terça-feira, 30 de novembro de 2010

HÁ METAFÍSICA BASTANTE EM NÃO PENSAR EM NADA, de Fernando Pessoa (Alberto Caieiro)







Há metafísica bastante em não pensar em nada.

O que penso eu do mundo?

Sei lá o que penso do mundo!

Se eu adoecesse pensaria nisso.

Que ideia tenho eu das cousas?

Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?

Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma

E sobre a criação do Mundo?

Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos

E não pensar. É correr as cortinas

Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!

O único mistério é haver quem pense no mistério.

Quem está ao sol e fecha os olhos,

Começa a não saber o que é o sol

E a pensar muitas cousas cheias de calor.

Mas abre os olhos e vê o sol,

E já não pode pensar em nada,

Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos

De todos os filósofos e de todos os poetas.

A luz do sol não sabe o que faz

E por isso não erra e é comum e boa.

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?

A de serem verdes e copadas e de terem ramos

E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,

A nós, que não sabemos dar por elas.

Mas que melhor metafísica que a delas,

Que é a de não saber para que vivem

Nem saber que o não sabem?

"Constituição íntima das cousas"...

"Sentido íntimo do Universo"...

Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.

É incrível que se possa pensar em cousas dessas.

É como pensar em razões e fins

Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores

Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

Pensar no sentido íntimo das cousas

É acrescentado, como pensar na saúde

Ou levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das cousas

É elas não terem sentido íntimo nenhum.

Não acredito em Deus porque nunca o vi.

Se ele quisesse que eu acreditasse nele,

Sem dúvida que viria falar comigo

E entraria pela minha porta dentro

Dizendo-me, aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos

De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,

Não compreende quem fala delas

Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores

E os montes e sol e o luar,

Então acredito nele,

Então acredito nele a toda a hora,

E a minha vida é toda uma oração e uma missa,

E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores

E os montes e o luar e o sol,

Para que lhe chamo eu Deus?

Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;

Porque, se ele se fez, para eu o ver,

Sol e luar e flores e árvores e montes,

Se ele me aparece como sendo árvores e montes

E luar e sol e flores,

É que ele quer que eu o conheça

Como árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe,

(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).

Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,

Como quem abre os olhos e vê,

E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,

E amo-o sem pensar nele,

E penso-o vendo e ouvindo,

E ando com ele a toda a hora.





(O Guardador de Rebanhos)




(Ilustração: Botero – gorda leyendo)


domingo, 28 de novembro de 2010

A LOTERIA EM BABILÔNIA, de Jorge Luis Borges





Como todos os homens da Babilônia, fui pro-cônsul; como todos, escravo; também conheci a onipotência, o opróbrio, os cárceres. Olhem: à minha mão direita falta-lhe o indicador. Olhem: por este rasgão da capa vê-se no meu estômago uma tatuagem vermelha: é o segundo símbolo, Beth. Esta letra, nas noites de lua cheia, confere-me poder sobre os homens cuja marca é Ghimel, mas sujeita-me aos de Aleph(*), que nas noites sem lua devem obediência aos de Ghimel. No crepúsculo do amanhecer, num sótão, jugulei ante uma pedra negra touros sagrados. Durante um ano da Lua, fui declarado invisível: gritava e não me respondiam, roubava o pão e não me decapitavam. Conheci o que ignoram os gregos: a incerteza. Numa câmara de bronze, diante do lenço silencioso do estrangulador, a esperança foi-me fiel; no rio dos deleites, o pânico. Heraclides Pôntico(**)com admiração que Pitágoras se lembrava de ter sido Pirro e antes Euforbo e antes ainda um outro mortal; para recordar vicissitudes análogas não preciso recorrer à morte, nem mesmo à impostura.

Devo essa variedade quase atroz a uma instituição que outras repúblicas desconhecem ou que nelas trabalha de forma imperfeita e secreta: a loteria. Não indaguei a sua história; sei que os magos não conseguem por-se de acordo; sei dos seus poderosos propósitos; o que pode saber da Lua o homem não versado em astrologia. Sou de um país vertiginoso onde a loteria é a parte principal da realidade: até o dia de hoje, pensei tão pouco nela como na conduta dos deuses indecifráveis ou do meu coração. Agora longe da Babilônia e dos seus estimados costumes, penso com certo espanto na loteria e nas conjecturas blasfemas que ao crepúsculo murmuram os homens velados.

Meu pai contava que antigamente — questão de séculos, de anos? — a loteria na Babilônia era um jogo de caráter plebeu. Referia (ignoro se com verdade) que os barbeiros trocavam por moedas de cobre, retângulos de osso ou de pergaminho adornados de símbolos. Em pleno dia verificava-se um sorteio: os contemplados recebiam, sem outra confirmação da sorte, moedas cunhadas de prata. O procedimento era elementar, como os senhores veem.

