terça-feira, 29 de setembro de 2015
DECÁLOGO DO CRÍTICO, de Michel Laub
Ler por obrigação, ganhar
pouco, ser odiado por autores criticados ou ignorados por você. Ante tantos
dissabores, saiba para que serve, afinal, fazer crítica literária
I - Um bom começo pode ser
a leitura de O imperador do vinho, de Elin McCoy, a biografia do americano
Robert Parker. Trata-se da figura mais polêmica do universo milionário da
enologia. Uma nota alta na The Wine Advocate, sua newsletter, é capaz de enriquecer
um fabricante; uma nota baixa pode significar a falência. O olfato de Parker é
segurado em cerca de US$ 1 milhão. Ao longo dos anos, percebeu-se que ele
gostava de vinhos frutados. Muitas propriedades, até algumas tradicionais da
França, passaram a chamar especialistas para estudar o solo, mudar a forma do
plantio e da colheita, tudo para colher uvas que originassem vinhos adequados a
esse gosto.
II - Saiba que esse talvez
seja o exemplo máximo de crítico bem-sucedido no mundo de hoje – rico de fato,
influente de fato, uma presença de fato essencial em seu meio. Quase todos os
outros profissionais da categoria, trabalhem eles com música, cinema,
gastronomia, televisão ou concursos de beleza, estão bem mais próximos da
figura descrita por George Orwell em Confissões de um resenhista: “Trinta e
cinco anos, mas aparenta cinqüenta(...) [trabalha num conjugado frio, mas
abafado (...). Dos milhares de livros que aparecem todo ano, é quase certo que
existam 50 ou 100 sobre os quais teria prazer em escrever. Se for de primeira
categoria na profissão, pode conseguir dez ou vinte. É mais provável que
consiga dois ou três”.
III - Ou seja, prepare-se
para uma atividade enfadonha e mal-remunerada. Você lerá só por obrigação.
Nunca mais irá atrás de um livro indicado por um amigo. Nunca mais fechará um
livro com a sensação de que, para o bem ou para o mal, não há nada a dizer
sobre ele. Porque sempre haverá o que dizer. Se não houver, as contas não são
pagas.
IV - Não se preocupe,
porém. Há muitos truques para encher essas páginas em branco. Se você quer
desancar um livro e não sabe como, recorra a alguns adjetivos algo abstratos em
se tratando de literatura, mas ainda assim úteis numa resenha. A timidez, por
exemplo. Argumente que o autor não explora suficientemente os conflitos de sua
obra. Afinal, explorar conflitos é uma tarefa que não tem fim, e há um momento
em que todo autor, por mais extrovertido que seja, precisa parar. Outros
chavões sempre à mão: excesso de objetividade, excesso de subjetivismo, excesso
de frieza, excesso de dramaticidade. A categoria das “idéias fora de lugar”,
deslocada de seu contexto original, também ajuda bastante. Um romance correto,
instigante e envolvente pode ser atacado por reproduzir um modelo “burguês” de
contar histórias, incompatível com o nosso tempo. Um romance sem essas
características pode ser destruído, justamente, por ser mal-escrito e não
envolver o leitor.
V - Para o caso contrário,
isto é, se você quer elogiar um livro que acha ruim – o das linhas finais do
item IV, por exemplo –, há dois recursos clássicos: a) em relação à prosa
desagradável, escatológica e/ou ilegível, diga que ela reproduz o incômodo e a
irredutibilidade de sentidos do mundo contemporâneo; b) em relação à trama
caótica e fragmentária, quando não se entende o que é início, o que é fim e do
que é mesmo que estamos falando, afirme que a maçaroca reproduz, como uma
“metáfora estrutural”, o caos fragmentário da sociedade pós-industrial.
VI - Usando desses
truques, você está pronto para fazer nome devido à afinação com o vocabulário
crítico de sua época. Mas se, por um desses acasos raros, você está decidido a
realmente dizer o que pensa, há também dois caminhos a seguir. O primeiro é
confiar cegamente nos seus juízos pessoais, não temendo a exposição de seus
preconceitos íntimos em público. Assim, você terá mais chances de ser
considerado um sujeito ranheta, excêntrico e/ou pervertido.
VII - O segundo caminho é
considerar-se portavoz de um “sistema”, para o qual são válidas mesmo obras que
não são do seu agrado (por questões sociológicas, por exemplo). Mesmo que os
motivos sejam nobres – sua humildade para não se considerar o juiz definitivo
sobre o que é ou não relevante em termos estéticos –, há boas probabilidades de
você ser visto como um crítico sem alma, sem coragem, sem graça.
