segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

MANIFESTO SOBRE A VIDA DO ARTISTA, de Marina Abramović






1 a conduta de vida do artista:

- O artista nunca deve mentir a si próprio ou aos outros

- O artista não deve roubar ideia de outros artistas

- Os artistas não devem comprometer seu próprio nome ou comprometer-se com o mercado de arte

- O artista não deve matar outros seres humanos

- Os artistas não devem se transformar em ídolos

- Os artistas não devem se transformar em ídolos



2 a relação entre o artista e sua vida amorosa:


- O artista deve evitar se apaixonar por outro artista

- O artista deve evitar se apaixonar pó outro artista

- O artista deve evitar se apaixonar pó outro artista



3 a relação entre o artista e o erotismo:



- O artista deve ter uma visão erótica do mundo

- O artista deve ter erotismo

- O artista deve ter erotismo

- O artista deve ter erotismo



4 a relação entre artista e sofrimento:



– O artista deve sofrer

- O sofrimento cria as melhores obras

- O sofrimento traz a transformação

- O sofrimento leva o artista a transcender seu espírito

- O sofrimento leva o artista a transcender seu espírito



5 a relação entre o artista e a depressão:



- O artista nunca deve estar deprimido

- A depressão é uma doença e deve ser curada

- A depressão não é produtiva para os artistas

- A depressão não é produtiva para os artistas

- A depressão não é produtiva para os artistas



6 a relação entre o artista e o suicídio:



- O suicídio é um crime contra a vida

- O artista não deve cometer suicídio

- O artista não deve cometer suicídio

- O artista não deve cometer suicídio



7 a relação entre o artista e a inspiração:



- Os artistas devem procurar a inspiração em seu âmago

- Quanto mais se aprofundarem em seu âmago, mais universais serão

- O artista é um universo

- O artista é um universo

- O artista é um universo



8 a relação entre o artista e o autocontrole:



– O artista não deve ter autocontrole em sua vida

- O artista deve ter autocontrole total em relação a sua obra

- O artista não deve ter autocontrole em sua vida

- O artista deve ter autocontrole total em relação a sua obra



9 a relação entre o artista e a transparência:



– O artista deve doar e receber ao mesmo tempo

- Transparência significa receptividade

- Transparência significa doar

- Transparência significa receber

- Transparência significa receptividade

- Transparência significa doar

- Transparência significa receber

- Transparência significa receptividade

- Transparência significa doar

- Transparência significa receber



10 a relação entre o artista e os símbolos:



– O artista crias seus próprios símbolos

- Os símbolos são a língua do artista

- E a língua tem que ser traduzida

- Às vezes, é difícil encontrar a palavra chave

- Às vezes, é difícil encontrar a palavra chave

- Às vezes, é difícil encontrar a palavra chave



11 a relação com o silêncio:



- O artista deve compreender o silêncio

- O artista deve criar um espaço para que o silêncio adentre a sua obra

- O silêncio é como uma ilha no meio de um oceano turbulento

- O silêncio é como uma ilha no meio de um oceano turbulento

- O silêncio é como uma ilha no meio de um oceano turbulento



12 a relação entre o artista o artista e a solidão:



- O artista deve reservar para si longos períodos de solidão

- A solidão é extremamente importante

- Longe de casa

- Longe da família

- Longe dos amigos

- O artista deve passar longos períodos perto das cachoeiras

- O artista deve passar longos períodos perto dos vulcões em erupção

- O artista deve passar longos períodos olhando as corredeiras dos rios

- O artista deve passar longos períodos contemplando a linha do horizonte onde o oceano e o céu se encontram

- O artista deve passar longos períodos de tempo admirando as estelas no céu da noite



13 a conduta do artista com relação ao seu trabalho:



- O artista deve evitar ir para o seu ateliê todos os dias

- O artista não deve considerar seu horário de trabalho como o de um funcionário de um banco

- O artista deve explorar a vida, e trabalhar apenas quando uma ideia se revela no sonho, ou durante o dia, como uma visão que irrompe uma surpresa

– O artista não deve se repetir

- O artista não deve produzir em demasia

- O artista deve evitar poluir sua própria arte

- O artista deve evitar poluir sua própria arte

- O artista deve evitar poluir sua própria arte



14 as posses do artista:



- Os monges budistas entendem que o ideal na vida é possuir nove objetos:

roupão para o verão

roupão para o inverno

par de sapatos

pequena tigela para pedir alimentos

tela de proteção contra insetos

livro de orações

guarda-chuva

colchonete para dormir

par de óculos se necessário

– O artista deve tomar sua própria decisão sobre os objetos pessoais que deve ter

– O artista deve, cada vez mais, ter menos

– O artista deve, cada vez mais, ter menos

– O artista deve, cada vez mais, ter menos



15 a lista de amigos do artista:



- O artista deve ter amigos que elevem seu estado de espírito

- O artista deve ter amigos que elevem seu estado de espírito

- O artista deve ter amigos que elevem seu estado de espírito



16 os inimigos do artista:



– Os inimigos são muito importantes

- O Dalai Lama afirmou que é fácil ter compaixão pelos amigos; porém, muito mais difícil ter compaixão pelos inimigos

