sábado, 10 de fevereiro de 2018

A BRUXA DO BAIRRO ALTO DE S. ROQUE, António Manuel Venda





O século ainda ia novo mas a vida, que às idades não parecia ligar muito, já andava outra vez agitada por Lisboa. Ele era milagres de Santo António dia sim dia não, ele era as pessoas a falarem do anjo que alguém tinha avistado no alto da torre da igreja de Nossa Senhora da Graça, ele era ainda outras criaturas, talvez mandadas por Deus e observadas por quem jurava a pés juntos que não eram foliões mascarados. E o bispo inquisidor, enquanto tão grandes maravilhas eram relatadas, lá se ia entretendo a mandar queimar hereges e judeus, uns por coisas vistas, outros porque, bem vistas as coisas, não haveria no reino deles necessidade.

Tudo isto, que já não era pouco, ia acontecendo ao mesmo tempo que os castelhanos arranhavam por terra a toda a hora e os franceses picavam por mar de vez em quando. E para ajudar à festa, El-Rei Todo Poderoso, o quinto João com que o reino alombava, ainda se punha a morder dentro das próprias fronteiras com impostos tais que a riqueza de jóias e vestes que à corte se via nunca antes fora assim notada. Mas o povo não era tão desligado como deixava parecer a quem o observava das varandas reais, e por isso nem a desculpa do ouro de terras de Santa Cruz o convencia de que nesses altos enxovais não figurava moeda plebeia.

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Os casos de admirar eram tantos que os novos logo abafavam outros já bem repisados. E conseguiam-no mais pela força que tinham do que pela falta dela nos anteriores, pois cada um que surgia deixava três ou quatro para trás em matéria de falatórios. Nunca se pensara que no reino pudessem vir a caber todos, mas eles iam cabendo, e isso era uma coisa que ninguém desmentia, tanto mais que Deus também não dava mostras de querer fazê-lo.

Foi por esses tempos que se começou a falar na Bruxa do Bairro Alto de S. Roque. Inês Duarte, que tinha sido o nome que ao baptismo lhe calhara, apareceu de repente aos olhos de todos como uma criatura destinada a tornar ainda mais notável aquele ano de mil setecentos e seis. Deu-se isso de forma tão espantosa que o bispo inquisidor se encarregou de a levar assim que o caso lhe chegou aos ouvidos. E decerto que não iria tardar muito a mandar queimá-la no Rossio, de bruxas e feiticeiros acompanhada, numa fogueira bem grande, que assim era ao gosto do povo, assim D. João aprovava, assim Deus não se opunha, tão-pouco o Diabo, que esse toda a gente dizia ser das chamas apreciador certo.

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A bruxa saiu à rua só com a pele do corpo, despida de cima a baixo, ou de baixo acima. Ao povo tanto fazia a subir como a descer, que os olhos viam o mesmo e a nudez não mudava vista de uma maneira ou de outra. E na frente de todos a criatura fartou-se de com as mãos dar prazer ao corpo, enquanto perguntava bem alto se por perto havia alguns homens em jeito de a comerem. E houve muitos, pois a tarde já ia adiantada e andavam muitas almas na rua, como era preceito a uma hora assim na cidade toda. Contaram-se por sete os homens que se lhe atiraram e por muito mais do que essa conta os que com grande pena lugar não conseguiram, e o mulherio gritou impropérios tais à tão diferente Inês que mais diferente a fez ainda. E houve sangue da perda da virgindade, e houve quem dissesse que um bicho assim não podia ser virgem, e houve ainda opiniões de que sendo sete os machos não havia mulher que resistisse por mais de má vida que fosse.

Ao sangue não ligou o bispo inquisidor, pois esse só queria a bruxa, sangrada ou por sangrar, que não seria por muito sangue ter que a fogueira não iria apresentar boas chamas. Já as mulheres do Bairro Alto de S. Roque ligaram, e assim lavaram a rua e desinfectaram a casa de Inês, e também varreram os vidros partidos do espelho grande do quarto, não fosse algum habitante futuro picar os pés. Para picar já bastavam os franceses, que o levasse o Diabo para bem longe do reino e dos impérios de além-mar.

