segunda-feira, 30 de janeiro de 2023
NA MEDICINA HEROICA, O HEROÍSMO CABIA AO PACIENTE, de John M. Barry
As duas perguntas mais importantes da ciência são “O que posso saber?” e “Como posso saber?”.
Na verdade, ciência e religião divergem a respeito da primeira pergunta, o que cada um pode saber. A religião — e, até certo ponto, a filosofia — acredita poder saber, ou ao menos abordar, a pergunta: “Por quê?”
Para a maioria das religiões, a resposta para essa pergunta se resume ao modo como Deus ordenou. A religião é inerentemente conservadora; mesmo aquela que propõe um novo Deus apenas cria uma nova ordem.
A pergunta “por que” é muito profunda para a ciência. Em vez disso, a ciência acredita que só pode saber “como” algo acontece.
A revolução da ciência moderna, e, especialmente, da ciência médica, começou quando ela deixou de se concentrar apenas na resposta para “O que posso saber?” e, mais importante, mudou o método de investigação, mudou sua resposta para “como posso saber?”.
Essa resposta envolve não apenas pesquisas acadêmicas; afeta como uma sociedade se governa, sua estrutura, como vivem seus cidadãos. Se uma sociedade acata os dizeres de Goethe “Verbo... inacessível”, se acredita que sabe a verdade e que não precisa questionar suas crenças, então é mais provável que ela aplique decretos rígidos e é menos provável que mude. Se deixar espaço para dúvidas quanto à verdade, provavelmente será livre e aberta.
No contexto mais restrito da ciência, a resposta determina como os indivíduos exploram a natureza — como alguém faz ciência. E a maneira como alguém responde uma pergunta, a metodologia que essa pessoa usa, importa tanto quanto a própria pergunta, uma vez que o método de investigação está na base do conhecimento e com frequência determina o que se descobre: o modo como alguém tenta responder uma pergunta em geral determina, ou ao menos limita, a resposta.
De fato, a metodologia importa mais do que qualquer outra coisa. Ela inclui, por exemplo, a famosa teoria de Thomas Kuhn de como a ciência progride. Kuhn dá amplo uso à palavra “paradigma” argumentando que, em qualquer momento determinado, um paradigma específico, um tipo de verdade percebida, domina o pensamento em qualquer ciência. Outros também aplicaram esse conceito a campos não científicos.
Segundo Kuhn, o paradigma predominante tende a congelar o progresso — indiretamente, ao criar um obstáculo mental às ideias criativas e diretamente, por exemplo, ao impedir que os fundos para pesquisa sejam destinados a ideias verdadeiramente novas, em especial se entrarem em conflito com o paradigma. Kuhn argumenta que, ainda assim, os pesquisadores por fim descobrem o que ele chama de “anomalias” que não se encaixam no paradigma. Cada uma erode a base do paradigma e, quando se acumulam o suficiente para miná-lo, o paradigma colapsa. Então, os cientistas buscam um novo paradigma que explique tanto os fatos antigos quanto os novos.
Mas o processo — e o progresso — da ciência é mais fluido do que o conceito sugerido por Kuhn. Ele se move mais como uma ameba, com bordas suaves e indefinidas. Acima de tudo, o método é importante. A própria teoria de Kuhn reconhece que a força propulsora por trás da mudança de uma explicação para outra vem da metodologia, daquilo que chamamos de método científico. Mas ele toma como axioma o fato de que aqueles que fazem perguntas constantemente testam hipóteses existentes. De fato, com uma metodologia que investigue e teste hipóteses — independentemente de qualquer paradigma —, o progresso é inevitável. Sem essa metodologia, o progresso se torna meramente casual.
No entanto, o método científico nem sempre foi usado por aqueles que investigam a natureza. Durante a maior parte da história conhecida, os pesquisadores que tentaram penetrar no mundo natural, naquilo que chamamos de ciência, se fiaram apenas na mente, só na razão. Eles acreditavam que poderiam saber sobre algo caso seu conhecimento seguisse logicamente o que consideravam uma premissa sólida. Por conseguinte, baseavam suas premissas principalmente na observação.
Esse compromisso com a lógica, aliado à ambição do homem de ver o mundo inteiro de uma maneira abrangente e coesa, na verdade impôs vendas à ciência em geral e à medicina em particular. Ironicamente, a razão pura tornou-se o principal inimigo do progresso. E, durante a maior parte de dois milênios e meio — dois mil e quinhentos anos —, o tratamento original de pacientes pelos médicos quase não fez nenhum progresso.
Não se pode culpar a religião ou a superstição por essa falta de progresso. No Ocidente, começando ao menos quinhentos anos antes do nascimento de Cristo, a medicina era amplamente secular. Embora os curandeiros hipocráticos — os vários textos de Hipócrates foram escritos por pessoas diferentes — gerissem templos e aceitassem explicações pluralistas para doenças, eles buscavam explicações materiais.
Hipócrates nasceu aproximadamente em 460 a.C. Sobre a doença sagrada, um de seus textos mais famosos e com frequência atribuído diretamente a ele, chegava a zombar de teorias que atribuíam a epilepsia à intervenção de deuses. Ele e seus seguidores defendiam a observação precisa precedendo a teorização. Como afirmavam seus textos: “Pois uma teoria é uma memória composta de coisas apreendidas através da percepção sensorial.”[7] “Mas conclusões meramente verbais não podem gerar resultados.” “Também aprovo a teoria se ela se basear em incidentes e se chegar à sua conclusão de acordo com os fenômenos.”
Mas, se essa abordagem soa como a de um pesquisador moderno, de um cientista moderno, faltam-lhe dois elementos singularmente importantes.
Primeiro, Hipócrates e seus companheiros apenas observavam a natureza. Eles não a investigavam.
Essa deficiência era até certo ponto compreensível. Dissecar um corpo humano era inconcebível. Mas os autores dos textos hipocráticos não testavam suas conclusões e teorias. Para ser útil ou científica, uma teoria deve fazer uma previsão — em última instância, deve dizer: se isso é assim, então aquilo é assado — e testar essa previsão é o elemento mais importante da metodologia moderna. Uma vez testada, deve-se testar outra. Isso nunca pode parar.
Aqueles que escreveram os textos hipocráticos, no entanto, observavam passivamente e raciocinavam ativamente. Suas observações cuidadosas apontaram excreções de muco, sangramento menstrual, evacuações aquosas na disenteria, e provavelmente observaram o sangue em repouso, que com o tempo se separava em várias camadas, uma quase clara, outra como um soro um tanto amarelado e uma com sangue mais escuro. Com base nessas observações, eles levantaram a hipótese de que havia quatro tipos de fluidos corporais, ou “humores”: sangue, fleuma, bile e bile negra.[8] (Essa terminologia sobrevive atualmente na expressão “imunidade humoral”, que se refere a elementos do sistema imunológico, como anticorpos, que circulam no sangue.)
Essa hipótese fazia sentido, era coerente com as observações e podia explicar muitos sintomas. Explicava, por exemplo, que a tosse era causada pelo fluxo de muco no peito. Observações de pessoas que apresentavam tosse com muco sem dúvida deram base para essa conclusão.
