“Já vi sim”, respondeu a boa senhora, “e tenho um retrato dele aqui na lareira”. Era uma foto do presidente Deschanel recortada do Le Petit Journal e colocada numa moldura barata, ladeada por retratos imprecisos de Clemenceau e Joffre. O homem tinha o mesmo bigode branco e o olhar esgazeado de Paul Deschanel, mas com toda a honestidade ela foi obrigada a acrescentar: “Sinto muito, mas o senhor não se parece muito com ele.”
terça-feira, 4 de outubro de 2011
PRIMEIRA LOUCURA DOS ANOS LOUCOS, de William Wiser
Nas primeiras horas de 24 de maio [de 1920], um assentador de trilhos chamado André Radeau ia andando sobre os dormentes pelo Bois de Leveau, ao longo da linha Paris–Lyon–Marselha, a 113 quilômetros de Paris, quando foi abordado por um indivíduo descalço, vestindo pijama, que se aproximou dele na escuridão.
“O senhor não vai acreditar!”, gritou a aparição. “Sei que isso deve parecer incrível, mas eu sou o presidente da França!”
O senhor de pijama estava machucado e arranhado. Disse que havia caído do trem presidencial que ia para Roanne. André Radeau acompanhou o pobre coitado até a casa do guarda-cancela no cruzamento mais próximo. Lá, num chalezinho de um cômodo, o guarda-cancela Dariot e esposa ficaram tão perplexos de receber esse hóspede inesperado quanto Radeau ao encontrá-lo nos trilhos da PLM.
O desconhecido apresentou-se como Paul Deschanel, presidente da França. Pediu então a Dariot que comunicasse seu acidente ao subprefeito de Montargis. O guarda-cancela garantiu ao cavalheiro que faria como era do seu desejo, mas não se mexeu. Ao invés disso, foi juntar-se à mulher e ao assentador de trilhos, que cochichavam num canto.
“Madame”, entoou o visitante. “Estou vendo que seu marido não acredita que eu seja o presidente da República. A senhora já viu algum retrato de Paul Deschanel?”
A mulher do guarda-cancela reparara na aparência do cavalheiro. O pijama era de qualidade impecável; seus pés – a não ser pelos vestígios de cinza do leito da via férrea – estavam limpos e eram cor-de-rosa, com as unhas muito bem feitas. Se fosse maluco, era um maluco fino.
“Já vi sim”, respondeu a boa senhora, “e tenho um retrato dele aqui na lareira”. Era uma foto do presidente Deschanel recortada do Le Petit Journal e colocada numa moldura barata, ladeada por retratos imprecisos de Clemenceau e Joffre. O homem tinha o mesmo bigode branco e o olhar esgazeado de Paul Deschanel, mas com toda a honestidade ela foi obrigada a acrescentar: “Sinto muito, mas o senhor não se parece muito com ele.”
“Bem, é verdade que eu estou de pijama, mas isso não me impede de ser o presidente da França.”
Seus protestos continuaram até que ela o fez sentar na cama; depois – enquanto ele insistia para que seu marido falasse com a subprefeitura – ela lavou-lhe os joelhos e cotovelos ralados. Como se tratasse de uma criança teimosa, colocou-o na sua própria cama desarrumada e ainda quente do calor do casal. O assentador de trilhos, enquanto isso, foi em busca do medico mais próximo.
O dr. Guillaumont chegou acompanhado de um gendarme. Pelo exame do médico, parecia que o estranho havia mesmo, como afirmava com insistência, caído de um trem. O dr. Guillaumont passou-lhe antisséptico nas lesões superficiais e aplicou-lhe uma injeção antitetânica. A essa altura, pareceu de bom alvitre que o gendarme fosse informar o subprefeito de que havia um cavalheiro de pijama na casa do guarda-cancela que assegurava ser o presidente da França.
Era uma segunda-feira de Pentecostes, feriado oficial no país. Monsieur Leseur, o subprefeito, decidiu investigar em pessoa esse curioso incidente – mas não havia táxis. E também o telefone (nada incomum) estava com defeito.
Da estação de Montargis, Monsieur Leseur passou um telegrama para o Roanne indagando sobre o trem presidencial. Estava ou não o presidente a bordo? A primeira resposta foi que o trem tinha chegado a Roanne, mas o presidente Deschanel dera ordem a seu criado de quarto para não incomodá-lo antes das oito da manhã. O subprefeito, enquanto isso, conseguiu que um farmacêutico local, Monsieur Damas, fosse levá-lo à humilde casinhola no Bois de Leveau. Ao saber que o objeto de seus esforços era um homem vestido só de pijama, Monsieur Damas, acostumado às emergências, teve o cuidado de pegar uma muda extra de roupa. Uma segunda resposta de Roanne tornou ainda mais urgente a empreitada: o presidente Deschanel não se encontrava em sua cabina.
