domingo, 17 de março de 2024

A CHEGADA DE VIRGÍLO A BRINDÍSIO, de Herman Broch



Azuladas, leves, movidas por uma branda, quase imperceptível brisa contrária, as ondas do Adriático haviam fluído ao encontro da armada imperial, quando esta, à esquerda das baixas colinas da costa calabresa, que aos poucos se avizinhavam, dirigia-se ao porto de Brindísio, e neste momento em que a solidão do mar, ensolarada e todavia prenunciadora de morte, convertia-se na plácida alegria de atividades humanas, neste momento em que as águas suavemente abrilhantadas pela proximidade de existências e moradas dos homens povoavam-se de navios de toda espécie, alguns que, tal e qual a frota, buscavam o porto e outros que dele acabavam de sair, neste momento em que os barcos pescadores de velas pardas já abandonavam em toda a parte os protetores molhezinhos de um sem-número de aldeias e lugarejos, ao longo da beira irrigada de branca espuma, a fim de se encaminharem ao apanho noturno, o mar tornara-se liso, quase como um espelho. Acima dele abria-se, madreperolada, a concha do céu. Anoitecia, e notava-se o cheiro dos fogos de lenha das lareiras, cada vez que os sons da vida, marteladas ou um grito, chegavam dali, trazidos pela aragem.

Das sete naus acasteladas, que se seguiam em linha desenvolvida, somente a primeira e a última, ambas delgadas Penteras providas de esporões, faziam parte da frota de guerra. As cinco outras, mais lerdas e mais imponentes, com dez ou doze fileiras de remos, ostentavam o suntuoso feitio que correspondia ao estilo da corte do Augusto. Na do meio que era a mais pomposa, com o esplendor dourado da proa blindada de bronze, com o brilho jalde das cabeças de leões aplicadas sob a amurada, e que nas fauces carregavam argolas, e com as flâmulas coloridas da enxárcia, erguia-se, solene e grandiosa, abaixo das velas purpúreas, a barraca do César.

Porém, na nave que a seguia imediatamente, encontrava-se o autor da Eneida e o signo da Morte achava-se traçado em sua fronte.

Vítima de enjoos, mantido em contínua tensão pela constante iminência deles, não ousara mexer-se o dia inteiro; mas, embora preso ao leito que haviam montado para ele no centro do convés, o poeta sentia a si mesmo ou melhor a seu corpo, a sua vida corpórea, que havia muitos anos mal e mal conseguira reconhecer como sua própria, sentia-os como uma única reminiscência tateante, evocadora da relaxação que subitamente o percorrera, quando tinham alcançado a zona costeira, mais calmosa, e esse cansaço fluente, sereno e. serenizante talvez se tivesse convertido numa felicidade virtualmente completa, não houvessem aparecido mais uma vez, apesar do efeito saudável dos revigorantes ares marinhos, a tosse penosa, a prostração causada pela febre de todas as noites, e a angústia que sempre o acossava ao entardecer. Assim jazia ele ali, ele, o autor da Eneida, ele, Públio Virgílio Marão, jazia ali num estado de diminuída consciência, quase que envergonhado do seu desamparo, quase que furioso em face de tal destino, cravando os olhos na redondez madreperolada da redoma celeste. Por que, por que cedera à insistência do Augusto? Por que, por que saíra de Atenas? Com isso, extinguira-se a esperança de que o céu plácido, sagrado de Homero pudesse secundar e favorecer a conclusão da Eneida; extinguira-se qualquer esperança na imensidão de coisas novas, que em seguida deveriam ter começado, a esperança numa vida distanciada das Artes, liberta da Poesia, entregue à Filosofia e à Ciência; na cidade de Platão; extinguira-se a esperança no milagre do conhecimento e na cura pelo conhecimento. Por que renunciara a isso? Espontaneamente? Não! Houvera algo como uma ordem das irresistíveis forças da vida, daquelas forças imperiosas do destino, que jamais desaparecem totalmente, ainda que temporariamente submerjam em esferas subterrâneas, invisíveis, insondáveis, continuando mesmo assim presentes, intatas, como uma ameaça inescrutável de poderes aos quais jamais logramos subtrair-nos e sempre devemos render-nos; era o destino. O poeta deixara impelir-se pelo destino, e o destino impelia-o em direção ao fim. Não fora este sempre o seu modo de viver? Vivera ele diferentemente em qualquer época? A madreperolada redoma do céu, o mar primaveril, o canto dos montes, e aquilo que dolorosamente cantava em seu próprio peito, o som da flauta do deus — será que isso em algum instante significara para ele outra coisa que não uma ocorrência, que, igual a um receptáculo das esferas, em breve o acolheria, para levá-lo ao infinito? De origem, ele era camponês, um homem que adora a paz da existência terrena, ao qual teria sido adequada uma vida singela, sólida, na coletividade rural, e que todavia, em virtude de uma sina superior, não pôde permanecer em sua terra, que jamais o largou. Tal sina enxotara-o, para fora daquela coletividade, adentro da mais nua, da mais maligna, da mais selvagem solidão do formigueiro humano; expulsando-o do ambiente simples das suas origens, empurrara-o ao longe, rumo a uma sempre crescente multiplicidade, e se assim algo se ampliara ou aumentara, apenas se tratava da distância que o separava da vida verdadeira, pois, na verdade, unicamente a lonjura tornara-se maior. Ele caminhara apenas à beira de seus campos, vivera tão-somente à beira da sua vida; transformara-se num ser irrequieto, fugindo da morte, buscando a morte, buscando a obra, fugindo da obra, amoroso e todavia acossado, errante através das paixões íntimas e externas, só temporariamente alojado em sua vida. E hoje, quase ao fim de suas forças, ao fim de sua fuga, ao fim de suas buscas, após ter terminado a luta e se ter aprontado para a despedida, após ter alcançado a prontidão por meio da luta, quando estava prestes a aceitar a derradeira solidão e a iniciar o retorno íntimo que o conduzisse a ela, o destino com seus poderes mais uma vez se apossara dele; mais uma vez lhe vedara a singeleza e as origens: e o imo; novamente afastara dele o regresso; encurvando o caminho, convertera-o no da multiplicidade externa; forçara-o a voltar ao mal que lhe ensombreara toda a vida. Sim, parecia que o destino lhe deixava apenas uma única solução simples, a simplicidade da morte. Acima do poeta, as vergas rangiam no cordame. Entrementes ouviam-se abafados estrondos vindos das velas. Ele escutava o roçar das escumas da esteira e o jato prateado, que se punha a jorrar, cada vez que se levantavam os remos; escutava como estes guinchavam pesadamente nos toletes. Sentia como o navio dava saltos suaves, regulares ao compasso das centenas de remos. Via como a orla marítima agaloada de branco deslizava a seu lado, e pensava nos corpos de escravos silenciosos, acorrentados nos fundos fedorentos, sufocantes, do casco atroador. No mesmo compasso espasmódico, surdos estrugidos, acompanhados de golfadas argênteas, ressoavam dos dois navios vizinhos, do mais próximo e do que o seguia, semelhantes a um eco, que repercutia em todos os mares e ao qual vinham respostas de todos os mares. Pois, em toda a parte, as embarcações avançavam desta maneira, carregadas de homens, carregadas de armas, carregadas de trigo e outros cereais, carregadas de mármore, azeite, vinho e especiarias, carregadas de seda, carregadas de escravos. Em todo o mundo, havia a navegação, a permutar e comerciar, um dos piores vícios entre os muitos que assolam a terra.



