terça-feira, 10 de novembro de 2015

POR QUE NÃO DANÇAM?, de Raymond Carver









Na cozinha, ele serviu-se de outra bebida e olhou para a mobília de quarto que estava no jardim da frente. O colchão estava despido e os lençóis às riscas cor-de-rosa dobrados junto de duas almofadas em cima da cómoda. Tirando isto, as coisas estavam dispostas quase da mesma maneira como tinham estado no quarto — mesa-de-cabeceira e candeeiro de leitura do seu lado da cama, mesa-de-cabeceira e candeeiro de leitura no lado da cama dela. O seu lado, o lado dela. Pensou nisto enquanto bebericava o whisky. A cómoda encontrava-se a curta distância dos pés da cama. Passara os conteúdos das gavetas para dentro de caixotes nessa manhã, e os caixotes estavam na sala de estar. Havia um aquecedor portátil junto da cómoda, e uma cadeira em verga com uma almofada decorativa aos pés da cama. Os móveis da cozinha em alumínio polido ocupavam uma parte da entrada para a garagem. Uma toalha amarela de musselina, demasiado grande, que lhes tinha sido oferecida, cobria a mesa e pendia dos lados. Um feto dentro de um vaso estava em cima da mesa, junto de uma caixa com talheres e um gira-discos, também ofertas. Um grande televisor, modelo de cómoda, estava pousado sobre uma mesa de café, e a alguns passos desta encontravam-se um sofá e uma cadeira e um candeeiro de pé. Tinha ligado uma extensão à tomada e havia electricidade, as coisas funcionavam. A secretária estava encostada à porta da garagem. Havia alguns utensílios em cima da secretária, junto com um relógio de parede e duas gravuras emolduradas. Havia ainda na entrada para a garagem um caixote com copos, chávenas e pratos, cada um dos objectos embrulhado em papel de jornal. Naquela manhã ele esvaziara os armários e, com excepção dos três caixotes na sala de estar, estava tudo fora da casa. Uma vez por outra um carro abrandava e as pessoas olhavam. Mas ninguém parava. Ocorreu-lhe que também ele não pararia.

— Deve ser uma venda de garagem — disse a rapariga ao rapaz.

Esta rapariga e este rapaz andavam a mobilar um pequeno apartamento.

— Vamos ver quanto é que eles querem pela cama — disse a rapariga.

— Gostava de saber quanto é que pedem pela televisão — disse o rapaz.

O rapaz meteu pelo acesso à garagem e estacionou em frente à mesa da cozinha.

Saíram do carro e começaram a examinar as coisas. A rapariga mexeu na toalha de musselina e o rapaz ligou a trituradora e rodou o botão para a posição moer. Ela pegou no aquecedor de comida. Ele ligou o televisor e começou a ajustar a imagem. Sentou-se no sofá para ver televisão. Acendeu um cigarro, olhou em redor, e atirou o fósforo para a relva. A rapariga sentou-se na cama. Tirou um sapato com a ajuda do outro e deitou-se. Conseguia ver a estrela polar.

— Anda cá, Jack. Experimenta esta cama. Traz uma dessas almofadas — disse ela.

— Como é? — perguntou ele.

— Anda experimentar — disse ela.

Ele olhou em redor. A casa encontrava-se na escuridão.

— É um bocado estranho — disse ele. — É melhor vermos se está alguém em casa.

Ela agitou-se em cima da cama.

— Experimenta primeiro — disse ela.

Ele deitou-se na cama e colocou a almofada debaixo da cabeça.

—O que é que achas? — perguntou ela.

— Parece-me firme — disse ele.

Ela voltou-se de lado e enlaçou-lhe o pescoço com o braço.

— Beija-me — disse ela.

— Vamos levantar-nos — disse ele.

— Beija-me. Beija-me, querido — disse ela.

Ela fechou os olhos. E continuou a abraçá-lo. Ele teve de lhe abrir os dedos para se soltar.

Ele disse:

— Vou ver se está alguém em casa — mas apenas se sentou.

O televisor continuava ligado. As luzes acenderam-se nas casas por toda a rua. Ele sentou-se na beira da cama.