VIII - Independentemente
de sua escolha, é inevitável que você seja desprezado. Todos dirão que seu
desejo secreto era ser ficcionista ou poeta, que você é leviano demais,
complacente demais, que tem algum interesse obscuro – ascender na carreira,
agradar aos pares da universidade, arrumar um(a) namorado(a) – ou está a soldo
de alguma entidade obscura – grupos literários rivais, editores, maçons, seitas
religiosas, partidos políticos de esquerda (se você escrever numa pequena publicação)
ou de direita (se receber salário de alguma corporação de mídia).
IX - Mais que isso: você
será odiado. Pelos autores que você desanca. Pelos autores que você ignora.
Pelos autores que você elogia (os motivos serão sempre os errados, na opinião
deles). Pelos outros críticos. Por boa parte do público, mesmo por aquele que o
lê com frequência.
X - Mas se, apesar de tudo
isso, você ainda insiste em abraçar a profissão, é bom se perguntar o motivo.
Quando criança, usando o olfato, Robert Parker era capaz de listar todos os
ingredientes dos pratos que estavam sendo cozinhados na vizinhança, habilidade
que o tornaria um campeão absoluto dos “testes cegos” de identificação de uvas
e safras. Isso se chama vocação. É o seu caso? Você se sente preparado para
conjugar erudição e capacidade interpretativa em tamanha escala? Sendo a
resposta afirmativa, trata-se de uma ótima notícia. Não só para você, que
talvez tenha achado um modo honesto de ganhar a vida, mas para o próprio meio
literário. Porque não há nada de que ele necessite mais, hoje ou em qualquer
tempo: alguém que o ajude a firmar tendências, corrigir rumos, separar o joio
do trigo. Diferentemente do que se diz, um crítico autêntico não é apenas o
advogado do público. Ele é, em última instância, o maior defensor da própria
literatura.
(Ilustração: William
Blake - the gosth of a flea - o fantasma de uma pulga)
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Michel Laub - Decálogo do crítico
sábado, 26 de setembro de 2015
TROVAS, de vários autores
Tomás Antônio Gonzaga
Não sei, Marília, que tenho,
depois que vi o teu rosto,
pois quando não é Marília
já não posso ver com gosto.
Castro Alves
As nuvens ajoelhadas
nos claustros ermos e vãos
passam as contas doiradas
das estrelas pelas mãos!
Olavo Bilac
O amor que a teu lado levas
a que lugar te conduz,
que entras coberto de trevas
e sais coberto de luz?
Alphonsus de Guimaraens
O cinamomo floresce
em frente do teu postigo...
Cada flor murcha que desce
morre de sonhar contigo!
Cecília Meireles
Em barca de nuvens sigo...
E o que vou pagando ao vento
para levar-te comigo
é suspiro e pensamento.
(Ilustração: Urszula
Ciolkowska)
quinta-feira, 24 de setembro de 2015
DECÁLOGO DO AUTOR, de Miguel Sanches Neto
Depois de leitor, você
pode se tornar, então, escritor – embora, pasme, muitos hoje pulem a leitura,
por julgá-la dispensável, e já desejem publicar.
I - Não fique mandando
seus originais para todo mundo.Acontece que você escreve para ser lido
extramuros, e deseja testar sua obra num terreno mais neutro. E não quer ficar
a vida inteira escrevendo apenas para uma pessoa. O que fazer então para não
virar um chato? No passado, eu aconselharia mandar os textos para jornais e
revistas literárias, foi o que eu fiz quando era um iniciante bem iniciante.
Mas os jovens agora têm uma arma mais democrática. Publicar na internet. Há
muitos espaços coletivos, uma liberdade de inclusão de textos novos e você
ainda pode criar seu próprio site ou blog, mas cuidado para não incomodar as
pessoas, enviando mensagens e avisos para que leiam você.
II - Publique seus textos
em sites e blogs e deixe que sigam o rumo deles. Depois de um tempo publicando
eletronicamente, você vai encontrar alguns leitores. Terá de ler os textos
deles, e dar opiniões e fazer sugestões, mas também receberá muitas dicas.
III - Leia os
contemporâneos, até para saber onde é o seu lugar. Existe um batalhão de
internautas ávidos por leitura e em alguns casos você atingirá o alvo e terá
acontecido a magia de um texto encontrar a pessoa que o justifica. Mas todo
texto escrito na internet sonha um dia virar livro. Sites e blogs são etapas,
exercícios de aquecimento. Só o livro impresso dá status autoral. O que fazer
quando eu tiver mais de dois gigas de textos literários? Está na hora de
publicar um livro maior do que Em busca do tempo perdido? Bem, é nesse momento
que você pode continuar sendo um escritor iniciante comum ou subir à categoria
de iniciante com experiência. Você terá que reduzir essas centenas e centenas
de páginas a um formato razoável, que não tome muito tempo de leitura de quem,
eventualmente, se interessar por um livro de estreia. Para isso, você terá de
ser impiedoso, esquecer os elogios da mulher e dos amigos e selecionar seu
produto, trabalhando duro para que fique sempre melhor.
