quinta-feira, 30 de maio de 2013

HOJE MORREU A MINHA MÃE, de Albert Camus







Hoje morreu a minha mãe. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo:

"Sua mãe falecida: Enterro amanhã. Sentidos pêsames".

Isto não quer dizer nada. Talvez tenha sido ontem.

O asilo de velhos fica em Marengo, a oitenta quilômetros de Argel. Tomo o ônibus das duas horas e chego lá à tarde. Assim, posso passar a noite a velar e estou de volta amanhã à noite.

Pedi dois dias de folga ao meu chefe e, com um pretexto destes, ele não mos podia recusar. Mas não estava com um ar lá muito satisfeito.

Cheguei mesmo a dizer-lhe "A culpa não é minha". Não respondeu. Pensei então que não devia ter dito estas palavras. A verdade: é que eu não tinha que me desculpar: Ele é que tinha de me dar pêsames. Mas com certeza o fará, depois de amanhã, quando me vir de luto. Por agora é um pouco como se a mãe não tivesse morrido. Depois do enterro, pelo contrário, será um caso arrumado e tudo passará a revestir-se de um ar mais oficial.

Tomei o ônibus às duas horas. Estava calor. Como de costume, almocei no restaurante do Celeste. Estavam todos com muita pena de mim, e o Celeste disse-me "Mãe, há só uma." Quando saí, acompanharam-me à porta. Estava um pouco atordoado e tive que ir a casa do Manuel para lhe pedir emprestados um fumo e uma gravata preta. O Manuel perdeu o tio, há seis de meses.

Tive que correr para não perder o ônibus. Esta pressa, esta correria, e talvez também os solavancos, o cheiro da gasolina, a luminosidade da estrada e do céu, tudo isto contribuiu para que eu adormecesse no caminho. Dormi quase todo o tempo. E quando acordei, estava apertado de encontro a um soldado, que me sorriu e me perguntou se eu vinha de longe.
Disse que sim, para não ter que voltar a falar.

O asilo distava dois quilômetros da aldeia. Fui a pé. Quis ver imediatamente a mãe. Mas a porteira disse-me que eu precisava, antes disso, de falar com o Diretor. Como estava com pessoas, esperei ainda um pouco. Durante este tempo, o porteiro não parou de falar. Depois, o Diretor recebeu-me no seu gabinete. Um velhote, que tem a Legião de honra. Fitou-me com uns olhos muito claros. Depois apertou-me a mão durante tanto tempo, que já não sabia como havia de a tirar. Consultou um processo e disse-me: "A Senhora sua mãe entrou aqui há três anos. O Senhor era o seu único amparo."

Julguei que me estava a fazer alguma censura e comecei a explicar-lhe, mas ele interrompeu-me: "Não tem nada que se justificar, meu filho. Estive a ler o processo da sua mãe. O Senhor não lhe podia suportar as despesas. Ela precisava de uma enfermeira. O seu ordenado é modesto. E, no fim de contas, aqui ela era feliz." Disse: "Sim, Senhor Diretor". Acrescentou: "Sabe o Senhor, aqui ela tinha amigos, pessoas da mesma idade. Partilhava com eles motivos de interesse que são de um outro tempo. O Senhor é novo, e ao seu lado, ela aborrecia-se com certeza."

Era verdade. Quando estava lá em casa a mãe passava o tempo a seguir-me em silêncio com os olhos. Nos primeiros dias do asilo, chorava muitas vezes: Mas era por causa do hábito. Ao fim de alguns meses, choraria se a tirassem do asilo, ainda devido ao hábito. Foi um pouco por isto que, no último ano quase não a fui visitar, E também porque a visita me tomava o domingo todo sem contar o esforço para ir para o ônibus comprar as passagens e fazer duas horas de viagem.

O Diretor disse-me ainda mais coisas. Mas já quase não o ouvia. Em seguida perguntou-me: "Julgo que agora, quer ir ver a sua mãe?"

Levantei-me sem dizer nada e acompanhei-o até à porta.

Nas escadas, explicou-me: "Levamo-la para a nossa morgue particular. Para não impressionar os outros. Cada vez que algum morre, os outros ficam nervosos durante dois ou três dias, o que torna o serviço difícil".

Atravessamos um pátio onde havia muitos velhos, conversando em grupos, uns com os outros. Ao passarmos, calavam-se.

E atrás de nós as conversas recomeçavam. Dir-se-ia um papaguear atordoado de periquitos. À porta de uma pequena construção, o Diretor deixou-me.

"Deixo-o agora, Senhor Meursault. Estou às ordens, no escritório. Em princípio, o enterro estava marcado para as dez horas da manhã. Pensamos que o Senhor podia assim passar a noite a velar.

Uma última coisa: parece que a sua mãe exprimiu várias vezes aos amigos o desejo de ter um enterro religioso. Tomei à minha conta este encargo. Mas queria pô-lo a par.

Agradeci-lhe. Embora sem ser atéia, enquanto viva a mãe nunca pensara em religião: Entrei: Era uma sala muito clara, caiada, e coberta por uma vidraça. Mobilavam-na algumas cadeiras e cavaletes em forma de X. Dois deles, ao meio da sala, suportavam um caixão coberto.

Viam-se apenas parafusos brilhantes, mal enterrados, destacando-se da madeira pintada de casca de noz. Perto do caixão estava uma enfermeira árabe, de bata branca, com um lenço colorido na cabeça. Neste momento, o porteiro entrou por detrás de mim. Devia ter corrido: Gaguejou.

"Fecharam-no, mas eu vou desaparafusá-lo, para que o Senhor a possa ver". Aproximava-se do caixão, quando eu o detive.