— Não achas que seria engraçado se nós... — disse a rapariga, e sorriu, mas não terminou a frase.

Ele riu-se. Ligou o candeeiro de leitura.

Ela afastou um mosquito.

O rapaz levantou-se e meteu a camisa para dentro das calças.

— Vou ver se está alguém em casa — disse ele. — Parece que não está ninguém. Mas, se estiver, vou ver qual é o preço destas coisas.

— Seja o que for que pedirem, oferece menos dez dólares. — disse ela. — Eles devem estar desesperados, ou coisa assim.

—A televisão é bem boa — disse o rapaz.

— Pergunta-lhes quanto é— disse a rapariga.

Max caminhou pelo passeio com um saco de compras do mercado. Trazia sanduíches, cerveja e whisky. Tinha estado a beber a tarde toda e chegara agora a um ponto em que a bebida parecia deixá-lo mais sóbrio. Mas havia lacunas. Tinha parado no bar junto do mercado, tinha escutado uma canção na jukebox, e de alguma maneira havia escurecido antes que se recordasse das coisas no jardim.

Viu o carro na entrada para a garagem e a rapariga deitada na cama. O televisor estava ligado. Depois viu o rapaz no alpendre. Fez o caminho pela relva.

— Olá — disse Max à rapariga. — Vejo que encontraste a cama. Ainda bem.

— Olá — disse a rapariga, e levantou-se. — Estava só a experimentá-la. — Deu umas palmadas no colchão. — É uma cama bem boa.

—É uma boa cama — disse Max. — O que é que eu digo agora?

Ele sabia que devia dizer alguma coisa em seguida. Pousou o saco de compras e tirou de lá a cerveja e o whisky.

— Julgávamos que não estava ninguém aqui — disse o rapaz.

— Estamos interessados na cama e, quem sabe, na televisão. Talvez também na secretária. Quanto é que quer pela cama?

— Estava a pensar em cinquenta dólares pela cama — disse Max.

— Aceita quarenta? — perguntou a rapariga.

— Está bem, aceito quarenta — disse Max.

Tirou um copo do caixote, desembrulhou o copo do papel de jornal e rodou a tampa da garrafa de whisky quebrando- lhe o selo.

—E quanto à televisão? — perguntou o rapaz.

— Vinte e cinto.

— Aceita vinte? — perguntou a rapariga.

— Vinte, está bem. Posso aceitar vinte — disse Max. A rapariga olhou para o rapaz.

— Miúdos, querem uma bebida?— disse Max. — Os copos estão no caixote. Vou sentar-me. Vou sentar-me no sofá.

Sentou-se no sofá, recostou-se, e ficou a olhar para eles.

O rapaz encontrou dois copos e serviu-os de whisky.

— Quanto é que queres disto? — perguntou à rapariga.

Tinham apenas vinte anos, o rapaz e a rapariga, e faziam anos com a diferença mais ou menos de um mês.

— Já chega — disse a rapariga. — Acho que quero água no meu.

Ela puxou uma cadeira e sentou-se à mesa da cozinha.

— Há água naquela torneira ali — disse Max. — Abre aquela torneira.

O rapaz deitou água nos dois whiskies. Aclarou a garganta antes de também se sentar à mesa da cozinha. Depois sorriu. Pássaros esvoaçavam por cima deles, à caça de insectos.

Max olhava para a televisão. Terminou a sua bebida. Alcançou o interruptor do candeeiro de pé e deixou cair o cigarro no espaço entre as almofadas do sofá. A rapariga levantou-se para o ajudar a encontrá-lo.

— Queres mais alguma coisa, querida? — disse o rapaz.

Ele sacou do livro de cheques. Serviu-se a si, e à rapariga, de mais whisky.

— Oh, quero a secretária — disse a rapariga. — Quanto é que custa a secretária?

Max fez um aceno com a mão perante esta pergunta disparatada.

— Diz-me tu um número — disse.

Olhou para eles, sentados à mesa. À luz do candeeiro havia alguma coisa peculiar na expressão dos seus rostos. Durante um minuto esta expressão pareceu conspiratória e depois tornou-se terna — não havia outra palavra. O rapaz tocou na mão dela.