Naturalmente, essas "loterias" fracassaram. A sua virtude moral era nula. Não se dirigiam a todas as faculdades do homem: unicamente à sua esperança. Diante da indiferença pública, os mercadores que fundaram essas loterias venais começaram a perder dinheiro. Alguém esboçou uma reforma: a intercalação de alguns números adversos no censo dos números favoráveis. Mediante essa reforma, os compradores de retângulos numerados expunham-se ao duplo risco de ganhar uma soma e de pagar uma multa, às vezes vultosa. Esse leve perigo (em cada trinta números favoráveis havia um número aziago) despertou, como é natural, o interesse do público. Os babilônios entregaram-se ao jogo. O que não adquiria sortes era considerado um pusilânime, um apoucado. Com o tempo esse desdém justificado duplicou-se. Eram desprezados aqueles que não jogavam, mas também o eram os que perdiam e abonavam a multa. A Companhia (assim começou então a ser chamada) teve que velar pelos ganhadores, que não podiam cobrar os prêmios se nas caixas faltasse a importância quase total das multas. Propôs uma ação judicial contra os perdedores: o juiz condenou-os a pagar a multa original e as custas, ou a uns dias de prisão. Todos optaram pelo cárcere, para defraudar a Companhia. Dessa bravata de uns poucos nasce todo o poder da Companhia: o seu valor eclesiástico, metafísico.

Pouco depois, as informações dos sorteios omitiram as referências de multas e limitaram-se a publicar os dias de prisão que designava cada número adverso. Esse laconismo, quase inadvertido a seu tempo, foi de capital importância. Foi o primeiro aparecimento, na loteria, de elementos não pecuniários. O êxito foi grande. Instada pelos jogadores, a Companhia viu-se obrigada a aumentar os números adversos.

Ninguém ignora que o povo da Babilônia é devotíssimo à lógica, e ainda à simetria. Era incoerente que se computassem os números ditosos em moedas redondas e os infaustos em dias e noites de cárcere. Alguns moralistas raciocinaram que a posse das moedas não determina sempre a felicidade e que outras formas de ventura são talvez mais diretas.

Inquietações diversas propagavam-se nos bairros desfavorecidos. Os membros do colégio sacerdotal multiplicavam as apostas e gozavam de todas as vicissitudes do terror e da esperança; os pobres (com inveja razoável ou inevitável) sabiam-se excluídos desse vaivém, notoriamente delicioso. O justo desejo de que todos, pobres e ricos, participassem por igual na loteria, inspirou uma indignada agitação, cuja memória os anos não apagaram. Alguns obstinados não compreenderam (ou simularam não compreender) que se tratava de uma ordem nova, de uma necessária etapa histórica... Um escravo roubou um bilhete carmesim, que no sorteio lhe deu direito a que lhe queimassem a língua. O código capitulava essa mesma pena para o que roubava um bilhete. Alguns babilônios argumentavam que merecia o ferro candente, na sua qualidade de ladrão; outros, magnânimos, que se devia condená-lo ao carrasco porque assim o havia determinado o azar... Houve distúrbios, houve efusões lamentáveis de sangue; mas a gente babilônica finalmente impôs a sua vontade, contra a oposição dos ricos. O povo conseguiu plenamente os seus generosos fins. Em primeiro lugar, conseguiu que a Companhia aceitasse a soma do poder público. (Essa unificação era indispensável, dada a vastidão e complexidade das novas operações.) Em segunda etapa, conseguiu que a loteria fosse secreta, gratuita e geral. Ficou abolida a venda mercenária de sortes. Iniciado nos mistérios de Bel, todo homem livre participava automaticamente dos sorteios sagrados, que se efetuavam nos labirintos do deus de sessenta em sessenta noites e que demarcavam o seu destino até o próximo exercício. As consequências eram incalculáveis. Uma jogada feliz podia motivar-lhe a elevação ao concílio dos magos ou a detenção de um inimigo (conhecido ou íntimo), ou a encontrar, nas pacíficas trevas do quarto, a mulher que começava a inquietá-lo ou que não esperava rever; uma jogada adversa: a mutilação, a infâmia, a morte. Às vezes, um fato apenas — o vil assassinato de C, a apoteose misteriosa de B — era a solução genial de trinta ou quarenta sorteios. Combinar as jogadas era difícil; mas convém lembrar que os indivíduos da Companhia eram ( e são) todo-poderosos e astutos. Em muitos casos, teria diminuído a sua virtude o conhecimento de que certas felicidades eram simples fábrica do acaso; para frustrar esse inconveniente, os agentes da Companhia usavam das sugestões e da magia. Os seus passos e os seus manejos eram secretos. Para indagar as íntimas esperanças e os íntimos terrores de cada um, dispunham de astrólogos e de espiões. Havia certos leões de pedra, havia uma latrina sagrada chamada Qaphqa, havia algumas fendas no poeirento aqueduto que, conforme a opinião geral, levavam à Companhia; as pessoas malignas ou benévolas depositavam delações nesses sítios. Um arquivo alfabético recolhia essas notícias de veracidade variável.

Por incrível que pareça, não faltavam murmúrios. A Companhia, com a sua habitual discrição, não replicou diretamente. Preferiu rabiscar nos escombros de uma fábrica de máscaras um argumento breve, que agora figura nas escrituras sagradas. Essa peça doutrinal observava que a loteria é uma interpolação da casualidade na ordem do mundo e que aceitar erros não é contradizer o acaso: é confirmá-lo. Salientava, da mesma maneira, que esses leões e esse recipiente sagrado, ainda que não desautorizados pela Companhia (que não renunciava ao direito de os consultar), funcionavam sem garantia oficial.