Disse-me: "Não quer?" Respondi: "Não". Calou-se e eu estava embaraçado porque sentia que não devia ter dito isto. Ao fim de uns momentos, ele olhou-me e perguntou: "Por quê?", mas sem um ar de censura, como se pedisse uma informação. Eu disse: "Não sei". Então, retorcendo os bigodes brancos, declarou sem olhar para mim: "Compreendo". O homem tinha uns bonitos olhos azuis claros e uma pele um pouco avermelhada. Deu-me uma cadeira e sentou-se também, um pouco atrás de mim. A enfermeira levantou-se e dirigiu-se para a porta. Neste momento, o porteiro disse-me: "O que ela tem, é um cancer". Não percebi o que ele dizia, até reparar que a enfermeira trazia por debaixo dos olhos uma atadura que dava a volta à cabeça. No sítio do nariz, não se via nenhuma saliência. Apenas a brancura do penso, sobre a cara.

Depois dela sair, o porteiro falou: "Vou deixá-lo sozinho". Não sei bem que gesto fiz, mas deixou-se ficar em pé, atrás de mim. Esta presença nas minhas costas incomodava-me. A sala estava cheia de uma bonita luz de fim de tarde. Dois besouros zumbiam, de encontro à vidraça. E eu sentia-me invadido pelo sono. Disse ao porteiro, sem me voltar para ele: "Está aqui há muito tempo?" Ele respondeu imediatamente: "Cinco anos", como se estivesse desde sempre à espera da minha pergunta.

Em seguida, pôs-se a falar sem parar. Muito se teria espantado se alguém lhe houvesse dito, no seu tempo, que acabaria como porteiro de um asilo, em Marengo. Tinha sessenta e quatro anos e era parisiense. Neste momento interrompi-o: "Ah, o Senhor não é daqui?" Depois lembrei-me de que, antes de me levar ao Diretor, estivera a falar da minha mãe. Dissera-me que era preciso enterrá-la depressa, porque na planície fazia muito calor, sobretudo nesta terra. Fora então que me confiara ser de Paris e que dificilmente o esquecia. Em Paris fica-se com o morto, às vezes três ou quatro dias. Aqui não há tempo, mal nos habituámos à idéia e temos logo que correr atrás do carro funerário. A mulher dele dissera-lhe então: "Cala-te, não são coisas que se digam ao Senhor". O velho corara e desculpara-se. Eu interviera para dizer: "Não, não..." Achava o que ele estava a dizer verdadeiro e interessante.

Na pequena morgue ele confiou-me que entrara no asilo como indigente. Como se sentia ainda válido, oferecera-se para o lugar de porteiro. Observei que, no fim de contas, era também um pensionista. Disse-me que não. Tinha já reparado na forma como se referia a "eles", aos "outros", e mais raramente aos "velhos", falando de pensionistas, alguns dos quais não eram mais velhos do que ele. Mas não era a mesma coisa, evidentemente. Como era porteiro tinha direitos sobre os outros, em certa medida.

A enfermeira entrou nesta altura. A tarde caíra muito depressa. Muito depressa, a noite escurecera, por detrás da vidraça. O porteiro manejou o interruptor e eu fiquei por momentos cego pelo aparecimento súbito da luz. Convidou-me para ir jantar ao refeitório. Mas eu não tinha fome. Ofereceu-se, então, para me trazer uma xícara de café com leite. Como gosto muito de café com leite, aceitei, e ele voltou alguns instantes depois com uma bandeja. Bebi. Tive então vontade de fumar. Mas hesitei, porque não sabia se o podia fazer diante da mãe. Pensei, e concluí que isso não tinha importância nenhuma. Ofereci um cigarro ao porteiro e fumámos os dois.

A certa altura, disse-me: "Não sei se sabia, mas os amigos da Senhora sua mãe vêm também velar. É o costume. Tenho que ir buscar cadeiras e café." Perguntei-lhe se não se poderia apagar uma das lâmpadas. O reflexo da luz nas paredes brancas cansava-me. Respondeu-me que não era possível. A instalação fora assim montada: ou tudo ou nada. A partir daí, não lhe prestei muita atenção. Saiu, voltou, arrumou as cadeiras nos seus lugares. Numa delas, empilhou as xícaras em volta de uma cafeteira. Depois sentou-se em frente de mim, do outro lado da mãe. A enfermeira estava ao fundo, de costas voltadas. Não via o que ela estava a fazer. Mas, pelo movimento dos braços, parecia-me que fazia malha.

A temperatura era agradável, o café confortára-me e pela porta aberta, entrava um cheiro de noite e de flores. Creio que adormeci por alguns instantes.

Acordei, porque alguém roçou por mim. Por ter fechado os olhos, a sala pareceu-me ainda mais branca. Na minha frente não havia uma única sombra e cada objeto, cada ângulo, todas as curvas se desenhavam com uma pureza que me fazia mal aos olhos.

Foi nesse momento que entraram os amigos da minha mãe. Ao todo, eram uns dez, e passavam em silêncio, nesta luz tão crua. Sentaram-se sem que uma só cadeira rangesse. Eu via-os como nunca vira ninguém até então e nem um pormenor das suas caras ou dos seus trajes me escapava. Não os ouvia, no entanto, e custava-me a acreditar que tivessem realidade. Quase todas as mulheres usavam um avental e o cordão que as apertava na cintura, mais lhes realçava a barriga inchada. Nunca havia notado que as barrigas das mulheres velhas eram tão grandes. Os homens eram quase todos muito negros e traziam bengalas. O que me impressionava nas suas fisionomias, era que eu não lhes via os olhos, mas unicamente uma luz sem brilho no meio de um ninho de rugas. Quando se sentaram, a maioria deles olhou-me e abanou a cabeça embaraçadamente, os beiços comidos pelas bocas desdentadas, sem que tivesse percebido ao certo se me estavam a cumprimentar, ou se era apenas um tique. Julgo que me cumprimentavam. Foi nesse momento que reparei que estavam todos em frente de mim, balançando as cabeças, em volta do porteiro. Por instantes tive a impressão de que estavam ali para me julgar.

