terça-feira, 23 de outubro de 2012
BALANÇO E PERSPECTIVA DA ARTE, de Benedito Nunes
Abstração
é desumanização?
O fenômeno da abstração parece
constituir o sentido da evolução da cultura artística nos últimos cinquenta
anos. Percebeu-o Piet Mondrian (1872-1944), que podemos considerar como um dos
artistas mais representativos do mundo contemporâneo no setor das artes plásticas,
ao escrever em um de seus artigos que a linha evolutiva do que ele
chamava a cultura da forma fazia-se tendendo para a "abstração maior do aspecto
natural da realidade". A decomposição da realidade, iniciada pelo cubismo,
tornou-se em abstração dos objetos exteriores, cujos traços essenciais,
selecionados pelo pintor, ordenam-se segundo as leis da composição no espaço da
tela. Abstrair significa selecionar, reter determinados aspectos; eliminando-se
outros. O que chamamos abstração, na pintura que cortou os últimos vínculos com
a figura natural dos objetos, para estabelecer novas relações pictóricas entre
entidades livremente criadas - que nascem da mobilização das cores, como os
poemas de Mallarmé da mobilização das palavras - nada de fato abstrai, a menos
que se queira dizer que ela, afirmando-se como existência separada do mundo, abstrai-se
da realidade.
O artista abstrato só tem interesse
pelo mundo movediço das formas que faz nascer, pela gestação de ritmos, de
modulações cromáticas, ou, como dizia Max Bill, de campos de energia
constituídos com a ajuda da cor. Ele se esquece de si mesmo, elimina a sua
presença como homem, no quadro, entregue a uma tarefa quase impessoal, que
exige a depuração dos seus próprios sentimentos, para concentrar-se no processo
de gênese de formas e objetos. O humano teria sido, pois, expulso dessa pintura
exigente, que se transformou num campo de operações com a matéria pictórica e
onde, para repetirmos Kandinsky (1866-1944), um dos pais do abstracionismo,
"um ponto no quadro diz amiúde mais do que um rosto humano". Mondrian
falava do ângulo reto, relação constante, essencial à nova linguagem prática
que ele fixou, como elemento da verdadeira realidade que se extremou em captar,
praticando um ascetismo da fantasia e dos sentimentos pessoais. A objetividade
conquistada por ele tem algo de renúncia e despojamento, de nudez e pureza sobranceira,
sem vibração humana. A expressão dos sentimentos não mais preocuparia o
artista, que unicamente busca a expressão plástica, nova realidade descoberta
ou criada, que apenas significa a sua própria existência que é símbolo de
si mesma. Esse interesse pela expressão plástica, que seria desinteresse pelo
humano, marca a pintura abstrata, na qual, como observa Lefebvre, o expressivo
perde a sua inesgotabilidade e o objeto estético a sua transcendência. Tal
perda, no entanto, é compensada por uma maior liberdade de criação, que se
exerce obedecendo às exigências formais do impulso artístico, e que só termina
com o surgimento da obra, como objeto de contemplação estética. O pintor e o
escultor multiplicam as possibilidades de plasmação demiúrgica: o primeiro
constrói harmonias, experimenta variações tonais, descobre ritmos, inventa uma
vida aparente de contrastes que se polarizam, de tensões que fluem, de formas
que vivem agitadas por um dinamismo interior; o segundo explora os mais
diversos materiais, exploração interna que não os submete a uma finalidade
exterior, utilizando-os às vezes para dotá-Ios de uma presença substancial,
reveladora de qualidades sensíveis - o peso, a solidez, a dureza que, como as
relações harmoniosas e contrastantes das cores e linhas na pintura,
dimensionam um universo estético livremente conquistado. Essa liberdade que satisfaz o
artista, e que o imuniza de compromissos estranhos à sua criação, afasta-o
do grande público. Cava-se entre ele e o público "um abismo que nenhuma
boa vontade é capaz de preencher". (Worringer, Problemática da arte
contemporânea, Editorial Nueva Vision, p. 12.) Para
quem produziriam atualmente o pintor e o escultor? Worringer responde que não é
certamente para o público comum, o qual, ainda preso aos hábitos mentais
decorrentes da cultura renascentista, olha o quadro para ver algo representado,
porque entende que as cores e as formas só podem ser utilizadas como um meio de
representação. Valéry dizia, a propósito de Leonardo da Vinci, que um
quadro é sempre julgado na mesma atitude com que apreciamos a realidade. A
pintura contemporânea exige uma atitude diferente, que implica num processo de
educação artística, talvez impossível numa época de domínio da cultura de massa.