Essa declaração apaziguou os desassossegos públicos. Também produziu outros efeitos, talvez não previstos pelo autor. Modificou profundamente o espírito e as operações da Companhia. Pouco tempo me resta; avisam-nos que o navio está para zarpar; mas tratarei de os explicar.

Por inverossímil que seja, ninguém tentara até então uma teoria geral dos jogos. O babilônio é pouco especulativo. Acata os ditames do acaso, entrega-lhes a vida, a esperança, o terror pânico, mas não lhe ocorre investigar as suas leis labirínticas, nem as esferas giratórias que o revelam. Não obstante, a declaração oficiosa que mencionei instigou muitas discussões de caráter jurídico-matemático. De uma delas nasceu a seguinte conjectura: se a loteria é uma intensificação do acaso, uma periódica infusão do caos no cosmos, não conviria que a casualidade interviesse em todas as fases do sorteio e não apenas numa? Não é irrisório que o acaso dite a morte de alguém e que as circunstâncias dessa morte — a reserva, a publicidade, o prazo de uma hora ou de um século — não estejam subordinadas ao acaso? Esses escrúpulos tão justos provocaram, por fim, uma reforma considerável, cujas complexidades (agravadas por um exercício de séculos) só as entendem alguns especialistas, mas que intentarei resumir, embora de modo simbólico.

Imaginemos um primeiro sorteio que decrete a morte de um homem. Para o seu cumprimento procede-se a um outro sorteio, que propõe (digamos) nove executores possíveis. Desses executores quatro podem iniciar um terceiro sorteio que dirá o nome do carrasco, dois podem substituir a ordem infeliz por uma ordem ditosa (o encontro de um tesouro, digamos), outro exacerbará (isto é, a tornará infame ou a enriquecerá de torturas), outros podem negar-se a cumpri-la... Tal é o esquema simbólico. Na realidade o número de sorteios é infinito. Nenhuma decisão é final, todas se ramificam noutras. Os ignorantes supõem que infinitos sorteios requerem um tempo infinito; em verdade, basta que o tempo seja infinitamente subdivisível, como o ensina a famosa parábola do Certame com a Tartaruga. Essa infinitude condiz admiravelmente com os sinuosos números do Acaso e com o Arquétipo Celestial da Loteria, que os platônicos adoram... Um eco disforme dos nossos ritos parece ter reboado no Tibre: Ello Lampridio, na Vida de Antonino Heliogábalo, refere que este imperador escrevia em conchas as sortes que destinava aos convidados, de forma que um recebia dez libras de ouro, e outro, dez moscas, dez leirões, dez ossos. É lícito lembrar que Heliogábalo foi educado na Ásia Menor, entre os sacerdotes do deus epônimo.

Também há sorteios impessoais, de objetivo indefinido; um ordena que se lance às águas do Eufrates uma safira de Taprobana; outro, que do alto de uma torre se solte um pássaro, outro, que secularmente se retire (ou se acrescente) um grão de areia aos inumeráveis que há na praia. As consequências são, às vezes, terríveis.

Sob o influxo benfeitor da Companhia, os nossos costumes estão saturados de acaso. O comprador de uma dúzia de ânforas de vinho damasceno não estranhará se uma delas contiver um talismã ou uma víbora; o escrivão que redige um contrato não deixa quase nunca de introduzir algum dado errôneo; eu próprio, neste relato apressado, falseei certo esplendor, certa atrocidade. Talvez, também, uma misteriosa monotonia... Os nossos historiadores, que são os mais perspicazes da orbe, inventaram um método para corrigir o acaso; é de notar que as operações desse método são (em geral) fidedignas; embora, naturalmente, não se divulguem sem alguma dose de engano. Além disso, nada tão contaminado de ficção como a história da Companhia... Um documento paleográfico, exumado num templo, pode ser obra de um sorteio de ontem ou de um sorteio secular. Não se publica um livro sem qualquer divergência em cada um dos exemplares. Os escribas prestam juramento secreto de omitir, de intercalar, de alterar. Também se exerce a mentira indireta.

A Companhia, com modéstia divina, evita toda publicidade. Os seus agentes, como é óbvio, são secretos; as ordens que distribui continuamente (talvez incessantemente) não diferem das que prodigalizam os impostores. Para mais, quem poderá gabar-se de ser um simples impostor? O bêbado que improvisa um mandato absurdo, o sonhador que desperta de súbito e estrangula a mulher a seu lado, não executam, porventura, uma secreta decisão da Companhia? Esse funcionamento silencioso, comparável ao de Deus, provoca toda espécie de conjecturas. Uma insinua abominavelmente que há séculos não existe a Companhia e que a sacra desordem das nossas vidas é puramente hereditária, tradicional; outra julga-a eterna e ensina que perdurará até a última noite, quando o último deus aniquilar o mundo. Outra afiança que a Companhia é onipotente, mas que influi somente em coisas minúsculas: no grito de um pássaro, nos matizes da ferrugem e do pó, nos entressonhos da madrugada. Outra, por boca de heresiarcas mascarados, que nunca existiu nem existirá. Outra, não menos vil, argumenta que é indiferente afirmar ou negar a realidade da tenebrosa corporação, porque a Babilônia não é outra coisa senão um infinito jogo de acasos.