Pouco depois, uma das mulheres começou a chorar. Estava na segunda fila, escondida pelas outras, e eu não a via muito bem. Chorava dando pequenos gritos, regularmente: parecia-me que nunca mais pararia de chorar. Dava a idéia que os outros não ouviam. Estavam encolhidos, tristes e silenciosos. Olhavam o caixão, a bengala ou qualquer coisa, e não tiravam os olhos desse único objeto. A mulher continuava a chorar. Eu estava muito admirado porque não a conhecia. Gostaria de não a ouvir mais. Não o ousava dizer, porém. O porteiro debruçou-se sobre ela, falou-lhe, mas ela sacudiu a cabeça, disse qualquer coisa, e continuou a chorar com a mesma regularidade. O porteiro veio então para o meu lado. Sentou-se ao pé de mim. Ao fim de um longo momento, informou-me, sem me olhar: "Era muito amiga da Senhora sua mãe. Diz que era a única amiga que tinha e que agora, fica sem ninguém".

Ficamos assim durante longos instantes. Os suspiros e soluços da mulher iam-se fazendo mais raros. Por fim, calou-se. Eu já não tinha sono, mas estava cansado e doíam-me os rins. Era o silêncio de todas aquelas pessoas, que agora me era penoso. De tempos a tempos, ouvia apenas um ruído estranho e não conseguia compreender de que se tratava. Acabei por adivinhar que alguns dos velhos chupavam o interior das bochechas, deixando escapar estes barulhos esquisitos. Estavam tão absortos nos seus pensamentos, que nem davam por isso. Tinha mesmo a impressão de que esta morta, ali deitada, nada significava para eles. Mas creio agora que se tratava de uma impressão falsa.

Tomamos todos café, servido pelo porteiro. Em seguida, não sei mais nada. A noite passou. Lembro-me de que, a certa altura, abri os olhos e reparei que os velhos dormiam dobrados sobre si mesmos, com exceção de um único que, de queixo encostado às costas das mãos, e com estas agarradas à bengala, me olhava fixamente, como se estivesse à espera de me ver acordar. Depois, voltei a adormecer. Acordei porque os rins me doíam cada vez mais. O dia surgia pouco a pouco através da vidraça. Logo a seguir, um dos velhos acordou e tossiu muito. Cuspia num grande lenço de quadrados e cada um dos escarros era como que um arranque. Acordou os outros e o porteiro disse-lhes que se deviam ir embora.

Levantaram-se.

Esta vigília incômoda tinha-lhes dado às caras uma cor de cinza. À saída, e com grande espanto meu, vieram-me todos apertar a mão, como se esta noite em que não havíamos trocado uma só palavra, tivesse aumentado a nossa intimidade. Estava cansado. O porteiro levou-me ao quarto dele, e pude lavar-me e pentear-me. Voltei a tomar café com leite, que era ótimo. Quando saí, o dia estava completamente erguido.

Por cima das colinas que separam Marengo do mar, o céu estava cheio de tonalidades de vermelho. E o vento, que passava por cima delas, trazia um cheiro de sal. Era um bonito dia que se estava a preparar. Há muito tempo que não vinha ao campo e teria tido imenso prazer em passear, se não fosse a mãe. Mas pus-me à espera no pátio, debaixo de uma árvore. Respirava o odor da terra fresca e já não tinha sono. Pensei nos colegas do escritório. A esta hora levantavam-se para ir para o trabalho: para mim, era sempre a hora mais difícil. Pensei um pouco mais nestas coisas, mas um sino que tocava no interior dos edifícios distraiu-me. Houve uma confusão de movimentos por detrás das janelas, e depois tudo se acalmou. O sol estava um pouco mais alto: principiava a aquecer-me os pés. O porteiro atravessou o pátio e veio dizer que o Diretor estava à minha espera. Fui ao escritório deste.

Mandou-me assinar vários documentos. Reparei que estava vestido de preto, com calças de fantasia.

Pegou no telefone e dirigiu-me a palavra: "Os empregados da agência funerária já cá estão. Vou-lhes dizer para fecharem o caixão. Quer ver a sua mãe pela última vez?" Disse que não. Baixando a voz, deu uma ordem pelo telefone:

"Bigeac, diga aos homens que podem ir".

Disse-me, em seguida, que assistiria ao enterro... Agradeci-lhe: Sentou-se por detrás da secretária e cruzou as pernas. Informou-me que estaríamos sós, eu e ele, apenas com a presença da enfermeira de serviço. Em princípio, os pensionistas não deviam assistir aos enterros. Deixava-os apenas velar: "uma questão de humanidade", observou. Mas excepcionalmente, dera autorização para seguir o préstito a um velho amigo da minha mãe: "Tomás Perez". Aqui, o Diretor sorriu. Disse-me: "Não sei se compreende, é um sentimento um pouco infantil. Mas ele e sua mãe andavam sempre juntos. No asilo, metiam-se com eles e diziam ao Perez: "É a sua noiva".

Ele ria. Isto agradava-lhes. E o caso é que a morte da sua mãe afectou-o muito. Achei melhor não lhe recusar a autorização. Mas, a conselho do médico, proibi-lhe o velório de ontem".

Ficamos calados durante bastante tempo. O Diretor levantou-se e olhou pela janela do escritório.