Em um sentido bem mais amplo, a hipótese também era coerente com a forma como os gregos viam a natureza: eles observavam quatro estações do ano, quatro aspectos ambientais — frio, quente, úmido e seco — e quatro elementos — terra, ar, fogo e água.
A medicina esperou seiscentos anos pelo próximo grande avanço, por Galeno, mas ele não rompeu com esses ensinamentos; ele os sistematizou, os aperfeiçoou. Galeno afirmou: “Fiz tanto pela medicina quanto Trajano pelo Império Romano quando construiu pontes e estradas pela Itália. Fui eu, e apenas eu, aquele que revelou o verdadeiro caminho da medicina. É preciso admitir que Hipócrates já traçara esse caminho (...) Ele preparou o caminho, mas eu o tornei viável.”[9]
Galeno não se limitou a observar passivamente. Ele dissecou animais e, embora não tenha realizado autópsias em seres humanos, serviu como médico de gladiadores cujos ferimentos lhe permitiam ver profundamente sob a pele. Assim, seu conhecimento anatômico foi muito além do que o de qualquer antecessor conhecido. Mas permaneceu essencialmente um teórico, um lógico; impôs ordem à obra de Hipócrates, reconciliando conflitos, raciocinando com tanta clareza que, se alguém aceitasse suas premissas, as conclusões pareceriam inevitáveis. Ele tornou a teoria humoral perfeitamente lógica e até mesmo elegante. Como observa a historiadora Vivian Nutton, ele elevou a teoria a um nível verdadeiramente conceitual, separando os humores da correlação direta com os fluidos corporais e tornando-os entidades invisíveis “reconhecíveis apenas pela lógica”.[10]
As obras de Galeno foram traduzidas para o árabe e sustentaram a medicina ocidental e islâmica por quase mil e quinhentos anos antes de enfrentarem qualquer desafio significativo. Como os escritores hipocráticos, Galeno acreditava que a doença era essencialmente o resultado de um desequilíbrio no corpo. Ele também achava que o equilíbrio poderia ser restaurado pela intervenção; assim, um médico poderia tratar uma doença com sucesso. Se houvesse um veneno no corpo, ele poderia ser eliminado por evacuação. Suar, urinar, defecar e vomitar eram maneiras de restaurar o equilíbrio. Essas crenças levaram os médicos a recomendar laxantes muito fortes e outros purgativos, bem como emplastros de mostarda e outras prescrições que castigavam o corpo, que causavam bolhas e, teoricamente, restauravam o equilíbrio. E, de todas as práticas da medicina ao longo dos séculos, uma das mais duradouras — ainda que menos compreensíveis para nós atualmente — foi uma extensão perfeitamente lógica do pensamento hipocrático e galênico e recomendada por ambos.
Tratava-se da sangria de pacientes. A sangria constava entre as terapias mais comuns empregadas no tratamento de todo tipo de distúrbio.
Hipócrates e a maioria dos que o seguiam — até mesmo tardiamente no século XIX — também acreditavam que não se deveria interferir nos processos naturais. O objetivo dos diversos tipos de purgação era aumentar e acelerar esses processos, não resistir a eles. Por exemplo: como o pus era regularmente visto em todos os tipos de ferimentos, era considerado parte necessária da cura. Até fins do século XIX, os médicos rotineiramente não faziam nada para evitar que mais pus fosse produzido e relutavam até mesmo em drená-lo. Em vez disso, se referiram àquilo como “pus louvável”.
Da mesma forma, Hipócrates desprezava a cirurgia por ser intrusiva e interferir no curso da natureza; além disso, ele a via como uma habilidade puramente mecânica, abaixo da competência de médicos que transitavam em um domínio muito mais intelectual. Essa arrogância intelectual resumiria a atitude dos médicos ocidentais por mais de dois mil anos.
Isso não quer dizer que durante esse tempo os textos hipocráticos e galênicos forneceram as únicas bases teóricas para explicar saúde e doença. Diversas ideias e teorias foram aventadas sobre como o corpo funcionava, como a doença se desenvolvia. E uma escola de pensamento rival, que valorizava a experiência e o empirismo e desafiava os puramente teóricos, desenvolveu-se aos poucos dentro da tradição hipocráticagalênica.
É impossível resumir todas essas teorias em poucas frases, mas quase todas compartilhavam de determinados conceitos: que a saúde era um estado de harmonia e equilíbrio, e que a doença resultava de um desequilíbrio interno do corpo ou de fatores ambientais externos como um miasma atmosférico ou alguma combinação de ambos.
Contudo, no início do século XVI, três homens começaram ao menos a desafiar os métodos da medicina. Paracelso declarou que investigaria a natureza “não seguindo aquilo que os antigos ensinavam, mas por nossa própria observação da natureza, confirmada por (...) experimentos e raciocínios sobre o assunto”.[11]
Vesalius dissecou cadáveres humanos e concluiu que as descobertas de Galeno derivavam de animais e possuíam falhas profundas. Seu livro De humani corporis fabrica, provavelmente ilustrado por um dos discípulos de Ticiano, se tornou um dos alicerces da Renascença.
Já Fracastoro, astrônomo, matemático, botânico e poeta, levantou a hipótese de que as doenças tinham causas específicas e que o contágio “passa de uma coisa para outra e é originalmente causado pela infecção da partícula imperceptível”. Um historiador médico chamou sua obra de “um ápice provavelmente nunca igualado por alguém entre Hipócrates e Pasteur”.[12]
Os contemporâneos desses três homens incluíam Martinho Lutero e Copérnico, pessoas que mudaram o mundo. Na medicina, as novas ideias de Paracelso, Vesalius e Fracastoro não chegaram a esse ponto. Na prática real da medicina, eles não mudaram nada.
Mas a abordagem que sugeriram provocou ondulações enquanto o escolasticismo da Idade Média, que estupidificava quase todos os campos de investigação, começava a declinar. Em 1605, em Novum Organum, Francis Bacon atacou o raciocínio puramente dedutivo da lógica, chamando “Aristóteles (...) de um mero servo de sua lógica, tornando-a, assim, contenciosa e quase inútil”. Ele também reclamou: “A lógica atualmente em uso serve mais para corrigir e dar estabilidade a erros que se baseiam em noções comumente recebidas do que para ajudar na busca da verdade. Portanto, faz mais mal do que bem.”
Em 1628, Harvey mapeou a circulação do sangue, provavelmente talvez a maior conquista da medicina — e sem dúvida a maior conquista até fins do século XIX. E a Europa vivenciava uma agitação intelectual. Meio século depois, Newton revolucionou a física e a matemática. Contemporâneo de Newton, John Locke, instruído como médico, enfatizou a busca do conhecimento através da experiência. Em 1753, James Lind realizou um experimento controlado pioneiro entre marinheiros britânicos e demonstrou que o escorbuto poderia ser evitado pela ingestão de limão — desde então, os britânicos são chamados de “limeys” [em inglês lime]. Após essa demonstração e seguindo as ideias de Locke, David Hume liderou um movimento de “empirismo”. John Hunter, seu contemporâneo, realizou um brilhante estudo científico sobre a cirurgia, elevando-a do mero ofício de um barbeiro. Hunter também realizou experimentos científicos, alguns em si mesmo — como quando se infectou com o pus de um caso de gonorreia para provar uma hipótese.