IV - Considere apenas uma
pequenina parte de toda a sua produção inicial, e invista na revisão dela,
sabendo que revisar é cortar. O livro está pronto. Não tem mais do que 200
páginas, você dedicou anos a ele e ainda continua um iniciante. Mas um
iniciante responsável, pois não mandou logo imprimir suas obras completas com
não sei quantos tomos, logo você que talvez nem tenha completado 30 anos. Mas
você quer fazer circular a sua literatura de maneira mais formal. Quer o livro
impresso. E isso é hoje muito fácil. Você conhece um amigo que conhece uma
gráfica digital que faz pequenas tiragens e parcela em tantas vezes. O livro
está pronto. E anda sobrando um dinheirinho, é só economizar na cerveja.
V - Gaste todo seu
dinheiro extra em cerveja, viagens, restaurantes e não pague a publicação do
próprio livro. Se você fizer isso, ficará novamente ansioso para mandar a todo mundo
o volume, esperando opiniões que vão comparar o seu trabalho ao dos mestres. O
livro impresso, mesmo quando auto-impresso, dá esta sensação de poder. Somos
enfim Autores. E podemos montar frases assim: Borges e eu valorizamos o
universal. Do ponto de vista técnico, Borges e eu estamos no mesmo nível:
produzimos obras impressas; mas a comparação não vai adiante. Então como
publicar o primeiro livro se não conhecemos ninguém nas editoras? E aí começa
um outro problema: procurar pessoas bem postas em editoras e solicitar
apresentações. Na maioria das vezes isso não funciona. E, mesmo quando o livro
é publicado, ele não acontece, pois foi um movimento artificial.
VI - Nunca peça a ninguém
para indicar o seu livro a uma editora. Se por acaso um amigo conhece e gosta
de seu trabalho, ele vai fazer isso naturalmente, com alguma chance de sucesso.
Tente fazer tudo sozinho, como se não tivesse ninguém mais para ajudar você do
que o seu próprio livro. Sim, este livro em que você colocou todas as suas
fichas. E como você só pode contar com ele...
VII - Mande seu livro a
todos os concursos possíveis e a editoras bem escolhidas, pois cada uma tem seu
perfil editorial. É melhor gastar seu dinheiro com selos e fotocópias do que
com a impressão de uma obra que não será distribuída e que terá de ser enviada
a quem não a solicitou. Enquanto isso, dedique-se a atividades afins para
controlar a ansiedade, porque essas coisas de literatura demoram, demoram muito
mesmo. Você pode traduzir textos literários para consumo próprio ou para
jornais e revistas, pode fazer resenhas de obras marcantes, ler os clássicos ou
simplesmente manter um diário íntimo. O importante é se ocupar. Com sorte e
tendo o livro alguma qualidade além de ter custado tanto esforço, ele acaba
publicado. Até o meu terminou publicado, e foi quando me tornei um iniciante
adulto. Tinha um livro de ficção no catálogo de uma grande editora. E aí tive
de aprender outras coisas. Há centenas de livros de iniciantes chegando aos
jornais e revistas para resenhas e uma quantidade muito maior de títulos consagrados.
E a maioria vai ficar sem espaço nos jornais. E é natural que os exemplares
distribuídos para a imprensa acabem nos sebos, pois não há resenhistas para
tantas obras.
VIII - Não force os amigos
e conhecidos a escrever sobre seu livro. Não quer dizer que eles não possam
escrever, podem sim, mas mande o livro e, se eles não acusarem recebimento ou
não comentarem mais o assunto, esqueça e não lhes queira mal, eles são nossos
amigos mesmo não gostando do que escrevemos. Se um ou outro amigo escrever
sobre o livro, festeje mesmo se ele não entender nada ou valorizar coisas que
não julgamos relevantes em nosso trabalho. E mande umas palavras de
agradecimento, pois você teve enfim uma apreciação. E se um amigo escrever mal
de nosso livro, justamente dessa obra que nos custou tanto? Se for um
desconhecido, ainda vá lá, mas um amigo, aquele amigo para quem você fez isso e
aquilo.