- O artista deve aprender a perdoar

- O artista deve aprender a perdoar

- O artista deve aprender a perdoar



17 a morte e seus diferentes contextos:



– O artista deve ter consciência de sua mortalidade

- Para o artista, como viver é tão importante quanto morrer

- O artista deve morrer conscientemente e sem medo

- O artista deve morrer conscientemente e sem medo

- O artista deve morrer conscientemente e sem medo



18 o funeral e seus diferentes contextos:



– O artista deve deixar as instruções para o seu próprio funeral, para que tudo seja feito segundo a sua vontade

– O funeral é a última obra de arte do artista antes de sua partida

- O funeral é a última obra de arte do artista antes de sua partida

- O funeral é a última obra de arte do artista antes de sua partida




(Ilustração: Marina Abramovic - Photo MAI Archive)


sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

NOCHE OSCURA / NOITE ESCURA, de San Juan de la Cruz








Canciones del alma que se goza 

de haber llegado al alto estado de la perfección, 

que es la unión con Dios, 

por el camino de la negación espiritual.





En una noche oscura

con ansias, en amores inflamada,

¡oh dichosa ventura!

salí sin ser notada,

estando ya mi casa sosegada.



A oscuras, y segura,

por la secreta escala disfrazada,

¡Oh dichosa ventura!

a oscuras, y en celada,

estando ya mi casa sosegada.



En la noche dichosa

en secreto, que nadie me veía,

ni yo miraba cosa,

sin otra luz y guía,

sino la que en el corazón ardía.



Aquesta me guiaba

más cierto que la luz del mediodía,

adonde me esperaba

quien yo bien me sabía,

en parte donde nadie parecía.



¡Oh noche que guiaste!

¡Oh noche amable más que la alborada:

oh noche que juntaste

Amado con Amada.

Amada en el Amado transformada!



En mi pecho florido,

que entero para él solo se guardaba,

allí quedó dormido,

y yo le regalaba,

y el ventalle de cedros aire daba.



El aire de la almena,

cuando yo sus cabellos esparcía,

con su mano serena

en mi cuello hería,

y todos mis sentidos suspendía.



Quedeme, y olvideme,

el rostro recliné sobre el Amado,

cesó todo, y dejeme,

dejando mi cuidado

entre las azucenas olvidado.



Tradução de José Bento:



Canções da alma que rejubila 

por ter chegado ao alto estado da perfeição,

que é a união com Deus,

pelo caminho da negação espiritual.







Em uma noite escura,

com ânsias, em amores inflamada,

oh ditosa ventura!,

saí sem ser notada,

estando minha casa sossegada.




Às escuras, segura,

pela secreta escada, disfarçada,

oh ditosa ventura!,

às escuras e emboscada,

estando minha casa sossegada.




Nessa noite ditosa,

secretamente, que ninguém me via,

de nada curiosa,

sem outra luz nem guia

senão a que no coração me ardia.




Só esta me guiava

mais segura que a luz do meio-dia,

aonde me esperava

quem eu já bem sabia,

em parte onde ninguém aparecia.




Oh noite, que guiaste!

Oh noite, amável mais que a alvorada!

Oh noite que juntaste

Amado com amada,

amada em seu Amado transformada!




Em meu peito florido,

que inteiro só para ele se guardava,

ficou adormecido,

e eu o afagava,

e o leque de cedros brisa dava.




A viração da ameia,

enquanto eu seus cabelos espargia,

com sua mão que enleia

o meu colo feria,

e meus sentidos todos suspendia.




Fiquei e olvidei-me,

O rosto reclinei sobre o Amado;

cessou tudo, e deixei-me,

deixando o meu cuidado

por entre as açucenas olvidado.





Tradução de Jorge de Sena:








Em uma Noite escura,

com ânsias em amores inflamada,

ó ditosa ventura!

saí sem ser notada,

estando minha casa sossegada.




A ocultas, e segura,

pela secreta escada, disfarçada,

ó ditosa ventura!,

a ocultas, embuçada,

estando minha casa sossegada.




Em uma Noite ditosa,

tão em segredo que ninguém me via,

nem eu nenhuma cousa,

sem outra luz e guia

senão aquela que em meu seio ardia.




Só ela me guiava

mais certa do que a luz do meio-dia,

aonde me esperava

quem eu mui bem sabia,

em parte onde ninguém aparecia.




Ó Noite que guiaste!,

ó Noite amável mais que a alvorada!,

ó Noite que juntaste

Amado com amada,

amada nesse Amado transformada!




No meu peito florido,

que inteiro para ele se guardava,

quedou adormecido

do prazer que eu lhe dava,

e a brisa no alto cedro suspirava.




Da torre a brisa amena,

quando eu a seus cabelos revolvia,

com fina mão serena

a meu colo feria,

e todos meus sentidos suspendia.




Quedei-me e me olvidei,

e o rosto inclinei sobre o do Amado:

tudo cessou, me dei,

deixando meu cuidado

por entre as açucenas olvidado.