(A morte de Virgílio; tradução de Herbert Caro)



(Ilustração: Mosaico anônimo da África Proconsular - Virgílio entre duas musas, início do século III dC)

quinta-feira, 14 de março de 2024

QUID FACIAT LAETAS SEGETES / O QUE DÁ VIÇO ÀS SEARAS ALEGRES (DAS GEÓRGICAS - ÉCLOGA I), de Virgílio

 




Quid faciat laetas segetes, quo sidere terram

uertere, Maecenas, ulmisque adiungere uites

conueniat, quae cura boum, qui cultus habendo

sit pecori, apibus quanta experientia parcis,

hinc canere incipiam. uos, o clarissima mundi 5

lumina, labentem caelo quae ducitis annum;

Liber et alma Ceres, uestro si munere tellus

Chaoniam pingui glandem mutauit arista

poculaque inuentis Acheloia miscuit uuis;

et uos, agrestum praesentia numina, Fauni, 10

ferte simul Faunique pedem Dryadesque puellae:

munera uestra cano; tuque o, cui prima frementem

fudit equum magno tellus percussa tridenti,

Neptune; et cultor nemorum, cui pinguia Ceae

ter centum niuei tondent dumeta iuuenci; 15

ipse nemus linquens patrium saltusque Lycaei

Pan, ouium custos, tua si tibi Maenala curae,

adsis, o Tegeaee, fauens, oleaeque Minerua

inuentrix, uncique puer monstrator aratri,

et teneram ab radice ferens, Siluane, cupressum: 20

dique deaeque omnes, studium quibus arua tueri

quique nouas alitis non ullo semine fruges

quique satis largum caelo demittitis imbrem.

tuque adeo, quem mox quae sint habitura deorum

concilia incertum est, urbisne inuisere, Caesar, 25

terrarumque uelis curam, et te maximus orbis

auctorem frugum tempestatumque potentem

accipiat cingens materna tempora myrto;

an deus immensi uenias maris ac tua nautae

numina sola colant, tibi seruiat ultima Thule, 30

teque sibi generum Tethys emat omnibus undis;

anne nouum tardis sidus te mensibus addas,

qua locus Erigonen inter Chelasque sequentis

panditur: ipse tibi iam bracchia contrahit ardens

Scorpios et caeli iusta plus parte reliquit; 35

quidquid eris (nam te nec sperant Tartara regem,

nec tibi regnandi ueniat tam dira cupido,

quamuis Elysios miretur Graecia campos

nec repetita sequi curet Proserpina matrem),

da facilem cursum atque audacibus adnue coeptis 40

ignarosque uiae mecum miseratus agrestis

ingredere et uotis iam nunc adsuesce uocari.

Vere nouo, gelidus canis cum montibus umor

liquitur et Zephyro putris se glaeba resoluit,

depresso incipiat iam tum mihi taurus aratro 45

ingemere et sulco attritus splendescere uomer.

illa seges demum uotis respondet auari

agricolae, bis quae solem, bis frigora sensit;

illius immensae ruperunt horrea messes.

ac prius ignotum ferro quam scindimus aequor, 50

uentos et uarium caeli praediscere morem

cura sit ac patrios cultusque habitusque locorum,

et quid quaeque ferat regio et quid quaeque recuset.

hic segetes, illic ueniunt felicius uuae,

arborei fetus alibi atque iniussa uirescunt 55

gramina. nonne uides croceos ut Tmolus odores,

India mittit ebur, molles sua tura Sabaei,

at Chalybes nudi ferrum uirosaque Pontus

castorea, Eliadum palmas Epiros equarum?

continuo has leges aeternaque foedera certis 60

imposuit natura locis, quo tempore primum

Deucalion uacuum lapides iactauit in orbem,

unde homines nati, durum genus. ergo age, terrae

pingue solum primis extemplo a mensibus anni

fortes inuertant tauri, glaebasque iacentis 65

puluerulenta coquat maturis solibus aestas;

at si non fuerit tellus fecunda, sub ipsum

Arcturum tenui sat erit suspendere sulco:

illic, officiant laetis ne frugibus herbae,

hic, sterilem exiguus ne deserat umor harenam. 70



Tradução de Arthur Rodrigues Santos:



O que dá viço às searas alegres, sob qual astro

deve-se a terra, Mecenas, volver e casar as videiras

com os olmeiros, quais cuidados ao boi e ao rebanho

são dispensados, quanta perícia às parcas abelhas:

eis o que agora celebro. Vós, ó luzeiros brilhantes 5

deste mundo, guiando no céu o ano que escoa;

Líber e Ceres nutriz, a terra, com a vossa anuência,

pôde trocar Caônias bolotas por trigo graúdo

e misturar o copo Aqueloio às uvas achadas;

vós também, propícios aos lavradores, ó Faunos, 10

vinde dançando, Faunos, ao lado das Dríades ninfas:

vossos dons eu celebro; e tu, que a terra fendeste

com teu tridente, donde surgiu o fogoso cavalo,

ó deus Netuno; e tu boscarejo, a quem uns trezentos

níveos vitelos pastam de Cea fecunda os arbustos; 15

tu, que abandonas o bosque natal e as Liceias clareiras,

Pã, guardião das ovelhas, se o Mênalo inda te agrada,

vem até mim, ó Tegeu, me apoia; e Minerva, dadora

das oliveiras, e o jovem inventor do arado recurvo,

tu também, ó Silvano, trazendo extirpado cipreste: 20

todos, deuses e deusas, vós que zelais pelos campos,

ora nutrindo os novos rebentos não semeados,

ora enviando do céu a forte chuva às sementes.

E, finalmente, tu, de quem não sabemos qual posto

vais ocupar entre os deuses: se queres, César, o zelo 25

pelas cidades e campos, e o vasto universo te acolha

como o pai dos frutos e das estações o regente,

já coroando a tua fronte com murta de Vênus materna;

ou te tornes o deus do imenso mar e os marujos

só o teu nume cultuem e a extrema Tule te sirva, 30

Tétis te quer como genro a preço de todas as ondas;

ou, novo astro, te somes aos meses mais vagarosos,

onde um espaço entre Erígone e as Quelas vizinhas

ora se abre: vê, já contrai suas garras o ardente

Escorpião e deixou-te no céu uma parte folgada; 35

Seja quem fores (não és esperado no mundo Tartáreo

nem te acometa o terrível desejo deste reinado,

mesmo que a Grécia tanto admire os Campos Elíseos

e Proserpina se furte a voltar com a mãe para cima),

fácil percurso me dá, consente o propósito ousado 40

e, compassivo comigo dos lavradores sem rumo,

vem até mim e já te acostuma a ouvir nossas preces.

A primavera revém, dos cândidos montes escorre

frio regato e o Zéfiro quebra o torrão ao seu sopro:

já me comece o touro a gemer no arado tanchado 45

e recupere seu brilho a relha atrita com sulcos.

Só corresponde aos votos do lavrador ansioso

campo que duas vezes sentiu o sol e a friagem;

sua imensa colheita acabou de romper os celeiros.