IX - Nunca passe recibo às
críticas negativas. Ao publicar você se torna uma pessoa pública. E deve
absorver todas as opiniões, inclusive os elogios equivocados. Deixe que as
opiniões se formem em torno de seu trabalho, e talvez a verdade suplante os
equívocos, principalmente se a verdade for que nosso trabalho não é lá essas
coisas. O livro está publicado, você já pensa no próximo, saíram algumas
resenhas, umas superficiais, outras negativas, uma muito correta. Você é então
um iniciante com um currículo mínimo. Daí você recebe a prestação de contas da
editora, dizendo que, no primeiro trimestre, as devoluções foram maiores do que
as vendas. Como isso é possível? Vejam quantos livros a editora mandou de
cortesia. Eu não posso ter vendido apenas 238 exemplares se, só no lançamento,
vendi 100, o gerente da livraria até elogiou – enfim uma vantagem de ter
família grande.
X - Evite reclamar de sua
editora. Uma editora não existe para reverenciar nosso talento a toda hora. É
uma empresa que busca o lucro, que tem dezenas de autores iguais a nós e que
quer ter lucro com nosso livro, sendo a primeira prejudicada quando ele não
vende. Não precisamos dizer que é a melhor editora do mundo só porque nos
editou, mas é bom pensar que ocorreu uma aposta conjunta e que não se alcançou
o resultado esperado. Mas que há oportunidades para outras apostas e, um dia,
quem sabe... Foi tentando seguir estas regras que consegui ser o autor
iniciante que hoje eu sou.
(Ilustração: Tarsila
do Amaral- Oswald de Andrade, 1923)
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Miguel Sanches Neto - Decálogo do autor
domingo, 20 de setembro de 2015
ГАМЛЕТ / HAMLET, de Boris Pasternak
Прислонясь к дверному косяку,
Я ловлю в далеком отголоске,
Что случится на моем веку.
На меня наставлен сумрак ночи
Тысячью биноклей на оси.
Если только можно, Aвва Oтче,
Чашу эту мимо пронеси.
Я люблю Твой замысел упрямый
И играть согласен эту роль.
Но сейчас идет другая драма,
И на этот раз меня уволь.
Но продуман распорядок действий,
И неотвратим конец пути.
Я один, все тонет в фарисействе.
Жизнь прожить – не поле перейти.
Translated into English by Lydia Pasternak Slater:
The murmurs ebb; onto the stage I enter.
I am trying, standing in the door,
To discover in the distant echoes
What the coming years may hold in store.
The nocturnal darkness with a thousand
Binoculars is focused onto me.
Take away this cup, O Abba, Father,
Everything is possible to thee.
I am fond of this thy stubborn project,
And to play my part I am content.
But another drama is in progress,
And, this once, O let me be exempt.
But the plan of action is determined,
And the end irrevocably sealed.
I am alone; all round me drowns in falsehood:
Life is not a walk across a field.
Tradução de J. A. Rodrigues:
O murmúrio reflui. Adentro o palco.
Apoiado no batente da porta,
Capto num eco distante,
O que há de acontecer em minha vida.
A noite escura lança sobre mim
Milhares de binóculos à queima-roupa.
Se possível, Abba Pai,
Afasta de mim esse cálice.
Encanta-me teu obstinado desígnio
E aceito representar esse papel.
Porém agora um outro drama está em curso,
E desta vez rogo-te que me dispenses.
Contudo a sequência de atos já está fixada,
E o fim do caminho é inelutável.
Sozinho estou, tudo submerge em hipocrisia.
A vida é para viver – não como um passeio no campo.
Tradução de Augusto de Campos:
O murmúrio cessou. Subo ao tablado.
Apoiado ao umbral da porta,
Procuro distinguir no eco apagado
Os desígnios da minha sorte.
A penumbra da noite me devassa
Por trás de mil binóculos iguais.
Se for possível, Aba, meu pai,
Afasta de mim essa taça.
Amo a Tua obstinada trama
e aceito o papel que me foi dado.
Mas agora representam outro drama.
Ao menos dessa vez, deixa-me de lado.
Mas a ordem das cenas foi prevista
E a estrada chega fatalmente ao fim.
Estou só. Tudo afunda em farisaísmo.
Viver não é passear por um jardim.
Tradução de Marco Lucchesi:
Cessaram os rumores. Entro em cena.
Apoio-me na porta e assim procuro
colher, nos ecos pálidos, o tema
dos fatos que no século me esperam.
Imerso na profunda escuridão,
sou alvo de binóculos distantes.
Se for possível, Pai, retira então
de mim essa bebida, esse tormento.
Eu amo tua história contumaz
e vou representar todo esse drama.
Mas, se outra peça leva-se em cartaz,
deixa-me já de fora dessa trama.
Mas a regra dos atos não se altera
e faz-se irremediável o fim da estrada.
A solidão. Os fariseus na Terra.
Viver é mais que atravessar um prado.{*}
{*} Trata-se de um provérbio russo.