(Poesia de 26 Séculos, Coimbra, 1993)



(Ilustração: Daniel Lezama, le songe de Tepeyac, 2003)






terça-feira, 23 de janeiro de 2018

O LACRAU, de Antonio Callado




Na mão de Jupira o vestido novo de Herinha, que a modista boliviana acabava de trazer – vestido do churrasco, tinha sido apelidado –, de mocinha, pedido pela menina para a festa, feito de fresca seda chinesa, de contrabando, trêmula, creme, friso encarnado na barra da saia, gola de renda. Na prova da costureira, apenas alinhavado, o vestido já criava uma Herinha nova, diferente, que apenas guardava uma certa semelhança andrógina como o quase menino que vagava pela cidade carregando no ombro um macaquinho que, por sua vez, carregava uma mochila.

Mas agora, os olhos se virando, com frequência para dentro, Herinha mal olhava o vestido, perdia o mundo de vista, pois ninguém faz promessa de olho aberto e a vida de Herinha era toda ela uma oração de achar perdidos, uma prece a S. Longuinho ou – e aqui Jupira se arrepiava – ao lacrau. Porque, cada dia mais, o lugar certo de encontrar Herinha era o fundo do fundo quintal, para lá do limite do engradado das cobras, para lá da sombra das mangas e dos sabiás, além da área chamada paizinho, num devaneio entre os escorpiões. A culpa, achava Jupira, em mais de um sentido e sobretudo no sentido inicial, era sua, só sua, pois contara a Herinha, embora sem maiores detalhes, uma história que tinha para a menina interesse até biográfico mas que ainda era, para a mãe, perigosa, ativa: a história de como tinham sido elas duas picadas pelo lavrado, arpão da cauda requintada e peçonhenta que se enrosca feito um arabesco por cima do lacrau.

Ela com Herinha na palhoça do posseiro amigo, companheiro de luta, uma choça onde se escondera na esperança de ver o noivo, que ainda não conhecia a filha, onde não o veria, mas onde, isto sim, quase tinha deixado a menina que dele ficara, morta sobre a esteira, por cima do jirau baixo, no chão de terra batida.

Se o noivo não tinha vindo, algum outro ser, em compensação viera, alguma reorganização, feita no escuro, de matérias decompostas, sob uma pedra limosa, dentro de algum tronco esfarinhado, borbulhante de vermes, para ferrar e depositar, de madrugada, como um latejante ovo, na nádega de Herinha, o inchaço, o vergão.

O médico, tardo, só chegou de tarde num cavalo tordilho, tinha Jupira dito a Herinha, ao contar a história, para fazer sorrir a menina tensa, concentrada no que ouvia. Apesar de pensar que era tudo gente posseira, sem eira nem beira, o médico encantou os olhos com a menina, misturou, à boa aspiração profissional médica de operar milagres, o desejo de apagar, da carinha bonita, o sofrimento: mas precisava saber, para saber o soro a empregar, que picada era aquela que enfebrava Herinha, que escuma, que baba. Ele voltava, sem falta, mas tratassem de encontrar o peçonhento, mandou – e começou a revista dentro do fogão de barro, dos bambus do sopapo da parede, do baú de guardados, dos mourões, do sapé do teto. Como um bando de formigas carregadeiras apareceu a vizinhança azafamada, fuçando terreno em volta da casa e grotas próximas, as mulheres trazendo a Jupira panelas de água quente, panos, caldos e mezinhas, enquanto Herinha se revolvia na esteira, ardendo em febre ao ponto de secar compressa fria na testa, os grandes, doces olhos, rolando pela primeira vez nas órbitas feito estrelas extraviadas.

E Jupira tinha vivido então aquilo que, ao narrar a história, chamava, sorrindo, o grande momento maternal, em parte para desarmar, em quem quer que a ouvisse, mas sobretudo em Herinha, qualquer noção de que tinha tido uma revelação, sofrido uma possessão. Acentuava e insistia que apenas descobrira, no seu desamparo, deslocada do seu ambiente, simplificada, descarnada em maternalidade, o meio mais lógico de lidar com a crise, com a aflição, só isso.

Tinha mandado embora, a saber, um velho que em geral pedia comida, ou esmola, mas que quando havia doença aparecia, curandeiro repentino, apoiado num bordão de peregrino e guiado por um curumim; as velhas rezadeiras, que debulhavam terços dizendo as contas em voz cada vez mais alta, prontas para carpir a morta, quando houvesse; os vizinhos em geral, que, cansados de cavucar os cantos e desvãos, em busca do bicho que atacara a menina, esperavam alguma coisa, a morte, ou quem sabe um café.

Depois de assim se despojar de todos, Jupira, como se soubesse o que fazer e apenas esperasse que a hora soasse e a solidão se cumprisse, despojou-se também das roupas, de tudo que vestia e usava, das alpercatas ao brinquinho de ouro, até que fiquei, ela contava, nua em pelo, nuinha, e assim me deitei no chão de erra ao lado da cama de Herinha e palavra que rezei, eu que nunca tinha rezado na minha vida, ou pelo menos fechei os olhos e falei, falei não, rezei mesmo o que me vinha à cabeça, e aí é que vem o que é mais difícil de explicar mas que no momento era o que se apresentava, era o natural: minha reza não podia ser reza igual à de quem reza em geral, quer dizer, reza a Deus, ao princípio bom e certo das coisas, que mantém seres e corpos no seu lugar respectivo, as estrelas, por exemplo, em suas órbitas, e os olhos das crianças também.

