quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

MISTINGUETTE VAI CASAR, de Jean Manzon




No meu terceiro dia em Paris resolvi fazer algumas coisas que nunca fizera antes: visitar os lugares tão falados no estrangeiro e tão desconhecidos dos próprios parisienses. Fui à Torre Eiffel, entrei em Notre Dame, demorei-me no Louvre e, por fim, depois de carregar minha máquina fotográfica, tomei o rumo do apartamento de Mistinguette. Preciso dizer quem é Mistinguette? Aos leitores adolescentes, talvez. A mais famosa vedeta do século, a dona das mais belas pernas do mundo, a que deixou corações em petição de miséria, cuja beleza iluminou os cabarés de Paris desde antes da primeira grande guerra, está agora do outro lado da porta. Insisto na campainha. A cara de um porteiro engalanado aparece, misteriosamente:

- Com quem deseja falar, monsieur?

- Mistinguette.

- Madame não recebe.

Era um porteiro negro do Senegal.

Como dera ali, não posso dizer. Já ia fechando a porta, quando a travei com o pé.

- Diga-lhe que venho do Brasil.

- Não recebe.

- Recebo sim! - gritou lá do fundo a própria Mistinguette. - Do Brasil, recebo, sim!

Veio, toda num sorriso, explicando que seu tempo era todo tomado pelos compromissos artísticos, mas que do Brasil vinha a mensagem saudosa de um filho que ela possui em terras da América.

Logo que Mistinguette transpôs a fronteira de sombra e luz que existe em seu luxuosíssimo apartamento, compreendi a grande tragédia dessa incomparável e alegre mulher. Nunca a velhice poderia ser mais dramática, nunca um corpo lutou tanto contra o poder arrasador dos anos. A marcha do tempo em cada ruga, em cada pedaço, na cor artificial dos cabelos, e na agonia lenta, inexorável, impiedosa daquelas pernas que por triz não foram cantadas pela musa de Alfred Musset.

Enfrentando a velhice, Mistinguette o faz com uma triste dignidade, tornando mais heroica a jornada de volta, pelo outro lado da colina. Nascida em 1870, ela conheceu a glória antes de chegar ao fim do século. Quando o Brasil proclamou sua República, Mistinguette, linda aos 19 anos, arrebatava Paris, “- Mulher assim não é humana”, diziam os críticos teatrais. - “É um anjo”, gritavam os espectadores. Victor Hugo a admirava? A História não diz. D. Pedro II viu Mistinguette dançar? Não posso responder. Cinquenta milhões de pessoas, cinquenta milhões de olhos sedentos passaram pelas bilheterias em busca de Mistinguette, a quase divina Mistinguette. Por seu amor, reis dariam tronos, plebeus dariam a vida. Ela foi a inspiração de poetas, a paixão de humildes operários, a alucinação de honrados burgueses de Paris e além de suas fronteiras.

Ei-la agora, diante de mim. Aos 76 anos, Mistinguette é um prodígio de bom humor, de bondade, de ternura para com o gênero humano, que tão bem soube tratá-la em toda sua longa e prodigiosa existência. Sente-se que ela procura se agarrar à vida que lhe foge pelos dedos, hoje encurvados e secos, pela pele macilenta. Agarra-se à vida no amor de um jovem, o italiano Cozenso, que com ela se casou ou vai se casar. Ele está no apartamento de Mistinguette neste instante.

- Conhaque? Gin? Rum?

Prefiro um brandi, enquanto o rapaz, com uma cara melancólica, vai para o piano e se arrasta num dolente blue. 

Mistinguette me diz:

- Todos pensam que esse rapaz se casará comigo pelo dinheiro que possuo. Não é verdade.

Numa longa baforada, explica:

- Nunca lhe dei um franco.

- Ele a ama?

- Não.

- Então...

- Sei o que estás pensando, amigo. Sou velha e sem atrativos e um jovem como êsse vil Cosenzo não poderia apaixonar-se por mim. Não é isso? Negas? Sei que é a verdade. Tantos anos de experiência ajudaram-me a conhecer  profundamente o coração dos homens.

Mistinguette troca o cigarro por um copo de leite.

- Leite?

- É o segredo da longa vida.

Sorve o líquido branco e, colocando a taça sobre a mesa, recomeça:

- Se Cozenso não me ama, se não leva meu dinheiro, por que está aqui? Por um motivo simples: o homem quer cartaz. Aliás, todos os homens querem cartaz. Avalie quanto vale para Cozenso a publicidade gratuita: “- Fulano de tal vai se casar com Mistinguette”. Ele é um compositor de músicas populares. Está ouvindo esse fox horrível? É dele. Depois que se espalhou a notícia, os diretores aceitam suas drogas e ele é um camarada feliz. Apenas tem por obrigação portar-se condignamente para não manchar minha reputação nem lançar-me ao ridículo.

- Um bom moço, ele deve ser.

- Precisamente.

Mistinguette levanta os olhos e fita Cozenso, que está embebido numa passagem de sua própria melodia.

- Pobrezinho, eu poderia ser sua avó.

Volta-se para mim e pede:

-Diga que tenho 38 anos...

Velha e querida Mistinguette, alma e temperamento de minha cidade, sempre jovem, sempre eterna: eu desejaria que você não morresse nunca. Isto é supérfluo, Mistinguette, porque realmente você não morrerá nunca, enquanto existir Paris, enquanto houver música nos cabarés, enquanto pernas lindas deslocarem nossos olhos. Mistinguette, você é um bairro de Paris.






(Ilustração: cartaz Mistinguett - la revue de Paris)



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