(*) Aleph, beth, ghimel são as três primeiras letras do alfabeto hebraico. (N. do E.)

(**) Filósofo grego do século IV a. C., discípulo de Platão. (N. do E.)


(Ficções; tradução de Carlos Nejar)


(Ilustração: Adriana Mufarrege)



sexta-feira, 26 de novembro de 2010

EVOCAÇÃO FEMININA , de Virgínia Schall







(Dedico este poema às poetas Bárbara Heliodora, Cecília Meireles,
Henriqueta Lisboa (in memoria) e especialmente à poeta e amiga Stella
Leonardos, através das quais evoco todas as mulheres poetas de todos
os tempos, cujas vozes estiveram caladas por tantos séculos.)

Minha voz

rasga véus
cortinas
de dentro
de sempre
desfaz penumbras
e acorda
Bárbaras, Cecílias, Stellas
Henriquetas, Heliodoras

E suas vozes
em minhas palavras
alteiam
celebram encontros
de amores tantos
salpicam sândalos
no ar.

Sagas passadas
chagas em sangue
vertem
e vibram
amantes perenes
somos todas
onipresentes.

Minhas mãos
tão femininas
mãos de mulher
madura, menina
sonham
acariciam ternas
lúcidas lembranças
pedaços de dias
franjas de ausências
melancolias

Em suas palmas
conchas
de lágrimas oceânicas
verdejam prantos
horas molhadas
de sofrimento,
surdas, caladas.

O silêncio da solidão
é memória
reverbera
fantasias, ilusões,
onde desaguar
como abraçar
tamanha paixão?

Mãos entrelaçadas
tecem séculos
em teia
de fios farpados
prisão de anjos
eternizados
Somos etéreas
flores fugazes
pirilampos da vida
pela vida
alinhavadas

Assim evoco
Bárbara, Cecília, Stella
Henriqueta, Heliodora
cantemos juntas
à nossa felicidade
brindemos uníssonas
à nossa liberdade!



(Ilustração: Katy Bailey – triangular trinity)


quarta-feira, 24 de novembro de 2010

DO TRAPÉZIO E OUTRAS COISAS, de Machado de Assis







...Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos. Meu pai, logo que teve aragem dos onze contos, sobressaltou-se deveras; achou que o caso excedia as raias de um capricho juvenil.



— Desta vez, disse ele, vais para a Europa; vais cursar uma Universidade, provavelmente Coimbra; quero-te para homem sério e não para arruador e gatuno. E como eu fizesse um gesto de espanto:



— Gatuno, sim senhor; não é outra coisa um filho que me faz isto...

Sacou da algibeira os meus títulos de dívida, já resgatados por ele, e sacudiu-mos na cara.


— Vês, peralta? é assim que um moço deve zelar o nome dos seus? Pensas que eu e meus avós ganhamos o dinheiro em casas de jogo ou a vadiar pelas ruas? Pelintra! Desta vez ou tomas juízo, ou ficas sem coisa nenhuma.



Estava furioso, mas de um furor temperado e curto. Eu ouvi-o calado, e nada opus à ordem da viagem, como de outras vezes fizera; ruminava a idéia de levar Marcela comigo. Fui ter com ela; expus-lhe a crise e fiz-lhe a proposta. Marcela ouviu-me com os olhos no ar, sem responder logo; como insistisse, disse-me que ficava, que não podia ir para a Europa.



— Por que não?



— Não posso, disse ela com ar dolente; não posso ir respirar aqueles ares, enquanto me lembrar de meu pobre pai, morto por Napoleão...



— Qual deles: o hortelão ou o advogado?



Marcela franziu a testa, cantarolou uma seguidilha, entre dentes; depois queixou-se do calor, e mandou vir um copo de aluá. Trouxe-lho a mucama, numa salva de prata, que fazia parte dos meus onze contos. Marcela ofereceu-me polidamente o refresco; minha resposta foi dar com a mão no copo e na salva; entornou-se-lhe o líquido no regaço, a preta deu um grito, eu bradei-lhe que se fosse embora. Ficando a sós, derramei todo o desespero de meu coração; disse-lhe que ela era um monstro, que jamais me tivera amor, que me deixara descer a tudo, sem ter ao menos a desculpa da sinceridade; chamei-lhe muitos nomes feios, fazendo muitos gestos descompostos. Marcela deixara-se estar sentada, a estalar as unhas nos dentes, fria como um pedaço de mármore. Tive ímpetos de a estrangular, de a humilhar ao menos, subjugando-a a meus pés. Ia talvez fazê-lo; mas a ação trocou-se noutra; fui eu que me atirei aos pés dela, contrito e súplice; beijei-lhos, recordei aqueles meses da nossa felicidade solitária, repeti-lhe os nomes queridos de outro tempo, sentado no chão, com a cabeça entre os joelhos dela, apertando-lhe muito as mãos; ofegante, desvairado, pedi-lhe com lágrimas que me não desamparasse... Marcela esteve alguns instantes a olhar para mim, calados ambos, até que brandamente me desviou e, com um ar enfastiado:



— Não me aborreça, disse.