Então, em 1798, Edward Jenner, um discípulo de Hunter — Hunter lhe dissera: “Não pense. Tente.” — publicou seu trabalho.[13] Quando era um jovem estudante de medicina, Jenner ouvira de uma vendedora de leite: “Não posso pegar varíola porque já tive varíola bovina.” O vírus da varíola bovina assemelha-se tanto à humana que a exposição à primeira confere imunidade à segunda. Mas a bovina raramente se transforma em uma doença grave. (O vírus que a causa é chamado de “vaccinia”, derivativo de vacinação.)
O trabalho de Jenner com varíola bovina foi um marco, mas não porque foi o primeiro a imunizar as pessoas contra a varíola humana. Muito tempo antes, chineses, indianos e persas já haviam desenvolvido diferentes técnicas de expor crianças à varíola para imunizá-las, e na Europa, ao menos no início do século XVI, leigos — e não médicos — retiravam material das pústulas dos que apresentavam casos brandos de varíola e o arranhavam na pele daqueles que ainda não haviam contraído a doença. A maioria das pessoas infectadas dessa maneira desenvolveram casos brandos e tornaram-se imunes. Em 1721, em Massachusetts, Cotton Mather seguiu o conselho de um escravo, experimentou essa técnica e evitou uma epidemia letal. Mas a “variolação” pode matar. Vacinar com varíola bovina era muito mais seguro do que a variolação.
Entretanto, do ponto de vista científico, a contribuição mais importante de Jenner foi sua rigorosa metodologia. Em relação à sua descoberta, ele afirmou: “Coloquei-a sobre uma pedra de onde sabia que não seria removível antes de convidar o público para olhar.”[14]
Mas ideias custam a desaparecer. Enquanto Jenner realizava seus experimentos, e apesar do grande aumento de conhecimento sobre o corpo humano derivado de Harvey e Hunter, a prática médica mudara pouco. E muitos médicos, se não a maioria, que refletiam seriamente sobre a medicina ainda a consideravam apenas em termos de lógica e observação.
Na Filadélfia, 2.200 anos depois de Hipócrates e 1.600 anos depois de Galeno, Benjamin Rush, pioneiro em considerações sobre doenças mentais, signatário da Declaração de Independência e o médico mais proeminente dos Estados Unidos, ainda aplicava apenas lógica e observação para construir “um sistema de medicina mais simples e consistente que o mundo já viu”.[15]
Em 1796, ele acreditava ter levantado uma hipótese tão lógica e elegante quanto a física newtoniana. Observando que todas as febres estavam associadas à pele corada, concluiu que aquilo era provocado por capilares distendidos e inferiu que a causa provável da febre seria uma “ação convulsiva” anormal desses vasos. Então, deu um passo adiante e deduziu que todas as febres eram resultado de distúrbios capilares e, como os capilares faziam parte do sistema circulatório, chegou à conclusão de que aquilo envolvia uma hipertensão de todo o sistema circulatório. Rush propôs reduzir essa ação convulsiva através de “depleção”, isto é, da venessecção — ou sangria. Fazia todo sentido.
Ele foi um dos mais fervorosos defensores da “medicina heroica”. O heroísmo, é claro, cabia ao paciente. No início dos anos 1800, elogios a suas teorias foram ouvidos por toda a Europa, e um médico de Londres disse que Rush unira “sagacidade e julgamento em um grau quase sem precedentes”.[16]
Uma reminiscência da aceitação da sangria pela comunidade médica persiste até hoje no nome da revista inglesa The Lancet, uma das principais publicações médicas do mundo. A lanceta era o instrumento usado pelos médicos para perfurar a veia do paciente.
Mas, se a primeira deficiência da medicina — que perdurou quase sem contestação por dois milênios e foi se desgastando ao longo dos três séculos seguintes — foi não ter sondado a natureza através de experimentos, limitando-se apenas à observação e ao raciocínio do que fora visto até a conclusão, essa deficiência estava — finalmente — prestes a ser corrigida.
Notas:
7. Citado em Charles-Edward Amory Winslow, The Conquest of Epidemic Disease: A Chapter in the History of Ideas (1943), 63.
8. Para uma discussão sobre a teoria, ver Porter, The Greatest Benefit to Mankind, 42-66, passim.
9. Ibid., 77.
10. Vivian Nutton, “Humoralism”, em Companion Encyclopedia to the History of Medicine (1993).
11. Citado em Winslow, Conquest of Epidemic Disease, 126.
12. Ibid., 142.
13. Ibid., 59.
14. Citado no discurso presidencial de Milton Rosenau, em 1934 para aSociedade de Bacteriologistas Americanos, documentos Rosenau, UNC.
15. Para uma excelente resenha a esse respeito, ver Richard Shryock,The Development of Modern Medicine, 2ª. ed. (1947), 30–31.
16. Ibid., 4.
(A grande gripe; tradução de Alexandre Raposo, Carmelita Dias, Cássia Zanon, Livia Almeida, Maria de Fátima Oliva De Couto e Paula Diniz).
(Ilustração: Johan Joseph Horemans - Interior with a surgeon attending to a wound in a man’s side - c.-1722)
sexta-feira, 27 de janeiro de 2023
POEMA DO HOMEM, de Solano Trindade
Desci à praia
Para ver o homem do mar,
E vi que o homem
É maior que o mar
Subi ao monte
Pra ver o homem da terra,
E vi que o homem
É maior que a terra
Olhei para cima
Para ver o homem do céu,
E vi que o homem
É maior que o céu.
(Poemas d'uma vida simples, 1944)
(Ilustração: Retrato de Solano Trindade por Israel Pedrosa, Rio de Janeiro, 1967)
Marcadores:
Solano Trindade - Poema do homem
terça-feira, 24 de janeiro de 2023
A QUINTESSÊNCIA DA VIDA A DOIS, de Philip Roth
As fotos. Nunca vou esquecer de Consuela me pedindo para tirar aquelas fotos. Se houvesse algum voyeur espiando a cena, ele ia achar que era uma coisa pornográfica. Porém era o que pode haver de menos pornográfico no mundo.
"Você está com a sua câmera fotográfica?"
"Estou", respondi. "Você podia tirar umas fotos de mim? Porque eu queria ter fotos do meu corpo tal como ele era quando você o conheceu. Tal como você o viu. Não tem nenhuma outra pessoa a quem eu possa pedir isso. Não posso pedir isso a nenhum outro homem. Se pudesse, eu não ia incomodar você." "Claro", disse eu, "a gente faz isso. Qualquer coisa. Me diz o que você quer. Pode pedir o que você quiser. Você pode me dizer qualquer coisa." "Dava pra você pôr uma música", disse ela, "e então pegar a câmera?" "Que música você quer?", perguntei.
