Em muitas línguas, a
diferença entre o formal e o informal não é tanta quanto no português.
Aprendemos inglês sem notar grande diferença entre o que é dito nas ruas, na
imprensa ou nas gramáticas. Aqui, os gramáticos são menos sensíveis ao registro
popular, baseiam-se quase sempre nos clássicos e impõem um uso linguístico
lusitano.
Costuma-se dizer que o
português é uma língua difícil. Logo de início, é preciso esclarecer que não
existe língua fácil: até mesmo um idioma artificial como o esperanto, criado
para ser simples, tem lá as suas artimanhas. Todas as línguas apresentam dificuldades,
sejam gramaticais, fonéticas ou mesmo ortográficas, e isso tanto para o
estrangeiro quanto para o falante nativo.
No entanto, estudos
comparativos entre línguas permitem quantificar de forma objetiva o grau de
complexidade de um idioma. Por exemplo, a comparação entre as conjugações
verbais de várias línguas possibilita identificar qual delas possui mais
paradigmas de flexão distintos, qual apresenta mais formas irregulares, e assim
por diante.
Se compararmos o português
às demais línguas da Europa Ocidental (não vou tratar aqui do grego ou das
línguas eslavas, cuja fama de complicadas já se tornou proverbial),
observaremos que ela é mais simples em alguns aspectos e mais complexa em
outros.
Em matéria de colocação
pronominal, por exemplo, o português é uma língua bem mais complexa - e mais
conservadora - do que todas as suas irmãs românicas, e mais ainda do que as
suas primas germânicas. Para entendermos o porquê disso, vamos analisar primeiro
a gênese das regras de colocação pronominal, que remontam ao latim.
Na língua latina, as funções
sintáticas (sujeito, objeto direto, adjunto adverbial etc.) são indicadas pela
terminação das palavras e não pela sua posição na oração. Por isso, a sintaxe
do latim é bastante "frouxa", dando ao falante grande liberdade de
escolha da ordem dos elementos na frase.
À medida que o latim evoluiu
para as línguas românicas, essa característica sintática foi se perdendo. Por
força de um fenômeno puramente fonético - a perda das consoantes finais das
palavras -, tornou-se quase impossível distinguir a função sintática de uma
palavra apenas pela sua terminação.
Como resultado, as línguas
românicas adotaram uma nova maneira de indicar a função sintática: por meio da
posição da palavra na oração. É nesse momento que as gramáticas vão fixar a
posição em que devem se situar os pronomes pessoais oblíquos átonos. Essa
regulamentação se deu com base no uso que os falantes cultos faziam desses
pronomes à época do estabelecimento das gramáticas.
Com isso, praticamente todas
as línguas provenientes do latim apresentavam em suas primeiras descrições
gramaticais, entre os séculos 16 e 17, regras de colocação pronominal
consideravelmente complexas, que envolviam duas posições relativas ao verbo: a
próclise (pronome oblíquo anteposto ao verbo - me sento) e a ênclise (pronome
oblíquo posposto ao verbo - sento-me). O português, por sinal, apresentava uma
terceira posição nos tempos futuros: a mesóclise, isto é, o pronome oblíquo
átono enxertado no meio do verbo (sentar-me-ei). A existência da mesóclise já
distinguia, de princípio, a colocação portuguesa da de suas irmãs românicas.
Embora num texto espanhol ou
italiano do século 16 fosse possível encontrar os pronomes ora antepostos ora
pospostos aos verbos, a escolha da posição do pronome nessas línguas era mais
ou menos livre, ao gosto do escritor. No português dessa época, já havia
restrições ao posicionamento dos pronomes (por exemplo, a presença de palavras
de significado negativo, como não, nunca, nenhum etc., exigia a próclise).
