sábado, 9 de abril de 2011

OS NOIVOS, de José J. Veiga







Todo dia depois da escola ela passa na loja para ver o noivo. Chega cansada, os braços marcados dos cadernos da classe e da bolsa de costura. Ela está sempre costurando, bordando, consertando, não ainda para o enxoval, mas por hábito, para ter sua roupa em ordem; escola come roupa, diz ela.


Um irmão dela ajuda na loja e já está entendendo tudo, o que é um bom descanso para o dono. Na lojinha acanhada mas bem sortida, principalmente de artigos que podem ser levados no bolso — pentes, botões, fitas, linhas, grampos de cabelo — tudo tem seu lugar certo em gavetas, vitrines, prateleiras com divisões, caixas de tamanho uniforme, com um exemplar do artigo pregado na parte de fora que fica à vista, e o rapaz sabe encontrar o que o freguês procura, a bem dizer de olhos fechados.



O dono mora nos fundos da loja, aí faz café numa cafeteira a álcool, come um almoço de marmita e raramente sai à rua. Para ter um lugar onde receber a noiva sem causar escândalo, ele mandou fazer uma salinha numa extremidade da loja, sacrificando um pedaço do balcão. Eles passam boa parte da tarde na sala, sentados em poltronas de vime separadas por uma mesinha de centro, idéia da noiva, e muito bem pensada: a mesinha serve para ela descansar a costura, para ele apoiar os braços e serve também de barreira entre eles, para evitar comentários.



De calça caseira, paletó de pijama e chinelos, os braços apoiados na mesa ou na poltrona, ele fica olhando para um ponto vago no chão, ou para os pés cruzados sobre os chinelos, uma ameaça de sorriso nos cantos da boca; outras vezes se distrai com um cordão apanhado na loja, enrola-o num dedo para sentir o latejar do sangue represado, desenrola-o, dá-lhe nós pelo prazer de desatá-los, quanto mais apertados melhor; mas nunca esquece o sorriso. Ninguém saberia se o sorriso é indício de algum pensamento maroto ou defesa permanente contra possíveis interpelações da noiva, caso ela o julgasse preocupado, ou aborrecido.



Ela já está habituada com o temperamento calado do noivo, mas de vez em quando ainda reclama.



— Muda de assunto, Vicente.



Ele olha para ela, acentua um pouco mais o sorriso, e para mostrar que não está ausente, nem morto, muda a posição dos pés nos chinelos, o que estava embaixo passa para cima; mas não diz nada, apenas solta um "huuum?" esticado.



— Muda de assunto. Esse já está batido.



— Você também não diz nada...



— Dizer o quê, se você não fala.



Como ela fala sem tirar os olhos da costura, ele não se julga obrigado a replicar; e mesmo que encontrasse o que dizer, talvez não fosse oportuno mais, ela já está mordendo os lábios para o pano estendido diante dos olhos, com certeza se repreendendo por algum ponto mal dado. Para não atrapalhá-la, ele fica calado. Pode ser que, sendo o noivado já antigo, eles tenham esgotado os assuntos correspondentes a essa fase; se é isso, só o casamento os poderá salvar, abrindo novas perspectivas.



Frequentemente entram fregueses indiscretos na loja, e esses sempre vão para o canto perto da sala; e enquanto fingem examinar o artigo pedido, ficam de ouvido atento para a porta, os de ouvido fraco chegam a pender a cabeça, mas em pura perda. Imaginando que o silêncio pode ter significado mais forte do que qualquer conversa, os mais afoitos põem o escrúpulo de lado e chegam-se de supetão na frente da porta — e dão com os noivos separados pela mesa, ele encolhido em seu silêncio, ela distraída com a costura. Desapontados, os curiosos se vingam na primeira oportunidade. É só ouvirem alguém comentar a eternidade do noivado e lá vem um sorriso torto, um ar de quem conhece segredos que a discrição não deixa revelar, e a insinuação calhorda:



— Casar pra quê? Como está, está tão bom...



Quando a claridade vai fugindo da salinha, a noiva para a costura, dobra os panos direitinho, junta-os, estica o corpo para trás, discretamente para não destacar o volume dos seios.