(In: Doutor Jivago - título original em russo: Doktor Zivago; tradução de Zoia Prestes; prefácio e tradução de poemas: Marco Lucchesi)
(Ilustração: Felix Nussbaum - jew at the window)
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Boris Pasternak - ГАМЛЕТ / Hamlet
quinta-feira, 17 de setembro de 2015
DECÁLOGO DO LEITOR , de Alberto Mussa
I - Nunca leia por hábito: um livro não é uma escova de dentes. Leia por vício, leia por dependência química. A literatura é a possibilidade de viver vidas múltiplas, em algumas horas. E tem até finalidades práticas: amplia a compreensão do mundo, permite a aquisição de conhecimentos objetivos, aprimora a capacidade de expressão, reduz os batimentos cardíacos, diminui a ansiedade, aumenta a libido. Mas é essencialmente lúdica, é essencialmente inútil, como devem ser as coisas que nos dão prazer.
II - Comece a ler desde cedo, se puder. Ou pelo menos comece. E pelos clássicos, pelos consensuais. Serão cinquenta, serão cem. Não devem faltar As mil e uma noites, Dostoiévski, Thomas Mann, Balzac, Adonias, Conrad, Jorge de Lima, Poe, García Márquez, Cervantes, Alencar, Camões, Dumas, Dante, Shakespeare, Wassermann, Melville, Flaubert, Graciliano, Borges, Tchekhov, Sófocles, Machado, Schnitzler, Carpentier, Calvino, Rosa, Eça, Perec, Roa Bastos, Onetti, Boccaccio, Jorge Amado, Benedetti, Pessoa, Kafka, Bioy Casares, Asturias, Callado,Rulfo, Nelson Rodrigues, Lorca, Homero, Lima Barreto, Cortázar, Goethe, Voltaire, Emily Brontë, Sade, Arregui, Verissimo, Bowles, Faulkner, Maupassant, Tolstói, Proust, Autran Dourado, Hugo, Zweig, Saer, Kadaré, Márai, Henry James, Castro Alves.
III - Nunca leia sem dicionário. Se estiver lendo deitado, ou num ônibus, ou na praia, ou em qualquer outra situação imprópria, anote as palavras que você não conhece, para consultar depois. Elas nunca são escritas por acaso.
IV - Perca menos tempo diante do computador, da televisão, dos jornais e crie um sistema de leitura, estabeleça metas. Se puder ler um livro por mês, dos 16 aos 75 anos, terá lido 720 livros. Se, no mês das férias, em vez de um, puder ler quatro, chegará nos 900. Com dois por mês, serão 1.440. À razão de um por semana, alcançará 3.120. Com a média ideal de três por semana, serão 9.360. Serão apenas 9.360. É importante escolher bem o que você vai ler.
V - Faça do livro um objeto pessoal, um objeto íntimo. Escreva nele; assinale as frases marcantes, as passagens que o emocionam. Também é importante criticar o autor, apontar falhas e inverossimilhanças. Anote telefones e endereços de pessoas proibidas, faça cálculos nas inúteis páginas finais. O livro é o mais interativo dos objetos. Você pode avançar e recuar, folheando, com mais comodidade e rapidez que mexendo em teclados ou cursores de tela. O livro vai com você ao banheiro e à cama. Vai com você de metrô, de ônibus, e de táxi. Vai com você para outros países. Há apenas duas regras básicas: use lápis; e não empreste.
VI - Não se deixe dominar pelo complexo de vira-lata. Leia muito, leia sempre a literatura brasileira. Ela está entre as grandes. Temos o maior escritor do século XIX, que foi Machado de Assis; e um dos cinco maiores do século XX, que foram Borges, Perec, Kafka, Bioy Casares e Guimarães Rosa. Temos um dos quatro maiores épicos ocidentais, que foram Homero, Dante, Camões e Jorge de Lima. E temos um dos três maiores dramaturgos de todos os tempos, que foram Sófocles, Shakespeare e Nelson Rodrigues.
VII - Na natureza, são as espécies muito adaptadas ao próprio hábitat que tendem mais rapidamente à extinção. Prefira a literatura brasileira, mas faça viagens regulares. Das letras européias e da América do Norte vem a maioria dos nossos grandes mestres. A literatura hispano-americana é simplesmente indispensável. Particularmente os argentinos. Mas busque também o diferente: há grandezas literárias na África e na Ásia. Impossível desconhecer Angola, Moçambique e Cabo Verde. Volte também ao passado: à Idade Média, ao mundo árabe, aos clássicos gregos e latinos. E não esqueça o Oriente; não esqueça que literatura nenhuma se compara às da Índia e às da China. E chegue, finalmente, às mitologias dos povos ágrafos, mergulhe na poesia selvagem. São eles que estão na origem disso tudo; é por causa deles que estamos aqui.