A certa altura observou: "Já chegou o padre de Marengo. Vem adiantado". Preveniu-me que são precisos pelo menos três quartos de hora para chegar à igreja, que fica mesmo na aldeia. Descemos.

Diante do edifício, estava o padre e dois acólitos.

Um deles segurava um turíbulo de incenso e o padre abaixava-se para regular o comprimento da corrente de prata. Quando chegamos, o padre levantou-se. Tratou-me por "meu filho" e disse-me algumas palavras. Entrou e eu segui-o.

Vi de relance que os parafusos do caixão estavam apertados e que havia na sala quatro homens vestidos de preto. Ao mesmo tempo, o Diretor disse-me que o carro estava à espera na estrada e ouvi o padre principiar as suas orações. A partir da confusão de movimentos por detrás das janelas, e depois tudo se acalmou. O sol estava um pouco mais alto: Começava a aquecer-me os pés. O porteiro atravessou o pátio e veio dizer que o Diretor estava à minha espera. Fui ao escritório deste. Mandou-me assinar vários documentos. Reparei que estava vestido de preto, com calças estampadas. Pegou no telefone e dirigiu-me a palavra: "Os empregados da agência funerária já cá estão. Vou-lhes dizer para fecharem o caixão. Quer ver a sua mãe pela última vez?" Disse que não. Baixando a voz, deu uma ordem pelo telefone: "Figeac, diga aos homens que podem ir".

Disse-me, em seguida, que assistiria ao enterro. Agradeci-lhe: Sentou-se por detrás da secretária e cruzou as pernas. Informou-me de que estariamos sós, eu e ele, apenas com a presença da enfermeira de serviço. E m princípio, os pensionistas não deviam assistir aos enterros. Deixava-os apenas velar: "uma questão de humanidade", observou. Mas excepcionalmente, dera autorização para seguir o préstito a um velho amigo da minha mãe: Tomás Perez. Aqui, o Diretor sorriu. Disse-me: "Não sei se compreende, é um sentimento um pouco infantil. Mas ele e a sua mãe andavam sempre juntos. No asilo, metiam-se com eles e diziam ao Perez: "É a sua noiva". Ele ria. Isto agradava-lhes. E o caso é que a morte da sua mãe afetou-o muito. Achei melhor não lhe recusar a autorização. Mas, a conselho do médico, proibi-lhe o velório de ontem".

Ficamos calados durante bastante tempo. O Diretor levantou-se e olhou pela janela do escritório. A certa altura observou: "Já chegou o padre de Marengo. Vem adiantado". Preveniu-me que são precisos pelo menos três quartos de hora para chegar à igreja, que fica mesmo na aldeia. Descemos. Diante do edifício, estava o padre e dois acólitos. Um deles segurava um turíbulo de incenso e o padre abaixava-se para regular o comprimento da corrente de prata. Quando chegámos, o padre levantou-se. Tratou-me por "meu filho" e disse-me algumas palavras. Entrou e eu segui-o.

Vi de relance que os parafusos do caixão estavam apertados e que havia na sala quatro homens vestidos de preto. Ao mesmo tempo, o Diretor disse-me que o carro estava à espera na estrada e ouvi o padre principiar as suas orações. A partir deste momento, foi tudo muito rápido. Os homens dirigiram-se para o caixão. O padre, os dois acólitos, o Diretor e eu, saímos. Diante da porta, havia uma Senhora que eu não conhecia: "o Sr. Meursault", disse o Diretor. Não escutei o nome da Senhora e compreendi apenas que era enfermeira delegada. Sem um sorriso, inclinou uma cara ossuda e comprida. Depois, afastámo-nos para deixar passar o corpo. Seguimos os homens e saímos do asilo. Diante da porta, estava um carro comprido e reluzente. Ao pé do carro, estavam o mestre de cerimônias, homenzinho vestido com um traje ridículo, e um velho com um ar embaraçado. Percebi que era o Sr. Perez. Tinha um chapéu mole, de copa arredondada e abas largas (tirou-o da cabeça quando o caixão atravessou a porta), um traje cujas calças caíam sobre os sapatos e uma gravata preta, pequena demais, para a sua camisa com um grande colarinho branco. Os beiços tremiam-lhe, por debaixo de um nariz semeado de pontos negros. Os cabelos brancos, bastante finos, deixavam-lhe passar umas curiosas orelhas balouçantes e mal acabadas, cuja cor de um vermelho sanguíneo nesta cara tão pálida, me impressionou.

O mestre de cerimônias indicou-nos os nossos lugares. O padre ia à frente do carro. Em volta deste, os quatro homens. Atrás, o Diretor e eu; fechando o cortejo, a enfermeira delegada e o Sr. Perez.

O céu estava já cheio de sol. Começava a pesar sobre a terra e o calor aumentava rapidamente: Não sei por que motivo esperámos tanto tempo antes de principiarmos a andar. Tinha calor, com o meu traje escuro. O velhinho que voltara a cobrir a cabeça, tirou outra vez o chapéu. Voltara-me um pouco para o lado dele e olhava-o, quando o Diretor o trouxe à conversa. Disse-me que, muitas vezes, a minha mãe e o Sr. Perez iam passear à noite até à aldeia, acompanhados por uma enfermeira. Eu olhava os campos em meu redor. Através das linhas de ciprestes que levavam às colinas perto do céu, desta terra ruiva e verde, destas casas raras e bem desenhadas, eu compreendia a minha mãe. A noite, neste sítio, devia ser como que um melancólico período de tréguas. Hoje, o sol excessivo que fazia estremecer a paisagem, tornava-a deprimente e inumana.