"Schubert. Alguma peça de câmara de Schubert." "Está bem, está bem", respondi, mas não, pensei, A morte e a donzela.
No entanto, ela não me pediu para mandar uma cópia. Não esqueça que Consuela não é a garota mais brilhante do mundo. Porque, se fosse, as fotos seriam outros quinhentos. Nesse caso, haveria táticas em questão. A estratégia dela seria algo a se pensar. Mas, em se tratando de Consuela, há uma espontaneidade semiconsciente em tudo que ela faz, uma integridade, ainda que ela não saiba exatamente o que está fazendo, ou por quê. Procurar-me para que eu a fotografasse é uma atitude muito próxima à natureza, a um pensamento original que brota, à intuição, e não há nenhum raciocínio deliberado por trás dela. Você poderia elaborar um raciocínio, mas Consuela não seria capaz disso.
Ela sente que tem de fazer isso, diz ela, para documentar seu corpo para mim, porque eu o amei tanto, amei sua perfeição. Mas não era só isso, era muito mais que isso.
Já percebi que as mulheres, em sua maioria, se sentem inseguras em relação a seus corpos, mesmo quando, como no caso de Consuela, são de uma beleza absoluta. Nem todas sabem que são belas. Só um certo tipo de mulher sabe disso. Normalmente elas se queixam de algo de que não deviam se queixar. Muitas vezes querem esconder os seios. Sentem alguma vergonha cuja fonte jamais consigo identificar, e é necessário que você fique um bom tempo convencendo-as de que não há problema nenhum para que elas possam exibi-los com prazer e realmente gostar de ser apreciadas. Até mesmo as mais bem dotadas. São poucas as que se exibem sem problema, e hoje em dia, por causa de todas as polêmicas, muitas vezes as que se exibem não são aquelas cujos seios são do tipo que você teria inventado se pudesse.
Mas o poder erótico do corpo de Consuela — bom, isso acabou. É verdade, naquela noite tive uma ereção, mas eu não conseguiria mantê-la.
Sou um sujeito de sorte por ainda ter ereções e ter esses impulsos eróticos, mas, se ela tivesse me pedido para ir para a cama com ela naquela noite, eu teria ficado numa enrascada. Vai ser uma enrascada para mim quando ela me ligar depois que se recuperar da cirurgia. O que vai acontecer. Porque ela vai me ligar, não vai? Vai querer experimentar primeiro com uma pessoa que ela já conheça e que seja mais velha. Por uma questão de autoconfiança, de orgulho, melhor comigo do que com Carlos Alonso ou com os irmãos Villareal. A idade pode não fazer a mesma coisa que o câncer, mas faz um bom estrago.
Capítulo dois. Daqui a três meses ela me telefona e diz: "Vamos nos ver", e depois tira as roupas de novo. Será essa a catástrofe que me aguarda?
Tem um quadro de Stanley Spencer lá na Tate Gallery, um retrato em que aparecem o próprio pintor e a esposa, os dois nus, já na faixa dos quarenta. O quadro exprime da maneira mais direta a quintessência da vida a dois, da convivência dos sexos ao longo do tempo. Eu tenho esse quadro num dos meus livros de Spencer lá embaixo. Depois eu pego para lhe mostrar. Spencer está sentado, meio de cócoras, ao lado da mulher deitada. Ele olha para baixo, para ela, pensativo, bem de perto, pelos óculos de aro de metal. Nós, por outro lado, estamos olhando para eles de perto: dois corpos nus bem na nossa cara, que é para vermos claramente que eles não são mais jovens nem belos.
Nenhum dos dois está alegre. Há um passado pesado por trás desse presente. Para a mulher, em particular, tudo começou a cair, engrossar, e coisas piores do que estrias estão por vir.
Na beira de uma mesa, no primeiro plano do quadro, há dois pedaços de carne, uma coxa de carneiro grande e uma pequena costeleta. A carne crua é representada com uma precisão fisiológica, o mesmo realismo cruel com que são retratados os peitos caídos e o pênis pendente, flácido, apenas uns poucos centímetros atrás da comida crua. É como se você estivesse olhando pela vitrine de um açougue e visse não apenas a carne, mas também a anatomia sexual do casal.
Toda vez que penso em Consuela, me lembro daquela coxa de carneiro crua, que parece um porrete primitivo, ao lado dos corpos deste marido e desta mulher, exibidos do modo mais escancarado. A presença da carne ali, tão perto do colchão onde está o casal, fica cada vez menos incongruente quanto mais tempo você olha para o quadro. Há uma resignação melancólica na expressão um tanto aparvalhada da mulher, e há aquele pedaço de carne cortado no açougue que já não tem mais nada em comum com um carneiro vivo, e já faz três semanas, desde a visita de Consuela, que não consigo tirar da cabeça essas duas imagens.
(O animal agonizante; tradução de Paulo Henrique Britto)
(Ilustração: Stanley Spencer - autorretrato com a mulher)
Marcadores:
Philip Roth - A quintessência da vida a dois
sábado, 21 de janeiro de 2023
AN DIE PARZEN / PARA AS PARCAS / ÀS PARCAS, de Friedrich Hölderlin
Nur einen Sommer gönnt, ihr Gewaltigen!
Und einen Herbst zu reifem Gesange mir,
Daß williger mein Herz, vom süßen
Spiele gesättiget, dann mir sterbe!
Die Seele, der im Leben ihr göttlich Recht
Nicht ward, sie ruht auch drunten im Orkus nicht;
Doch ist mir einst das Heilge, das am
Herzen mir liegt, das Gedicht gelungen:
Willkommen dann, o Stille der Schattenwelt!
Zufrieden bin ich, wenn auch mein Saitenspiel
Mich nicht hinabgeleitet; einmal
Lebt ich, wie Götter, und mehr bedarfs nicht.
Tradução de Wagner Schadeck:
Pra mim, um só estio, Potestades,
E um só outono de canções maduras,
E, satisfeito desse doce jogo,
Meu coração apronta-se a morrer.
A alma que em vida não servira às leis
Divinas no Orco não repousará;
Mas surgindo o sagrado, que me habita
O coração, sucede-me a Poesia:
Bem-vindo sejas, ó sombrio reino!
Irei alegre, embora a minha lira
Não me acompanhe. Mas por uma vez
Vivera eu como os deuses. E isto basta.
Tradução de José Paulo Paes:
Dai-me, Potestades, mais um verão apenas,
Apenas um outono de maduro canto,
Que de bom grado, o coração já farto
Do suave jogo, morrerei então.
A alma que em vida nunca desfrutou os seus
Direitos divinos nem no Orco acha repouso;
Mas se eu lograr o que é sagrado, o que
Trago em meu coração, a Poesia,
Serás bem-vinda então, paz do mundo das sombras!
Contente ficarei, mesmo que a minha lira
Não leve comigo; uma vez, ao menos,
Vivi como os deuses, e é quanto basta.