O pintor e o escultor estariam
produzindo para um público de artistas. Mas, como esse público não existe, pois
os artistas não são o que propriamente se chama público, Worringer, perplexo,
aceita o divórcio que se estabeleceu entre a obra de arte e os seus possíveis
consumidores, não sem perguntar, porém, se as artes plásticas ainda são
"formas expressivas que respondem de imediato a nossos anelos expressivos
e a nossas necessidades expressivas".
A perda da aura
Um crítico francês do século
passado, Paul de Saint-Victor, exclamou, certa vez, que os deuses haviam
abandonado a pintura moderna. Essa exclamação transformou-se numa verdade para
Malraux. No seu Museu imaginário da escultura mundial, Malraux acompanha
o processo de dessacralização
da Arte, ocorrido a partir do
Renascimento, quando ela começou a deixar de ser, como Hegel suspeitou, um instrumento
do homem na sua eterna busca da divindade. Perdendo o contato com o numinoso, ela
conquistou autonomia, e de representação do sagrado que era, tornou-se sagrada.
O culto votado à imagem dos deuses transferiu-se para o culto da Beleza, último
refúgio das ligações originárias da arte com a religião. A sedução do objeto
estético, o
desinteresse do Belo, o seu caráter
contemplativo, proviriam dessa co-naturalidade inicial entre o fenômeno
artístico e o fenômeno religioso. Não nos interessa a discussão da
legitimidade dessa tese. O certo, porém, é que o objeto estético - templo, monumento ou quadro - possui, para quem sabe contemplá-lo, uma
inesgotabilidade, uma estranha presença, palpável e fugidia, próxima e
distante, que se impõe a cada ato de contemplação dirigido para o objeto
estético, singular e único, que guarda uma essência só dele possuída e que
só nele pode ser captada.
É a aura, assim denominada por
Walter Benjamin ("L'oeuvre d'art au temps de ses techniques de reproduction",
in Oeuvres choisies, Julliard), essa espécie de transcendência que assinala a presença
única e singular das obras de arte. Uma das mais importantes transformações a
que estamos assistindo hoje, em decorrência dos meios técnicos de reprodução de
imagens - fotografia, cinema, televisão -, é, segundo Walter Benjamin, a perda da aura
das obras de arte, que, reproduzidas, divulgadas e vulgarizadas, para
satisfazer às necessidades da cultura de massa, multiplicam-se em
grande número, tornando-se familiares e
banais. O resultado é o desgaste, pela multiplicação daquilo que é singular e irrepetível,
da presença que constitui a autenticidade da obra de arte. Concomitantemente, os meios de reprodução, que
causam a perda da aura, condicionam uma nova atitude em
relação à Arte, que não é mais a contemplativa solicitada pelas obras artísticas,
cuja singularidade as técnicas de reprodução de imagens vieram conturbar, e sim
a atitude participante, condicionada sobretudo pela ação do Cinema. Do Cinema,
cuja natureza artística tanto se discute, da influência contínua do espetáculo
cinematográfico, resultariam novas condições psicológicas, de ordem emocional,
incompatíveis com a apreensão contemplativa exigida pela
arte tradicional.A cultura de massa é espetacular: assenta no espetáculo,
requer o interessante, o raro, e são estes que, como nos faz ver Lefebvre, em
sua arguta análise das condições do espírito moderno, vão, aos poucos, tomando
o lugar do Belo. Os espetáculos que se apoiam nos meios técnicos de reprodução
da imagem, tais como os proporcionados pelo cinema e pela televisão, têm uma
força persuasiva que os da Antiguidade e do Renascimento jamais puderam
alcançar. Com a transmissão de imagens curiosas e interessantes pelos meios audiovisuais,
os mitos do nosso tempo se multiplicam, mas a linguagem simbólica, essencial à
arte, estiola-se. Entre mitos ativos e símbolos que o passado nos legou, qual a
alternativa do artista? Terá ele, teremos nós, consciência de que talvez estejamos engajados em algo que já
não é mais arte; mas o que será então e qual o seu nome? (Henri Lefebvre, Introduction à
Ia modernité, Les Éditions de Minuit, p. 272.)