VIII - Tente evitar a repetição dos mesmos gêneros, dos mesmos temas, dos mesmos estilos, dos mesmos autores. A grande literatura está espalhada por romances, contos, crônicas, poemas e peças de teatro. Nenhum gênero é, em tese, superior a outro. Não se preocupe, aliás, com o conceito de gênero: história, filosofia, etnologia, memórias, viagens, reportagem, divulgação científica, auto-ajuda – tudo isso pode ser literatura. Um bom livro tem de ser inteligente, bem escrito e capaz de provocar alguma espécie de emoção.
IX - A vida tem outras coisas muito boas. Por isso, não tenha pena de abandonar pelo meio os livros desinteressantes. O leitor experiente desenvolve a capacidade de perceber logo, em no máximo 30 páginas, se um livro será bom ou mau. Só não diga que um livro é ruim antes de ler pelo menos algumas linhas: nada pode ser tão estúpido quanto o preconceito.
X - Forme seu próprio cânone. Se não gostar de um clássico, não se sinta menos inteligente. Não se intimide quando um especialista diz que determinado autor é um gênio, e que o livro do gênio é historicamente fundamental. O fato de uma obra ser ou não importante é problema que tange a críticos; talvez a escritores. Não leve nenhum deles a sério; não leve a literatura a sério; não leve a vida a sério. E faça o seu próprio decálogo: neste momento, você será um leitor.
(Ilustração: Susan Ricker Knox - leyendo en el jardín)
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Alberto Mussa - Decálogo do leitor
segunda-feira, 14 de setembro de 2015
THE FLOWER / A FLOR, de Robert Creeley
I think I grow tensions
like flowers
in a wood where
nobody goes.
Each wound is perfect,
enclosed itself in a tiny
imperceptible blossom,
making pain.
Pain is a flower, like that one,
like this one,
like that one,
like this one.
Tradução de
Régis Bonvicino:
Penso que cultivo tensões
como flores
num bosque onde
ninguém vai.
cada ferida -
perfeita -,
fecha-se numa minúscula
imperceptível
pétala
causando dor.
Dor é uma flor, como aquela
como esta,
como aquela,
como esta.
(A um)
(Ilustração: Saturno Buttò)
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Robert Creeley - The flower / A flor
sexta-feira, 11 de setembro de 2015
MANIFESTO ANTROPÓFAGO, de Oswald de Andrade
Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.
Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.
Tupi, or not tupi that is the question.
Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.
Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.
Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em drama. Freud acabou com o enigma mulher e com outros sustos da psicologia impressa.
O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido. O cinema americano informará.
Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes. No país da cobra grande.
Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil.
Uma consciência participante, uma rítmica religiosa.
Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida. E a mentalidade pré-lógica para o Sr. Lévy-Bruhl estudar.
Queremos a Revolução Caraiba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem n6s a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem.
A idade de ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls.
Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Ori Villegaignon print terre. Montaig-ne. O homem natural. Rousseau. Da Revolução Francesa ao Romantismo, à Revolução Bolchevista, à Revolução Surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling. Caminhamos..
Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará.
Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós.
Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão. O rei-analfabeto dissera-lhe : ponha isso no papel mas sem muita lábia. Fez-se o empréstimo. Gravou-se o açúcar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia.
O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo. O antropomorfismo. Necessidade da vacina antropofágica. Para o equilíbrio contra as religiões de meridiano. E as inquisições exteriores.
Só podemos atender ao mundo orecular.
Tínhamos a justiça codificação da vingança. A ciência codificação da Magia. Antropofagia. A transformação permanente do Tabu em totem.
Contra o mundo reversível e as idéias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico. O indivíduo vitima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. Das injustiças românticas. E o esquecimento das conquistas interiores.
Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.
O instinto Caraíba.
Morte e vida das hipóteses. Da equação eu parte do Cosmos ao axioma Cosmos parte do eu. Subsistência. Conhecimento. Antropofagia.
Contra as elites vegetais. Em comunicação com o solo.
Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses.
Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro.
Catiti Catiti
Imara Notiá
Notiá Imara
Ipeju*
A magia e a vida. Tínhamos a relação e a distribuição dos bens físicos, dos bens morais, dos bens dignários. E sabíamos transpor o mistério e a morte com o auxílio de algumas formas gramaticais.
Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Mathias. Comia.
Só não há determinismo onde há mistério. Mas que temos nós com isso?
Contra as histórias do homem que começam no Cabo Finisterra. O mundo não datado. Não rubricado. Sem Napoleão. Sem César.