Tradução de Manuel Bandeira:
Mais um verão, mais um outono, ó Parcas,
Para amadurecimento do meu canto
Peço me concedais. Então, saciando
Do doce jogo, o coração me morra.
Não sossegará no Orco a alma que em vida
Não teve a sua parte de divino.
Mas se em meu coração acontecesse
O sagrado, o que importa, o poema, um dia:
Teu silêncio entrarei, mundo das sombras,
Contente, ainda que as notas do meu canto
Não me acompanhem, que uma vez ao menos
Como os deuses vivi, nem mais desejo.
(Ilustração: Sodoma - Die drei Parzen - c.1525)
quarta-feira, 18 de janeiro de 2023
VERNON E SEUS CÁLCULOS DE AMOR, de Martin Amis
Vernon fazia amor com a esposa três vezes e meia por semana, e isso estava muito bem. Por algum motivo, fazer amor sempre tinha essa média.
Normalmente - se bem que nunca invariavelmente - eles faziam amor uma vez a cada duas noites. Por outro lado, sabia-se que Vernon podia fazer amor com a esposa sete noites consecutivas; nas sete noites seguintes, não faziam amor - ou talvez viessem a fazer uma vez só, mas nesse caso só fariam amor duas vezes na semana seguinte, mas quatro vezes depois disso - ou talvez só três vezes, e nesse caso fariam amor quatro vezes na semana seguinte, mas só duas vezes na semana subsequente - ou talvez uma vez só. E assim por diante. Vernon não sabia por quê, mas fazer amor sempre dava essa média; parecia invariável. De vez em quando – e por acaso isso era de admirar? – Vernon descobria que tinha vontade de que a semana tivesse apenas seis dias, ou nada menos do que oito dias, para tornar esses cálculos (que tinham sempre um efeito aprazivelmente fortificante para o espírito) mais fáceis de manejar.
Sem exceção, era o próprio Vernon quem dava início a seus atos conjugais. Sua esposa retribuía toda vez com a mesma vivacidade acanhada. As preliminares orais não eram de maneira nenhuma desconhecidas para eles.
Em média - e de novo sempre ficava dentro de uma média, e de novo Vernon cumpria sempre o papel do compenetrado animador de circo -, a felação era executada pela esposa uma vez a cada três cópulas, ou 60,8333 vezes no ano, ou 1,1698717 vez por semana.
Vernon praticava a cunilíngua mais raramente ainda: uma vez a cada quatro cópulas, em média, ou 45,625 vezes por ano, ou 0,8774038 vez por semana. Seria também um erro imaginar que isso abrangia todas as variações que eles punham em prática.
Vernon sodomizava a esposa duas vezes por ano, por exemplo - no dia do aniversário dele, o que lhe parecia muito apropriado, mas também, ironicamente (pelo menos era o que ele pensava), no dia do aniversário dela. Vernon punha isso na conta das noites dispendiosas que eles sempre desfrutavam nessas ocasiões e, mais especialmente, o creditava aos efeitos do champanhe. Vernon sempre sentia uma vergonha horrorosa depois e, no café da manhã do dia seguinte, parecia um claudicante espectro de remorsos e constrangimento. A esposa de Vernon nunca falava uma palavra sobre o assunto, o que não era nada mau. Se alguma vez falasse, Vernon na certa pararia de fazer aquilo. Mas ela nunca dizia nada.
A mesma coisa acontecia quando Vernon ejaculava na boca da esposa, o que, em média, ele fazia 1,2 vez por ano. A essa altura, estavam casados havia dez anos. Isso era conveniente. Como não seria quando estivessem casados por onze anos - ou por treze! Uma vez, e só uma única vez, Vernon estava a ponto de ejacular na boca da esposa quando de repente mudou de ideia: em vez disso, ejaculou em cima de todo o rosto da mulher. Ela também não falou nada sobre o assunto, graças a Deus. Por que ele resolveu mudar de ideia na última hora, isso Vernon nunca entendeu. Agora, não achava que tinha sido uma boa ideia.
Atormentava-o imensamente pensar que esses raros atos libidinosos patenteassem um desejo de humilhar e degradar a pessoa amada. E ela era a pessoa amada. Contudo, ele só fizera isso uma única vez. Vernon ejaculava em cima da cara da esposa 0,001923 vez por semana. Isso não era ejacular muitas vezes em cima da cara da mulher, era?
Vernon era um homem de negócios. Seu escritório continha várias calculadoras eletrônicas. Vernon frequentemente submetia seus dados conjugais a essas máquinas rápidas, eficientes e impecavelmente discretas. Elas sempre retribuíam, radiosas, com a mesma resposta, como se dissessem: "Sim, Vernon, é este o número de vezes que você faz isso". Ou : "Não, Vernon, você não faz isso mais do que tantas vezes". Vernon gastava todas as horas do almoço curvado em cima da calculadora. E no entanto sabia que todos esses números eram, em certo sentido, aproximados. Ah, Vernon sabia, Vernon sabia.
Então, um dia, um poderoso computador branco foi entregue ao departamento de contabilidade. Vernon percebeu logo que um sonho longamente acalentado agora podia se tornar realidade: saltar sobre os anos.
Ah, Alice. Não quero ser incomodado, entendeu? - disse ele muito sério à faxineira, quando se deixou ficar no escritório naquela noite. Tenho que fazer umas contas muito importantes no departamento de contabilidade.
Pouco depois de meia-noite, os olhos vermelhos e ardentes de Vernon miravam freneticamente a tela do monitor, onde toda a sua vida sexual se achava distribuída em tabelas, na forma de prismas recorrentes de três e seis lados, dispostos em séries infindáveis, como espelhos colocados uns diante dos outros.
A esposa de Vernon era a única mulher que Vernon havia conhecido. Ele a amava e gostava demais de fazer amor com ela; com certeza, nunca aspirou a outro desaguadouro para seus impulsos. Quando Vernon fazia amor com a esposa, só pensava no prazer dela e na beleza dela: os sons pouco frequentes, mas animadores, que ela emitia através dos dentes harmoniosamente entreabertos, a elasticidade divina de seus braços e pernas, o fervor, o delírio e a segurança do momento.
O sentimento de paz que se seguia tinha só um pouco a ver com a grande probabilidade de a noite seguinte ser de folga. Até os sonhos de Vernon eram monógamos: as mulheres que habitavam aquelas paisagens desconexas, mas essencialmente cotidianas, eram meros ícones do autossuficiente reino feminino, enfermeiras, freiras, motoristas de ônibus, guardadoras de estacionamentos, policiais.
Só de vez em quando, digamos, uma vez por semana, ou menos, ou de uma forma incalculável, ele via coisas que o faziam desconfiar de que a vida podia ter espaço para abrigar mais elementos - uma fita luminosa que demarcava a curvatura convexa de uma ponte, algumas formações de nuvens, figuras afoitas que corriam em meio à luz cambiante.
(Água Pesada e outros contos; tradução: Rubens Figueiredo)
(Ilustração: Sarah Anne-Johnson - Wonderlust)
Marcadores:
Martin Amis - Vernon e seus cálculos de amor
domingo, 15 de janeiro de 2023
FRAGMENTOS, de Rubens Jardim
I
Minha alma é pequena
e minha memória menor ainda.