— Vou desligar a televisão e pôr um disco a tocar — disse Max. — O gira-discos também está à venda. Barato. Façam-me uma oferta.

Ele serviu-se de mais whisky e abriu uma garrafa de cerveja.

— Está tudo à venda.

A rapariga ergueu o copo e o homem serviu-a de whisky.

— Obrigada — disse ela.

— Isto sobe à cabeça — disse o rapaz. — Estou a sentir isto chegar-me à cabeça.

Acabou a bebida, aguardou, e serviu-se novamente. Estava a escrever um cheque quando Max encontrou os discos.

— Escolhe alguma coisa de que gostes — disse Max à rapariga, e mostrou-lhe os discos.

O rapaz continuava a escrever o cheque.

— Este — disse a rapariga, apontando. Não conhecia os discos, mas não tinha importância. Aquilo era uma aventura. Levantou-se da mesa e depois tornou a sentar-se. Não lhe apetecia estar sentada e quieta.

— Vou passar o cheque ao portador — disse o rapaz, ainda a escrever.

— Claro — disse Max. Bebeu o que restava do whisky e depois começou a beber a cerveja. Sentou-se outra vez no sofá e cruzou as pernas.

Beberam. Ouviram o disco até ao final. E depois Max pôs outro disco a tocar.

— Por que não dançam? — disse Max. — É uma boa ideia. Por que não dançam?

— Não, não me parece — disse o rapaz. — Queres dançar, Carla?

— Força — disse Max. — O jardim é meu. Podem dançar se quiserem.

Braços em volta um do outro, corpos unidos, rapaz e rapariga subiram e desceram a entrada da garagem. Estavam a dançar.

Quando o disco chegou ao fim, a rapariga pediu a Max para dançar com ela. Ainda estava descalça.

— Estou bêbedo — disse ele.

— Não estás bêbedo — disse a rapariga.

— Bom, eu estou bêbedo — disse o rapaz.

Max voltou o disco ao contrário e a rapariga aproximou-se. Começaram a dançar.

A rapariga olhou para as pessoas que se reuniam na janela de sacada do outro lado da rua.

— Aquelas pessoas que ali estão. A observar-nos — disse ela. — Há problema?

— Não faz mal — disse Max. — É o meu jardim. Podemos dançar. Achavam que já tinham visto acontecer de tudo por aqui, mas isto nunca viram — disse ele.

Ele começou a sentir o hálito dela no pescoço, e disse:

— Espero que gostes da tua cama.

— Vou gostar — disse a rapariga.

— Espero que os dois gostem — disse Max.

— Jack! — disse a rapariga. — Acorda!

Jack segurava o queixo e observava enquanto eles dançavam.

— Jack — disse a rapariga.

Ela fechou e depois abriu os olhos. Empurrou o rosto contra o ombro de Max. Puxou-o para mais próximo de si.

— Jack — murmurou ela.

Ela olhou para a cama e foi incapaz de compreender o que estava aquilo a fazer no jardim. Olhou para o céu, por cima do ombro de Max. Segurou-se a Max. Estava tomada de uma felicidade insuportável.

Mais tarde, a rapariga disse:

— O tipo era de meia-idade. Tinha as coisas todas ali no jardim. Não estou a brincar. Apanhámos um grande pifo e dançámos. Na entrada para a garagem. Oh, meu Deus. Não te rias. Ele pôs discos a tocar. Olha para este gira-discos que ele nos ofereceu. E estes discos velhos também. O Jack e eu dormimos na cama dele. O Jack estava de ressaca e teve de alugar uma carrinha pela manhã. Para transportar as coisas todas do gajo. Acordei uma vez. Ele estava a tapar-nos com o cobertor, o tipo. Este cobertor. Toca-lhe.

Ela continuou a falar. Contou a toda a gente. Havia alguma coisa por dizer, ela sabia-o, mas não o conseguia exprimir em palavras. Passado algum tempo deixou de falar no assunto.




(O que sabemos do amor; tradução de João Tordo)




(Ilustração: Loïc Allemand)



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