Eu tinha ali era que atrair o outro, não é mesmo, o contrário, nua, quieta, sozinha e fechada a Deus, caso ele existisse – e no momento eu não queria ofender nada nem ninguém – para que o contrário, o adversário viesse ao meu encontro, eu como coisa nua, entregue. A ele eu rezava, ao adversário, já que se tratava de bicho, fosse lá qual fosse, de maldade e peçonha, bicho de desfazer o feito, de apodrecer o são, bicho de sombra, do outro reino. Me dirigi ao inimigo com aquele calafrio de maleita que dá na gente quando a sinceridade do que a gente diz, ou reza, é apaixonada, falei com o contrário vibrando toda, os dentes, os ossos, nua, só.

E foi aí que ele saiu da toca dele onde acho que me escutou até me acreditar e me ferrou também como tinha ferrado Herinha e no meio da dor do ferrão dele enterrado na minha coxa, por dentro, na sombra, peguei ele palpitante, apertei, quebrei ele na mão e guardei e quando veio o médico mostrei a ele e ele viu, então, o lacrau.

Agora, mirando a filha absorta, que, quando inquieta, infeliz, buscava, talvez por culpa dela e da sua história, a companhia de lacraus, Jupira se perguntava, ainda uma vez, se não errara contando a Herinha o conto daquela noite na choça do posseiro, já que esse conto antigo, ela sentia obscuramente, a obrigara a contar um dia à filha o segundo conto do lacrau, a segunda parte, que a Quinho também não queria contar, a história da segunda nudez nas trevas, do segundo leito onde os dois tinham se espojado – era bem isso – até um fundo cansaço e imobilidade que tinha sido não um fim honroso de luta, como no conto um, mas, simplesmente, uma rendição, uma entrega. Ao lacrau.

Assim, Jupira revivia na carne o caso, os dois casos do lacrau, a treva e a nudez de ambos tornadas, respectivamente, mais densa e mais nua pelo contraste com a friagem do vestido de seda que tinha na mão, trêmula e creme.



(Sempreviva)



(Ilustração: Francisco Brennand - Lacrau; 1980)





sábado, 20 de janeiro de 2018

PARIA / PÁRIA, de Tristan Corbière






Qu'ils se payent des républiques,

Hommes libres! – carcan au cou –

Qu'ils peuplent leurs nids domestiques!...

– Moi je suis le maigre coucou.

– Moi, – coeur eunuque, dératé

De ce qui mouille et ce qui vibre...

Que me chante leur Liberté,

A moi: toujours seul. Toujours libre.

– Ma Patrie... elle est par le monde;

Et, puisque la planète est ronde,

Je ne crains pas d'en voir le bout...

Ma patrie est où je la plante:

Terre ou mer, elle est sous la plante

De mes pieds – quand je suis debout.

– Quand je suis couché: ma patrie

C'est la couche seule et meurtrie

Où je vais forcer dans mes bras

Ma moitié, comme moi sans âme;

Et ma moitié: c'est une femme...

Une femme que je n'ai pas.

– L'idéal à moi: c'est un songe

Creux; mon horizon – l'imprévu –

Et le mal du pays me ronge...

Du pays que je n'ai pas vu.

Que les moutons suivent leur route,

De Carcassonne à Tombouctou...

Moi, ma route me suit. Sans doute

Elle me suivra n'importe où.

Mon pavillon sur moi frissonne,

Il a le ciel pour couronne:

C'est la brise dans mes cheveux...

Et dans n'importe quelle langue

Je puis subir une harangue;

Je puis me taire si je veux.

Ma pensée est un souffle aride:

C'est l'air. L'air est à moi partout.

Et ma parole est l'écho vide

Qui ne dit rien – et c'est tout.

Mon passé: c'est ce que j'oublie.

La seule chose qui me lie,

C'est ma main dans mon autre main.

Mon souvenir – Rien – C'est ma trace.

Mon présent, c'est tout ce qui passe

Mon avenir – Demain... demain.

Je ne connais pas mon semblable;

Moi, je suis ce que je me fais.

Le Moi humain est haïssable...

Je ne m'aime ni ne me hais.

Allons! la vie est une fille

Qui m'a pris à son bon plaisir...

Le miens, c'est: la mettre en guenille,

La prostituer sans désir.

– Des dieux?... – Par hasard j'ai pu naître;

Peut-être en est-il – par hasard...

Ceux-là, s'ils veulent me connaître,

Me trouveront bien quelque part.

– Où que je meure, ma patrie

S'ouvrira bien, sans qu'on l'en prie,

Assez grande pour mon linceul...

Un linceul encor: pour que faire?...

Puisque ma patrie est en terre

Mon os ira bien là tout seul...



Tradução de Augusto de Campos:


Que eles paguem por seus países,

Homens livres! – sob o trabuco –

E povoem ninhos felizes!...

– Eu, porém, sou o magro cuco.

– Coração eunuco, amputado

De tudo o que molhe ou que vibre...

A Liberdade é um hino aguado

Para mim: sempre só. Sempre livre.