A fixação do progresso por meio de catálogos e aparelhos de televisão. Só a maquinaria. E os transfusores de sangue.
Contra as sublimações antagônicas. Trazidas nas caravelas.
Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um antropófago, o Visconde de Cairu: – É mentira muitas vezes repetida.
Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabuti.
Se Deus é a consciência do Universo Incriado, Guaraci é a mãe dos viventes. Jaci é a mãe dos vegetais.
Não tivemos especulação. Mas tínhamos adivinhação. Tínhamos Política que é a ciência da distribuição. E um sistema social-planetário.
As migrações. A fuga dos estados tediosos. Contra as escleroses urbanas. Contra os Conservatórios e o tédio especulativo.
De William James e Voronoff. A transfiguração do Tabu em totem. Antropofagia.
O pater famílias e a criação da Moral da Cegonha: Ignorância real das coisas+ fala de imaginação + sentimento de autoridade ante a prole curiosa.
É preciso partir de um profundo ateísmo para se chegar à idéia de Deus. Mas a caraíba não precisava. Porque tinha Guaraci.
O objetivo criado reage com os Anjos da Queda. Depois Moisés divaga. Que temos nós com isso?
Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.
Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz.
A alegria é a prova dos nove.
No matriarcado de Pindorama.
Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada.
Somos concretistas. As idéias tomam conta, reagem, queimam gente nas praças públicas. Suprimarnos as idéias e as outras paralisias. Pelos roteiros. Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nas estrelas.
Contra Goethe, a mãe dos Gracos, e a Corte de D. João VI.
A alegria é a prova dos nove.
A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura – ilustrada pela contradição permanente do homem e o seu Tabu. O amor cotidiano e o modusvivendi capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade. Porém, só as puras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, males catequistas. O que se dá não é uma sublimação do instinto sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico. De carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o amor. Especulativo, a ciência. Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos.
Contra Anchieta cantando as onze mil virgens do céu, na terra de Iracema, – o patriarca João Ramalho fundador de São Paulo.
A nossa independência ainda não foi proclamada. Frape típica de D. João VI: – Meu filho, põe essa coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça! Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar o espírito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte.
Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama.
Em Piratininga Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha.
(Revista de Antropofagia, Ano 1, No. 1, maio de 1928.)
* "Lua Nova, ó Lua Nova, assopra em Fulano lembranças de mim", in O Selvagem, de Couto Magalhães
(Ilustração: Hans Staden - festa canibal)
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Oswald de Andrade - Manifesto antropófago
terça-feira, 8 de setembro de 2015
DESENCONTRO, de Jorge de Sena
Só quem procura sabe como há dias
de imensa paz deserta; pelas ruas
a luz perpassa dividida em duas:
a luz que pousa nas paredes frias,
outra que oscila desenhando estrias
nos corpos ascendentes como luas
suspensas, vagas, deslizantes, nuas,
alheias, recortadas e sombrias.
E nada coexiste. Nenhum gesto
a um gesto corresponde; olhar nenhum
perfura a placidez, como de incesto,
de procurar em vão; em vão desponta
a solidão sem fim, sem nome algum -
- que mesmo o que se encontra não se encontra.
(Post-Scriptum)
(Ilustração: Yvonne Jeanette Karlsen )
sábado, 5 de setembro de 2015
QUARTA CARTA A CLARA, de Eça de Queirós
Minha amiga.
É verdade que eu parto, e para uma viagem muito longa e remota, que será como um desaparecimento. E é verdade ainda que a empreendo assim bruscamente, não por curiosidade de um espírito que já não tem curiosidades – mas para findar do modo mais condigno e mais belo uma ligação, que, como a nossa, não deveria nunca ser maculada por uma agonia tormentosa e lenta.
Decerto, agora que eu dolorosamente reconheço que sobre o nosso tão viçoso e forte amor se vai em breve exercer a lei universal de perecimento e fim das coisas – eu poderia, poderíamos ambos, tentar, por um esforço destro e delicado do coração e da inteligência, o seu prolongamento fictício. Mas seria essa tentativa digna de si, de mim, da nossa lealdade – e da nossa paixão? Não! Só nos prepararíamos assim um arrastado tormento, sem a beleza dos tormentos que a alma apetece e aceita, nos puros momentos de fé e todo deslustrado e desfeado por impaciências, recriminações, inconfessados arrependimentos, falsa ressurreições do desejo, e de todos os enervamentos as saciedade. Não conseguiríamos deter a marcha da lei inexorável – e um dia nos encontraríamos, um diante do outro, como vazios, irreparavelmente tristes, e cheios do amargor da luta inútil. E de uma cousa tão pura e sã e luminosa, como foi o nosso amor, só nos ficaria, presente e pungente, a recordação de destroços e farrapos feitos por nossas mãos, e por elas rojados com desespero no pó derradeiro de tudo.
