quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

MARIA HELENA, de Chico Buarque






irmãos germanos: os filhos do mesmo pai 

e da mesma mãe uns com relação aos outros; 

irmãos bilaterais; irmãos carnais 



Se cunhássemos nossas cabeças eu e meu irmão, cada qual numa face de uma moeda, e se girássemos essa moeda com um peteleco forte, poderíamos vislumbrar a cabeça do meu pai e a cabeça da minha mãe quase simultaneamente. Já com a moeda em repouso tornamos a ser duas cabeças tão dessemelhantes que ninguém nos imagina irmãos. Só quem frequentasse muito a nossa casa, ou estudasse uma rara foto da família reunida, notaria que nós dois não somos propriamente opostos, e sim complementares. Mas entre mim e ele a partilha dos rostos de pai e mãe mostrou-se iníqua, com nítida vantagem para meu irmão. Seu rosto tem os traços do pai, que está longe de ser um homem bonito, mas no conjunto, por algum mistério, resulta numa versão masculina da nossa formosa mãe. Já eu herdei detalhes da mãe em desarmonia, como um nariz pontudo sem as maçãs salientes que o justificam, ou seus lábios carnudos que na minha boca pequena não têm cabimento. Os cabelos italianos, que meu irmão agora deu para usar em longos cachos, na minha cabeça viraram lã de arame. E talvez por um direito de primogenitura ele ficou com as cores maternas, os olhos esverdeados e a tez cor-de-rosa, relegando-me a pele rude do meu pai, além de prognatismo, olhos cinzentos e óculos. Se, de volta ao princípio, as faces do meu pai e da minha mãe se misturassem num dado rodopiante, poderíamos ter vindo ao mundo com várias outras caras, meu irmão e eu, conforme a manha do crupiê, que na hora H sempre rouba para meu irmão. Sem contar o que não estava em jogo, o seu metro e oitenta e cinco de altura e os meus vinte centímetros a menos. Porém, num lance de dados invisíveis, acho que o acaso me compensou com atributos de espírito. 