Não fosse isso estaria mais perto
daquilo que me corrói:
o leite derramado.
II
Não vou me encontrar
se não encontrar em outra parte
A parte de mim que não responde:
Grito soterrado.
III
Já tentei acertar contas
com Deus e o Diabo
E as terras do sol.
Mas minha dívida
é comigo mesmo.
IV
Julgador e julgado
Réu e juiz
Não há farsa
nessa trama
Mas haverá proclamas?
(Página do autor, 2014)
(Ilustração: Georges Braque: Violin and candlestick)
quinta-feira, 12 de janeiro de 2023
A RAPOSA E A CEGONHA, de Esopo
Um dia a raposa convidou a cegonha para jantar. Querendo pregar uma peça na outra, serviu sopa num prato raso. Claro que a raposa tomou toda a sua sopa sem o menor problema, mas a pobre cegonha, com seu bico comprido, mal pôde tomar uma gota. O resultado foi que a cegonha voltou para casa morrendo de fome. A raposa fingiu que estava preocupada, perguntou se a sopa não estava do gosto da cegonha, mas a cegonha não disse nada. Quando foi embora, agradeceu muito a gentileza da raposa e disse que fazia questão de retribuir o jantar no dia seguinte.
Assim que chegou, a raposa se sentou lambendo os beiços de fome, curiosa para ver as delícias que a outra ia servir. O jantar veio para a mesa numa jarra alta, de gargalo estreito, onde a cegonha podia beber sem o menor problema. A raposa, amoladíssima, só teve uma saída: lamber as gotinhas de sopa que escorriam pelo lado de fora da jarra. Ela aprendeu muito bem a lição. Enquanto ia andando para casa, faminta, pensava: “Não posso reclamar da cegonha. Ela me tratou mal, mas fui grosseira com ela primeiro.”
MORAL DA HISTÓRIA: trate os outros tal como deseja ser tratado.
(Fábulas de Esopo; tradução de Heloísa Jahn).
(Ilustração: Grandville (1803-47) - The Fox and the Stork)
Marcadores:
Esopo - A raposa e a cegonha
segunda-feira, 9 de janeiro de 2023
INMÓVIL / IMÓVEL, de José Antonio Escalona
Inmóvil como siempre
me recibes.
Y en tu absorto silencio permanezco.
Tal actitud hierática del cuerpo
es aparente imagen. Muy adentro
del corazón
– timbal de la alegría
y de otros ritmos del sentir –
sigue
sin pausa
el íntimo concierto.
Sólo apariencia – digo – de reposo.
Porque el vuelo
de mi imaginación
en ilusorios giros me lleva
sucesivamente
del inmediato ahora
a lo pasado
y vuelta a lo que es sueño todavía.
Tradução de Wagner Mourão Brasil:
Imóvel como sempre
recebes-me.
E em teu absorto silêncio permaneço.
Tal atitude hierática do corpo
é aparente imagem. Mais lá no fundo
do coração
– tímpano da alegria
e de outros ritmos do sentir –
segue
sem pausa
o último concerto.
Somente aspecto – digo – de repouso.
Porque o voo
de minha imaginação
em ilusórios giros me leva
sucessivamente
do imediato agora
ao passado
e traz-me de volta ao que é sonho ainda.
(Ilustração: Fernando Botero)
Marcadores:
José Antonio Escalona - Inmóvil / Imóvel
sexta-feira, 6 de janeiro de 2023
DAS PROMESSAS NÃO CUMPRIDAS DE PAZ PERPÉTUA À NÃO VIOLÊNCIA, de Domenico Losurdo
Um clima de festa acompanhou, principalmente na Alemanha, a deflagração da I Guerra Mundial: as fotos nos mostram a imagem de jovens que correm para alistar-se com o mesmo entusiasmo com que se vai a um encontro erótico. Quem ficou encantado por aquela guerra “grande e maravilhosa”, de acordo com a definição de Max Weber, foram também intelectuais de primeira ordem e amplas camadas da população. Uma testemunha excepcional, Stefan Zweig (1968, p. 207), assim descreveu o clima espiritual de Viena nos dias à declaração de guerra:
Cada um era chamado a jogar na multidão inflamada seu “eu” pequeno e mesquinho para purificar-se de todo egoísmo. Todas as diferenças de classe, de língua, de religião eram, naquele momento grandioso, submersas pela grande correnteza da fraternidade.
A terrível prova diante da qual o país se encontrava tornava necessária a união estreita do povo, uma fusão das existências e das consciências nunca antes experimentada. A eclosão do conflito gigantesco marcava a hora da desindividualização (Entselbstung), do arrebatamento comum na totalidade (gemeinsame Entrückung in das Ganze). O amor ardente da comunidade rompe os limites do eu. Cada um se torna um só sangue e um só corpo com os outros, todos unidos na irmandade, prontos para anular o próprio eu no serviço.
Quem se expressava assim era Marianne Weber (1926, p. 526): a linguagem da experiência mística aqui utilizada ecoava amplamente na cultura e na publicística do tempo. Na linha de frente, os soldados corriam prontos para morrer, mas, principalmente na Alemanha, a filosofia e a cultura dominantes celebravam a prova das armas e a disponibilidade ao sacrifício como uma espécie de exercícios espirituais: esses tirariam o indivíduo do pensamento calculista e da banalidade e vulgaridade da existência cotidiana, realizando a comunhão dos espíritos que, até aquele momento, era impossível por causa do conflito social e do apego unilateral aos bens materiais. Sim, os soldados na linha de frente eram obrigados a enfrentar sacrifícios e privações e a desafiar diariamente a morte, mas essa árdua provação revelava-se uma pedagogia benéfica, que transformava garotos imberbes e fracos em homens de personalidade rica e madura e com um sentido da existência mais viril e profundo; naturezas toscas e nada sociáveis voltavam do campo de batalha mais gentis e com uma percepção mais aguda dos valores da vida em comum e da solidariedade.