Mas o fato é que, sobretudo
a partir do final do século 19, e mais ainda após a Segunda Guerra Mundial, as
línguas da família românica, com exceção do português, simplificaram
sensivelmente os seus sistemas de colocação pronominal. Por iniciativa do uso popular
e, a seguir, por adesão dos gramáticos a esse uso, fixou-se com a maioria das
formas verbais o emprego da próclise, nas demais adotando-se a ênclise.
Atualmente, o francês, o
occitano e o romeno utilizam próclise com todas as formas verbais, exceto o
imperativo positivo, em que ocorre ênclise (no imperativo negativo também se
usa a próclise). O espanhol, o catalão e o italiano usam próclise em todas as
formas, com exceção do imperativo positivo e das formas nominais do verbo
(infinitivo, gerúndio e particípio).
Nas línguas germânicas, a regra é ainda mais simples: ênclise sempre. (Em alemão e holandês, o pronome oblíquo às vezes aparece antes do verbo; na verdade, nessas línguas é o verbo que se desloca para o final da oração se esta for subordinada ou se o verbo estiver numa das formas nominais. Ainda assim, a regra é bastante simples.). Em português, como se vê no quadro abaixo, tudo é muito mais rígido.
Complicações fixadas
As normas oficiais da
gramática do português para a colocação de pronomes
No português, segundo
as normas oficiais da gramática, temos próclise:
a) se a oração traz
advérbio antes do verbo (Não o procurei. Aqui se faz, aqui se paga.);
b) se o sujeito é um
pronome substantivo (isso, aquilo, nada, algo, tudo);
c) se a oração for
subordinada expandida (Quero que você me faça um favor.), ou ainda
d) se a frase for uma
interrogação direta ou indireta (Quanto me custará isso? Quero saber quanto
isso me custará.).
Por outro lado, a
ênclise é obrigatória:
a) se a frase se
inicia pelo verbo (Gasta-se muito dinheiro com bobagens.), ou
b) se a oração é
subordinada reduzida de infinitivo (É preciso portar-se bem.).
A mesóclise se usa
nos mesmos casos em que se usaria a próclise, porém nos tempos futuros (do
presente e do pretérito): gastar-se-á muito dinheiro, etc.
Com as formas nominais do
verbo, as coisas ficam ainda mais complicadas. Se não há fator que exija a
próclise, o pronome pode ser colocado após o verbo auxiliar ou após a forma
nominal: quero-lhe pedir ou quero pedir-lhe.
Se houver fator que
determine a próclise, o pronome deverá ser colocado antes do verbo auxiliar ou
depois da forma nominal: não lhe quero pedir ou não quero pedir-lhe. Se a forma
nominal do verbo for regida por preposição, pode haver próclise ou ênclise:
tenho de lhe dizer ou tenho de dizer-lhe.
Segundo tais regras, o
correto seria dizer isso me está incomodando (ou isso está incomodando-me) em
lugar do natural isso está me incomodando. Pior ainda, se conjugarmos o verbo
fazer acompanhado de um pronome "o" enclítico, teremos as bizarras
formas faço-o, fazê-lo, fá-lo, fazemo-lo, fazei-lo, fazem-no. Além de três
formas diferentes para o mesmo pronome (o, lo e no), surgem formas verbais
estranhas, como fá ou fazê. Nenhuma outra língua românica ou germânica
apresenta tais anomalias.
Com todas essas regras tão
simples e lógicas, não é à toa que a colocação pronominal seja um dos grandes
pesadelos de qualquer estudante de língua portuguesa. Imagine agora um
estrangeiro tendo de assimilar esse emaranhado de prescrições e exceções!
É preciso lembrar que essas
regras valem para a chamada norma culta, mas, tanto na fala popular quanto nos
textos literários e jornalísticos da atualidade, as regras são bem mais
simples: para o povão, próclise o tempo todo e fim de papo; para os escritores
e jornalistas, algum respeito pela norma culta, mas sem fanatismo. Por exemplo,
mesóclise é algo terminantemente proibido.
