homem flexível, de terno, era como um cabide de arame, aquele irlandês moreno de nariz adunco. Pelo visto, teve o derrame naquele exato momento, sentado com seus seis livros de poesia no colo, esperando a hora em que seria chamado, com aquele terno preto lúgubre, e deixaria a platéia siderada. Pois quando as pessoas começaram a aplaudir e ele fez menção de se levantar, seu corpo despencou da cadeira, que caiu por cima dele. Sua obra ficou toda espalhada pelo chão. Os médicos achavam que ele nem ia conseguir sair do hospital. Mas ele agüentou firme, inconsciente, por uma semana, quando então a família o levou para morrer em casa. 

Em casa, também ficou inconsciente a maior parte do tempo. O lado esquerdo paralisado. As cordas vocais paralisadas. Um bom pedaço de seu cérebro simplesmente fora para o espaço. O filho dele, Tom, é médico, e foi ele que administrou a morte do pai, o que levou mais nove dias. O filho tirou os tubos todos, o cateter, desligou tudo. Sempre que George abria os olhos eles o recostavam na cama e lhe davam água para beber, gelo para chupar. Tentavam cercá-lo de todos os confortos possíveis, enquanto ele agonizava num ritmo vagaroso, torturante. 

Todas as tardes, ao final do meu dia, eu ia até Pelham visitá-lo. George havia removido a família para Pelham a fim de que, durante todos aqueles anos em que lecionava na New School, pudesse ter liberdade em Manhattan. Às vezes havia até cinco ou seis carros estacionados quando eu chegava lá. Os filhos se revezavam, de vez em quando levando um ou outro neto. 

Havia uma enfermeira e, já perto do final, uma especialista em pacientes terminais. Kate, a mulher de George, estava lá o tempo todo, naturalmente. Eu ia até o quarto, onde haviam instalado uma cama de hospital, e pegava na mão dele, a mão do lado em que ele ainda sentia alguma coisa, e ficava quinze, vinte minutos sentado à seu lado, mas ele estava sempre fora do ar. Respirando fundo. Gemendo. 

A perna boa vez por outra estremecia um pouco, mas era só isso. Eu passava a mão no cabelo dele, pegava-lhe no rosto, apertava-lhe os dedos, mas nada. 

Ficava ali na esperança de que talvez ele voltasse a si e me reconhecesse; depois eu ia para casa. Então, uma tarde, cheguei lá e fui informado de que finalmente ele estava acordado. Pode ir, pode ir, me disseram. 

Haviam recostado George nos travesseiros, e a cama estava um pouco levantada. A filha dele, Betty, dava-lhe gelo. Quebrava pequenos estilhaços de gelo com os dentes e os inseria na boca do pai. George tentava mastigá-los no lado da boca que ainda funcionava. Parecia já quase morto, magérrimo, porém os olhos estavam abertos, e ele se concentrava o quanto ainda lhe era possível concentrar-se no ato de mastigar gelo. Kate estava parada à porta olhando para ele, uma mulher imponente, de cabelo branco, quase tão alta quanto George, porém mais volu-mosa do que da última vez que eu a vira, e com um ar muito mais cansado. Era rechonchuda, mas atraente, irônica, rija, e irradiava uma espécie de cordialidade teimosa — assim era Kate, já beirando a velhice. Uma mulher que jamais fugia da realidade, que agora parecia completamente exausta, como se houvesse combatido em sua última batalha e tivesse sido derrotada. 

Tom trouxe um pano úmido do banheiro. "Quer se limpar, pai?", disse ele. 

"Será que ele entende?", perguntei a Tom. "Ele ainda entende alguma coisa?" 

"Tem horas", respondeu Tom, "que ele parece entender. Mas depois passa." 

"Há quanto tempo ele está acordado?" "Mais ou menos meia hora. Vai. Fala com ele, David. Ele parece que curte ouvir vozes." 

Curtir? Uma palavra estranha. Mas Tom, em qualquer situação, é sempre o médico jovial. 

Aproximei-me do lado de George que não estava paralisado enquanto Tom limpava seu rosto com o pano úmido. George tirou o pano do filho — para espanto geral, estendeu a mão boa, agarrou o pano e o enfiou na boca. "Ele está muito seco", alguém observou. George enfiou a ponta do pano na boca e começou a chupá-la. Quando tirou, havia algo grudado nela. Parecia um pedaço do palato mole. Betty sufocou um grito quando viu aquilo, e a especialista em pacientes terminais, que também estava no quarto, pôs a mão nas costas de Betty, dizendo: "Não é nada. A boca dele está muito seca, é só um pouco de carne ressecada". 

A boca de George estava torta, aberta, aquela boca sofrida dos moribundos, porém seus olhos estavam fixos, parecia mesmo haver algo por trás deles, algo de George que ainda resistia. 

Como aquela parede quebrada que permanece em pé depois de uma explosão. Com a mesma força irritada com que arrancara o pano de Tom, ele afastou o lençol que o cobria e começou a puxar o fecho de velcro de sua fralda, tentando arrancá-la, exibindo aqueles palitos melancólicos que outrora tinham sido suas pernas. O filamento de tungstênio quebrado dentro de uma lâmpada queimada — era isso que as pernas dele pareciam. Tudo nele, tudo que era de carne e osso, me fazia pensar em seres inanimados. 