Antes, porém, de cortarmos com ferro um solo ignoto, 50

cumpre primeiro estudar o vento e o clima mutável,

a qualidade das terras e a prática antiga legada,

o que produz um lugar e também o que ele nos nega.

Trigo vai bem por aqui, por ali, as uvas vigoram,

mais além enverdecem o novo arvoredo e a selvagem 55

erva. Não vês que o Tmolo exporta açafrão perfumado,

Índia marfim, os Sabeus delicados seu típico incenso,

ferro das minas os Cálibes nus, o Ponto castóreo

nauseabundo e o Epiro vitórias das éguas em Élis?

A natureza impôs essas leis e contratos eternos 60

para lugares determinados assim que no mundo,

antes vazio, Deucalião lançou as suas pedras,

delas os homens nasceram, dura progênie. Ao trabalho!

Já no começo do ano, revolvam o gordo terreno

touros fortes, dessa forma as leivas expostas 65

sejam cozidas ao sol maturado do estio pulvéreo;

mas, sendo a terra pouco fecunda, basta somente

leve amanho de sulco no despontar do Arcturo:

lá, as ervas daninhas não tolhem messes alegres,

cá, não deserta a pouca umidade do seco terreno. 70




(Ilustração: autor desconhecido - ilustração do século XV para as éclogas de Virgílio)

segunda-feira, 11 de março de 2024

PABLITO CLAVÓ UN CLAVITO: UMA EVOCAÇÃO DO BAIXINHO ORELHUDO, de Mariana Enriquez

 



A primeira vez que ele apareceu foi na excursão das nove e meia da noite, a que se fazia de ônibus. Foi durante uma pausa do relato, enquanto percorriam o trecho que ia do restaurante que havia sido de Emilia Basil, esquartejadora, até o edifício onde morava Yiya Murano, envenenadora. De todos os tours por Buenos Aires que a empresa para a qual trabalhava oferecia, o de crimes e criminosos era o de maior sucesso. Acontecia quatro vezes por semana: duas de ônibus e duas a pé, duas em inglês e duas em espanhol. Pablo soube que, quando o designou como guia do tour de crimes, a empresa estava lhe dando uma promoção, embora o salário fosse o mesmo (sabia que, cedo ou tarde, se fizesse tudo direito, o valor também aumentaria). A mudança o alegrou muito: antes fazia o tour “Arquitetura Art Nouveau da Avenida de Mayo”, que era muito interessante, mas entediava depois de um tempo.

Tinha estudado em detalhes os dez crimes do circuito para poder narrá-los bem, com graça e suspense, e jamais tivera medo nem se impressionara. Por isso, em vez de terror, sentiu surpresa ao vê-lo. Era ele, sem dúvida, inconfundível. Os olhos grandes e úmidos que pareciam cheios de ternura, mas, na realidade, eram um poço escuro de idiotia. O colete escuro e a estatura baixa, os ombros mirrados e, nas mãos, aquela corda fina — a piola, como a chamavam então — com a qual havia mostrado à polícia, sem expressar emoção alguma, como tinha amarrado e asfixiado suas vítimas. E as orelhas enormes, pontiagudas e simpáticas de Cayetano Santos Godino, o Baixinho Orelhudo, o criminoso mais célebre do passeio, talvez o mais famoso da crônica policial argentina. Um assassino de crianças e de animais pequenos. Um assassino que não sabia ler nem fazer contas, que não distinguia os dias da semana e que guardava debaixo da cama uma caixa cheia de pássaros mortos.

Mas era impossível que estivesse ali, onde Pablo o via. O Baixinho Orelhudo tinha morrido em 1944, no antigo presídio de Ushuaia, na Terra do Fogo, no fim do mundo. O que poderia estar fazendo ali, na primavera de 2014, como passageiro fantasma de um ônibus que percorria os cenários de seus assassinatos? Porque sem dúvida era ele, impossível confundi-lo, o aparecido era idêntico às numerosas fotos de época que haviam sido conservadas. Além disso, havia iluminação suficiente para vê-lo bem: o ônibus ia com as luzes acesas. Estava parado quase no final do corredor, fazendo a demonstração com sua cordinha, encarando a ele, o guia, Pablo, com certa indiferença, porém com clareza.

Fazia um tempo que Pablo tinha contado sua história. Vinha contando-a havia duas semanas, e gostava muito. O Baixinho Orelhudo tinha assombrado uma Buenos Aires tão longínqua e diferente que era difícil sugestionar-se com a sua figura. E, no entanto, algo devia tê-lo impressionado vivamente, porque o Baixinho havia se apresentado, embora ninguém mais o visse — os passageiros conversavam, animados, e passavam o olhar por ele, sem reparar. Pablo sacudiu a cabeça, fechou os olhos com força e, ao abri-los, a figura do assassino com sua cordinha tinha desaparecido. Será que estou ficando louco?, pensou, e apelou à psicologia barata para chegar à conclusão de que o Baixinho lhe aparecia porque ele acabava de ter um filho e as crianças eram as únicas vítimas de Godino. As crianças pequenas. Pablo contava na excursão de onde, segundo acreditavam os forenses da época, vinha essa sanha: o primeiro filho dos Godino, irmão mais velho do Baixinho, tinha morrido aos dez meses na Calábria, Itália, antes de a família emigrar para a Argentina. A lembrança desse bebê morto o obcecava: em muitos dos crimes — e das tentativas, bem mais numerosas —, ele repetia a cerimônia do enterro. Aos peritos que o interrogaram depois de ser apanhado, disse: “Ninguém volta da morte. Meu irmãozinho nunca voltou. Simplesmente apodrece embaixo da terra.”

Pablo relatava o primeiro simulacro de enterro numa das paradas do circuito: a esquina da rua Loria com a San Carlos, onde o Baixinho havia atacado Ana Neri, de dezoito meses, sua vizinha no cortiço da rua Liniers, que não existia mais, mas o terreno onde o prédio ficava era uma parada do percurso, com uma breve contextualização na qual se explicavam aos turistas as condições de vida daqueles imigrantes recém-chegados que escapavam da pobreza europeia amontoados em cortiços úmidos, sujos, ruidosos, promíscuos, sem ventilação. O ambiente ideal para os crimes do Baixinho, porque o desconforto e a desordem acabam por mandar as crianças para a rua: viver naqueles cômodos era tão insuportável que as pessoas ficavam na calçada, especialmente os filhos, que vadiavam por ali.

Ana Neri. O Baixinho a levou ao terreno baldio, golpeou-a com uma pedra e, após deixá-la inconsciente, tentou enterrá-la. Um policial o flagrou no meio da tarefa, e ele rapidamente inventou uma mentira: alegou estar tentando ajudar a garotinha, que tinha sido atacada por outra pessoa. O policial acreditou, talvez porque o Baixinho Orelhudo também fosse um menino: tinha, então, nove anos.

Ana demorou seis meses para se recuperar do ataque.