O paradoxo de Ortega
Em seu ensaio Desumanização da arte,
onde estuda as mudanças profundas que a arte experimenta em nossos dias,
Ortega y Gasset propõe este paradoxo:
a arte atual é aquela que não existe.
Com essa frase contundente, que é mais do que um simples jogo de palavras, o
pensador espanhol chama atenção para o fato de que as manifestações artísticas
contemporâneas estão desligadas do passado. O corte que se verificou entre elas
e as tradições artísticas, que se desenvolveram e consolidaram até meados do
século XIX, foi demasiadamente brusco. Desfez-se, realmente, a conexão com o
passado, que outrora garantia à arte um curso histórico equilibrado, o qual
absorvia organicamente as mudanças de estilo, harmonizando o antigo com o novo,
as invenções com as convenções, a inovação com a tradição. A história da arte
não oferecia o espetáculo de uma sucessão de crises, e passava-se como a
história de intercâmbios sucessivos, de experiências que, feitas em diferentes
momentos, complementando-se pelo que tinham de diferente, ligavam-se entre
si.Cortadas as ligações com o passado, a arte só de sua atualidade dispõe.
É como se ela estivesse nascendo,
para viver o instante precário e tumultuoso de gestação. Nesse sentido de
uma nova existência que se afirma por si mesma, atualizando
potencialidades pertencentes a esta época, e que com ela estão
nascendo e se manifestando numa profusão desnorteante - na
qual procuramos ver claro, sem muitas vezes consegui-lo -, é que a arte contemporânea não existe. Ela
ainda não é uma realidade, mas um vir-a-ser, célere,tumultuoso, dramático. É com
razão que Ortega observa que o esforço artístico em nossos dias se processa com
ritmo de laboratório, de trabalho experimental, o que explicaria o fato de que
hoje "se produzem mais teorias e programas do que obras". (Ortega y
Gasset, "La deshumanizacion del arte", in
Obras, Espasa-Calpe.)
Esse fato importante não é o único
significativo num balanço da situação da arte no presente. Dois outros, que
podem ser associados num segundo paradoxo, merecem referência. O interesse pela
arte alarga-se e redobra de intensidade paralelamente à destruição da estética.
De um lado, assistimos precisamente àquele fenômeno, que intrigou Nietzsche, da
receptividade da nossa época a todos os estilos do passado, que agora confluem,
que se acumulam em torno de nós, despertando o nosso interesse histórico ou a
nossa apreciação estética, e às vezes apenas satisfazendo um certo refinamento
versátil do gosto - que já se tornou hábito mental nas camadas aristocratizantes, para fugirem à banalidade e à estandardização dos produtos
industriais. O certo é que, ao fato histórico da emancipação da obra de arte,
que já vinha se processando desde o Renascimento, seguiu-se, desde os meados do
século XIX, na atmosfera espiritual do romantismo, a consciência da autonomia
dos valores estéticos, consciência que se impõe no presente e que
pode,facilmente, conduzir-nos ao esteticismo.
A falta de um estilo característico,
orgânico, que constitui para muitos a grave deficiência do presente, o sinal
inequívoco da incapacidade da civilização para possuir uma arte autêntica
(quando isso é, na verdade, como bem o compreendeu Tomás Maldonado, o reflexo
das contradições sociais que dividem o nosso mundo), a falta de um estilo,
dizíamos, é compensada pela possibilidade, hoje tornada concreta, num grau
jamais alcançado em anteriores períodos da história, da fruição puramente
estética das obras de arte. A experiência estética, que pôde libertar-se dos
seus condicionamentos morais e religiosos, e que, segundo Mikel Dufrenne,
permite que nos situemos diante das obras de arte, convertendo-as em objetos
estéticos, é um dado fundamental para compreendermos o que se passa no terreno
artístico, principalmente quando, sob o impulso das novas correntes e das novas
criações, a reflexão filosófica, pondo a nu os pressupostos históricos da
estética tradicional, tende a reformular as bases em que esta se apoia.
