sexta-feira, 10 de maio de 2024

A TEIMOSA MANIA DE CORTAR CABEÇAS, de Roberto Pompeu de Toledo

 

 


Faz algum tempo que não se cortam cabeças no Brasil. Mas quantas já se cortaram!

O jornal O Globo, dentro de uma série de reportagens sobre a guerrilha do PC do B no Araguaia, nos anos 70, contou em sua edição de 29 de abril como morreu Osvaldo Orlando da Costa, o "Osvaldão", um negro alto (1,98 metro) e forte, campeão de boxe e atletismo antes de virar chefe do grupo que imitava Che Guevara nos matos do Brasil Central. Osvaldão foi abatido num milharal, numa tarde de março de 1974, por uma patrulha do Exército.

De helicóptero, o corpo foi levado a Ximbioá. Cortaram-lhe a cabeça. O guerrilheiro tinha granjeado a fama de invencível, na região. Resolveu-se mostrar àquela gente crédula que ele não era invencível. Uma testemunha disse ao repórter Amaury Ribeiro Jr., de O Globo, que viu um oficial apresentando em triunfo a cabeça do guerrilheiro, e perguntando: "Cadê o homem imortal?"

Voltem-se oitenta anos. Desfecho da revolução gaúcha de 1893. O principal líder rebelde, Gumercindo Saraiva, é morto no dia 10 de agosto de 1894 e enterrado, mas os governistas ainda não se sentem saciados. O coronel Firmino de Paula manda desenterrar o cadáver e colocá-lo à beira da estrada. O general Francisco Rodrigues Lima vai dizendo, ao aproximar-se: "As orelhas são minhas". Os soldados dirigem zombarias ao cadáver. Cortam-lhe a cabeça.

Avancem-se 44 anos. Julho de 1938. Madrugada. Lampião, o "Rei do Cangaço", e sua mulher, Maria Bonita, mais nove companheiros, são finalmente localizados em seu refúgio da fazenda de Angico, no sertão de Sergipe, e mortos. Cortam-lhes as cabeças, que em seguida são exibidas nas escadarias da igreja matriz de Santana do Ipanema. Uma foto eternizou a cena: onze cabeças distribuídas em filas que sobem os degraus. Há filas no alto e filas embaixo, como nas poses dos times de futebol, antes do jogo. As de Lampião e Maria Bonita seriam depois levadas em peregrinação até Salvador, onde, mumificadas, ficariam expostas no Museu Nina Rodrigues.

Recue-se um ano. 1937. A comunidade messiânica do Caldeirão, liderada pelo Beato Lourenço, no Ceará, é dizimada pela polícia. Quinhentos fiéis são mortos. Cadáveres são degolados.

Recuem-se 242 anos. Novembro de 1695. Acabou o Quilombo dos Palmares e foi morto seu líder, Zumbi. O cadáver é levado a Porto Calvo, hoje Alagoas, onde é decepado por um escravo, perante as autoridades. Lavra-se um "Auto de decapitação do negro Zumbi". Em seguida a cabeça é transportada ao Recife e ali colocada em exibição pública, para, segundo o governador Melo e Castro, "satisfazer os ofendidos e justamente queixosos e atemorizar os negros que supersticiosamente o julgavam imortal".

Avancem-se 97 anos. Tiradentes. Enforcado no Rio de Janeiro, ele tem o corpo esquartejado. O cadáver inicia então uma viagem de volta a Minas Gerais, durante a qual pedaços vão sendo deixados nas praças centrais de diferentes cidades. A cabeça é reservada para exibição no alto de um poste no centro de Ouro Preto.

Avancem-se 105 anos. 1897. Canudos vive seus últimos dias. Euclides da Cunha escreve, em Os Sertões: "Os soldados impunham invariavelmente à vítima um viva à República, que era poucas vezes satisfeito. Era o prólogo invariável de uma cena cruel. Agarravam-na pelos cabelos, dobrando-lhe a cabeça, esgargalando-lhe o pescoço; e, fracamente exposta a garganta, degolavam-na".

Ainda Canudos. Seis de outubro de 1897. Finalmente dentro do arraial, as tropas ficam sabendo que Antônio Conselheiro morrera duas semanas antes, de morte natural, e fora enterrado. Uma comissão dirige-se então à sepultura. Euclides da Cunha escreve:

"Desenterraram-no cuidadosamente. (...) Fotografaram-no depois. E lavrou-se uma ata rigorosa firmando a sua identidade: importava que o país se convencesse bem de que estava, afinal, extinto aquele terribilíssimo antagonista. Restituíram-no à cova. Pensaram, porém, depois, em guardar a sua cabeça tantas vezes maldita -- e como fora malbaratar o tempo exumando-o de novo, uma faca jeitosamente brandida, naquela mesma atitude, cortou-lha; e a face horrenda, empastada de escaras e sânie, apareceu ainda uma vez ante aqueles triunfadores. Trouxeram depois para o litoral, onde deliravam multidões em festa, aquele crânio".

A História do Brasil é assombrada por cabeças sem corpo e corpos sem cabeça.



(VEJA - Ensaio, 8/5/96)

(Ilustração : Artemisia Gentileschi - Salome with the Head of Saint John the Baptist ca. 1610-1615)

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