Iniciamos o caminho. Reparei então que o Sr. Perez coxeava ligeiramente. Pouco a pouco, o carro ia mais depressa e o velho perdia terreno: Um dos homens que rodeava o carro também se deixou ultrapassar e seguia agora ao meu nível. Eu estava admirado pela rapidez com que o sol subia no horizonte. Dei por que o ar era há muito cruzado pelo canto dos insetos e pelos estalidos das ervas. O suor caía-me pela cara abaixo. Como não trazia chapéu, limpava-me com um lenço. O empregado da agência disse-me então qualquer coisa que não ouvi. Enquanto, com a mão esquerda, limpava a testa com um lenço, com a mão direita levantava a pala do boné. Disse-lhe: "O quê?" Ele repetiu, apontando para o céu: "Está forte". Eu disse: "Sim". Pouco depois, perguntou-me: "É a sua mãe, quem ali vai?" Voltei a dizer: "Sim". "Era muito velha?" Respondi: "Assim, assim", porque não sabia ao certo quantos anos tinha. O homem calou-se. Voltei-me e vi o velho Perez uns cinqüenta metros atrás de nós. Com o chapéu na mão, apressava-se o mais que podia: Olhei também para o Diretor. Andava com muita dignidade, sem gestos inúteis. Algumas gotas de suor escorriam-lhe pela testa, mas não as enxugava.

Parecia-me que o cortejo ia um pouco mais depressa. Em volta de mim, era sempre a mesma paisagem luminosa, inundada de sol. O brilho do céu era insustentável. Em dado momento, passamos por um trecho de estrada que havia sido reparado há pouco. O sol derretia o alcatrão. Os pés enterravam-se, deixando aberta a carne luzidia do alcatrão. Por cima do carro, o chapéu do cocheiro, de couro escuro, parecia ter sido moldado na mesma lama negra. Sentia-me um pouco perdido entre o céu azul e branco e a monotonia destas cores, negro pegajoso do alcatrão aberto, negro baço dos trajes, negro lacado do carro. Tudo isto, o sol, o cheiro de borracha e de óleo do automóvel, o do verniz e o do incenso, o cansaço de uma noite de insônia, me perturbava o olhar e as idéias. Voltei-me uma vez mais: o velho Perez apareceu-me muito ao longe, perdido numa nuvem de calor, e depois não o tornei a ver. Procurei-o com o olhar e vi que abandonara a estrada e metera pelos campos dentro. Reparei que, na minha frente, a estrada virava para um lado. Compreendi que o Perez, conhecendo a terra, cortava a direito para nos apanhar. Na curva, conseguira juntar-se conosco. Em seguida voltamos a perdê-lo. Tomou ainda vários atalhos através dos campos. Quanto a mim, sentia o sangue latejar-me nas fontes.

Depois tudo se passou com tanta rapidez, tanta certeza, tanta naturalidade, que já não me lembro de nada. Uma coisa, apenas: à entrada da aldeia, a enfermeira delegada falou-me. Possuía uma voz singular, que não acertava com a cara, uma voz trêmula e melodiosa. Disse-me: "Se vamos muito devagar, arriscamo-nos a uma insolação. Mas se vamos muito depressa, transpiramos e na igreja apanhamos calor e frio". Tinha razão. Era um beco sem saída. Conservei ainda algumas imagens deste dia: por exemplo, a cara do Perez quando, pela última vez, se juntou conosco próximo da aldeia. Grossas lágrimas de enervamento e de tristeza corriam-lhe pela cara abaixo. Mas, por causa das rugas, não caíam. Dividiam-se, juntavam-se e formavam uma máscara de água nessa cara arruinada. Houve ainda a igreja e os aldeões nos passeios, os gerâneos vermelhos nos jazigos do cemitério, o desmaio do Perez (dir-se-ia um boneco quebrado), a terra cor de sangue que atiravam para cima do caixão da mãe, a carne branca das raizes que se lhes juntavam, ainda mais gente, vozes, a aldeia, a espera diante de um café, o incessante roncar do motor, e a minha alegria quando o ônibus entrou no ninho de luzes de Argel e que pensei que me ia deitar e dormir durante doze horas.


(O Estrangeiro)


(Ilustração: Tomasz Kafel)



sexta-feira, 24 de maio de 2013

AMEI-TE COM AS PALAVRAS, de Rosa Lobato de Faria







Amei-te com as palavras
com o verde ramo das palavras
e a pomba assustada do coração.


Amei-te com os olhos
o espelho doido dos olhos
e a sede inextinguível da boca.


Amei-te com a pele
as pernas e os pés
e todos os gritos que trago
por debaixo da roupa.


Amei-te com as mãos
As mesmas com que te digo adeus.




(Ilustração: Paula Rego)





terça-feira, 21 de maio de 2013

UMA MELANCOLIA DESESPERADA, de José Lins do Rego








Eu tinha uns quatro anos no dia em que minha mãe morreu. Dormia no meu quarto, quando pela manhã acordei com um enorme barulho na casa toda. Eram gritos e gente correndo para todos os cantos. O quarto de dormir de meu pai estava cheio de pessoas que eu não conhecia. Corri para lá e vi minha mãe estendida no chão e meu pai caído em cima dela como um louco. A gente toda que estava ali olhava para o quadro como se estivesse a assistir a um espetáculo. Vi então que minha mãe estava toda banhada em sangue, e corri para beijá-la, quando me pegaram pelo braço com força. Chorei, fiz o possível para livrar-me. Mas não me deixaram fazer nada. Um homem que chegou com uns soldados mandou então que todos saíssem, que só podia ficar ali a Polícia e mais ninguém.