– A minha Pátria... é todo o mundo;

E já que o planeta é rotundo,

Não temo ver seu fim qual é...

Pátria é onde o meu ser se planta:

Terra ou mar, está sob a planta

De meus pés – quando estou de pé.

Quando me deito, a pátria amada

É a cama triste e maltratada

Onde eu espalmo em minha palma

A metade, como eu sem alma;

Cara metade: é uma dama...

A metade da minha cama.

– Uma idéia oca constrói

Meu ideal; meta – o imprevisto –

Mas a nostalgia me rói...

Do país por mim nunca visto.

Que os carneiros sigam a rota

De Carcassonne a Finisterra...

– Minha rota me segue. A idiota

Me seguirá por toda a terra.

Meu pendão sobre mim revoa,

Tendo só o céu por coroa:

É a brisa no meu cabelo...

Não importa a língua a dizê-lo,

Topo qualquer papo furado;

E também sei ficar calado.

Meu pensamento é um sopro frio:

É o ar. O ar que me cerca, mudo.

Minha palavra, o eco vazio

Que não diz nada – e isso é tudo.

O meu passado não me intriga.

A única coisa que me liga

É a minha mão na outra, irmã.

Minha memória – Nada. – Traça.

O meu presente é o que se passa

No futuro – Amanhã... amanhã.

Eu não conheço o meu vizinho;

Eu sou aquilo que eu me creio.

– O eu humano é tão mesquinho...

Eu não me amo nem me odeio.

– Vamos! a vida é uma garota

Que me convida para um beijo...

Meu desejo é: deixá-la rota,

Prostituí-la sem desejo.

– Os Deuses?... – Por acaso eu vim;

Talvez existam – por acaso...

Eles, decerto, ao cabo e ao fim,

Me encontrarão, se for o caso.

– Minha pátria, quando eu morrer,

Se abrirá bem para acolher

O pó que a mortalha encerra.

Uma mortalha pra meu pó?

Se a minha pátria é a própria terra

Meu osso vai se dar bem, só.

.



(Versos, reverso controverso)



(Ilustração: Tristan Corbière, por Jean Vacher)



quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

A DIMENSÃO DO MITO, de Paulo Bomfim







Reza a tradição que um dia, no século XVII, a Vila de Piratininga amanhece embandeirada. Corria, de boca em boca, notícia que D. Sebastião voltava de Alcácer Quibir e surgiria em nosso planalto com seus companheiros sumidos na trágica jornada do Marrocos.

Bandeirismo e sebastianismo sempre estiveram juntos, a começar pelo nome do “Encoberto”, presente no batismo dos futuros sertanistas. Sebastião Preto, Sebastião de Freitas, Sebastião Paes de Barros, Sebastião de Camargo, Sebastião Leme do Prado, Sebastião Pinheiro Raposo, o patriarca Sebastião de Arruda Botelho e muitos outros, nascem sob o signo daquele que finaliza em glória, o ciclo das lanças em África, da dinastia de Avis.

A lenda de D. Sebastião pode ser encontrada nas mais diversas regiões do país. Faz parte de cavalhadas e de danças, de cantos populares e da religiosidade de rituais emergentes do folclore. Se, por um lado ele atirou Portugal em mãos castelhanas, do outro, sua lenda armou o patriotismo português na restauração dos Braganças.

Na neblina que caía sobre o burgo mameluco, havia a expectativa do rei surgir do encantamento.

O mesmo acontecia com bandeirantes jamais retornados do sertão onde permanecem debaixo de sortilégios.

Nas monções, corriam histórias das canoas fantasmas que transportavam tripulações dizimadas pelos paiaguás. Relatos monçoeiros alertam sobre aparições surgidas na curva dos rios, em noites de lua cheia, com barqueiros transparentes e sertanistas hirtos.

Em universos paralelos, D. Sebastião e bandeirantes, aguardam.

Na névoa que desce sobre ruas de São Paulo, o sonho do Quinto Império flutua com o séquito de gibões que seguem a armadura vazia do Esperado.



(Ilustração: Carlos Barahona Possollo - Dom Sebastião, 1992)



domingo, 14 de janeiro de 2018

MAGDALENA, de Aline Miranda







Magdalena

tinha mirada forte

um olhar de contorno brilhante

delineado

esverdeado

que me penetrava.

Precisava forçar-me séria

para o sorriso não soltar-se

a trair-me.

Mas atrás do copo de cerveja

ela me olhava

(não havia mais ninguém a não

ser os homens velhos

que ainda restavam no bar

oferecendo-nos bebidas).

Ela chamava atenção

acentuada com um lenço

na cabeça

nenhum fio se rebelando

e o rosto forte

imponente.

Não havia nada na mesa

a não ser a cerveja.

Nenhuma distração.

Na rua parou um carro

de polícia

piscava luzes


—  Você parece boate,

ela disse.

E olhava fixo.

Eu,

que me achava tão segura

me via ali,

aberta, vulnerável.

Onde estariam meus anticorpos

que não trabalhavam?

Para de me olhar assim,

eu dizia,

tapando-lhe levemente

os olhos

em brincadeira.

Ela sorria.

Eu a tocara.

