quarta-feira, 5 de junho de 2013
A FAMOSA RÃ SALTADORA DO CONDADO DE CALAVERAS, de Mark Twain
Atendendo ao apelo de um amigo meu, que me havia escrito do Leste, fui procurar o velho, afável e tagarela Simon Wheeler, para me informar sobre um tal Leônidas W. Smiley, um amigo deste meu amigo, conforme ele me pedira. Aqui vai o resultado. Tenho a leve desconfiança de que Leônidas W. Smiley não existe; que meu amigo jamais conheceu tal pessoa; que ele apenas imaginou que, se eu perguntasse ao velho Wheeler por alguém com este nome, ele se lembraria de um famigerado Jim Smiley, e então se daria ao enorme trabalho de me chatear mortalmente com uma de suas exasperantes reminiscências, tão longa e entediante quanto absolutamente inútil para mim. Se esta era sua intenção, funcionou.
Fui encontrar Simon Wheeler cochilando confortavelmente junto ao aquecedor do bar da velha taverna caindo em pedaços, no decadente acampamento de mineiros de Angel; notei que ele era gordo e careca, com uma expressão simpática de gentileza e simplicidade estampada no semblante tranquilo. Ele acordou e me deu bom dia. Eu disse a ele que um amigo meu me pedira que indagasse a respeito de um querido companheiro seu de infância chamado Leônidas W. Smiley - Reverendo Leônidas W. Smiley, um jovem ministro do Evangelho, que, segundo ele ouvira falar, teria tempos atrás residido no acampamento mineiro de Angel. Complementei dizendo que, se ele, Wheeler, pudesse me fornecer alguma informação a respeito do tal Reverendo Leônidas W. Smiley, eu lhe ficaria muito grato.
Simon Wheeler me empurrou para um canto e ali me bloqueou com sua cadeira, e então sentou-se e desenrolou a monótona narrativa que segue este parágrafo. Nem por uma vez sorriu ou franziu o cenho; nem uma só vez mudou o tom de voz e, com a fluência gentil com a qual afinou sua primeira frase, prosseguiu até o final; nunca deixou vazar nenhuma suspeita de entusiasmo; mas, através de toda a interminável narrativa, passou um fio de impressionante franqueza e sinceridade, que demonstrava claramente que longe de imaginar a possibilidade de haver qualquer coisa de cômico ou ridículo em sua história, ele a via e encarava como um assunto realmente importante, e admirava seus dois heróis como homens cuja "finesse" transcendia o gênio.
Deixei que ele discorresse a seu modo sem interromper em momento algum.
"Reverendo Leônidas W. Smiley, Reverendo Le... - bem, tinha um sujeito por aqui que atendia pelo nome de Jim Smiley, foi no inverno de 49, ou seria a primavera de 50, não me recordo direito, se bem que o que me faz pensar que era um outro é o fato de eu lembrar que aquele grande canal ainda não havia sido terminado quando ele veio, pela primeira vez, para o acampamento, mas de qualquer forma era um homem dos mais curiosos que se possa encontrar, sempre pronto a apostar em qualquer coisa que aparecesse, se conseguisse qualquer um para apostar contra; e se não conseguisse, bem, então ele mudava de lado. Qualquer coisa que estivesse bem para o outro estava bem para ele e, desde que conseguisse uma aposta, ficava satisfeito.
Ainda assim ele tinha sorte, muita sorte; quase sempre ganhava. E estava sempre pronto e à espreita da oportunidade; não havia coisa nenhuma que para ele não fosse um bom motivo para uma aposta. e de qualquer lado que você quisesse; como eu ia lhe contando. Se houvesse uma corrida de cavalos, no final, você encontrava ele cheio das notas ou você encontrava ele limpo; se houvesse uma briga de cachorros, ele apostava; uma briga de gatos, ele apostava; uma briga de galinhas, ele apostava; cara, se houvesse dois passarinhos pousados numa cerca, ele apostava com você qual dos dois ia voar primeiro; se havia uma reunião evangélica no acampamento, lá ia ele, regularmente, para apostar no Pastor Walker, que conceituava como o melhor pregador da área, o que ele era de fato, além de ser um santo homem. Se visse uma mandorová indo para algum lugar ele apostaria com você quanto tempo ela levaria para chegar lá - onde quer que isto fosse -, e, se você aceitasse a aposta, ele era capaz de seguir a mandorová até o México, ou aonde fosse, só desistindo depois de descobrir onde o bichinho estava indo e quanto tempo levava na viagem.