Benedetto Croce esperava que a guerra recém-deflagrada, na qual a Itália ainda não havia intervindo, trouxesse uma “regeneração da vida social presente”. Mas esse comunitarismo de guerra mistificador e essa procura apaixonada no front bélico da autenticidade, da intensidade e da plenitude espiritual não podiam sobreviver à posterior, dolorosa, experiência de massa: a esperar nas trincheiras estavam a lama, a arregimentação total e a morte. Para dizer a verdade, do outro lado do oceano Atlântico, logo depois do fim das hostilidades, Herbert Hoover, grande expoente da administração estadunidense e futuro presidente dos Estados Unidos, atribuía ao conflito recém-terminado uma função de “purificação dos homens”. Era, contudo, uma retomada tardia e bastante artificiosa de um tema que, naquela altura, encontrava pouco acolhimento na consciência dos homens.(*)
Vinte anos mais tarde, nem mesmo as vitórias triunfais do primeiro Blitzkrieg [ataque-relâmpago] hitleriano conseguiram despertar o entusiasmo dos meses de julho-agosto de 1914. Sem a intenção de ofender os pós-modernos, eles que não perdem ocasião de zombar da ideia de progresso, as grandes experiências históricas, com frequência trágicas, não acontecem sem deixar rastros profundos e ensinamentos mais ou menos conhecidos. Pode-se e deve-se insistir no caráter extremamente tortuoso do processo histórico, mas falar de processo significa, afinal, reconhecer a capacidade de aprendizagem dos homens e a irreversibilidade do tempo histórico, a impossibilidade de voltar a um tempo anterior às experiências históricas que marcaram gerações inteiras de homens. A atmosfera encantada dos meses de julho/agosto de 1914 nunca mais se reproduzirá: ocorreu um desencanto que deixou sua marca. A guerra não pode mais ser comparada aos exercícios espirituais, não pode mais ser acolhida como uma festa ou um momento necessário e positivo do processo de formação e de amadurecimento da existência “autêntica”. Nas palavras de Hegel, a experiência da “seriedade” e da “dor” do “negativo” não pode mais ser apagada (Hegel 1969-79, vol. III, p. 24).
Isso vale também para a revolução. Na Rússia, o colapso do czarismo e o mês de fevereiro de 1917 foram saudados, naquela época, como uma Páscoa de Ressurreição. Grupos cristãos e setores importantes da sociedade esperavam, a partir dela, uma regeneração total, com o surgimento de uma nova comunidade espiritual e intimamente unificada: não haveria mais lugar para a divisão entre ricos e pobres, e nem para o roubo, a mentira, a blasfêmia, a embriaguez. Esse espetáculo conheceria uma repetição ainda mais enfáticas alguns meses depois. “Está havendo o quarto salmo das vésperas do domingo e o Magnificat: os poderosos derrubados de seus tronos e o pobre resgatado da miséria” – assim um observador, francês e cristão fervoroso (Pierre Pascal), saudava o mês de outubro bolchevique, enquanto, fora da Rússia, o jovem Ernst Bloch aguardava, na primeira edição de Espírito da utopia, o desaparecimento da “moral mercantil, que consagra tudo o que no homem há de pior”, e a “transformação do poder em amor” (cf. Losurdo 2008, pp. 56-57 e 67).
O entusiasmo ingênuo, incentivado pela queda de um Antigo Regime que se tornara universalmente odioso e, em outubro, pelo fim (ou pelo fim iminente) de uma carnificina bélica tida por todos como intolerável e monstruosa, não podia resistir às contradições e aos conflitos sangrentos que estavam vindo à tona no novo sistema. Assim como o comunitarismo de guerra mistificador e a celebração em forma espiritualista e existencial da prova das armas e da vida no combate, as decantadas esperanças revolucionárias de uma renovação total da sociedade e da existência humana enquanto tal sofriam o impacto terrível do acontecimento histórico real. Em ambos os casos, percebia-se a experiência da “seriedade” e da “dor” do “negativo” de modo indelével.
O século XX é marcado por guerras e revoluções que prometem, em modalidades diferentes, a realização da paz perpétua, ou seja, é marcado por violências cuja motivação é erradicar de uma vez por todas o flagelo da violência. Em 1900, a expedição conjunta das grandes potências para sufocar no sangue a revolta dos Boxers, na China, era celebrada pelo general francês H. N. Frey, ainda que repleta de massacres, como a realização do “sonho de políticos idealistas, os Estados Unidos do mundo civilizado”, como o advento de um mundo que não está mais marcado pelas fronteiras e pelos conflitos entre os Estados (LO, 39; 654). A unidade dos países “civilizados” na luta contra a barbárie “asiática” reforçava essa esperança. Na realidade, quatorze anos depois do horror da I Guerra Mundial estava sob o olhar de todos, e seus protagonistas eram, em primeiro lugar, os países “civilizados” anteriormente convocados para garantir a ordem e a paz com suas expedições punitivas. Nem por isso definhara a ideologia que convocava a guerra para promover a causa da civilização e da paz. Na Itália, Gaetano Salvemini (1963, p. 361) invocava com estas palavras a intervenção da Itália no massacre recém-começado: “é preciso que esta guerra mate a guerra”; não era lícito desertar “a guerra pela paz”, para retomar o título do artigo aqui citado. É a ideologia da Entente que mais tarde, em ocasião da intervenção dos Estados Unidos, será consagrada por Wilson: a derrota dos Impérios Centrais, tachados de autoritarismo, e a disseminação em grande escala da “liberdade política” e da “democracia” tornariam finalmente possível a “paz definitiva” (ultimate) do mundo (Wilson 1927, vol. I, p. 14).
Lenin não tinha dificuldade em mostrar o caráter mistificador dessa palavra de ordem: a Alemanha, que era o alvo principal da cruzada da Entente para a vitória da causa da democracia e da paz, agitava essa mesma bandeira da luta contra o despotismo belicista, e contra um país que fazia parte da coalizão antialemã, ou seja, contra a Rússia czarista; longe de promover a “paz definitiva”, o apelo à difusão por qualquer meio da liberdade política e da democracia funcionava maravilhosamente, nos lados opostos, como ideologia da guerra, ou seja, servia para alimentar um massacre interminável. Portanto, aos olhos de Lenin, era preciso buscar a realização da paz perpétua, tomando um caminho diferente, a partir da derrubada do sistema político-social que, na Alemanha como na coalizão antialemã, estimulara as ambições expansionistas e hegemônicas, a corrida armamentista e a guerra; as raízes desse flagelo seriam extirpadas, de uma vez por todas, após o triunfo do socialismo em escala planetária, e não da democracia “burguesa”.
Mas o desenvolvimento histórico foi mais uma vez bem diferente: por último, o “campo socialista” dissolveu-se, inclusive, em decorrência das tensões agudas, dos conflitos armados e das guerras entre países que deixaram o capitalismo.
Depois das tragédias ocorridas ao longo do século XX e do não cumprimento das promessas seja das guerras, seja das revoluções, temos que repetir com Karl Valentin (em Magris 2007, p. XII), o comediante e amigo de Brecht: “Antigamente o futuro era melhor!” O futuro não parece mais tão radiante para justificar a violência (seja bélica ou revolucionária) invocada para realizá-lo. Que fique bem claro: não estamos assistindo ao desaparecimento das mirabolantes construções ideológicas ou das “grandes narrativas do século XIX” de que fala Jean-François Lyotard (1985, p. 70). A esse respeito, o progresso que os pós--modernos teorizaram de fato e de maneira contraditória, justamente eles, os grandes críticos da ideia de progresso, é parcial e frágil.