Aliás, a mesóclise hoje em
dia é algo que praticamente só se vê em textos jurídicos. Só que os
profissionais do direito também empregam "aluguer" por
"aluguel", "teúda" e "manteúda" por
"tida" e "mantida", e outros arcaísmos que remontam ao
século 12. Ou seja, o idioma dos tribunais não pode ser considerado um bom
exemplo do português moderno.
Na prática, toda língua de
cultura possui pelo menos três padrões de linguagem, ou registros: o registro
formal, o informal e o popular (também chamado de não-padrão). O registro
formal é aquele usado pelos falantes cultos (isto é, altamente escolarizados)
em situações formais, como um discurso em cerimônia de formatura ou um livro
didático. O informal é o utilizado pelos mesmos falantes cultos em situações
informais (numa roda de amigos, por exemplo). Finalmente, o popular é usado
pelos falantes de baixa ou nenhuma escolaridade em todas as situações.
Em outras línguas europeias,
tanto românicas quanto germânicas, a diferença entre o padrão formal e o
informal não é tão grande. O brasileiro que aprende a língua inglesa não
percebe muita diferença entre o inglês falado nas ruas, o dos jornais, revistas
e livros e o inglês das gramáticas. Ao contrário, um estrangeiro que tenha
aprendido português em seu país de origem com base na gramática normativa - e é
isso o que geralmente acontece - logo perceberá a distância abismal entre a
colocação pronominal dos livros escolares e o uso feito tanto pelos falantes
cultos quanto pelos incultos.
Por que isso acontece? Em
primeiro lugar, porque os gramáticos do português são bem mais conservadores e
resistentes às inovações de origem popular que os de outras línguas. Em segundo
lugar, porque a gramática normativa toma por base o uso da língua feito
sobretudo por autores clássicos, como Eça de Queirós e Machado de Assis. Em
terceiro lugar, porque a gramática do português brasileiro, imbuída de um
verdadeiro complexo de colônia, impõe um uso linguístico que é fundamentalmente
lusitano: enquanto a ênclise é a colocação mais comum em Portugal, no Brasil
nenhum "mancebo" conseguiria conquistar uma "rapariga"
lascando um sonoro amo-te, querida.
O fato é que o povo tende a
simplificar a língua, recorrendo frequentemente à analogia. Por exemplo, se o
futuro do subjuntivo de "colocar" é "colocar", por que o de
"pôr" é "puser", o de "ver" é "vir" e o
de "vir" é "vier"? O falante ingênuo (isto é, o que não é
estudioso do idioma) ignora as razões históricas que geraram essas
irregularidades e simplesmente profere "se eu pôr, quando eu ver, se ele
vir falar comigo", e assim por diante.
No inglês, o futuro dos
verbos, que antes era feito com o verbo auxiliar shall nas primeiras pessoas do
singular e do plural e com will nas demais, hoje se faz com will em todas as
pessoas, e isso consta em todas as gramáticas e livros escolares da língua.
Mesmo a nobreza britânica, que sente pruridos em relação à fala cockney da
plebe, abandonou há muito o uso de shall. De modo igual, a simplificação na
colocação dos pronomes operada pelo espanhol, francês, italiano etc., está
contemplada em todos os compêndios de ensino dessas línguas.
Portanto, se as gramáticas
de outros idiomas são mais abertas à simplificação e preocupam-se acima de tudo
com a eficácia da comunicação, no português o que fala mais alto é o apego à
tradição. Daí essa disparidade tão grande entre a língua real das ruas e dos
jornais e a língua ideal das gramáticas e das aulas de português.
Isso revela algo mais sobre
a nossa identidade cultural tupiniquim: as elites brasileiras, ciosas de nosso
passado colonial, têm horror a tudo o que é popular e zelam pela complexidade
gramatical como instrumento de dominação. Nossa cultura bacharelesca preza
muito a fala rebuscada e a verborragia vazia de conteúdo desde que muito bem
ornada de floreios e preciosismos.
(Ilustração: Egbert van Heemskerck - le maître d'école)