Muitos observadores já se reuniam então no único quarto da casa do guarda-cancela, em torno da cama onde o senhor de pijama – que talvez fosse, ou não, o presidente da República – sentava-se recostado contra uma pilha de travesseiros, dirigindo os trabalhos, tentando se lembrar de como fora parar nos trilhos perto de Montargis.
Membros da equipe presidencial chegaram à tarde para confirmar que o desconhecido desorientado instalado na cama do guarda-cancela no Bois de Leveau era o presidente da França, Paul Deschanel. De Paris, veio a mulher do presidente, junto com Alexandre Millerand, líder da Assembleia Nacional e primeiro na linha de sucessão. As duas delegações deram um jeito de recompor o presidente como um embrulho desfeito. Vestiram-lhe o terno extra do farmacêutico e lhe enfiaram um par de meias brancas nos pés, enquanto ele pegava emprestados os chinelos de Dariot, o guarda-cancela. O presidente se queixou de un trou dans la memoire, mas apesar desse buraco na memória estava bem consciente do funesto e estranho acidente e recusou-se a voltar para Paris de trem. Uma escolta de vários automóveis levou-o então de regresso ao Palais de l’Elysée.
A história contada à imprensa por Millerand foi que o presidente Deschanel havia se recolhido cedo, para se preparar para o dia de discursos que teria em Roanne; o trem presidencial não estava indo a mais de quarenta quilômetros por hora, para garantir ao presidente uma boa noite de sono, e assim quando ele caiu não se feriu gravemente. Parecia que tinha aberto a janela da cabina e se debruçado um pouco para tomar ar fresco. Mas a janela era mal projetada e o presidente debruçou-se demais. Os jornais logo deram o comunicado na íntegra, com editoriais fervilhando de conjetura: faltavam substância e detalhes, de algum modo, na explicação oficial. Os chansonniers não perderam tempo para transformar a aventura em versos.
Ele não se esqueceu do seu pijama,
é um assombro, mas é assim.
Eleito em janeiro de 1920 (quando Modigliani estava morrendo no Hôpital de la Charité), o novo presidente já vinha dando sinais de uma mente instável e errática. Um conluio de ministros e senadores promovera Paul Deschanel, em detrimento de Clemenceau, numa manobra política para impedir que “O Tigre” fosse eleito para o mais alto cargo do país. O obscuro Deschanel foi eleito presidente, mas nunca pôde recuperar-se de todo de sua inesperada vitória sobre o temível herói francês, Clemenceau. As observações e o comportamento de Deschanel nas recepções públicas tornaram-se cada vez mais bizarras. Na embaixada britânica, ele fez propostas tão extravagantes que os diplomatas pensaram que estivesse bêbado. Após um discurso, assim que um grupo de alunas o presenteou com um buquê, Deschanel passou a jogar as flores, uma a uma, de volta para elas. Numa perturbadora ocasião, ele se afastou de uma delegação oficial para abraçar uma árvore à beira do caminho.
Depois do episódio do trem presidencial, Deschanel mudou-se para o Chateau de Rambouillet, fugindo da capital e das pressões do cargo no Elysée. Certa manhã, afastou-se da árida ordem dos assuntos numa reunião de trabalho – impulso até bem natural – em direção à beira tentadora de um lago, de onde, todo vestido, adentrou pela água. Seu criado de quarto viu-o em apuros no lago e mergulhou atrás.
No outono, a breve passagem de Deschanel pelo poder chegou ao fim em Malmaison, uma instituição nos arredores de Paris para o tratamento de distúrbios nervosos. Em 23 de setembro, Millerand tornou-se o novo presidente da República.
Durante o mandato maníaco-depressivo de Deschanel, dois revolucionários da arte, brincalhões, mas sérios – Francis Picabia e Tristan Tzara – chegaram a Paris vindos de Zurique, onde haviam fundado um movimento destinado a semear a anarquia nas formas estabelecidas da cultura francesa. O movimento se chamava Dada, a primeira palavra encontrada ao acaso pelos fundadores no Petit Larousse, um termo da linguagem das crianças para cavalinho de pau. Segundo os princípios do novo credo, ir de pijama em visita a Montargis, entrar de terno num lago, apaixonar-se por uma árvore eram provas do dadaísmo essencial em todos nós (até mesmo o político mais empedernido) e justamente os exemplos que o presidente da França deveria dar.
Sem dúvida alguma, Deschanel foi o precursor da era. Nesses primeiros meses de 1920 pode ter surgido a primeira evidência da década de 20 como les années folles, os anos loucos.
(Os Anos Loucos – Paris na Década de 20; tradução de Leonardo Fróes).
(Ilustração: Francis Picabia – moça com sombrinha)
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William Wiser - Primeira loucura dos anos loucos
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