sexta-feira, 14 de dezembro de 2018
O FUNERAL DE UM GUERREIRO, de Chinua Achebe
Go-di-di-go-go-di-go. Di-go-go-di-go. Era o batuque do ekwe falando à tribo. Uma das coisas que todo homem aprendia era a linguagem desse instrumento de madeira. Buum! Buum! Buum! — estrondava o canhão a intervalos regulares.
Ainda não se ouvira o primeiro cantar do galo e Umuófia continuava envolta em sono e silêncio quando o ekwe começou a falar e o canhão despedaçou a calma reinante. Todos se agitaram em suas camas de bambu e se puseram à escuta, ansiosos. Alguém tinha morrido. Os tiros de canhão pareciam romper o céu. O di-go-go-di-go-di-di-go-go flutuava no ar da noite, impregnado de mensagens. Um indistinto e longínquo gemido de mulheres assentava-se sobre a terra como um depósito de dor. De vez em quando, um lamento a plenos pulmões sobrepunha-se a esses gemidos sempre que um homem chegava ao local da morte. O recém-chegado emitia seu lamento uma ou duas vezes, numa manifestação viril de dor, e em seguida sentava-se junto aos outros homens, a escutar os intermináveis gemidos das mulheres e a esotérica linguagem do ekwe.
Vez por outra, o canhão ribombava. As lamentações das mulheres não poderiam ser ouvidas para além daquele vilarejo, mas o ekwe ia levando as notícias até as outras nove aldeias, e mais longe ainda. A fala do tambor começava pelo nome da tribo: Umuófia obodo dike, “a terra dos bravos”. Umuófia obodo dike! Repetia-se essa frase muitas e muitas vezes, e a insistência era tanta, que a ansiedade começou a crescer no coração de todos aqueles que, pouco antes, tinham estado ressonando tranquilamente numa cama de bambu. Depois, o batuque ficou ainda mais preciso e mencionou o nome da aldeia: Iguedo, a da pedra de moagem amarela! Era a aldeia de Okonkwo. O nome Iguedo foi sendo repetido sem cessar, enquanto nas nove aldeias aumentava em todos a inquieta expectativa. Finalmente, mencionou-se o nome do morto e o povo suspirou: — E-u-u, Ezeudu morreu. — Um calafrio baixou pela espinha de Okonkwo, quando se lembrou da última vez em que o velho Ezeudu o visitara.
— Aquele menino o considera como pai — dissera o velho. — Não seja cúmplice de sua morte.
Ezeudu fora um grande homem, por isso a tribo inteira compareceu ao funeral. Os antigos tambores da morte soavam, davam-se tiros de espingarda e canhão, e os homens corriam de um lado para outro, numa espécie de frenesi, decepando todas as árvores e matando todos os animais que encontravam, saltando muros e dançando sobre os tetos. Era o funeral de um guerreiro; e, da manhã à noite, outros guerreiros foram chegando, de acordo com os grupos de idade. Todos eles usavam saiotes de ráfia enfumaçados e seus corpos estavam pintados de giz e de carvão. De vez em quando, um espírito ancestral, ou egwuwu, surgia de outro mundo, falando numa voz trêmula e extraterrena, completamente recoberto por uma roupagem de ráfia. Alguns desses espíritos eram muito violentos, e já tinha havido, nas primeiras horas do dia, uma correria doida em busca de abrigo quando um deles aparecera empunhando um afiado facão; e somente graças à ajuda de dois homens que conseguiram sujeitá-lo, amarrando-lhe uma grossa corda em volta da cintura, o egwuwu fora impedido de causar sérios danos. Houve momentos em que ele se virara e correra, perseguindo os dois, que trataram de fugir para salvar a pele; mas eles logo voltaram e tornaram a segurar a ponta da corda que o espírito arrastava atrás de si. Este cantava, com uma voz apavorante, dizendo que Ekwensu, ou Espírito Maligno, tinha entrado em seu olho.
O mais temível dos espíritos, contudo, ainda não aparecera. Vinha sempre sozinho e sua forma era a de um caixão de defunto. Um fedor enjoativo o acompanhava, e as moscas o seguiam. Até mesmo os maiores curandeiros escondiam-se de medo quando ele andava por perto. Há muitos anos, outro egwuwu se atrevera a desafiá-lo e lhe fizera frente: ficara imobilizado, durante dois dias, no mesmo lugar. Este egwuwu tinha apenas uma mão e nela carregava uma cesta* cheia d’água.
Alguns desses egwuwus eram de todo inofensivos. Um deles já estava tão velho e doente que vinha caminhando apoiado num cajado. Dirigiu-se, vacilante, ao lugar onde jazia o cadáver, contemplou-o durante alguns instantes e foi-se embora de novo — para o outro mundo.
Na realidade, não existia uma distância muito grande entre a terra dos vivos e o domínio dos ancestrais. Havia sempre idas e vindas entre os dois mundos, especialmente durante os festivais e quando um homem idoso morria, porque os velhos estão muito próximos dos ancestrais. A vida de um homem, desde o nascimento até a morte, era uma série de ritos de transição que o aproximavam cada vez mais de seus antepassados.
Ezeudu fora o homem mais velho de sua aldeia e, ao falecer, havia apenas três homens mais idosos do que ele em toda a tribo, e mais uns quatro ou cinco de seu grupo etário. Todas as vezes que um desses anciãos aparecia no meio do povo para executar, com gestos trêmulos, os passos da dança fúnebre da tribo, os homens mais jovens abriam-lhe espaço e o tumulto diminuía um pouco.
Era um grande funeral esse, digno de um nobre guerreiro. Ao entardecer, aumentaram a gritaria, os tiros, o batuque dos tambores e o clangor dos facões.