Muitos rapazes aqui conheceram o tal Smiley e podem lhe falar sobre ele. Cara, não fazia diferença para ele - apostava em qualquer coisa, o filho da mãe. Uma vez, a mulher do Pastor Walker ficou bastante doente, por muito tempo, e parecia que não ia se salvar; uma manhã, encontrando o pastor, Smiley perguntou como ela ia indo, e o Pastor respondeu que ela estava bem melhor - graças ao Senhor, em sua infinita misericórdia - e melhorando tanto que, com a benção da divina providência, ela ainda ia ficar boa; e Smiley, sem pensar disse: Bem, eu arrisco dois dólares e cinquenta como ela não fica.
"Este tal Smiley tinha uma égua - que os rapazes apelidaram de 15 minutos cravados, mas era só uma brincadeira, você sabe, porque é claro que ela era mais rápida do que isso - e ele costumava ganhar dinheiro com aquela égua; de toda forma ela era bem lenta e sempre tinha asma, ou diarréia, ou tuberculose, ou alguma coisa do gênero. As pessoas costumavam dar 200 ou 300 metros de vantagem, e passar por ela no caminho; mas sempre no final da corrida a égua ficava toda excitada e, como que desesperada, lá vinha ela aos saltos e aos coices, às vezes no ar, às vezes encostando na cerca e levantando mais poeira ainda e fazendo um enorme barulho com sua tosse e seus espirros para chegar sempre na linha com exatamente um nariz de vantagem, o mínimo necessário para ganhar.
"Ele tinha um pequeno buldogue, que olhando assim você achava que não valia um centavo; parecia um cachorrinho ordinário, bom só para roubar comida quando alguém lhe desse uma chance. Mas era só o dinheiro aparecer; e aí, de repente, ele mordia o outro cachorro na perna traseira e se agarrava ali - não mastigava, se você me entende, só ficava agarrado ali até o outro jogar a toalha, mesmo que demorasse um ano. Smiley sempre ganhou com aquele cachorrinho, até que encontraram um cachorro que não tinha as patas traseiras porque tinham sido amputadas por uma serra circular, e quando a coisa já estava adiantada e o dinheiro casado, foi aí que viu onde é que estava metido, e o outro cachorro tinha a ele na casa do sem jeito, modo de dizer, e então ele pareceu surpreso, e olhou como que desencorajado e nem tentou mais ganhar a luta, e daí ele apanhou muito. Ele olhou para o Smiley, como que dizendo que tinha o coração partido e era culpa de Smiley por ter colocado o animal para brigar com um cachorro que não tinha as patas traseiras, aliás bem onde ele estava acostumado a morder, o que era sua principal arma e da qual ele dependia, então ele perdeu o pé, deitou e morreu. Era um bom cachorro, Andrew Jackson era seu nome, e teria ficado famoso se tivesse vivido mais, pois tinha o principal, ele tinha gênio - eu sei, embora o cão não tivesse como falar disto, que o cachorro não teria, nas circunstâncias, como lutar as lutas que lutou e não tivesse talento. Sempre me deixa triste quando eu penso na sua última luta e em como ela terminou.
"Bem, o tal Smiley tinha uns cãezinhos terriê para caçar ratos, e galos de briga, e gatos selvagens, e todo tipo de coisas até a exaustão, e você não podia inventar coisa nenhuma que ele não tivesse outra igual para competir numa aposta. Ele arranjou uma rã um dia, e a levou para casa, e disse que ele iria treiná-la; e então não fez outra coisa, por três meses, a não ser sentar no seu quintal e ensinar aquela rã a saltar. E você pode apostar que ele ensinou. Ele só dava um pequeno toque no traseiro dela, e imediatamente você via aquela rã rodando no ar como uma panqueca - você a via dando um salto mortal ou dois, dependendo do impulso, e cair no chão em cima das quatro patas, como um gato. Ele a treinou também para pegar moscas, e ele fez com que ela praticasse com tanta constância, que ela pegava moscas, sem falhar uma, a qualquer distância que seus olhos alcançassem. Smiley dizia que tudo que uma rã necessitava era uma educação, e ela seria capaz de qualquer coisa - e eu acredito que ele tinha razão. Cara, eu vi ele colocar Daniel Webster aqui no chão - Daniel Webster era o nome da rã - e mostrar, Moscas, Daniel, moscas!, e antes que você pudesse piscar a rã tinha pego uma mosca lá no alto do balcão e voltado para o chão no mesmo lugar onde estava antes como uma pedra, e ficava ali coçando o lado da cabeça com a pata traseira com uma indiferença de quem não tem idéia de ter feito mais do que qualquer outra rã faria no seu lugar. Você não encontraria uma rã mais modesta e despretensiosa do que aquela, apesar de todo seu talento. E no que se refere a simplesmente saltar num terreno plano, ela podia saltar mais longe, num único pulo, que qualquer animal da sua espécie que você já tenha visto. Saltar em distância era seu grande trunfo, você entende, e neste caso, Smiley era capaz de apostar todo dinheiro que tivesse, até seu último dólar. Smiley tinha um enorme orgulho de sua rã, e tinha razão para isto, porque pessoas que viajaram e estiveram em toda parte, todas concordavam, a rã podia vencer qualquer outra que eles tivessem visto.