(Em verdade já antes:

cheguei de táxi, chovia

eu molhada

ela me esperava

percebi-a de longe

 —  míope guarda trejeitos 
— 

atravessamos a rua em seu guarda-chuva

seu braço longo abraçava meus ombros

ela tocara-me.

tremia.)

Jamais lembrarei as palavras ditas

saídas como vômito

de algodão-doce

sem filtro

feito flechas

tentando cegar aqueles olhos de capitu

que me petrificavam

e me botavam a falar

como doida

ou criança com sono,

quizás.

Fechou-se o bar.

E aquela rua tão movimentada

de dia!

Parecia viagem

parecia outra cidade.

Sempre gostei do frescor e silêncio

da noite.

As ruas com poças

ainda da chuva.

Sombras coloridas nos olhos

um homem passa

um carro passa

um rato passa

não há ninguém além da noite

já começo de amanhã.





(Ilustração: Odette Dalpé - guarda-chuva vermelho)



quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

ATRAVÉS DO MISTÉRIO, de Clarice Lispector






Perseu abrigara-se da chuva na sala da estação, pousando a mala no banco. Cortara no dia anterior os cabelos. No rosto, mais nu as orelhas pareciam separadas da cabeça; as faces um pouco ossudas davam-lhe um ar de fraqueza obstinada e, apesar disso, de tranquilida

Seu aspecto se transformara bastante desde a época em que andava com Lucrécia. Estava muito mais magro, menos bonito. Agora havia nele um modo de ter doçura que não estava mais na doçura; com o impermeável solto no corpo parecia um estrangeiro que entrasse numa cidade.

Chovia muito. A chuva nos trilhos ainda desertos tinha um sentido reservado de que ele parecia fazer parte. 

Como havia tempo, ligou o rádio que em breve estalava captando o temporal longínquo – percebia-se porém o fio de música através das crepitações da eletricidade. Perseu ouvia de pé, sem sonhos e sem o que se chamaria de entender. A frase musical, muito nobre, era-lhe visível como o rádio. Apreendia o esforço da música com mesmo esforço agradável, e tirava prazer dessa vaga rivalidade. Quando lhe perguntavam se gostava de música, dizia sorrindo com graça que gostar gostava, mas não compreendia, dava quase no mesmo ouvir bater na porta e ouvir música.

O rádio crepitava. Perseu escutava com força pacífica, alisando o peso de papéis da mesinha. Se vivesse em sua época seria tentado a achar que a música o fazia sofrer. Mas este rapaz insignificante não tivera verdadeiras influências nem deixava marcas. Talvez estivesse mesmo perdendo sua época, e tanta liberdade o deixasse muito aquém do que poderia se fosse constrangido. Mas ele parecia sempre arranjar-se em silêncio. Se não entendia as notas obscuras, acompanhava-as com uma pequena parte enigmática sua que se comprazia na nitidez do mistério. Quando a música cessou, desligou o rádio. As gotas tombavam da calha e a bilha que o chefe da estação deixara fora enchia-se dágua. 

Perseu ficou repousando de pé. Estava cansado e tranquilo. Perto da boca duas ligeiras descidas prenunciavam as rugas de homem. Como não era particularmente de sua época, que o faria sofrer, nem possuía uma cultura de onde escolher sentimentos – estava de pé, acariciando o peso de vidro, com as duas rugas se formando: intacto, pensativo, um pouco fatigado. Sem ser pai, já não era filho. Achava-se em ponto luminoso e neutro. E esta realidade ele não transmitiria a ninguém. A nenhuma mulher sobretudo. Como jamais daria sal harmonia ou a forma de seu corpo. Poderia apaziguar uma mulher. Mas sua paz estranha, ele não comunicaria.

O sino da estação anunciava a partida. Perseu entrou no vagão, dispôs mala sob o banco. Quando o trem partiu, agitou-se feliz olhando para os lados.

Em breve saíam da zona urbana e entravam no campo. Continuava a chover, a terra ensopada parecia triste com árvores tão escuras. Dentro do ruído adormecido das rodas e do vento chuvoso, o carro prosseguia calmo nesse fim de tarde. Perseu tomara dois cálices de vinho-do-porto para não se resfriar pois continuava a ser minucioso quanto à saúde e aos exercícios. Com o álcool no coração sentia-se um pouco bem demais, quase inquieto. Aplicava seu mal-estar em coisas concreta: olhava cada objeto do vagão emprestando-lhes sombrio contentamento.

No carro cada pessoa tinha uma cara, extremamente visível à luz transmutada da tarde. Cara era como o nome, pensou com prazer e desassossego. Seu pensamento era apenas o ritmo das rodas. Perseu tinha apenas a forma para um pensamento extraordinário, e não o pensamento, e isso o exaltava – cara é uma coisa, corpo é outra, vinho no corpo é outra. Embora ele se sentisse todo inteiro com o impermeável num trem.