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O que deixava o povo sem saber ao certo o que pensar era que Inês sempre fora uma rapariga recatada e amiga da vizinhança, tanto que dela nunca tinha havido queixas no Bairro Alto de S. Roque. Chegou a dizer-se em Lisboa que até Frei Geraldo, da Ordem Terceira dos Franciscanos, já andava metido a averiguar por conta própria o mal daquela alma. Disseram-se tantas coisas em Lisboa por esses tempos, que estavam para chegar algarvios do Algarve e nortenhos do Norte e também outros de outros lugares para verem a bruxa. Ou pelo menos a queima, já que depois do que a Frei Geraldo acontecera só os guardas do bispo inquisidor dela se aproximavam.

– A mulher-bruxa, ou bruxa-mulher, como queira Vossa Alteza, D. João, Nosso Rei e Senhor, atirou-se-me para cima toda nua, pois roupa não quer e se alguém lha dá rasga-a logo! E não parava de me gritar "Padre, sou sua, padre!"

E Frei Geraldo contou outras coisas ainda piores.

– De três guardas houve precisão para eu daquele tormento sair! E mesmo assim teve um deles que ficar por troca comigo, e depois foi encontrado por dez companheiros que acudiram à gritaria dele, com a roupa rasgada e à bruxa igual em nudez! E o que é certo é que se tratou de um caso de violação das grandes! Até as paredes haveriam de ser testemunhas se alguém tivesse artes para lhes dar voz!

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Andavam todos tão ocupados a falarem do caso que nem estranhavam os ares do filho mais novo do ferreiro do Bairro de S. Roque, sempre metido pelos cantos e sem dizer palavra. Inês, para ele, não era bruxa e tão-pouco iria morrer na fogueira. Inês tinha ido para onde ele nem conseguia imaginar, se calhar definitivamente, e o mais certo era não voltar a vê-la nua como a vira no dia do aparecimento da bruxa ao povo e em tantas outras alturas das quais já perdera a conta.

Nesse dia, espreitando pelas frestas do telhado da casa de Inês, Crisanto viu-a sair da cama toda nua, como a bruxa tão igual a ela que até o povo fez confusão, e esse engano só ele compreendeu. Ficou de olhar suspenso enquanto ela se mirava ao espelho grande, do qual depois foram jogados os bocados. E viu-a duas vezes, no espelho uma de frente, de costas uma no quarto, e fortes foram as telhas que o impediram de à do quarto se atirar. Mas depois a respiração pareceu-lhe que lhe começava a faltar, pareceu-lhe que tudo dentro de si parava quando Inês se vestiu e mesmo assim continuou nua no espelho. Viu-a calada e vestida e que os movimentos dela não eram acompanhados pela imagem, e a seguir começaram a sair insultos de dentro do vidro.

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– Estou bem cansada de te seguir, grande vaca! Comida nunca tive, que tu em frente do espelho não comes, homens nunca conheci, que tu nunca tiveste um só que fosse, muito menos em lugar espelhado!

Inês pegou num espelho pequeno que tinha à cabeceira, mirou-se e não se viu, e do grande veio de novo a voz que a fazia tremer.

– Estou farta de te seguir! Quero é sair daqui para fora, que ao fim de dezanove anos qualquer uma perde a paciência.

Depois a imagem calou-se e pôs-se a fazer caretas. E Inês, já em desespero, tentou dar-lhe um pontapé, mas a perna foi-se-lhe através do espelho e a imagem aproveitou para puxá-la toda e saltar para fora ao mesmo tempo. Ficou então em liberdade e logo partiu a prisão de Inês com uma cadeira que estava mais à mão e foi à cozinha encher a barriga com o que havia para comer. Fez cara de quem tinha gostado e saiu à rua na figura que deixou o povo de boca aberta. Chamou pelos homens, sete acudiram, e muitos mais tiveram pena de para eles não haver lugar. Pena não teve Crisanto, que à verdade toda assistiu e só desceu do telhado quando a noite chegou à cidade.



(Quando o Presidente da República Visitou Monchique por Mera Curiosidade; 1996)




(Ilustração: Paul Delvaux - L'Appel de la Nuit)



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