Não foi o único com simulacro de enterro: em setembro de 1908, pouco depois de deixar a escola — e de terem início seus aparentes ataques de epilepsia; nunca se comprovou em definitivo a que se deviam as convulsões que o Baixinho sofria —, Godino levou Severino González até um terreno baldio em frente ao colégio Sagrado Corazón. No terreno havia um pequeno curral para cavalos. O Baixinho submergiu o menino no tanque onde os animais bebiam água e tentou cobri-lo com uma tampa de madeira. Um simulacro mais sofisticado: a imitação do caixão de defunto. Outra vez um policial que passava impediu o crime e outra vez o Baixinho mentiu, dizendo que, na realidade, estava ajudando o menino. Mas, naquele mês, o Baixinho estava descontrolado. No dia 15 de setembro atacou um bebê de vinte meses, Julio Botte. Encontrou-o na porta de casa, na rua Colombres, 632. Queimou-lhe a pálpebra de um dos olhos com um cigarro que tinha na mão. Dois meses depois, os pais do Baixinho não suportaram mais sua presença nem suas ações, e eles mesmos o entregaram à polícia. Em dezembro, acabou na colônia penal de Marcos Paz para menores. Ali aprendeu a escrever um pouco, mas se destacou sobretudo por jogar gatos e botinas nos caldeirões fumegantes quando os cozinheiros se descuidavam. O Baixinho cumpriu três anos no reformatório de Marcos Paz. Saiu com mais vontade de matar do que nunca, e logo conseguiria o primeiro, e desejado, assassinato.

Pablo sempre terminava o capítulo do Baixinho com o interrogatório a que a polícia o submetera depois da detenção. Parecia impressionar muito os turistas. Lia-o, para que o efeito realista fosse maior. Na noite em que o Baixinho apareceu no ônibus, Pablo sentiu certo incômodo antes de repetir as palavras dele, mas decidiu dizê-las do mesmo jeito. O criminoso só o encarava e brincava com a corda: não o ameaçava.

— O senhor não sente remorso pelos feitos que cometeu?

— Não entendo o que os senhores estão perguntando.

— Não sabe o que é remorso?

— Não, senhores.

— O senhor sente tristeza ou pena pela morte dos garotinhos Giordano, Laurora e Vainikoff?

— Não, senhores.

— Acha que tem o direito de matar crianças?

— Não sou o único, outros também fazem isso.

— Por que matava as crianças?

— Porque gostava.

Esta última resposta provocava a reprovação coletiva dos passageiros, que em geral pareciam contentes quando Pablo trocava de criminoso e passava à mais compreensível Yiya Murano, que envenenou as melhores amigas porque lhe deviam dinheiro. Uma assassina por ambição. Fácil de entender. O Baixinho, ao contrário, incomodava a todos.

Naquela noite, quando chegou em casa, Pablo não contou à esposa que tinha visto o espectro do Baixinho. Também não contou aos colegas, mas isso era normal: não queria ter problemas no trabalho. Por outro lado, afligia-o não poder falar da aparição à esposa. Dois anos antes, teria contado. Dois anos antes, quando ainda podiam confessar um ao outro qualquer coisa sem medo, sem receio. Era uma das tantas coisas que tinham mudado desde o nascimento do bebê.

Chamava-se Joaquín: tinha seis meses, mas Pablo continuava dizendo “o bebê”. Amava-o — ou pelo menos era o que acreditava —, mas o filho não lhe dava muita atenção, ainda estava agarrado à mãe, e ela não ajudava, não ajudava nem um pouco. Tinha se transformado em outra pessoa. Temerosa, desconfiada, obsessiva. Às vezes, Pablo se perguntava se ela estaria sofrendo de depressão pós-parto. Outras vezes, ficava apenas de mau humor e recordava com nostalgia e um pouco — um muito — de irritação os anos anteriores ao bebê.

Agora, tudo era diferente. Ela não o escutava mais, por exemplo. Fingia ouvir, sorria e fazia que sim com a cabeça, mas estava pensando em comprar abóbora e cenoura para o bebê, ou se perguntando se a irritação que o bebê tinha na pele podia ter sido causada pela fralda descartável ou se por acaso se tratava de uma doença eruptiva. Nem o escutava nem queria fazer sexo, porque estava dolorida depois da episiotomia, que não terminava de cicatrizar, e, para completar, o bebê dormia na cama do casal: havia um quarto esperando por ele, mas ela não tinha coragem de deixá-lo dormir sozinho, tinha medo da “síndrome da morte súbita”. Pablo tivera que escutá-la falar dessa morte repentina durante horas enquanto tentava, em vão, acalmar a ansiedade dela, justo dela, que nunca tivera medo, que uma vez ou outra o acompanhara escalando montanhas e dormira em abrigos enquanto nevava do lado de fora. Ela, que tinha comido cogumelos com ele, um fim de semana inteiro de alucinação, aquela mesma mulher, agora chorava por uma morte que não havia chegado e possivelmente não chegaria nunca.

Pablo não lembrava por que ter um filho tinha parecido uma boa ideia. Ela não falava de outra coisa. Acabaram as conversas sobre os vizinhos, os filmes, os escândalos familiares, o trabalho, a política, a comida, as viagens. Agora só falava do bebê e fazia de conta que escutava quando tratavam de outros temas. A única coisa que parecia registrar, como se despertasse de um torpor, era o nome do Baixinho Orelhudo. Como se sua mente se iluminasse com a imagem dos olhos do idiota assassino; como se conhecesse aqueles dedos magros que seguravam a corda. Dizia que Pablo estava obcecado pelo Baixinho. Ele não via a coisa assim. Ocorria que os outros assassinos do tour macabro por Buenos Aires eram chatos. A cidade não tinha grandes assassinos, com exceção dos grandes ditadores, não incluídos no passeio por correção política. Alguns dos facínoras de que Pablo falava tinham cometido crimes atrozes, mas bastante comuns segundo qualquer catálogo de violência patológica. O Baixinho era diferente. Era raro. Não tinha outros motivos além de seu desejo e parecia uma espécie de metáfora, o lado obscuro da orgulhosa Argentina do Centenário, um presságio do mal por vir, um anúncio de que havia muito mais que palácios e fazendas no país, uma bofetada no provincianismo das elites que julgavam que só coisas boas podiam chegar da pomposa e desejada Europa. O mais bonito era que o Baixinho não tinha a mínima consciência disso: simplesmente gostava de atacar crianças e acender fogueiras. Porque também era piromaníaco; agradava-lhe ver as chamas e observar o trabalho dos bombeiros, “sobretudo quando caíam no fogo”, como tinha dito a um dos interrogadores.

A história que irritara a esposa envolvia fogo: ela acabou se levantando da mesa, gritando que nunca mais lhe falasse sobre o Baixinho, nunca mais, por motivo algum. Gritara isso enquanto abraçava o bebê, como se tivesse medo de que o Baixinho se materializasse e o atacasse. Depois, se trancara no quarto e o deixara comendo sozinho. Ele a mandou mentalmente à merda. A história era mesmo impressionante; não para armar tanto escândalo, achava ele, mas muito brutal de fato. Ocorreu no dia 7 de março de 1912. Uma menina de cinco anos, Reina Bonita Vainikoff, filha de imigrantes judeus letões, estava espiando a vitrine de uma sapataria perto de sua casa, na avenida Entre Ríos. Usava um vestido branco. O Baixinho se aproximou enquanto ela estava absorvida pela visão dos sapatos. Levava na mão um fósforo aceso. Tocou com a chama o vestido da menina, que se incendiou. Da calçada em frente, o avô da garotinha a viu envolta em chamas. Atravessou a rua correndo, desesperado. Não conseguiu sequer chegar perto da neta: transtornado, não deu atenção ao tráfego. Foi atropelado por um carro e morreu. Um fato estranhíssimo, dada a baixa velocidade dos veículos naquela época.