Em nossos dias, a “grande narrativa” segundo a qual a disseminação da democracia em escala global, ainda que pela força das armas, extirparia de vez as raízes da guerra e abriria o caminho para a paz perpétua, continua provocando suas consequências nefastas. É em nome dessa perspectiva exaltante que são lançadas “operações de polícia internacional” devastadoras e sangrentas. Entretanto, embora sejam propaladas e transfiguradas por um aparato gigantesco e sofisticado de multimídia, essas guerras não têm mais a capacidade de despertar o entusiasmo e o encanto de outrora. As decepções provocadas pelo desenvolvimento real do século XX estimulam um estado de ânimo e uma atitude que poderiam ser sintetizadas assim: em vez de postergar a não violência a um futuro político-social muito problemático, não seria melhor praticá-la individualmente desde já? Por que o recurso às armas com o objetivo de realizar mudanças no plano interno e internacional não deveria seguir o mesmo declínio de outras práticas violentas (a caça às bruxas, a escravidão, o duelo), que no passado tiveram muito sucesso, mas que agora não são mais compreensíveis?
Assim argumentava Lev Tolstoi, que, em 1896, ao desejar e prever um mundo sem guerra, apontava: “Este tempo está próximo […] Restará apenas uma vaga lembrança da guerra e do exército na forma em que hoje existem” (Tolstoi 1983, pp. 35-38). É uma profecia formulada poucos anos antes do começo século XX, o século que depois veria deflagrar a guerra por longo tempo, em cada canto do mundo e em modalidades particularmente monstruosas. Em 1905, enquanto na Rússia ocorria a revolução que estava abalando a autocracia czarista, Tolstoi fazia outra profecia: “A revolução violenta sobreviveu a si mesma” (ibidem, pp. 118-19); um ciclo se fechava e outro se abria, no qual a transformação radical da sociedade aconteceria pacificamente. É só lembrar que os desenvolvimentos sucessivos, tanto na Rússia como em outras partes do mundo, desmentiram radicalmente também essa profecia.
Conhecemos as lágrimas e o sangue de onde jorraram, com modalidades e resultados bem diferentes entre si, os projetos de transformação do mundo através da guerra ou da revolução. A filosofia do século XX, a partir do ensaio publicado em 1921 por Walter Benjamin, comprometeu-se com a “crítica à violência” inclusive quando ela tem a pretensão de ser “meio para fins justos” (Benjamin 1982, p. 5); mas o que sabemos nós dos dilemas, das “traições”, das decepções e das verdadeiras tragédias que viveu o movimento que se inspirou no ideal da não violência?
Nota:
(*) Para a Alemanha, cf. Losurdo 1991, cap. 1; para Croce e Hoover, cf. Losurdo 1997, cap. II, item 3.
Referências:
Zweig S. (1968), Die Welt von gestern. Erinnerungen eines Europäers (1944), reimpr. anast., Fischer, Frankfurt a.M.
Weber Marianne (1926), Max Weber. Ein Lebensbild, Mohr, Tübingen.
Hegel G.W.F. (1969-79), Werke in zwanzig Bänden, org. E. Moldenhauer e K.M. Michel, Suhrkamp, Frankfurt a. M.
Losurdo D. (2008), Stalin. Storia e critica di uma leggenda nera, Carocci, Roma.
Salvemini G. (1963), La guerra per la pace, em L’Unità, 28 de agosto de 1914, em Id., Opere, Feltrinelli, Milano, vol. III, livro 1, pp. 359-61.
Wilson W. (1927), War and Peace. Presidential Messages, Addresses, and Public Papers (1917-1924), org. R.S. Baker e W.E. Dood, Harper & Brothers, New York-London.
Magris C. (2007), Prefazione a W. Benjamin, Immagini di città, Einaudi,Torino, nova ed.
Lyotard J.-F. (1985), La condizione postmoderna. Rapporto sul sapere (1979), Feltrinelli, Milano.
Tolstoi L. (1983), Redegegen den Krieg. Politische Flugschriften (1968), org. P. Urban, Insel, Frankfurt a.M.
Benjamin W. (1982), Per la critica dela violenza (1921), em Id., Angelus Novus. Saggi e frammenti, Einaudi, Torino.
(A não violência: uma história fora do mito; tradução Carlo Alberto Dastoli)
(Ilustração: Otto Dix: A detail from Otto Dix's Stormtroops Advancing Under a Gas Attack, from his 1924 set of first world war drawings, Der Kreig. Photograph: British Museum/DACS)
terça-feira, 3 de janeiro de 2023
SAAT 21-22 ŞIIRLERI / POEMAS DAS HORAS 21-22, de Nâzım Hikmet
Ne güzel şey hatırlamak seni:
ölüm ve zafer haberleri içinden,
hapiste
ve yaşım kırkı geçmiş iken...
Ne güzel şey hatırlamak seni:
bir mavi kumaşın üstünde unutulmuş olan elin
ve saçlarında
vakur yumuşaklığı canımın içi İstanbul toprağının...
İçimde ikinci bir insan gibidir
seni sevmek saadeti...
Parmakların ucunda kalan kokusu sarduya yaprağının,
güneşli bir rahatlık
ve etin daveti:
kıpkızıl çizgilerle bölünmüş
sıcak koyu bir karanlık...
Ne güzel şey hatırlamak seni,
yazamak sana dair,
hapiste sırt üstü yatıp seni düşünmek:
filanca gün, falanca yerde söylediğin söz,
kendisi değil
edasındaki dünya...
Ne güzel şey hatırlamak seni.
Sana tahtadan birşeyler oymalıyım yine:
bir çekmece
bir yüzük,
ve üç metre kadar ince ipekli dokumalıyım.
Ve hemen
fırlayarak yerimden
penceremde demirlere yapışarak
hürriyetin sütbeyaz maviliğine
sana yazdıklarımı bağıra bağıra okumalıyım...
Ne Güzel Şey Hatırlamak Seni
Ne güzel şey hatırlamak seni:
ölüm ve zafer haberleri içinde,
hapiste
ve yaşım kırkı geçmiş iken...”
Tradução de Marco Syrayama de Pinto e John Milton:
Como é bom lembrar de você:
em meio a notícias de morte e vitória na prisão, passando dos quarenta anos de idade...
Como é bom lembrar de você:
na sua mão esquecida sobre um tecido azul, e nos seus cabelos, há a maciez serena do meu querido solo de Istambul...
É como uma segunda pessoa dentro de mim, a felicidade de amá-la...
O cheiro da folha do gerânio que fica na ponta dos dedos, uma calma ensolarada, e o convite da carne:
dividida com linhas rubras, uma cálida, e profunda escuridão...
Como é bom lembrar de você, escrever sobre você, e deitar-me na prisão e pensar em você, a palavra que você disse em tal dia e em tal lugar não tanto ela em si, como o seu mundo de expressão...
Como é bom lembrar de você.
Devo talhar alguma coisa de madeira para você de novo:
uma gaveta, um anel,
e devo tecer uns três metros de seda fina,
E, imediatamente, saltando do meu lugar
agarrando-me às trancas de minha janela para o azul branquicento da liberdade devo gritar o que escrevi para você...
Como é bom lembrar de você:
em meio a notícias de morte e vitória na prisão, passando dos quarenta anos de idade...
(Piraye için Yazilmiş / Cartas a Piraye)
(Ilustração: Vladimir Makovsky - The Prisoner, 1882)
Assinar:
Postagens (Atom)