Não! Tal acabar seria intolerável. E depois, como toda a luta é ruidosa, e se não pode nunca disciplinar e enclausurar no segredo do coração, nós deixaríamos decerto entrever enfim ao mundo um sentimento que dele escondemos por altivez, não por cautela – e o mundo conheceria o nosso amor justamente quando ele já perdera a elevação e a grandeza que quase o santificam... De resto, que importa o mundo?
Só para nós, que fomos um para o outro e amplamente o mundo todo, é que devemos evitar ao nosso amor a lenta decomposição que degrada. Para perpétuo orgulho do nosso coração é necessário que desse amor, que tem de perecer como tudo o que vive, mesmo o Sol – nos fique uma memória tão límpida e perfeita que ela só por si nos possa dar, durante o porvir melancólico, um pouco dessa felicidade e encanto que o próprio amor nos deu quando era em nós uma sublime realidade governando o nosso ser.
A morte, na plenitude da beleza e da força, era considerada pelos antigos como o melhor benefício dos deuses – sobretudo para os que sobreviviam, porque sempre a face amada que passara lhes permanecia na memória com o seu natural viço e sã formosura, e não mirrada e deteriorada pela fadiga, pelas lágrimas, pela desesperança, pelo amor. Assim deve ser também com o nosso amor.
Por isso mal lhe surpreendi os primeiros desfalecimentos, e, desolado, verifiquei que o tempo o roçara com a frialdade da sua foice – decidi partir, desaparecer. O nosso amor, minha amiga, será assim como uma flor milagrosa que cresceu, desabrochou, deu todo o seu aroma – e, nunca cortada, nem sacudida dos ventos ou das chuvas, nem de leve emurchecida, fica na sua haste solitária, encantando ainda com as suas cores os nossos olhos quando para ela de longe se volvem, e para sempre, através da idade, e perfumando a nossa vida.
Da minha vida sei, pelo menos, que ela perpetuamente será iluminada e perfumada pela sua lembrança. Eu sou na verdade como um desses pastores que outrora, caminhando pensativamente por uma colina da Grécia, viam de repente, ante os seus olhos extáticos, Vênus magnífica e amorosa que lhes abria os braços brancos. Durante um momento o pastor mortal repousava sobre o seio divino, e sentia o murmúrio do divino suspirar. Depois havia um leve frêmito – e ele só encontrava ante si uma nuvem recendente que se levantava e sumia nos ares por entre o voo claro das pombas. Apanhava seu cajado, descia a colina... Mas para sempre, através da vida, conservava um deslumbramento inefável. Os anos poderiam rolar, e o seu gado morrer, e a ventania levar o colmo da sua choupana, e todas as misérias da velhice sobre ele caírem – que sem cessar sua alma resplandecia, e um sentimento de glória ultra-humano o elevava acima do transitório e do perecível, porque na fresca manha de Maio, além, sobre o cimo da colina, ele tivera o seu momento de divinização entre o mirto e o tomilho!
Adeus, minha amiga. Pela felicidade incomparável que me deu – seja perpetuamente bendita.
Fradique.
(Ilustração: Toulousse Lautrec - alone)
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Eça de Queirós - Quarta carta a Clara
quarta-feira, 2 de setembro de 2015
BONJARDIM, de Inês Lourenço
1.
Uma janela de guilhotina
golfava na rua, vozes
de barítono rouco e contralto
agreste, num vibrato de raivas
do libreto diário, onde há muito
ou há pouco, se teriam amado.
2.
Ao entrar no quiosque
nesta tarde de névoa, para
comprar um jornal qualquer, uma criança
pediu algo que não entendi. Seria
uma moeda para um chiclet? Perguntei
ao homem sentado atrás das
revistas do coração e dos diários
da bola, de quem seria a criança, como
se pudesse ser de alguém, um ser
tão súbito, nascido da genealogia
indecifrável da tarde.
3.
Vindo do Marquês, o autocarro
chiava na curva estreita, soltando
os seus vapores de gasóleo, e
num portal surgia um gato pardo
para o qual me inclinei, sabendo
que fugiria ao contacto
da minha mão, ou apenas ao
esboço de carícia, como fazem
os gatos, tão fugidios na presença
de estranhos. Mas o animal no
instante do recuo, aceitou o
deslizar dos meus dedos,
em troca de amáveis energias. E
uma longa saudade subiu-me pelo
braço, no arquear festivo
daquele pequeno tigre.
(Ilustração: Johnny Palacios Hidalgo)
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