Reina Bonita também morreu, mas depois de dezesseis dias de dolorosa agonia.

O assassinato da pobre Reina Bonita não era o crime favorito de Pablo. Ele gostava — essa era a palavra, fazer o quê? — do de Jesualdo Giordano, de três anos. Sem dúvida era o que mais horror causava aos turistas, e talvez fosse por isto que lhe agradava: porque era prazeroso contá-lo e esperar a reação, sempre espantada, da plateia. Foi o crime pelo qual apanharam o Baixinho, além do mais, porque cometeu um erro fatal.

O Baixinho, como já era de costume, levou Jesualdo a um terreno baldio. Enforcou-o com treze voltas de corda. O menino resistiu com força; chorava e gritava. O Baixinho declarou à polícia que tentou fazer com que ele se calasse porque não queria ser interrompido como em outras ocasiões: “O menino, eu agarrei com os dentes aqui, perto da boca, e o sacudi como fazem os cachorros com os gatos”. Essa imagem incomodava os turistas, que se remexiam nos bancos e diziam “Meu Deus” em voz baixa. Não obstante, nunca lhe haviam pedido para interromper o relato. Depois de enforcar Jesualdo, o Baixinho o cobriu com uma placa e saiu para a rua. Mas algo o atormentava, uma ideia ardia em sua mente. De modo que, em seguida, voltou à cena do crime. Levava um prego. Pregou-o na cabeça do menino, que já estava morto.

No dia seguinte, cometeu seu erro fatal. Sabe-se lá por que, compareceu ao velório do menino que havia matado. Disse, mais tarde, que queria ver se ainda tinha o prego na cabeça. Confessou esse desejo quando o levaram para acompanhar a autópsia, depois da denúncia do pai do menino morto. Quando viu o cadáver, o Baixinho fez uma coisa muito estranha: tapou o nariz e cuspiu, como se sentisse nojo, embora o corpo ainda não tivesse entrado em estado de decomposição. Os legistas, por algum motivo que a crônica policial da época não explica, fizeram-no ficar nu.

O Baixinho tinha uma ereção de dezoito centímetros. Acabara de fazer dezesseis anos.

Essa parte ele não podia contar à esposa. Uma vez havia tentado lhe falar das reações dos turistas diante do último crime do Baixinho, mas antes mesmo de começar o relato se deu conta de que ela não o estava escutando. Reclamou que precisavam mudar para uma casa maior quando o bebê crescesse. Não queria criá-lo num apartamento. Queria quintal, piscina, sala de jogos e um bairro tranquilo onde o menino pudesse brincar na rua. Ela sabia perfeitamente que este último quase não existia numa cidade com o tamanho e a intensidade de Buenos Aires, e mudar para um subúrbio rico e aprazível estava muito distante de sua realidade. Quando terminou de enumerar seus desejos para o futuro, pediu-lhe que mudasse de trabalho. Isso não, disse ele. Sou licenciado em turismo, gosto do que faço, não vou pedir demissão; eu me divirto, são poucas horas e estou aprendendo. O salário é uma miséria. Não, não é uma miséria, irritou-se Pablo. Acreditava estar ganhando bem, o suficiente para manter decentemente a família. Quem era aquela mulher desconhecida? Em outros tempos ela havia jurado que, com ele, era capaz de viver num hotel, na rua, embaixo de uma árvore. Tudo era culpa do bebê. Modificara a esposa por completo. E por quê? Se era um menino sem graça, enfadonho, dorminhoco, que, quando estava acordado, chorava quase sem parar. Por que não trabalha você, então, se quer mais dinheiro, disse Pablo à mulher. E ela pareceu se eriçar, gritou como se tivesse ficado louca. Gritou que precisava cuidar do bebê, o que é que ele queria, abandoná-lo com uma babá ou com a louca da mãe dele? Minha mãe não está louca, pensou Pablo, e, para não voltar a brigar aos gritos, saiu à calçada para fumar. Esta era outra coisa: desde que havia nascido o bebê, ela não o deixava fumar no apartamento.

No dia seguinte à discussão, o Baixinho voltou ao ônibus. Dessa vez estava mais perto dele, quase ao lado do motorista, que claramente não o via. Pablo não se sentia diferente, só um pouco inquieto: temia que algum dos turistas também fosse capaz de ver o Baixinho espectral e causasse histeria no ônibus.

Quando apareceu, com a corda nas mãos, estavam numa das últimas paradas do percurso, a casa da rua Pavón. Ali havia sido encontrada uma das vítimas mais velhas do Baixinho, um de seus ataques mais esquisitos. Arturo Laurora, treze anos, estrangulado com a própria camisa; o corpo foi encontrado dentro de uma casa abandonada. Estava sem calça e com as nádegas machucadas, mas não tinha sido violado. Enquanto Pablo contava o caso, o Baixinho espectral, parado a seu lado, aparecia e desaparecia, tremia, perdia os contornos, como se fosse feito de fumaça ou névoa.

Pela primeira vez em muitas noites, alguém quis fazer uma pergunta. Pablo sorriu para o curioso com toda a falsidade que era capaz de conjurar. O turista — que, por seu sotaque, era caribenho — queria saber se o Baixinho havia posto um prego na cabeça de suas vítimas em alguma outra oportunidade. Não, respondeu Pablo. Que se saiba, foi só aquela vez. É muito estranho, disse o homem. E arriscou dizer que, se a carreira criminal do Baixinho tivesse sido mais longa, talvez o prego tivesse se convertido em sua marca, em sua assinatura. Quem sabe, respondeu Pablo com cordialidade, enquanto via como o Baixinho espectral acabava de se esfumar. Mas nunca vamos saber, não é verdade? O caribenho coçou o queixo.

Pablo voltou para casa pensando no prego e num travalínguas que sua mãe lhe havia ensinado quando era criança: Pablito clavó un clavito. /¿Qué clavito clavó Pablito?/ Un clavito chiquitito.* Abriu a porta do apartamento e se deparou com a cena habitual dos últimos meses: a televisão ligada, um prato com desenhos de Ben 10 e restos de abóbora, uma mamadeira meio vazia e a luz de seu quarto acesa. Assomou à porta. A mulher e o filho dormiam na cama, juntos. Sentiu que não os conhecia.

Pablo caminhou até o quarto que ele mesmo havia decorado para o filho antes que nascesse. Estava tão vazio que lhe deu frio. O berço imóvel estava escuro. Parecia o quarto de um menino morto, conservado intacto por uma família de luto. Pablo se perguntou o que aconteceria se o menino morresse, como a esposa parecia temer. Sabia a resposta.

Apoiou-se na parede vazia, onde vários meses antes, ainda antes do nascimento, antes que sua esposa se transformasse em outra pessoa, tinha planejado pendurar um móbile, um universo que giraria acima do berço do bebê para entretê-lo durante a noite. A lua, o sol, Júpiter, Marte e Saturno, os planetas e os satélites e as estrelas brilhando na escuridão. Mas nunca o pendurara porque a esposa não queria que o bebê dormisse ali e não havia meio de convencê-la. Tocou a parede e encontrou o prego, que continuava esperando. Arrancou-o com um puxão seco e o enfiou no bolso. Pensou que propiciaria um grande golpe de efeito para seu relato. Ele o tiraria do bolso justo quando contasse o crime do menino Jesualdo Giordano, no momento preciso, quando o Baixinho voltava e o cravava na cabeça do menino já morto. Numa dessas, algum turista ingênuo até acreditaria que se tratava do mesmo prego, perfeitamente conservado cem anos depois do assassinato. Sorriu ao pensar em seu pequeno triunfo e decidiu deitar no sofá da sala, longe da mulher e do filho, com o prego entre os dedos.