"Não, não", disse Tom, "deixa, pai. Está bem assim." Mas George não parava. Continuava puxando, irritado, tentando em vão arrancar a fralda. Não conseguindo, levantou a mão e, meio que rosnando, apontou para Betty. "O quê?", ela indagou. "Não entendi. O que é que você quer? O quê, paizinho?" Os ruídos que George emitia eram indecifráveis, mas seus gestos deixavam claro que ele queria que a filha se aproximasse tanto quanto possível. Quando Betty obedeceu, ele estendeu o braço, colocou-o nas costas dela e puxou-a para a frente para poder beijá-la na boca. "Ah, sim, papai", disse ela, "você é o melhor pai do mundo, sim, o melhor de todos." O que causava espanto era aquela força toda brotar de dentro de George depois de tantos dias que ele passara deitado, inerte e descarnado, sobrevivendo sabe-se lá como, aparentemente nas últimas — a força considerável com que puxara Betty para junto de si e agora tentava falar. Talvez, pensei, eles não devessem deixá-lo morrer. E se ainda restar mais dele do que todo mundo pensa? E se for isso que ele está querendo demonstrar? E se em vez de estar se despedindo de todos, ele estiver dizendo: "Não me deixem morrer. Façam tudo que vocês puderem para me salvar"? 

Então George apontou para mim. "Oi, George", disse eu. "Meu amigo. Sou eu, o David, George." 

E quando me aproximei dele, ele me agarrou tal como havia agarrado Betty e beijou a mim na boca. Não senti cheiro de cadáver, nem fedor doentio, nenhum odor desagradável: apenas um hálito quente, sem cheiro, o puro perfume do ser, e dois lábios ressequidos. Era a primeira vez que George e eu nos beijávamos. Mais uma vez, ele grunhiu, agora apontando para Tom. Para Tom e depois para seus próprios pés, que estavam descobertos sobre a cama. Quando Tom, pensando que George quisesse que suas pernas fossem cobertas, começou a ajeitar os lençóis, George começou a gemer mais alto, apontando de novo para os pés. "Ele quer que você segure", disse Betty. "Um deles ele nem sente", disse Tom. "Segura o outro", ela insistiu. 

"Está bem, pai, entendi — entendi." E Tom começou a acariciar pacientemente o pé que seu pai ainda sentia. 

Em seguida, George apontou para a porta, onde Kate estava parada, assistindo a tudo. "Ele quer você, mãe", disse Betty. Afastei-me e Kate se colocou no lugar onde eu estava, ao lado da cama, e George estendeu o braço para ela, o braço que ainda funcionava, puxando-a para si, e beijou-a de modo tão enfático quanto beijara a Betty e a mim. Kate beijou-o também. Então beijaram-se outra vez, agora um beijo prolongado, realmente apaixonado. Kate chegou mesmo a fechar os olhos. Ela é uma pessoa absolutamente livre de sentimentalismo, uma pessoa bem pé-na-terra, e eu nunca a vira agir daquele jeito, como uma menina. 

Enquanto isso, a mão boa de George havia passado das costas de Kate para seu braço direito, e ele começou a mexer no botão do punho da blusa. Estava tentando desabotoá-lo. 

"George", Kate sussurrou baixinho. Parecia achar graça. "Georgie, Georgie..." "Ajuda ele, mãe. Ele quer desabotoar." Sorrindo ao ouvir tais instruções da filha emocionada, Kate cedeu e abriu o botão, mas a essa altura George já estava mexendo na outra manga, no botão, e assim ela também o desabotoou. E o tempo todo ele a beijava. Kate acariciou o rosto destruído, aquele rosto terrivelmente solitário e cavernoso, beijando-lhe os lábios cada vez que ele os oferecia, e em seguida a mão de George procurou os botões da frente da blusa, tentando desabotoá-los. 

O plano dele era evidente: estava tentando despi-la. Despir aquela mulher que, como eu bem sabia, e como seus filhos certamente sabiam, ele não tocava na cama havia anos. Que ele raramente tocava em qualquer circunstância. 

"Deixa, mãe", disse Betty, e Kate mais uma vez obedeceu à filha. Ela própria ajudou George a desabotoar a blusa. Dessa vez, quando se beijaram, a única mão boa de George estava pegando no tecido do sutiã largo de Kate. Porém, de repente, tudo terminou. A força esvaiu-se dele sem mais nem menos, e George jamais chegou a tocar nos seios caídos da mulher. Ainda levou mais doze horas para morrer, mas quando se deixou cair sobre os travesseiros, a boca entreaberta, os olhos fechados, ofegante como um corredor que desaba no final da corrida, todos nós sabíamos que tínhamos acabado de presenciar o último ato extraordinário da vida de George. 

Depois, quando fui até a porta para sair, Kate veio comigo para a varanda, e então me acompanhou até o carro. Segurando minhas mãos, me agradeceu por ter vindo. Respondi: "Foi bom estar presente e assistir a tudo aquilo". 

"É, foi mesmo um espanto, não foi?", disse Kate. 

Em seguida, com seu sorriso cansado, acrescentou: "Sei lá quem ele pensou que eu fosse". 



(O animal agonizante; tradução de Paulo Henriqe Britto) 



(Ilustração: Frida Kahlo)




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