Levaram-me para o fundo da casa, onde os comentários sobre o fato eram os mais variados. O criado, pálido, contava que ainda dormia quando ouvira uns tiros no primeiro andar. E, correndo para cima, vira o meu pai ainda com o revólver na mão e a minha mãe ensanguentada. “O doutor matou a Dona Clarisse! Por quê?” Ninguém sabia compreender. 

O que eu sentia era uma vontade desesperada de ir para junto de meus pais, de abraçar e beijar minha mãe. Mas a porta do quarto estava fechada, e o homem sério que entrara não permitia que ninguém se aproximasse dali. O criado e a ama, diziam, estavam lá dentro em interrogatório. O que se passou depois não me ficou bem na memória.

Ainda me lembro de meu pai. Era um homem alto e bonito, com uns olhos grandes e um bigode preto. Sempre que estava comigo, era a beijar-me, a contar-me histórias, a fazer-me as vontades. Tudo dele era para mim. Eu mexia nos seus livros, sujava as suas roupas, e meu pai não se importava. Às vezes, porém, ele entrava em casa calado. Sentava-se numa cadeira ou passeava pelo corredor com as mãos atrás das costas, e discutia muito com minha mãe. Gritava, dizia tanta coisa, ficava com uma cara de raiva que me fazia medo. E minha mãe ia para o quarto aos soluços. Eu não sabia compreender o porquê de toda aquela discussão. Sei que, daí a pouco, lá estava ele com a minha mãe aos beijos. E o resto da noite, até me ir deitar, era só com ela que ele estava, com os olhos vermelhos de ter chorado também. 

Eu amava-o, porque o que eu queria fazer ele o consentia, e brincava comigo no chão como um menino da minha idade. Depois é que vim a saber muita coisa a seu respeito: que era um temperamento de excitado, um nervoso, para quem a vida só tivera o seu lado amargo. A sua história, que mais tarde conheci, era a de um homem arrebatado pelas paixões, a de um coração sensível demais às suas mágoas. Coitado de meu pai! Parece que o vejo quando saiu de casa com os soldados, no dia do seu crime. Que ar de desespero ele levava no rosto de moço! E o abraço doloroso que me deu nessa ocasião! Vim a compreender, por aquele tempo, por que razão se deixara levar ao desespero. O amor que tinha pela esposa era o amor de um louco. O seu lugar não era no presídio para onde o levaram. O meu pobre pai, dez anos depois, morria na casa de saúde, liquidado por paralisia geral.

Todos os retratos que tenho de minha mãe não me dão nunca a verdadeira fisionomia que eu guardo dela — a doce fisionomia daquele rosto, daquela melancólica beleza do seu olhar. Ela passava o dia inteiro comigo. Era pequena e tinha os cabelos pretos. Junto dela eu não sentia necessidade dos meus brinquedos. Dona Clarisse, como lhe chamavam os criados, parecia mesmo uma figura de estampa. Falava para todos com um tom de voz de quem pedisse um favor, mansa e terna como uma menina de internato. Criara-se num colégio de freiras, sem mãe, pois o pai ficara viúvo quando ela ainda não falava. Filha de senhor de engenho, parecia mais, pelo que me contavam dos seus modos, uma dama nascida para a reclusão. À noite ela fazia-me dormir. Adormecer nos seus braços, ouvindo a surdina daquela voz, era o meu requinte de sibarita pequeno. 

Ela enchia-me de carícias. E quando o meu pai chegava, nas suas crises, exasperado como um pé-de-vento, eu via-a chorar e pronta a esquecer todas as intemperanças verbais do seu marido. Os criados amavam-na. Ela também os tratava com uma bondade que não conhecia mau humor. 

Horas inteiras eu fico a pintar o retrato dessa mãe angélica, com as cores que tiro da imaginação, e vejo-a assim, ainda tomando conta de mim, dando-me banhos e vestindo-me. A minha memória ainda guarda detalhes bem vivos que o tempo não conseguiu destruir. O seu destino fora cruel: morrer como morreu, vítima de excesso de cólera do homem que tanto amara; e depois, cheia de pudor e de recato, a encher as folhas de sensação, com o seu retrato, com histórias mentirosas da sua vida íntima.

A morte de minha mãe encheu-me a vida inteira de uma melancolia desesperada. Porque teria sido com ela tão injusto o destino, injusto com uma criatura em que tudo era tão puro? Esta força arbitrária do destino ia fazer de mim um menino meio céptico, meio atormentado de visões ruins.





(Menino de Engenho)





(Ilustração: Portinari - menino no canavial)










sábado, 18 de maio de 2013

LETTERA AMOROSA, de Eugénio de Andrade








               

Respiro o teu corpo:

sabe a lua-de-água

ao amanhecer,

sabe a cal molhada,

sabe a luz mordida,

sabe a brisa nua,

ao sangue dos rios,

sabe a rosa louca,

ao cair da noite

sabe a pedra amarga,

sabe à minha boca.




(Ilustração: Eduardo Fiel)




quarta-feira, 15 de maio de 2013

PUERICENTRISMO, de Jean-Jacques Rousseau







1. Apenas observarei, contra a opinião comum, que o preceptor de uma criança deve ser jovem, e até mesmo tão jovem quanto pode sê-lo um homem sábio. Gostaria que ele próprio fosse criança, se possível, para que pudesse ser um companheiro de seu aluno, e conquistar sua confiança ao compartilhar suas diversões.