Nos arredores de uma duvidosa escola de propaganda, em cujas salas de aula jamais foi visto, meu irmão ganhou fama de desbravador. Com efeito, eram sem conta as estudantes que entravam donzelas no seu quarto, para saírem ajeitando por cima as roupas de baixo, e que eu registrava numa caderneta mental. Em algum fim de tarde ia procurá-las nos bares da Bela Vista, pedia licença para sentar à sua mesa e me apresentava como irmão do meu irmão. Era o bastante para que largassem o sanduíche ou as apostilas e me atendessem, e já na primeira conversa eu ganhava sua confiança. Dava atenção às suas confidências e até me sujeitava a embolsar bilhetes amorosos que, como é claro, não chegariam ao destino. Também ouvia duras queixas, porque meu irmão era um canalha que prometia o amor e tal e coisa e sumia sem dar satisfações. E folguei em aprender que nem todas lhe dariam uma segunda chance, se por hipótese procuradas, pois era um açodado, não era afeito a preliminares e muito menos a prorrogações. À noitinha trocávamos telefones, e no encontro seguinte meu irmão já seria assunto pífio, porque era de sonetos de Shakespeare para cima que se tratava. Sei que elas me ouviam embevecidas menos pela poesia que pelo timbre da minha voz, característica paterna em que, aí sim, meu irmão e eu somos gêmeos. E que seria meu trunfo no escuro do cinema, onde eu tinha duas horas para comovê-las, diverti-las, impressioná-las com palavras que meu irmão desconhece, fosse num filme da nouvelle vague ou nas comédias românticas da Metro. No fim da sessão as luzes da sala se acendiam gradualmente, o que sempre me dava a esperança de que elas se acostumassem aos poucos com a minha pele, meus esgares, que saíssem do cinema ainda impregnadas da minha voz profunda e não estranhassem o suor da minha mão na sua. Foi do Cine Majestic que levei para casa minha primeira ex do meu irmão, o que me dava o gosto de o estar chifrando um pouco. Foi também a primeira mulher na minha cama, pois até então eu só tinha trepado em randevus. Foi talvez a primeira mulher que fiz gozar, e muito, e demais, e com escândalo, me levando a desconfiar que com seus uivos pretendia chegar ao meu irmão onde quer que ele estivesse. Ao sair do meu quarto ela ficou se arrastando no corredor, espiando as lombadas dos livros, contemplando meu pai no escritório, depois na cozinha entabulou uma conversa interminável sobre culinária com a minha mãe, que preparava uma torta de morangos. Minha mãe não era boba, sabia muito bem o que prendia a farfallina, essas sirigaitas viviam por ali fazendo hora para ver se esbarravam com o Mimmo. Precavida contra o mau passo juvenil do marido, mamãe naturalmente fazia figas para esconjurar um neto a destempo. Mas no íntimo gabava-se do rodízio feminino no quarto do Mimmo, continha-se para não desfraldar no varal seus lençóis sangrados, sempre fingindo acreditar que vinham todas estudar o mapa-múndi com ele. Vez por outra apenas reclamava de ele trancar a porta, já que ela poderia ter de entrar numa emergência caso meu pai precisasse de um Cervantes, um Quevedo, um Calderón de la Barca. E por ser maternalmente justa, se pudesse dividiria a mulherada dele meio a meio com o irmão desfavorecido. Por isso não sei como se sentiria se soubesse que meu irmão, depois de um tempo restrito aos seus domínios, foi visto farejando as cercanias da rua Maria Antônia, onde eu fazia o cursinho para a faculdade de letras. Era um campo fértil para ele, não porque as letras remotamente o atraíssem, mas porque nessa área de humanas a proporção de fêmeas era de dez para um. Percebi quando ele deitou o olho na Maria Helena, e ela custou a crer quando a preveni que aquele tipo era meu irmão. E não entendeu por que eu não os apresentava, achou um absurdo dois irmãos não se falarem, ela que por ser filha única crescera conformada a falar sozinha. Mas não pensei que meu irmão fosse se engraçar com ela, pois só na minha classe havia mais de vinte supostas virgens, e a virgindade era uma etiqueta de que ele, bem ao contrário de mim, não abria mão. A Maria Helena eu dava por certo que já não o era, embora ainda não tivesse tirado a prova. Mas ela morava só com a mãe, não tinha hora para voltar para casa, bebia cerveja, era esguia, tinha a bunda alta, tinha um não sei quê, um jeito meio liberal de caminhar, de falar com as vogais abertas, fora que a Maria Helena é carioca e cariocas são notoriamente mais soltas. Não fazia portanto o gênero do meu irmão, eram comigo suas afinidades. Fui eu que lhe apresentei Céline e Camus, e em troca ela me emprestou um Henry Miller cheio de sacanagens. Com ela dava para ver Godard, Antonioni e Bergman sem ter de explicar os silêncios, a ela pedi segredo e revelei a história do meu irmão alemão. Eu até quis lhe mostrar em casa a carta de Anne, mas ela achou que era uma cantada muito barata e me mandou catar coquinho. Por um nada a Maria Helena se magoava comigo, no minuto seguinte planejava casamento e filhos, logo adiante emendava gargalhadas com surtos de cólera, quer dizer, era louca na medida para se apaixonar por mim. De mais a mais topava qualquer programa, até me acompanhou ao estádio do Pacaembu para ver o Pelé jogar. E nas árvores do bairro gostávamos de nos encostar tarde da noite para uns beijos de língua que eu só alcançava subindo um pouco