— Está na hora, Vicente.



Ele tateia o chão com os pés à procura dos chinelos, levanta-se e vai se vestir para o jantar na casa da noiva. A família já está esperando, menos o irmão mais novo, que janta na loja de um prato que lhe mandam.



Ao jantar cada um fala do que viu ou fez durante o dia, o noivo só escuta. Ninguém se preocupa mais com ele, ninguém lhe pede opinião nem espera que ele abra a boca a não ser para comer, só a noiva o observa disfarçadamente, há nele certos hábitos que ela desaprova e que pretende corrigir — quando chegar a ocasião. Onde teria ele aprendido esse sistema de cortar a carne prendendo-a com o garfo verticalmente, polegar para cima, como se estivesse briquitando com o boi vivo?



Depois do jantar a família novamente se espalha, uns vão sentar-se à porta, outros saem a passeio. A empregada retira a mesa, mas os noivos continuam em seus lugares, ela corrigindo exercícios, ele olhando as mãos pousadas na toalha, ou traçando figuras imaginárias no tecido ou brincando com uma tesoura, um lápis, um objeto qualquer. Ela se contém ao máximo, por fim ordena:



— Sossega com isso, Vicente.



Ele sorri, empurra o objeto tentador para longe e volta a concentrar-se nas mãos, sempre novas para ele, sempre merecedoras de minuciosa atenção.



No verão, quando rolos de mariposas vêm rodar em volta da lâmpada e caem sobre a mesa, os cadernos, os cabelos dos noivos, ela põe uma vasilha d’água na mesa embaixo da lâmpada. Isso é bom para o noivo, assim ele pode passar o tempo entretido, acompanhando o esforço que as mariposas fazem para sair da água, torcendo por elas ou mesmo ajudando-as com o dedo ou com um lápis.



Antes de se recolher a empregada vem saber se precisam de alguma coisa. Se há sobra de café os noivos aceitam, Vicente recebe a sua xícara e vai mexendo o açúcar sem pressa, aparentemente esquecido da vida, mas na verdade muito atento ao que faz; quer dissolver o açúcar até o último vestígio.



— Quer derreter a colher, Vicente? Que coisa!



Ele encerra a operação açúcar e começa a operação espuma. É preciso catar toda a espuma, sem deixar uma bolha que seja.



— Quando você beber já está frio, Vicente.



Vicente descansa a colher no pires, não de qualquer jeito, mas estudadamente: não convém que ela resvale para o centro do pires quando a xícara for levantada. Agora já se pode beber, e ele bebe a sério, sem atropelo, como se estivesse provando pela primeira vez uma bebida desconhecida chamada café.



Corrigido o último caderno a professora os empilha pela ordem de colocação dos alunos na classe para facilitar a distribuição, não se deve dar pretexto para desordem na aula. E por hoje é só.



— Vamos dormir, não é, Vicente?



Vicente ainda se acanha de ouvir isso, a frase tem para ele uma ressonância que não parece muito correta. Será que ela diz isso de propósito? Não pode ser. Um dia ele cria coragem e mostra a impropriedade do convite. O assunto é delicado, exige tato.



Levantam-se ao mesmo tempo. Ele arruma a cadeira direitinho no alinhamento com as outras, ela alisa o vestido atrás e acompanha o noivo até a porta. A essa hora as cadeiras já foram recolhidas e não há mais ninguém na calçada, por isso não convém que eles se demorem sozinhos, é preciso cuidado com as más línguas.



— Até amanhã, não é?



— Até amanhã, Vicente.



Ele desce a rua em passos miúdos, e só depois que passa a área de luz do primeiro poste é que se autoriza a olhar para trás e acenar timidamente com a mão, isso se não está passando ninguém.



Ela entra, escora a porta com o peso do ferro, pensando no irmão que chega mais tarde, escova os dentes e vai dormir. Pode haver estrelas, vento, risos e ruídos na noite, mas tudo isso pertence a outro mundo. Cada um em sua cama, é possível até que os noivos sonhem, mas isso ainda não foi comprovado.





(Ilustração:Deborah Pointon)



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