Levantou-se, sacudiu o vestido, ainda molhado, e caminhou para a alcova.



— Não! bradei eu; não hás de entrar... não quero... Ia a lançar-lhe as mãos: era tarde; ela entrara e fechara-se.



Saí desatinado; gastei duas mortais horas em vaguear pelos bairros mais excêntricos e desertos, onde fosse difícil dar comigo. Ia mastigando o meu desespero, com uma espécie de gula mórbida; evocava os dias, as horas, os instantes de delírio, e ora me comprazia em crer que eles eram eternos, que tudo aquilo era um pesadelo, ora, enganando-me a mim mesmo, tentava rejeitá-los de mim, como um fardo inútil. Então resolvia embarcar imediatamente para cortar a minha vida em duas metades, e deleitava-me com a idéia de que Marcela, sabendo da partida, ficaria ralada de saudades e remorsos. Que ela amara-me a tonta, devia de sentir alguma coisa, uma lembrança qualquer, como do alferes Duarte... Nisto, o dente do ciúme enterrava-se-me no coração; toda a natureza bradava que era preciso levar Marcela comigo.



— Por força... por força... dizia eu ferindo o ar com uma punhada.



Enfim, tive uma idéia salvadora... Ah! trapézio dos meus pecados, trapézio das concepções abstrusas! A idéia salvadora trabalhou nele, como a do emplasto (capítulo II). Era nada menos que fasciná-la, fasciná-la muito, deslumbrá-la, arrastá-la; lembrou-me pedir-lhe por um meio mais concreto do que a súplica. Não medi as consequências; recorri a um derradeiro empréstimo; fui à Rua dos Ourives, comprei a melhor joia da cidade, três diamantes grandes encastoados num pente de marfim; corri à casa de Marcela.



Marcela estava reclinada numa rede, o gesto mole e cansado, uma das pernas pendentes, a ver-se-lhe o pezinho calçado de meia de seda, os cabelos soltos, derramados, o olhar quieto e sonolento.



— Vem comigo, disse eu, arranjei recursos... temos muito dinheiro, terás tudo o que quiseres... Olha, toma.



E mostrei-lhe o pente com os diamantes... Marcela teve um leve sobressalto, ergueu metade do corpo, e, apoiada num cotovelo, olhou para o pente durante alguns instantes curtos; depois retirou os olhos; tinha-se dominado. Então, eu lancei-lhe as mãos aos cabelos, coligi-os, enlacei-os à pressa, improvisei um toucado, sem nenhum alinho, e rematei-o com o pente de diamantes; recuei, tornei a aproximar-me, corrigi-lhe as madeixas, abaixei-as de um lado, busquei alguma simetria naquela desordem, tudo com uma minuciosidade e um carinho de mãe.



— Pronto, disse eu.



— Doudo! foi a sua primeira resposta.



A segunda foi puxar-me para si, e pagar-me o sacrifício com um beijo, o mais ardente de todos. Depois tirou o pente, admirou muito a matéria e o lavor, olhando a espaços para mim, e abanando a cabeça, com um ar de repreensão:



— Ora você! dizia.



— Vens comigo?



Marcela refletiu um instante. Não gostei da expressão com que passeava os olhos de mim para a parede, e da parede para a joia; mas toda a má impressão se desvaneceu, quando ela me respondeu resolutamente:



— Vou. Quando embarcas?



— Daqui a dois ou três dias.



— Vou.



Agradeci-lho de joelhos. Tinha achado a minha Marcela dos primeiros dias, e disse-lho; ela sorriu, e foi guardar a joia, enquanto eu descia a escada.






(Memórias Póstumas de Brás Cubas, capítulo XVII)






(Ilustração: Vermeer – girl with a pearl earring)








segunda-feira, 22 de novembro de 2010

OITAVA SOMBRA: ÚLTIMO FANTASMA, de Castro Alves






Quem és tu, quem és tu, vulto gracioso,
Que te elevas da noite na orvalhada?
Tens a face nas sombras mergulhada...
Sobre as névoas te libras vaporoso...


Baixas do céu num vôo harmonioso!...
Quem és tu, bela e branca desposada?
Da laranjeira em flor a flor nevada
Cerca-te a fronte, ó ser misterioso!...



Onde nos vimos nós?... És doutra esfera?
És o ser que eu busquei do sul ao norte...
Por quem meu peito em sonhos desespera?...


Quem és tu? Quem és tu? — És minha sorte!
És talvez o ideal que est'alma espera!
És a glória talvez! Talvez a morte!...


(Ilustração: Franz von Stuck – femme fatale)


sábado, 20 de novembro de 2010

MARCOLINA-CORPO-DE-SEREIA, de Nilza Amaral







Não serei diferente do que sou, tenho muito prazer
em minha condição. Sempre sou acariciada.