A destruição da Estética
Esse desvendamento dos pressupostos
históricos da Estética, por analogia com a crítica existencial,reveladora dos
pressupostos históricos da metafísica e da ontologia tradicionais, equivale,
para aproveitarmos a terminologia de Heidegger, a uma destruição filosófica. É o
próprio Heidegger quem, após ter realizado, em Ser e tempo, a destruição da
metafísica, mostrando que, através dela, herdamos uma interpretação histórica
do ser, ensaia, em a Origem da obra de arte (conferência pronunciada em
1936), uma destruição da estética-ciência, igualmente comprometida com
determinada interpretação do Belo e da obra de arte.
Vimos, na parte deste trabalho
dedicada aos conceitos introdutórios, que o conceito do Belo, tal como se
apresentou na Antiguidade, trazia o selo da interpretação platônica do Ser,
implicando conotações éticas, espirituais e metafísicas, que dificilmente
podemos abstrair. Outros conceitos, em curso no pensamento estético, possuem
uma dimensão ontológica iniludível, na medida em que se relacionam, como
sugerimos a respeito da noção de mimese,
a uma determinada compreensão do
real, o que também sucedeu com a ideia de beleza natural, vigente a partir do
Renascimento. Suspendendo a vigência de tais conceitos estéticos, nos quais se
estampa uma outra experiência da realidade que não a nossa, teremos que,
defrontando-nos com as manifestações artísticas que presenciamos, aceitar a
contingência de buscar nelas mesmas as categorias estéticas que reclamam, tão
profundas e radicais foram as transformações causadas pela revolução
industrial - que não modificou apenas o estado das relações sociais, afetando,
igualmente, a nossa experiência e o nosso senso da realidade. Novos projetos
humanos, e com eles uma diferente concepção do Ser, vieram à tona por intermédio
da atividade artística. O caráter problemático que essa atividade assume faz
parte da situação atual do homem e de suas contingências. Cumpre à Estética não
recuar diante desse problematismo e considerá-lo no pórtico de investigações
que apenas se iniciam.
Um dos ensaios mais promissores no
sentido de uma investigação radical da obra de arte, que não abstrai o seu
caráter problemático, e que é uma espécie de investigação das possibilidades da
Estética em nosso tempo, é a Estética de Max Bense. Nessa obra o
professor Max Bense concebe o Belo como aquela categoria do ser estético, que é
a co-realidade. Coloca, assim, a obra de arte numa dimensão ontológica.Trata-se
de um passo realmente importante na atualização da estética, uma vez que,
nessa obra, o autor vale-se das principais generalizações filosóficas dos
últimos anos – a fenomenologia de Husserl, a analítica existencial de Heidegger,
a teoria dos signos de William Morris, a filosofia da linguagem de Ludwig Wittgenstein
- para delinear investigações que abrangem panoramicamente os aspectos comuns
de maior relevo entre artes plásticas e literatura, as incidências da lógica
com a estética e da filosofia com a linguagem. A tentativa de integração de
todos esses setores, que costumamos examinar em separado, com a existência
humana, o tratamento existencial da obra de arte e da literatura - enfocada
como experiência do ser através de signos plásticos e linguísticos -, enfim, a compreensão do significado
filosófico inerente à imitação e à abstração, mostra-nos, embora os resultados
alcançados sejam fragmentários, em que direção a estética deve orientar-se
para responder ao desafio dos atuais problemas artísticos.
O que se pinta, o que se escreve, o
que se compõe hoje em dia, mostra· se, em primeiro lugar, como possibilidade de
ser e só depois como qualidade estética. (Max Bense, Estética; Considerações
metafísicas sobre o belo, Editorial Nueva Visión, p. 149.)
O problematismo da arte
contemporânea é, portanto, radical. Em cada obra de arte que se produz está em
jogo o destino da arte; em cada uma delas o artista arrisca-se a matá-la
ou a fazê-la existir.
(Introdução à Filosofia da Arte)
(Ilustração: Mondrian Piet - composition with oval
in color planes)
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