nas raízes. Pensei que logo, logo a Maria Helena entregaria os pontos, mas levei tempo para apenas chupar seus peitos com sutiã, e ela uma vez segurou meu pau por cima da calça. Isso ocorreu mais ou menos na época em que meu irmão deu para assediar a rua Maria Antônia. A temperatura entre nós dois então só fazia aumentar, e quando insisti para que subisse comigo em casa, ela aceitou com a ressalva de que talvez ainda não estivesse pronta para tudo. Sim, era virgem, e a notícia me esmoreceu, ao mesmo tempo que reavivou meus piores temores, pois meu irmão continuava de tocaia à porta do cursinho. Da minha sala ele já tinha abatido cinco ou seis, inclusive a melhor aluna, que sempre me pareceu tão recatada. Era uma caipira até interessante com quem comecei a puxar conversa, um pouco para aporrinhar a Maria Helena, e na frente da Maria Helena eu a convidei para um cinema. Fomos ver O Anjo Exterminador, mas ela estava tímida demais, assistiu ao filme encolhida na cadeira e não achou graça nas minhas observações. E depois que lhe dei um tchau na saída do cinema, sem falar nada veio me seguindo de cabeça baixa, eu quase diria que com o rabo entre as pernas, a caminho de casa. Ouvi o arrastar de suas sandálias atrás de mim na rua Augusta, da avenida Paulista às ladeiras do Pacaembu, e da entrada de casa até meu quarto, onde se despiu sem pressa. Na cama, porém, de todas as antigas presas do meu irmão, a caipira se revelou a mais insaciável. A partir dessa noite extenuante passou a dar incertas lá em casa, a me procurar nos bares, e o caso acabou chegando aos ouvidos da Maria Helena. Mas eu não estava mais a fim de perder tempo com a Maria Helena, parti logo para cima de outra colega, e outra, e outra, se pudesse lamberia todas as mulheres que meu irmão teve na vida. Até que num fim de semana a Maria Helena me fez uma visita de improviso, com botas de cano alto e uma saia curta como eu só tinha visto em filme francês. Estremeci, por um segundo julguei que se vestia daquele jeito para ele. Mas não, me fez subir o primeiro degrau da escada, me deu um chupão no pescoço e falou de como estava ansiosa para conhecer meu quarto, queria até ver a famosa carta do meu irmão mexicano. Disse com voz rouca que agora sim estava decidida, queria que eu fosse o seu primeiro macho. Disse outras coisas do mesmo teor, mas naquele momento eu só reparava na coleção de teatro italiano na estante ao pé da escada. Começou a me incomodar, que nem quadro torto na parede, começou a me dar nos nervos uma lacuna acintosa na penúltima prateleira. Olha ali, falei para a Maria Helena, que olhou para trás e não viu nada de mais. E afinal não era mesmo nada grave, apenas um livro que fora retirado havia pouco, dentre dois volumes que agora se tocavam no topo e não na base, como dois amigos que se beijam sem se abraçar. Um tonto poderia até pensar que ali faltasse um livro pontiagudo, como um canino extraído de dentadura encavalada. A meu ver o ausente era um Pirandello, mas isso só minha mãe poderia tirar a limpo. Puxei a Maria Helena até a cozinha para lhe apresentar mamãe, que não lhe deu a mão porque naquele momento pressionava a massa na assadeira. Estava empenhada em dessa vez acertar o ponto para o marido, que apesar de apreciar suas tortas, depois de mangiá-las quase inteiras, sempre opinava que tinham ficado um pouquinho massudas. Era o que mamãe falava de si para si, primeiro porque também era filha única, segundo por perceber que a Maria Helena não lhe prestava atenção, estava longe dali. Foi quando ele se intrometeu na cozinha, meu irmão. Parou diante da Maria Helena e com a ponta do dedo levantou seu rosto pelo queixo, imitando ator de filme de caubói. Sempre de olho nela, pegou uma cerveja na geladeira, destampou-a no puxador de gaveta, serviu-se de um copo e lhe estendeu outro, com o braço roçando o meu nariz. Irritado, avisei a quem quisesse ouvir que ia comprar cigarros no Riviera, onde bebi três uísques nacionais sem gelo, fumei três cigarrilhas e vomitei no balcão. Desci a ladeira devagar, tornei a subir, desci de novo e tomei um susto com a Maria Helena, que por um triz não trombou comigo ao sair de casa. Chorava aos soluços, e quando me viu tapou o rosto, escapou dos meus braços e saiu correndo rua acima com a roupa troncha, o zíper lateral da minissaia deslocado para o meio da bunda. E mesmo assim desengonçada, naquele relance a desejei como nunca, tomei banho pensando na sua figura, não dormi pensando nela a noite inteira. De manhã escolhi um Flaubert para lhe dar de presente, não Madame Bovary, mas A Educação Sentimental. Acontece que a Maria Helena nunca mais apareceu no cursinho, só bem mais tarde eu soube que passou no vestibular de arquitetura. Ainda liguei para sua casa, onde a empregada toda vez falava que d. Maria Helena estava no banheiro. Lá pelo vigésimo telefonema quem atendeu foi sua mãe, para me rogar que não importunasse mais a garota. E um dia a Maria Helena mandou um chofer devolver quantidade de poetas franceses que eu tinha surrupiado de casa, de Baudelaire a Francis Ponge. Foi mamãe quem os recebeu, repôs em ordem e me fez jurar que de uma vez por todas largaria de mão os livros do meu pai. 



(O irmão alemão) 



(Ilustração: Anthony Christian – Reading)



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