"Bem, Smiley guardava o animal numa pequena gaiola, que às vezes levava com ele para a cidade para apostar. Um dia, um tipo - um estranho no acampamento - cruzou com ele, levando sua gaiolinha, e perguntou. O que será que você leva aí nesta gaiola?
"E Smiley respondeu, com aparente indiferença, Poderia ser um periquito ou quem sabe um canário, mas não é - é apenas uma rã.
"O estranho pegou a gaiola, olhou com atenção, virou-a de um lado e de outro, e disse: É, parece que é. Para que é que ela serve?
"Bem, Smiley disse, devagar e descuidadamente, ela é muito boa para uma coisa: ela salta mais alto e mais longe que qualquer rã no condado de Calaveras.
"O estranho pegou a gaiola de novo, examinou a rã com cuidado mais uma vez e devolveu a gaiola para Smiley, dizendo de uma forma deliberadamente incrédula, Bem, ele disse, eu não vejo nada nessa rã que a faça melhor que qualquer outra rã."Talvez você não veja, diz Smiley. Talvez você entenda de rãs, talvez você não entenda; talvez você seja um especialista, e talvez você seja só um amador. De qualquer forma, eu tenho minha opinião, e estou disposto a arriscar 40 dólares que ela é capaz de saltar mais alto e mais longe que qualquer outra rã no condado de Calaveras.
"O estranho pensou um pouco e então disse de uma forma quase triste, Bem, eu sou só um estranho aqui, e eu não tenho uma rã; se eu tivesse uma eu apostava com você. Aí, Smiley disse, Tudo bem - tudo bem -, você segura aqui minha gaiola um minuto e eu vou arranjar uma rã para você. Então o estranho pegou a gaiola, casou seus dólares contra os 40 de Smiley e se sentou para esperar.
"Então ele se sentou ali um bom tempo pensando e pensando com ele mesmo, e então tirou a rã da gaiola e apertou ela com a boca aberta, e com uma colher de chá começou a encher a rã com chumbinhos de caça - ele a encheu até quase a garganta - e colocou a rã no chão. Smiley foi até o brejo e procurou na lama um bom tempo até que finalmente ele conseguiu uma rã, e a levou e deu para o stranho, dizendo: Agora, se você está pronto, coloque-a junto do Daniel, com as patas na mesma linha das patas do Daniel, e eu dou o sinal. E então ele disse, Um, dois, três, e vai! E ele e o outro tocaram as rãs por trás, e a rã nova saltou com vontade, mas Daniel apenas levantou os ombros - assim - como um francês, e não teve jeito - ele não conseguia se mover; estava plantado como uma igreja, mais impossibilitado de movimento do que se estivesse ancorado. Smiley ficou bastante surpreso, e aborrecido também, mas ele não tinha idéia do que estava acontecendo, é claro.
"O estranho pegou o dinheiro e começou a ir embora; mas quando ele estava na porta sacudiu o polegar por cima do ombro, apontando para Daniel, e disse outra vez da mesma forma deliberada, Bem, ele disse, eu não vejo nada nessa rã que a faça melhor que qualquer outra rã.
"Smiley ficou coçando a cabeça e olhando para Daniel no chão por muito tempo, e finalmente disse: Eu me pergunto o que em nome da pátria fez essa rã desistir - o que será que deu nela -; de alguma forma, ele tem um aspecto bastante estranho, como um saco de batatas. E ele levantou Daniel pela pele do pescoço, balançou e disse: Cara, ela deve estar pesando mais de 5 libras! e virou a rã de cabeça para baixo e então a rã arrotou dois punhados de chumbo de caça. E aí ele entendeu o que havia acontecido com ela e ficou uma fera - largou a rã e partiu atrás do estranho, mas não conseguiu mais pegar ele. E -,[Aqui Simon Wheeler ouviu alguém chamar seu nome lá fora, e se levantou para ver do que se tratava] E, virando-se para mim, disse: "Fique onde está e relaxe, amigo - eu volto num segundo".
Mas vocês me perdoem, eu não achei que a continuação da história do empreendedor vagabundo Jim Smiley seria capaz de me trazer muitas informações a respeito do Reverendo Leônidas W. Smiley, e então eu fui saindo. Na porta me encontrei com o sociável Wheeler que voltava; ele me segurou pela lapela e recomeçou:
"Bem, esse tal Smiley tinha uma vaca caolha e sem rabo, só um coto, como uma banana, e -, De qualquer forma, na falta de tempo e vontade, não esperei para uuvir a respeito da pobre vaca, e fui-me embora.
(Tradução de Octávio Marcondes)
(Ilustração: Edward Lear)
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