* “Pablito pregou um preguinho. Que preguinho pregou Pablito? Um preguinho pequenininho”, em tradução livre. (N. T.)



(As coisas que perdemos no fogo; tradução de José Geraldo Couto)



(Ilustração : Eric Lacombe - dark abstract portraits)

sexta-feira, 8 de março de 2024

MAR DE SARGAÇOS, de Geraldo Carneiro

 


 

no seu maremoto de sargaços negros

na sua garganta minha caravela

começa de novo nos quintais vazios

a plantar canteiros no meio da noite

nos seus alagados e no fim de tudo

a cantar baladas de uma estranha lua

entre os peixes mortos onde algum corsário

a tramar batalhas no seu mar profundo

recolhendo gritos nas suas entranhas

vaga submerso a beber escolhos

de outros naufrágios de cristais marinhos

 

no seu mar profundo no meio da noite

a beber escolhos de uma estranha lua

a tramar batalhas nas suas entranhas

onde algum corsário vaga submerso

a cantar baladas nos seus alagados

recolhendo gritos de outros naufrágios

na sua garganta de cristais marinhos

a plantar canteiros de sargaços negros

nos quintais vazios no seu maremoto

e no fim de tudo entre os peixes mortos

começa de novo minha caravela

 


(Ilustração: Egon Schiele - Girl with Black Hair (Mädchen mit schwarzem Haar) c.1911)

terça-feira, 5 de março de 2024

DIÁRIOS, de Lúcio Cardoso(*)

 




“Não sei se há em mim um vício central da natureza, sei apenas que é nela, nessa paixão voraz e sem remédio, que encontro afinidade para as minhas cordas mais íntimas.”



“Não é perder que me aflige – porque perdemos tudo, e seria inútil lutar. É perder dessa maneira, sem uma palavra, como uma flor viva que atirássemos ao fundo de uma sepultura. Ai, como eu me enganava, como eu me engano a meu próprio respeito! Julgo-me muito mais frio do que sou, e na verdade a ausência das pessoas me causa uma profunda perturbação. (Sei que despisto, que não me refiro exatamente ao que devo – porque ao certo, era de X, era da sua ausência que devia falar…)”



“O demônio é pequeno, magro e fala quase sem cansar. Está, como eu, estirado nu numa das tábuas da prateleira da sauna, e não parece estonteado com os vapores, tal como me acontece. De vez em quando comunica-me que o meu banho está errado e que não sigo exatamente as regras finlandesas: tenho de descer do canto sufocante onde me abrigo e deixar-me vergastar furiosamente com um chicote de folhas de eucaliptos. Em seguida sentar-me numa tina cheia d’água fria – e logo após subir de novo para a minha prateleira, onde quase sufoco, mal divisando o meu interlocutor através de espessas ondas de vapor. Não há dúvida de que era precisamente aqui que eu devia encontrá-lo. Revela-se logo um velho amigo da minha família, enquanto eu tremo interiormente, pensando em tudo o que poderá suceder. Possui um sítio não sei onde, uma máquina fotográfica com que apanhará instantâneos nossos, mil e uma pequenas utilidades. Recuso-me ao ridículo de sair da sauna correndo nu para me atirar ao rio; prefiro vestir-me calmamente, e só assim consigo livrar-me do importuno mestre de banhos a vapor.”



“Um problema existe, sim, e grave, mas há vinte anos que eu me debato dentro dele, e é possível que, ultrapassando-o, nada mais me afaste desses sacramentos que são a base de toda a vida eterna.”



“Ontem, num bar com Vito Pentagna, conversamos longamente sobre X. talvez eu tenha exagerado os meus sentimentos, mas hoje, procurando examinar com atenção o que se passa comigo, sinto que não tenho muito o que discordar do que disse: mais ou menos os meus sentimentos permanecem os mesmos. Não sei o que mais lamentar – mas nesta fidelidade, apesar de tudo, encontro uma garantia contra as minhas tendências à desordem e à dispersão. É pelo menos o que recolho de melhor nesta pesada prova que já tem a duração de dois anos.”



“Rompendo ontem com X, atingi o final de um movimento que vem caminhando há muito tempo. Pensando hoje nos detalhes, imagino que talvez tenha sido injusto mas, ainda assim, não é mais tempo para recuar, já que no futuro a única coisa que me espera é o longo trabalho que tenho a fazer. Pensando em certos detalhes da vida de X, sua pobreza, suas dificuldades, o escuro porão em que mora, sua timidez feita de orgulho e em geral suas dificuldades na vida prática, sinto uma enorme pena. É uma coisa triste não poder auxiliar as pessoas como seria necessário; mas também não posso me sacrificar mais e, tudo o que foi vivido, vai para este poço fundo onde guardamos as lembranças, algumas delas, como esta, das melhores de nossa vida.”



“Num carro, a caminho do Alto da Boa Vista, sigo com alguns jovens – alguns extremamente jovens – que se embriagam e rompem ampolas de Kelene, em cujo rótulo leio anestesiante. Sim, é fértil em recursos essa mocidade, mas do que precisamente procura ela se anestesiar? Nenhum deles sofre de algum mal profundo – e no entanto, esse mal pior de não sofrer de mal nenhum… – e são hábeis e versados nessas coisas de éter e entorpecentes, pronunciando esse nome – Kelene – com familiaridade, nome sem dúvida mais que usual nos hospitais, mas que ouço pela primeira vez e onde julgo distinguir inquietas ressonâncias, sombrias previsões e não sei que tom amputado e doloroso, que reflete salas de hospitais, asilos de alienados e antros escuros de vícios – todos os lugares enfim onde a alma impaciente pode passear sem arroubos finais seus gritos destruidores. Kelene, mesmo inocente, tem no frio do seu jato efêmero e cristalino, toda uma melodia secreta de delírios fúnebres, alvorecer em êxtase e desabrochamento de deliquescências reprimidas. E o que me espanta é que esses jovens moderados, de atitudes e costumes mais que burgueses, a isto se atirem com gritos de prazer e estremecimentos animais: como que da sombra alguma coisa mais primitiva e mais antiga do que o próprio homem, acorda em suas faces necrosadas o gosto do imundo.”



“É que o prazer não me interessa. Sempre o que me interessou foi o amor, e agora que vejo perder-se a possibilidade dele (ai de mim) sinto que não me interesso por outra coisa, e que o prazer sozinho não vale nada e não tem atrativos para mim.”



“Aproveito todas as aquisições da idade: afasto-me da carne pura e simples, sentindo que nela não há prazer e nem enriquecimento, mas somente melancolia e pobreza. Ah, existe um momento em que ser casto não é difícil — e a ele eu me atiro com todas as forças do ser. Não, não se pode imaginar a necessidade que eu tenho de pureza e de tranquilidade — minha impressão é a de que recomeço a viver.”