Ezeudu recebera três títulos durante a vida. Isso era um feito raro, pois havia apenas quatro títulos no clã, e somente um ou dois homens, em todas as gerações, tinham conseguido alcançar o quarto, que era o mais elevado. Quando isso acontecia, tornavam-se senhores da terra. Ezeudu, justamente porque recebera títulos, seria enterrado após o anoitecer, à luz de um único tição aceso, que iluminaria a cerimônia sagrada.
Antes, porém, desse tranquilo rito final, o tumulto decuplicou. Os tambores batiam violentamente e os homens pulavam, num verdadeiro frenesi. Tiros explodiam de todos os lados e faíscas voavam dos facões ao se entrechocarem, estrepitosamente, na saudação dos guerreiros. O ar estava cheio de poeira e cheirava a pólvora. Foi nesse momento que o espírito maneta apareceu, carregando a cesta cheia d’água. O povo abriu-lhe espaço e o barulho diminuiu. Até mesmo o cheiro de pólvora foi absorvido pelo fedor pestilento que agora enchia o ar. Ele executou alguns passos da dança fúnebre ao som dos tambores e em seguida foi ver o cadáver.
— Ezeudu! — chamou, com voz gutural. — Se tivesses sido pobre na tua vida passada, eu te pediria que fosses rico quando de novo voltasses. Mas foste rico. Se tivesses sido um covarde, eu te pediria que retornasses corajoso. Mas foste um destemido guerreiro. Se tivesses morrido jovem, eu te pediria que obtivesses mais vida. Mas viveste muito. Por tudo isso, eu te pedirei que tornes a voltar como antes vieste. Se tua morte foi natural, vai em paz. Mas se foi causada por um homem, não permitas a esse homem um só momento de sossego.
E, assim falando, deu mais alguns passos de dança e foi-se embora.
Os tambores e a dança recomeçaram, atingindo um ritmo febril. A escuridão estava a ponto de chegar e a hora do enterro se aproximava. Tiros explodiram numa última saudação e o canhão tornou a fender o céu. Nesse instante, em meio àquela fúria delirante, ouviu-se um grito de agonia e brados de horror. E então foi como se um feitiço tivesse sido lançado. Tudo se fez silêncio. No centro da multidão, um garoto jazia numa poça de sangue. Era o filho de Ezeudu, de dezesseis anos, que, juntamente com seus irmãos e meios-irmãos, participava, momentos antes, da tradicional dança de adeus em homenagem ao pai morto. A arma de Okonkwo explodira e um pedaço de ferro trespassara o coração do menino.
A confusão que se seguiu não encontrava paralelo na história de Umuófia.
Mortes violentas eram frequentes ali, mas nunca acontecera nada semelhante.
Para Okonkwo só havia uma opção: fugir do clã, pois matar um de seus membros era um crime contra a deusa da terra, e aquele que o cometesse via-se obrigado a abandonar a região. O crime podia ser de dois tipos, masculino ou feminino. O que Okonkwo cometera era feminino, porque fora por acaso. Por isso, passados sete anos, ele poderia retornar ao clã.
Naquela mesma noite, começou a reunir seus mais valiosos pertences em trouxas que pudessem ser carregadas na cabeça. Suas mulheres choravam amargamente e os filhos também choravam com elas, sem saberem o porquê. Obierika e mais uma meia dúzia de amigos vieram ajudar e consolar Okonkwo. Cada um deles fez umas nove ou dez viagens, carregando os inhames do amigo até o celeiro de Obierika, onde ficariam armazenados. E assim, antes do cantar do galo, toda a família fugiu para a terra natal de Okonkwo, que era uma aldeia pequenina, chamada Mbanta, pouco além dos limites de Mbaino.
Logo que o dia amanheceu, um grande número de homens da família de Ezeudu, em roupagens de guerra, invadiu tempestuosamente o compound [1] de Okonkwo. Atearam fogo às casas, demoliram os muros vermelhos, mataram os animais e destruíram o celeiro. Era a justiça da deusa da terra. Aqueles homens atuavam apenas como mensageiros da deusa. Seus corações não abrigavam nenhum ódio contra Okonkwo, cujo melhor amigo, Obierika, fazia parte do grupo. Estavam simplesmente limpando a terra que Okonkwo poluíra com o sangue de um membro do clã.
Obierika era um homem que costumava refletir sobre as coisas. Após a vontade da deusa da terra ter sido cumprida, sentou-se em seu obi [2] e pôs-se a lamentar a desgraça do amigo. Por que alguém deveria passar por tamanho sofrimento por causa de uma ofensa cometida inadvertidamente? Porém, embora pensasse longo tempo sobre isso, não encontrou resposta. Tais pensamentos o levaram a refletir sobre problemas ainda mais complexos. Lembrou-se dos filhos gêmeos que sua mulher tivera e que ele jogara no mato. Que crime eles tinham cometido? A terra decretava que os gêmeos constituíam uma ofensa ao mundo e que precisavam ser destruídos. E se, por acaso, a tribo não punisse rigorosamente qualquer ultraje à poderosa deusa, sua ira cairia sobre toda a região, e não apenas sobre o ofensor, pois, como diziam os anciãos, se um dedo estiver sujo de óleo, manchará os demais.
* Na Ibolândia, costuma-se recobrir completamente as cabaças com palha tecida à semelhança de cestos, a fim de melhor resguardar a água do calor. (N. T.)
[1] Compound: conjunto de habitações onde mora uma família, geralmente cercado ou murado.
[2] Obi: a casa do homem num compound, distinta da morada de suas esposas.
(O mundo se despedaça; tradução de Vera Queiroz da Costa e Silva)
(Ilustração: Uche Okeke -1933)
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