(Uma jovem feiticeira francesa de 1660)






Nascera linda. Crescera maravilhosa. Cuidava dos porcos e das galinhas. Chafurdava na lama, calçada com suas botas de borracha preta que resguardavam os membros em mutação, abrigava os cabelos de seda do sol inclemente sob um saco de estopa amarrado à bandeira de rebeldes.

Rebelde não era. Mas a ponta da luxúria já era incipiente. Insidiosa, começava a escalar a árvore do desejo pela raiz. Marcolina colecionava revistas que chegavam à venda na pequena vila de pescadores, um lapso do correio, pois revistas fashion look e vogues estrangeiras, outras do mundo inteiro, até uma nacional com apresentação de modelos com traseiros superdesenvolvidos, misturavam-se às batatas e à ração animal. "Leve, leve, para que me servem", dizia o vendeiro, "E para o que te servem, Marcolina? - Vai mostrar aos porcos, engordar suas vistas?” 


Marcolina-corpo-de-sereia morava junto ao mar, respirava o ar de sal e algas, ouvia cantos ao longe, ninfa ingênua que se transmutava sutilmente à medida que se banhava abaixo da cintura, nas ondas encrespadas do mar, no fundo de seu quintal.

Marcolina-corpo-de-sereia ainda não sabia para o que as tais revistas serviam e carregava todas, tinha a coleção debaixo de sua cama, o lugar ideal para o esconderijo, jamais vasculhado pelas vassouras que passavam ao largo.

Marcolina crescia. Os seios em botão afloravam pontudos na blusa, os pêlos dourados, penugem de seda, cobriam seu corpo alvo, até a cintura. Abaixo desta, a indagação. Marcolina virava sereia e ninguém percebia, nem os porcos satisfeitos com a lavagem diária não queriam saber sobre o sexo ou a imagem de quem os alimentava.

À noite Marcolina sonhava, folheando as revistas e descobrindo mulheres belas, despidas e ousadas, famosas mulheres da cidade. E desejava, ansiava, suspirava.

Um dia foi dar comida aos porcos, nua da cintura para cima. E o tio velho, os pais alienados, até os porcos pararam, o mundo cessou o seu giro, o sol brilhou mais intensamente para Marcolina desfilar. Seios empinados apontando para o céu, nua até onde o corpo de sereia permitia, Marcolina desfilou com o balde da comida dos porcos sobre os ombros ante os olhares tristes de todos: a princesinha transformara-se em rainha, e todos teriam que se conformar. Só não se conformaram os porcos com o atraso da alimentação.

Marcolina decidira. Queria desfilar sobre as calçadas cobertas de ouro, na passarela onde mulheres bonitas tornavam-se rainhas, mostravam o corpo, os seios, a bunda, suas carnes eram admiradas por todos e premiadas pela exposição.

A mãe era ignorante; porém, a ignorância não elimina a inteligência e constatava a mudança no comportamento de Marcolina. Aconselhar a filha? E o que poderia dizer-lhe? Que a verdadeira essência da vida é a simplicidade e que ela deveria conformar-se cuidando da sua vida ali naquela terra junto ao mar, alimentando os porcos, o seu dote para o futuro? Estava preparada para o revoar de sua pombinha.

Num dia da faxina no quarto da filha pronta para o vôo, encontrou as revistas. E perdeu metade do dia maravilhada, até que as devolveu ao esconderijo, saindo do quarto como de um castelo encantado.

Marcolina-corpo-de-sereia não nadou. Viajou. Subiu a colina num trem de segunda categoria, mochila nas costas, longa saia esvoaçante, e desembarcou na cidade que oferecia ouro às mulheres formosas.

Mulher linda e exótica, mesmo com corpo de sereia, sempre acha algum malandro querendo ser encantado pelo seu encanto. Com Marcolina não foi diferente e, ao ouvir aquela voz maviosa perguntando onde estavam as ruas cobertas de ouro, não teve dúvida em afirmar que conhecia o endereço das minas. Marcolina estranhou o ambiente ao sair da estação ferroviária e mergulhar no enxame humano de seres de todos os tipos, de mulatos mequetrefes a banqueiros raquíticos, de garotos de motos com botas de vaqueiro a adolescentes que paravam defronte às vitrines das lojas para ajeitar a roupa barata, os corpetes justos e as calças iguais, fazendo de todas apenas uma. Marcolina-corpo-de-sereia queria saber das calçadas douradas, das mulheres glamourosas, dos homens que sussurravam; seu corpo de sereia doía, sua cabeça latejava, aquele cheiro azedo de gente junta lembrava-lhe os porcos comendo lavagem e começava a impregnar-se da nostalgia da brisa do mar, do cheiro do sal, da lama da pocilga dos porcos.

"Eu me chamo Cobra", falou ele, indicando-lhe a moto escrachada e dizendo "suba aí na garupa que eu vou levar você até as calçadas de ouro". E partiram para a Mansão das Damas, a pensão na casa antiga e velha, ladeada de floreiras com flores de plástico, "veja é aqui que você vai morar, minha rainha, e já vou arranjar ouro para você hoje mesmo. Tome um banho, vista este vestido, jogue fora essa sua saia de cigana", sussurrava ele em seus ouvidos, escorregando a mão pelo seu corpo, enquanto a empurrava para um quarto minúsculo sobre uma cama quebrada, dizendo "o banheiro é no fundo do corredor, eu já volto".