Começou por olhar uma moça vulgar, de traços grandes. “Parece uma flor”, pensou agitado. Tinha olhos redondos. Vazios porque estava sozinha. Não se poderia dizer se alegres, pensativos ou atentos – olhos apenas físicos, e alguém duvidaria de que pudessem ver. No entanto batiam pálpebras com cílios ralos e comiam o ar com delicadeza. De repente Perseu pôs-se a gostar deles com obstinação e prazer. Pousavam sobre um nariz grande que respirava com esforço: a moça estava gripada, e entreabria os lábios grossos. Toda a cara era exterior, uma flor a ser tomada. Veio-lhe mesmo o desejo. O tipo de cabeça pesada que se pegaria nas duas mãos e que se olharia com inútil sinceridade – daí a pouco pensando em outra coisa, só com o objeto fatigante nas mãos, porque seria impossível concentrar-se naquele rosto de corola. Pôs-se a imaginar como seria difícil conhece-la porque ele mentiria – mal a tocassem, ela se fecharia toda em mentiras e sonhos, ficaria “interessante”, diria de como tinha tantos pretendentes, a família tão bem de vida, ela graças a Deus cheia de saúde, e mesmo de como era virgem – Perseu teve um murmúrio de satisfação ao ver que a que ponto chegara sua experiência e ao imaginar-se fingindo acreditar, beijando-a enquanto ela mentisse – o que seria muito indecente e muito terno. 

Enquanto isso ela mostrou ter pressentido o rapaz: parecia pensar mais rapidamente e, quase sem transformar a cara imaculada, tornara-se interessante: Perseu desviou o olhar.

Parecia-lhe impróprio chamar a atenção. Era no entanto o que sempre lhe sucedia. Sua calma insignificância fazia as pessoas erguerem os olhos e fitá-lo em indagação, da qual estranhamente participativa alguma insolência. O que o perturbava. Mas na maior parte das vezes era percebido apenas sem consciência, como se olha o dia. De fato o casal silencioso fitou-o rapidamente, sem tempo, como se ele fosse o único passageiro. A mulher corada tinha queixo sensível e olhos pequenos. O homem era fraco, desorientado: de barba raspada e esverdeada, olhos verdes, mãos cinzentas e bem feitas.

- Os bois.

O trem corria morno na chuva.

- Alfredo, os bois, disse a mulher com voz rouca.

Perseu fixou um canto empoeirado do chão e depois a mala de uma senhora de preto – com a boca cheia de saliva, rebentada no coração a veia mais goras, ele tinha o primeiro sentimento doloroso de paixão e piedade.

- As pessoas, pensou envergonhado. Nos campos as vacas molhadas eram quentes, vagarosas. Gente, disse. Uma sensibilidade nele estava ficando homem. E esta seria sua vida mais interior.

Com o fato de ser um homem quis olhar o mundo, e viu os campos à chuva, as escadas gastas de uma casa. As pessoas eram tépidas no trem, a fumaça confortante. Olhava tudo com inocência, força e domínio.

A senhora de preto fumava, examinando-o com os olhos pintados. Perseu não gostava de mulheres às quais nada escapava. Mas experimentou certa quente promessa no peito ao ver uma mulher perfumada e sábia observá-lo. Embora o intimidasse aquele olhar direto. E atrevido?

Mas não.

Neste momento a mulher preto pensava, soprando a fumaça: sei de repente um homem. O que a maravilhava. Mas era tarde para ela. Eis de repente um homem, adivinhou e, apagando o cigarro, dirigiu a descoberta, em desafio – através da distância cada vez maior – em desafio e misericórdia a uma pessoa que durante a pequena separação não saberia o que fazer de si.

Perseu porém não a olhava mais, agora interessado em penetrar a escuridão através da vidraça. Nenhuma mulher receberia o calor de sua alma que ele um dia talvez desse a um amigo. Esquecera a mulher e espiava a noite pela vidraça – instável, grande, silencioso no impermeável. Mas não era apenas uma força cega. Ser um homem guiava-o através do mistério.



(A cidade sitiada)



(Ilustração: museum artes: Mary Gaspar - Man Sleeping in Train Rain)



segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

NAUS SEM RUMO, de Amílcar Cabral






Dispersas,

emersas,

sozinhas sobre o Oceano …

Sequiosas,

rochosas,

pedaços do Africano,

do negro continente,

as enjeitadas filhas,

nossas ilhas,

navegam tristemente …



Qual naus da antiguidade,

qual naus

do velho Portugal,

aquelas que as entradas

do imenso mar abriram …

As naus

que as nossas descobriram.



Ao vento, à tempestade,

navegam

de Cabo Verde as ilhas,

as filhas

do ingente

e negro continente …



São dez as caravelas

em busca do Infinito …

São dez as caravelas,

sem velas,

em busca do Infinito …

À tempestade e ao vento,

caminham …

navegam mansamente

as ilhas,

as filhas

do negro continente …



- Onde ides naus da Fome,

da Morna,

do Sonho,

e da Desgraça? …



- Onde ides? …



Sem rumo e sem ter fito,

Sozinhas,

dispersas,

emersas,

nós vamos,

sonhando,

sofrendo,

em busca do Infinito! …



(Emergência da poesia em Amílcar Cabral)




(Ilustração: Joannes van Keulen, ca. 1635. The first known painting of the island of Santiago Cape Verde Islands)

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

CASAL PERFEITO, de Lya Luft





Um dia me pediram para escrever sobre o “casal perfeito”: bom para quem gosta de desafios. Minha primeira providência foi cercar com aspas o vocábulo “perfeito”.