2. Em primeiro lugar, as crianças têm, por assim dizer, uma gramática para a sua idade, cuja sintaxe tem regras mais gerais que a nossa. Se prestássemos bastante atenção, ficaríamos admirados com a exatidão com que seguem certas analogias, muito defeituosas talvez, mas regularíssimas, que só não são chocantes pela sua dureza ou porque o uso corrente não as admite. Acabo de ouvir uma pobre criança que foi admoestada pelo pai por lhe ter dito: mon père, irai-je-ty? Ora, percebe-se que a criança seguiu melhor a analogia do que os gramáticos, pois já que lhes diziam vas-y, por que não dizer irai-je-t-y? Observai além disso com que habilidade ela evitou o hiato de irai-jey ou de y irai-je? É culpa da pobre criança se descabidamente tiramos da frase o advérbio determinante porque não sabíamos o que fazer com ele? É de um pedantismo insuportável e uma preocupação das mais supérfluas empenharmo-nos em corrigir nas crianças todos esses errinhos contra o bom uso, que com o tempo nunca deixam de ser corrigidos por elas mesmas. Falai sempre com correção diante delas, fazei com que não se sintam melhor com outros do que convosco e tereis certeza de que imperceptivelmente sua linguagem se purificará com a nossa sem que jamais a tenhais corrigido.

3. [...] Estudemos as crianças e logo reaprenderemos com elas.

4. Homens, sede humanos, esse é vosso primeiro dever; sede humanos para todas as condições, para todas as idades, para tudo o que não é alheio ao homem. Para vós, que sabedoria está fora da humanidade? Amai a infância; favorecei suas brincadeiras, seus prazeres, seu amável instinto. Quem de vós não teve alguma vez saudade dessa época em que o riso está sempre nos lábios, e a alma está sempre em paz? Por que quereis retirar desses pequenos inocentes o gozo de um tempo tão duro que lhes foge, e de um bem tão precioso, de que não poderiam abusar? Por que quereis encher de amargura e de dores esses primeiros anos tão velozes, que não mais voltarão para eles, assim como não voltarão para nós? Não fabriqueis remorsos para vós mesmos retirando os poucos instantes que a natureza lhes dá. Assim que eles puderem sentir o prazer de existir, fazei com que o gozem; fazei com que, a qualquer hora que Deus os chamar, não morram sem ter saboreado a vida.

5. A natureza quer que as crianças sejam crianças antes de serem homens.

6. Portanto, a primeira educação deve ser puramente negativa. Consiste não em ensinar a virtude ou a verdade, mas em proteger o coração contra o vício e o espírito contra o erro. Se pudésseis nada fazer e nada deixar que fizessem, se pudésseis levar vosso aluno são e robusto até a idade de doze anos sem que ele soubesse distinguir a mão esquerda da direita, desde vossas primeiras lições, os olhos de seu entendimento se abririam para a razão; sem preconceitos, sem hábitos, ele nada teria em si que pudesse obstar o efeito de vossos trabalhos. Logo se tornaria em vossas mãos o mais sábio dos homens e, começando por nada fazer, teríeis feito um prodígio de educação.





(Emílio ou da educação - Tradução de Roberto Leal Ferreira)






(Ilustração: Jean Bailly - triciclo)


domingo, 12 de maio de 2013

INDRA(*), de August Strindberg






Down to the sand-covered earth. 

Straw from the harvested fields soiled our feet; 

Dust from the high-roads, 
Smoke from the cities, 
Foul-smelling breaths, 
Fumes from cellars and kitchens, 
All we endured. 
Then to the open sea we fled, 
Filling our lungs with air, 
Shaking our wings, 
And laving our feet. 

Indra, Lord of the Heavens, 
Hear us! 
Hear our sighing! 
Unclean is the earth; 
Evil is life; 
Neither good nor bad 
Can men be deemed. 
As they can, they live, 
One day at a time. 
Sons of dust, through dust they journey; 
Born out of dust, to dust they return. 
Given they were, for trudging, 
Feet, not wings for flying. 
Dusty they grow-- 
Lies the fault then with them, 
Or with Thee?



Tradução de Thereza Christina Rocque da Motta:



Descemos à terra arenosa.

A palha dos campos ceifados cobriu nossos pés;
O pó das auto-estradas,
Fumaça das cidades,
Bafos de onça,
Fumos dos celeiros e das cozinhas,
Tudo suportamos.
Então, fugimos ao mar aberto,
Enchendo de ar nossos pulmões,
Batendo nossas asas,
Banhando nossos pés.

Indra, Senhor dos Céus,
Escutai-nos!
Ouvi nossos lamentos!
A terra está suja;
O mal é nossa vida;
O homem não pode ser salvo
Nem do bem nem do mal.
Vivem como podem,
Um dia de cada vez.
Filhos do pó, viajam por ele;
Nascidos do pó, ao pó retornam.
Receberam pés para se arrastarem,
Não asas para voar.
Cobrem-se ainda mais de pó –
Abraçando sua culpa
Ou a Tua?




(*)  No hinduísmo, Indra é o deus das tempestades, filho de Aditi com o sábio Kashyapa.


(Ilustração: escultura - Indra; foto de autor não identificado)


quinta-feira, 9 de maio de 2013

ESTRUTURA MOLECULAR DE ÁCIDOS NUCLEICOS, UMA ESTRUTURA PARA O ÁCIDO DESOXIRRIBONUCLEICO, de J.D. Watson e F.H.C. Crick(*)










Nosso desejo é sugerir uma estrutura para o sal de ácido desoxirribonucleico (DNA). Esta estrutura apresenta características novas de grande interesse biológico. 


A estrutura para o ácido nucleico já foi proposta por Pauling e Corey, que gentilmente a nós disponibilizaram seu manuscrito antes de sua publicação. O modelo deles consiste de três cadeias entrelaçadas com os fosfatos próximos ao eixo da fibra e as bases voltadas para fora. Em nossa opinião esta estrutura é insatisfatória por duas razões: (1) Acreditamos que o material adequado para obtenção de diagramas de raios X seja o sal e não o ácido livre. Sem os átomos de hidrogênio acídico não são claras quais forças assegurariam a coesão da estrutura, especialmente considerando que os fosfatos próximos ao eixo, carregados negativamente, se repelem. (2) Algumas das distâncias de van der Waals parecem ser muito pequenas.