Marcolina afinal tivera os sussurros nos ouvidos. A barra dourada e desbotada de mulheres nuas da pintura barroca na parede do quarto, mais o cansaço da viagem e a excitação da cidade grande a deslumbraram. Deitou, dormiu e sonhou com os seus porcos. Mas antes vestiu a roupa de escamas verdes brilhantes que amoldou o seu corpo de sereia.

A noite chegou e com ela o Cobra mais um fulano de terno e gravata que, sem abrir a boca, mostrou-lhe uma pulseira dourada, dizendo, ofegante, "olha, eu lhe trouxe o ouro", e logo abraçou-a pela cintura, procurando as suas profundezas, fungando e grunhindo, mordendo seus peitos duros, retirando-lhe o ar, na busca pelo imã que atrai todos os homens, e se da cintura para baixo Marcolina era mutante, outros orifícios o satisfizeram. Foi a primeira noite da sereia em terra de bárbaros que em troca do ouro, tão falso quanto a pintura das paredes, lhe extraíram prazeres. Outras noites vieram, novas pulseiras douradas, outros fulanos de terno e gravata irromperam pelo quarto do Cobra. Vamos ficar ricos, menina. Ela não acreditava, pedia as calçadas de ouro, as passarelas brilhantes, os vestidos de rainha. Mas ia ficando no seu vestido de escamas brilhantes, porque percebia que da cintura para baixo já não era mais a mesma. Alguma coisa estranha estava acontecendo — e aconteceu de fato. Examinando-se ao espelho viu suas pernas unindo-se debaixo do vestido de escamas brilhantes e verdes, sua cintura colava-se ao tecido, e ali no espelho a metamorfose mostrava a mais linda sereia do mundo. Cobra não se assustou. Colocou-a de lado na garupa da moto, levou-a até o litoral e despejou-a no mar revolto, resmungando que com cafetão de segunda classe as minas se transformam até em peixes.

Marcolina-corpo-de-sereia vagou pelas ondas, penetrou nas profundas do oceano, distraiu-se atrás dos peixes dourados até que, seguindo o som do canto embriagador, foi dar com os costados na praia de sua casa. Reconheceu o terreno pelo cheiro de lavagem dos porcos e pelo ressoar do cochilo de seu tio velho dormindo na areia.

Emergiu nua, largando as escamas brilhantes na água verde. Membros recompostos conduziram-na até sua casa, os porcos grunhiram satisfeitos, o amanhecer a encontrou folheando as revistas glamourosas, satisfeita de haver conhecido, se não as ruas cobertas de ouro, o outro lado da vida para além do mar. O tio alienado acordou com os grunhidos dos porcos, e Marcolina percebeu que já era hora de calçar as botas de borracha, próprias para chafurdar na lama. As pulseiras douradas brilhavam em seu pulso.



(Contos de escritoras brasileiras)





(Ilustração: Gottardo Ciapanna – Maria Maddalena)



quinta-feira, 18 de novembro de 2010

PELO TELEFONE, de GilkaMachado







Ignoro quem tu és,
de onde vens,
aonde irás;
amo-te pelo enigma pertinaz
que em ti me atrai e me intimida,
por essa música mendaz
de tua voz
que alvoroçou minha audição
e me vem desviando a vida
de seu destino de solidão.

Ignoro quem tu és,
de onde vens,
aonde irás...
Fala-me sempre,
mente mais;
não te posso exprimir o pavor que me invade,
as aflições que me consomem,
ao meditar na triste realidade
de que deve ser feita
essa tua alma de homem.

Ignoro quem tu és,
de onde vens,
aonde irás,
audaz
desconhecido;
tua palavra mente ao meu ouvido,
mas não mente essa voz que me treslouca!
— Ela é o amor que me chama por tua boca,
num apelo tristonho,
de saudade;
é a exortação do sonho
à minha rara sensibilidade.
Ignoro quem tu és,
de onde vens,
aonde irás:
amo a ilusão que tua voz me traz.
a falsidade em que procuro crer.

Fala-me sempre, mente mais,
que de mim só mereces tanto apreço,
ó nebuloso, porque desconheço
as humanas misérias de teu ser!

Mas nesta solidão a que me imponho,
quando quedo em silêncio
a te aguardar a voz,
como se torna teu enigma atroz,
que ânsia de estrangular este formoso sonho,
de transpor os espaços,
de bem te conhecer,
de me atirar depressa,
inteira,
nos teus braços,
de te possuir só para te esquecer!...



(Sublimação)

(Ilustração: Gottardo Ciapanna – An amorous reflection)




terça-feira, 16 de novembro de 2010

CENAS DA VIDA BRASILEIRA, de Marques Rebelo







1. Como o governador enjoasse de ovos, correram os amigos e coseram as bundinhas de todas as galinhas.



2. — Na sua casa há muitos escorpiões?

E João Alfonsus:

— Para o gasto.