O que justificaria o rótulo sobre o qual eu devia escrever?

Imediatamente ocorreu-me que parceiro de um casal “perfeito” precisam se querer bem como se querem bem os bons amigos, e temperar esse afeto com a sensualidade que distingue amizade de amor. Duas pessoas que compreendem, sem ressentimentos nem cobranças, a inevitável dose de periculosidades do ser humano e sua dificuldade de comunicação. Em última análise, toda a sua complicação.

A melhor pareceria deve ser aquela em que um aceita o outro sem ter de se submeter a qualquer coisa pelo outro; em que um aprecia e admira o outro, mas tem por ele ternura e cuidados. Sobretudo aquela em que um parceiro não investe no outro todo os seus projetos, à primeira decepção passando de amor a rancor.

Se o outro servir de cabide para os nossos sonhos mais extravagantes de perfeição, o primeiro vento contrário derruba o pobre ídolo que não tem culpa de nada.

No casamento saudável há um propósito geral: quero passar com você o melhor de meus dias, construir com você uma relação gostosa, importante e definitiva.

É importante não correr para os braços do outro fugindo da chatice da família, da mesmice da solidão, do tédio. É essencial não se lançar no pescoço do outro caindo na armadilha do “enfim nunca mais só!”, porque numa união com expectativas exageradas decreta-se o começo do exílio.

Amor bom, além do mais, tem de suportar e superar a convivência diária.

A conta a pagar, a empregada que não veio, o filho doente, a filha complicada, a mãe com Alzheimer, o pai deprimido, ou o emprego sem graça e o patrão grosseiro. Quando cai aquela última gota – pode ser uma trivialíssima gota –, a gente explode. Quer matar e morrer, e nos damos conta: nada mais em nossa relação é como era no começo. Não é nem de longe como planejáramos que fosse.

Não queremos continuar assim, mas não sabemos o que fazer. Ou sabemos, mas nos parece inexequível.

Na verdade, na parceria amorosa como em tudo o mais recomeçamos tudo todos os dias. Então podemos tentar começar diferentes também aqui e agora. O cotidiano conforta, os seus pequenos rituais são os marcos de nossa vida mais segura, mas também traz desencanto e monotonia.

Precisamos de criatividade num relacionamento amoroso, dizem. O problema é que quando se fala em “criatividade” numa relação a maioria pensa logo em inovações no sexo, como se a solução estivesse em novas posições, outro perfume, artifícios exóticos.

Transar bem é resultado, não meio. Como deveriam ser os filhos: fruto de um afeto vivo, não instrumento para consertar o que está falido.

Passada a primeira fase de paixão (desculpem mas ela passa, o que não significa tédio nem fim do tesão), a gente começa a amar de outro jeito. Ou a amar melhor; ou: aí é que a gente começa a amar; a querer bem; a apreciar; a respeitar; a valorizar. A mimar; a sentir falta; a conceder espaço; a querer que o outro cresça e não fique grudado na gente.

“Se você ama alguém, deixe-o livre”, estava escrito no bilhetinho que foi um dos maiores presentes que me deu alguém entre tantos muitos outros bens.

Um pouco de lucidez e um bocado de maturidade (ah, que coisa boa, o tempo) há de mostrar se – e o quê – pode ser ainda conquistado a dois.

Isso entendido, chega o momento da definição: e agora, o que fazer? Investir, se há mais possibilidades do que vazio.

Como a gente desiste fácil – porque afinal somos guerreiros ou nem estaríamos mais aqui, e porque há os filhos, os compromissos, a casa, a grana e até ainda o afeto –, vamos criar um jeito de reconstruir o que parece esfarelado. Isto é: quando há vontade, afeto, quando resta interesse. Desde que seja uma reinvenção a dois, não a submissão de um e o exílio de outro. Pois o espaço entre opressor e oprimido é um vazio.

Mas quando realmente nada mais resta de positivo?

Laços podem ser reconstituídos, remendados ou cortados. O corte se faz com mais ou menos generosidade, carinho ou hostilidade e raiva – sempre com dor. Porém nenhuma união deveria ser a sentença definitiva de aniquilamento mútuo dentro de uma jaula.



(Perdas e ganhos)



(Ilustração: Edvard Munch - The Kiss)

terça-feira, 2 de janeiro de 2018

FRUTOS, de Mia Couto






A bondade da mangueira

não é o fruto.



É a sombra.



A térrea,

quotidiana,

abnegada sombra:

no inverso do suor colhida,

no avesso da mão guardada.



Há a estação dos frutos.

Ninguém celebra a estação das sombras.



Assim, o amor e a paixão:

um, fruto; outro, sombra.



A suave e cruel mordedura

do fruto em tua boca:

mais do que entrar em ti

eu quero ser tu.



O que em mim espanta:

não a obra do tempo

mas a viagem do Sol na seiva da árvore



A arte da mangueira

é a veste de sombra

embrulhando o seu ventre solar.



Para o homem

vale a polpa.



Para a terra

só a semente conta.





(Tradutor de chuvas)



(Ilustração: Jacqueline Secor)