Outra estrutura de três cadeias também foi proposta por Fraser (no prelo). Em seu modelo os fosfatos estão do lado de fora e as bases do lado de dentro ligadas por pontes de hidrogênio. Esta estrutura, como descrita, parece mal definida e, por esta razão, não será aqui discutida.

Nós desejamos propor uma estrutura radicalmente diferente para o sal ácido desoxirribonucleico. Esta estrutura apresenta duas cadeias em hélice enroladas em torno de um eixo comum (veja diagrama). 

Esta figura é puramente diagramática. As duas fitas simbolizam as duas deias de fosfatos–açúcares. Os bastões horizontais indicam os pares de bases que mantêm as cadeias ligadas. A linha vertical indica o eixo comum das fibras.





Fizemos as suposições químicas usuais, a saber, que cada cadeia consiste de grupos fosfodiester ligando resíduos β-D-ribofuronose com terminações 3’ e 5’. As duas cadeias (mas não suas bases) são relacionadas por uma díade perpendicular ao eixo da fibra. As duas cadeias seguem hélices destrógiras, mas, devido as díades, as sequências de átomos estão dispostas em direções opostas. Cada cadeia é semelhante ao modelo número 1 de Furberg, isto é, as bases estão do lado de dentro da hélice e os fosfatos do lado de fora. A configuração do açúcar e dos átomos sendo muito próxima da “configuração padrão” proposta por Furberg, com o açúcar aproximadamente perpendicular à base a ele conectada. Há um resíduo em cada cadeia a cada 3,4, na direção z. Assumimos um ângulo de 36° entre resíduos adjacentes na mesma cadeia, assim a estrutura se repete a cada 10 resíduos em cada cadeia, ou seja, a cada 34A. A distância de um átomo de fósforo do eixo das fibras é de 10A. Os fosfatos no lado de fora de forma que cátions têm acesso fácil a eles.

Esta estrutura é aberta e seu conteúdo aquoso bastante alto. Em meio com baixo conteúdo aquoso esperamos que as bases se inclinem e que a estrutura possa se tornar mais compacta.

A nova característica dessa estrutura está na maneira como as duas cadeias estão conectadas por bases de purina e pirimidina. Os planos das bases são perpendiculares ao eixo das fibras. Elas são conectadas em pares, com uma base de uma cadeia unida a uma base da segunda cadeia por uma ponte de hidrogênio de forma que as duas bases permaneçam lado a lado com coordenadas z idênticas. Um elemento do par sendo uma purina e o outro uma pirimidina para que a conexão ocorra. As pontes de hidrogênio são formadas da seguinte forma: a posição 1 da purina liga-se à posição 1 da pirimidina; a posição 6 da purina liga-se à posição 6 da pirimidina.

Se for assumido que as bases apenas ocorram na estrutura nas formas tautoméricas mais plausíveis (isto é, com as configurações keto ao invés de enol) encontra-se que apenas alguns pares específicos podem se ligar. Estes pares são: adenina (purina) com timina (pirimidina) e guanina (purina) com citosina (pirimidina).

Em outras palavras, se uma adenina constitui um membro de um par, na outra cadeia, sob estas suposições, deve haver uma timina. Da mesma forma para uma guanina e uma citosina. A sequência de bases em uma cadeia não parece estar limitada de nenhuma maneira. Contudo, se apenas pares específicos de bases puderem se formar, seguir-se-á que se a sequência de bases em uma cadeia for dada, então a sequência na outra cadeia estará automaticamente determinada.

Experimentalmente encontrou-se que a razão das quantidades de adenina e timina e a razão de guanina e citosina estão sempre muito próximas da unidade para o ácido desoxirribonucleico. 

É provavelmente impossível construir esta estrutura com uma ribose no lugar da desoxirribose, visto que um átomo extra de oxigênio produziria um contato de van der Waals demasiadamente próximo.

Os dados de raios X sobre o ácido desoxirribonucleico publicados anteriormente são insuficientes para um teste rigoroso desta estrutura. Até onde podemos afirmar pelo momento, esta estrutura é genericamente compatível com dados experimentais, mas ela deve ser considerada como não provada até que possa ser verificada com auxílio de resultados mais exatos. Alguns destes resultados são apresentados nas próximas comunicações, cujos detalhes desconhecíamos enquanto nossa estrutura, que foi proposta com base
inteiramente em dados experimentais publicados e argumentos estereoquímicos.

Não fugiu à nossa atenção que o pareamento específico que postulamos sugere imediatamente um mecanismo possível para cópia de material genético.

Detalhes completos da estrutura, incluindo as condições assumidas em sua construção, juntamente com o conjunto de coordenadas para os átomos, serão publicados em outro trabalho.

Agradecemos os constantes conselhos e críticas de Dr. Jerry Donohue, especialmente com respeito às distâncias atômicas. Recebemos também o estímulo das idéias e conhecimento sobre resultados experimentais ainda não publicados do Dr. M.H.F. Wilkins, Dr. R.E. Franklin e seus colaboradores do 

King’s College de Londres. Um de nós (J.D.W.) foi auxiliado por recursos da National Foundation for Infantile Paralysis.



(*)Medical Research Unit for the Study of the Molecular Structure of Biological Systems, Cavendish Laboratory, Cambridge; 2 de abril de 1953



(Tradução de Renato Vicente)


(Ilustração: foto dna sculpture)