3. O homem nunca tinha visto o mar. Um dia, viu-o.

— Então?

— Muito chique, muito distinto...



4. Conversinha:

— Que tal a estrada?

— Boa para avião.



5. Há uma razão para que o povo não goste muito do Sr. Rubem Braga:

— Que tal acha a nossa terra? perguntaram-lhe.

— Bom lugar para se construir uma cidade.



6. A casa mais colonial de Sabará foi construída no ano passado.



7. O café do falecido Aristides ficava na praça mais importante, daí sua freguesia ser numerosa.

As moças chegavam, sentavam e pediam:

— Sorvete de chocolate, seu Aristides.

Aristides era amável, tinha coisas engraçadas:

— O sorvete acabou, mas tem guaraná geladinho, muito bom, muito diurético.




(Ilustração: Kandinsky)




domingo, 14 de novembro de 2010

PAISAGEM CINZENTA PARA DENTRO E PARA FORA DOS OLHOS, de Kátia Bento









A velha, olhos velhos, mãos nodosas,

lavava a túnica suja de terra

do sobrinho sargento que veio de Ouro Preto.

Fria como os olhos dela, a tarde

foi virando noite, esfriando mais.

A cinza dos cigarros fumados aumentou.

A velha

lamentava a vida, a carestia, a solidão

e lavava a túnica suja de terra

do sobrinho sargento que veio de Ouro Preto.



(Ilustração: foto de José Gama – lavadeira)

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

NUNCA DEIXE SEU FILHO MAIS CONFUSO QUE VOCÊ, de Lourenço Diaféria







De manhã, na copa. O pai mexe o café na xícara. O filho caçula vem da sala, dispara:

— Pai, o que é genitália? O homem volta-se:

— Ge... o quê?

— Genitália.

— Onde é que você tirou isso, da sua cabeça?

— Tá no jornal, pai.

— Genitália, no jornal? Bem, esse assunto não é comigo agora. Já estou atrasado pro trabalho. Cadê sua mãe? Rita! Ritinhaaaaa! Onde é que essa mulher se enfiou? Rita, venha ouvir aqui o que seu filho está aprontando.

Dona Rita desce esbaforida:

— Algum problema, Gervásio?

— Problema nenhum. O garoto está apenas querendo saber o que é genitália. Explique pra ele. Estou de saída.

— Genitália? Eu? Isso é conversa de homem pra homem. Vai dizer que você não sabe?

— Saber eu sei, lógico. Mas há coisas que a gente sabe o que é na teoria, mas fica difícil de explicar na prática.

— Deixa de bobagem.

— Tá bom. Depois, se eu pegar trânsito, quero só ver.

— Pode deixar, pai. Não precisa ficar discutindo você e a mamãe por causa de uma palavra. Eu pergunto pra tia da escola.

— Tá louco? A tia pode pensar mal da gente. Deixa comigo. Presta atenção: genitália é o mesmo que partes pudendas. Genitália é uma coisa muito antiga. Já existia no tempo do seu bisavô. No século passado, quando seu bisavô estava vivo, as pessoas tinham pudor. Elas ocultavam do público certas partes do corpo. Chegavam até ao exagero. As partes que ficavam mais resguardadas formavam, exatamente, a genitália. A genitália eram as partes pudendas.

— O umbigo era genitália, pai?

— Não. Na verdade, não era. Vou tentar explicar melhor. As pessoas tinham vergonha de mostrar o corpo. E uma certa parte do corpo era reservada ao extremo. Não aparecia nem em filme francês. As pessoas chamavam esse território misterioso de vergonhas. Isso é que é a genitália moderna.

— Bumbum é genitália, pai?

— Não. Acho que não estou sendo muito claro. Ritinha, você não quer dar uma mão?

— Não. Assuma.

— Bom, vou pras cabeças. Ahnnn. Hummmm. Abaixe as calças. Mais. Até os tornozelos. Isso. Pronto, tá aí a genitália.

— O umbigo?

— No térreo do umbigo. Que é que você vê embaixo do umbiguinho?

— Pô, pai. Vai dizer que o senhor não sabe o que é isso? É meu bingolim, pai.

— Ta aí. O bingolim é a genitália do homem.

— Puxa, o senhor podia ter falado antes.

— Na vida, às vezes é preciso usar eufemismos. Por exemplo, a genitália da mulher tem um nome delicado, leve, ágil. Sabe o que estou querendo dizer, não sabe? Começa com b.

— Barata da vizinha?

— Não, filho. Borboleta.




(Ilustração: Anthony Christian – Eve)




quarta-feira, 10 de novembro de 2010

HISTÓRIA DO TEMPO, de Dirceu Quintanilha









Jantávamos após as sete,

no terraço-mar.

Madrugadas na piazza :

- Pássaros comiam nas tuas mãos.

Súbitas descobertas

no teu riso.



Tu te aconchegavas

e eu tinha o mundo

entre meus braços.

Jantávamos após as sete

no terraço-mar.



Solidão repetida de jantares

ansiados:

- Após as sete

janto sozinho.

Sem abraços nem pássaros cativos.



Após as sete.




(Ilustração; Patrice Murciano - desespoir)