“Montherlant diz — e não pode haver testemunho mais insuspeito — que o homossexualismo é “a própria natureza”. No que tem razão, pois no ato de duas pessoas do mesmo sexo se unirem, há um esforço da natureza para se realizar até mesmo sem os meios adequados.”



“Não, a carne não é importante — pelo menos não o é senão em determinada idade. Eu me pergunto se tantas pessoas que eu vejo, exclusivamente dominadas pela carne, pela ânsia do prazer, se não serão assim. exclusivamente por uma questão de vício, de hábito, de covardia ante a necessidade de mudar a forma de vida, de procurar o divertimento em formas mais elevadas e menos deprimentes.”



“Estranho dom: Deus deu-me todos os sexos.”



“Aqui está alguém que eu conheço e cujo retrato encontro estampado em todos os jornais. T. possui dezoito anos, tez pálida, cabelos muito pretos e olhos intensamente azuis. Olhos que vivem nesta face com a melodia agreste dos felinos. Quando o conheci, surpreendeu-me a força que manifestava, calada e secreta. Fugiu de casa, agrediu algumas pessoas, roubou perto de trezentos mil cruzeiros, foi condenado e eu o revi, mais tarde, na penitenciária, numa visita que fiz àquela casa. Não trocamos palavra, ele trabalhava na seção de consertos de rádio e eu o reconheci imediatamente, pela extraordinária particularidade de seus olhos agudos, vigilantes, se bem que tivesse crescido muito e guardasse em todos os gestos um jeito novo de defesa. (Lembrei-me particularmente de um dia de carnaval, quando me levou à casa onde então morava um sórdido barracão, em companhia de um preto que ele espancava continuamente. Embriagou-se nesta noite e quebrou todos os móveis que existiam lá dentro. Eu o contemplava, cheio de admiração.) Agora acaba de fugir pelos esgotos da prisão, onde esteve durante dezoito horas, emergindo rasgado, mordido pelos insetos e coberto de lama, num dos bueiros da cidade. Preso de novo, declarou aos jornais que não suporta a monotonia da vida. E eu me lembro mais uma vez daqueles olhos sem repouso, autoritários, capazes de todos os extremos, que tentei evocar numa peça que nunca saiu da gaveta, intitulada Olhos de Gato. O que ousei pensar, decerto fica muito aquém da realidade. Ó grande Deus, equívoco da paixão e do crime!”



(*) Seleção de Ésio Macedo Ribeiro



(Ilustração: Henry Scott Tuke - After the bath)

sábado, 2 de março de 2024

ENTRE O CALOR DAS TUAS PERNAS, de Amadeu Kazunde

 


 

Entre o calor das tuas pernas

sobressai firme e vigorosa

numa atitude de lascívia

a rosa dos meus desejos.

E vejo em cada curva das suas pétalas

milhões de gestos provocantes

que me inundam o corpo

com milhões de riachos prateados.

Entre o calor das tuas pernas

desabrocha muda e esperançosa

a rosa dos meus desejos.

Por ela vivo uma ânsia profunda

de ver chegar o dia

em que me deliciarei diluído

no seu aroma inebriante.

E nesse dia,

milhões de forças gritantes

percorrerão o meu sangue

e galgarei sobre a montanha sagrada

abrindo trilhos por entre o mar de flores

penetrarei embriagado

nas cavernas negras e alagadas

de paredes desejosas

e descarregarei

todo o meu furor bastante

sobre os recantos mais profundos

dos subterrâneos conquistados

do jardim afrodisíaco.

E então

regressarei flácido mas ressuscitado

e sobre a montanha sagrada

dormirei um sonho profundo!

 

 

(As palavras amadurecem; Moçambique)

 

(Ilustração: João Timane, artista plástico Moçambicano)

 

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

O BARBA DE OURO E A CARANTONHA, de Aluísio de Almeida

 

 


Havia um rei que tinha uma bonita barba de ouro. E um dia ele foi chamado ao quarto da rainha para ver a criança que acabava de nascer. Mas esse barba de ouro era encantado e mau. Assim que viu o lindo menininho, pegou e foi comendo-o à vista de todos.

A rainha, quando de novo estava esperando outra criança, combinou com a comadre para lograrem o rei. Arranjaram um coelhinho. Chamaram o barba de ouro e lhe apresentaram o filho. Ah! O rei comeu o coelhinho e gostou.

A comadre levou a criança, que era uma menina, para criar por uns camponeses a um outro reinado. A menina foi crescendo, crescendo. Os pais adotivos eram pobres, não sabiam o que fazer com ela. E já estava em ponto de casar.

Então mataram uma ovelha, tiraram-lhe a pele e vestiram com ela a mocinha, que ficou que nem um bicho. A madrinha, que era uma fada, pôs-lhe no dedo um anel que era para ela pedir o que precisasse. E subiram as águas-furtadas da casa, despediram-se da moça e, dizendo-lhe que se fosse com Deus, pelo mundo, empurraram-na da janela.

Aquela coisa foi, foi, ao léu do vento e, enfim, caiu na floresta. O bicho ficou por ali, quieto. Ouvia as cornetas: tu, tu, ru, tu, e latidos dos cães. O rei estava à caça. E então apareceram os caçadores e já levavam a arma à cara, quando o rei ordenou: não atirem!

O rei desse reinado era moço e curioso. Achou esquisito aquele bicho que falava como gente. Levou-o para a cozinha do palácio e pôs-lhe o nome de Carantonha.

A Carantonha assistia às festas de longe.

Uma ocasião ouviu contar, na cozinha, de três grandes bailes que o rei ia dar em seguida, para escolher a sua noiva.

Em todo o reinado, era um reboliço fora dos costume e costureiras e alfaiates não tinham mãos a medir. As moças queriam ser princesas.

O rei gostava de ver sempre a Carantonha, que lhe prestava serviços, muito humilde.

Carantonha segurava a bacia de prata para o rei lavar as mãos.

– Vossa majestade me deixa ir na festa?

- Tu, Carantonha?

O rei falou assim e borrifou o rosto dela, brincando. O que é que ela ia lá fazer? Carantonha saiu chorando para o seu cantinho da cozinha. Só então é que se lembrou do anel. Esfregou-o e disse:

- Anel, pelo poder que Deus te deu, quero que me arranjes um vestido cor da terra e uns chapins muito bonitos! – Imediatamente Carantonha viu-se transformada naquela princesa mais bonita e procurou as salas de baile sem que ninguém percebesse. Opa! Foi um sucesso! O rei dançou com ela e quase só com ela. Perguntou-lhe donde era e Carantonha respondeu:

- Eu sou da terra dos borrifos de água. E tratou de sair despercebida, para a cozinha, vestindo de novo a pele de ovelha.

No outro dia a criadagem não falava de outra coisa: da nova princesa que aparecera e ninguém sabia de que reinado era.

Quando ela foi apresentar a toalha ao rei, pediu-lhe licença para ir ao baile. O rei atirou-lhe a toalha:

- Tu, Carantonha?

Lá foi a moça para o seu cantinho da cozinha, esfregou o anel, e:

- Hoje quero um vestido cor de céu. E já estava como uma princesa. E foi entrando com jeito no salão. Opa! Que sucesso! O rei dançou com ela até a madrugada. Perguntou-lhe donde era.

– Eu? Eu sou da terra do joga a toalha. E tratou de escapulir-se.

No terceiro dia, enquanto o rei lavava as mãos depois do jantar, Carantonha pediu-lhe outra vez a licença para ir ao baile.

– Tu, Carantonha? E o rei deu-lhe um tapinha na cara, brincando.

A moça pediu ao anel o vestido cor do mar, muito mais lindo que os outros. E entrou no salão. Já o rei foi recebê-la e dançaram, dançaram.

– Donde és, bela princesa? Quero casar-me contigo, disse-lhe o rei.

– Eu? Eu sou da terra do leva um tapa.

Mais tarde a Carantonha escapou e foi vestir sua pele na cozinha.

Estava acabando o baile. O rei resolveu descobrir o enigma. A princesa acabava de desaparecer. Devia estar ainda no palácio. O rei mandou a polícia ocupar todas as saídas e quando as moças iam saindo examinava uma por uma a ver-lhe o vestido cor do mar e as feições do rosto, que muito bem lembrava. Nada! Ninguém! Examinou depois as camareiras do palácio. Carantonha pediu ao anel o mesmo vestido cor do mar, cobriu-se com a pele e ficou esperando. O rei estava certo que ninguém saíra. E então só faltava examinar a Carantonha. Ele já andava desconfiado. Por isso chegou de repente, puxou a espada e rasgou-lhe um pedaço da pele. Apareceu o vestido.

– Ah! É assim? – disse o rei, riscou a pele de alto a baixo e Carantonha apareceu se rindo, nos modos e no porte de uma princesa.

Os cortesãos estavam admirados! Que coisa!

Mas o rei, meio carrancudo, interpelou a moça.

– Tu estavas zombando de mim? Olha, que eu não sou para brincadeiras. Por que é que me dissestes que era da terra dos borrifos de água?

- Ué! Então vossa majestade não se lembra mais que quando pedi para ir ao baile da primeira noite me esborrifou a água no meu rosto?

- Ah! Tens razão. E por que na segunda noite disseste seres da terra do joga a toalha?

- Porque vossa majestade, quando pedi para ir ao baile, me jogou a toalha.

– Ah! É verdade. E na terceira noite tu eras da terra leva um tapa.

– Pois sim! Vossa majestade, quando lhe pedi para ir ao baile, me deu um tapa, brincando.

Em seguida, o rei apresentou a noiva aos cortesãos e convidados, marcou-se o dia das bodas. À hora do banquete, a nova rainha, como era costume, contou uma história. A história dela, a sua infância escondida, a caçada real, a madrinha boa fada. O barba de ouro era falecido, e a rainha mãe dela. Os pais adotivos vieram morar no palácio. Parece que ainda existem, arcadinhos, arcadinhos, mas contentes da vida!


* * *

Contou Luís Maria Ferreira, que lhe contou uma tia de seu pai lá por 1880, na Ilha da Madeira. Variante da conhecida Pele de burro com a Maria Borralheira, mais a interposição de um elemento novo, o barba de ouro, para explicar o motivo da transmutação, deixadas em paz as pobres madrastas.



(Três contos populares. O Estado de São Paulo, 4 de setembro de 1949)



(Ilustração: Thomas Sully - Cinderella at the kitchen fire)

domingo, 25 de fevereiro de 2024

TO A MOUSE, ON TURNING HER UP NEST WITH THE PLOUGH / A UM CAMUNDONGO, AO REVIRÁ-LO NO SEU NINHO COM O ARADO, de Robert Burns

 



NOVEMBER 1785



I



Wee, sleekit, cowrin, tim’ beastie,

O, what a panic’s thy breastie!

Thou need na start awa sae hasty

Wi’ bickering brattle!

I wad be laith to rin an’ chase thee,

Wi’ mudering pattle!



II



I’m truly sorry man’s dominion

Has broken Nature’s social union,

An’ justifies that ill opinion

Wich makes thee startle

At me, thy poor, earth-born companion

An’ fellow mortal!



III



I doubt na, whyles, but thou may thieve;

What then? poor beastie, thou maun live!

A daimen icker in a thrave

’S a sma’ request;

I’ll get a blessin wi’ the lave,

An’ never miss’t!



IV



Thy wee-bit housie, too, in ruin!

Its silly wa’s the win’s are strewin!

An’ naething, now, to big a new ane,

O’ foggage green!

An’ bleak December’s win’s ensuing,

Baith snell an’ keen!



V



Thou saw fields laid bare an’ waste,

An’ weary winter comin fast,

An’ cozie here, beneath the blast,

Thou thought to dwell,

Till crash! the cruel coulter past

Out thro’ thy cell.



VI



That wee bit heap o’ leaves an’ stibble,

Has cost thee monie a weary nibble!

Now thou’s turned out, for a’ thy trouble,

But house or hald,

To thole the winter’s sleety dribble,

An’ cranreuch cauld!



VII



But Mousie, thou art no thy lane,

In proving foresight may be vain:

The beast-laid schemes o’ mice an’ men

Gang aft agley,

An’ lea’e us nought but grief an’ pain,

For promis’d joy!



VIII



Still thou art blest, compared wi’ me!

The present only touched thee:

But och! I backward cast me e’e,

On prospects drear!

An’ forward, tho’ I canna see,

I guess an’ fear!



Tradução de Luiza Lobo:



NOVEMBRO 1875



I



Suave, encolhido, tímido animalzinho,

Oh, que terror se aperta em teu peitinho!

Não precisas te precipitar

Em temerosa corrida!

Eu não desejava te arreliar e perseguir

Com enxadão assassino!



II



Sincero lastimo a humana dominação

A quebrar da Natureza a social união,

E a justificar tão má opinião

Que o faz saltar

Longe de mim, teu pobre companheiro

Terreno e mortal!



III



Não duvido, tu és o meu ladrão;

E então? animalzinho, precisas sobreviver!

Um grãozinho de milho num monte de grãos

É pequena requisição;



Será uma dádiva o que me deixares

Nunca sentirei o que me roubares!



IV



E tua casinhola, também em ruínas!

Seus tolos muros pelos ventos carregados!

E nada já para construir-te uma casa nova,

Mesmo de áspero capim!

E em dezembro, as invernais ventanias

Aparecem, cortantes e severas!



V



Tu viste os campos desertos, devastados,

E o árido inverno rápido chegado,

E, comodamente, sob os vendavais,

Aqui pensaste em habitar!

Até que um som cruel cortou numa fatia

Crash! A tua morada.



VI



Este feixe de folhas e restolhos,

Como te custou exaustivos bocados,

Agora foste expulso, apesar dos cuidados,

Sem abrigo nem casa ter,

A suportar chuvosa a fria geada,

E a terra sentir congelada!



VII



Mas camundonguinho, tu não estás sozinho

Ter precaução pode ser algo bem vão:

Os melhores planos de ratos e homens

Por vezes se arruínam

Deixando-nos imersos em tristeza e dor

Em lugar da prometida alegria!





VIII



És contudo feliz se comigo comparado!

Pois tão-somente o presente observas:

Enquanto eu, oh! quando para trás olho

Só planos frustrados enxergo!

E quando olho para frente nada vejo,

Senão maus augúrios, e estremeço!





(Robert Burns, 50 Poemas)


(Ilustração: Marianne von Werefkin, 1860–1938)