sexta-feira, 12 de abril de 2013

O NOME DO PAI, de Sérgio Telles








Quando eu era menino em Fortaleza, a reação das pessoas ao nome de meu pai me deixava encafifado. Anajarino. Ninguém tinha esse nome, nenhum pai de meus amigos ou colegas. Cada vez que por algum motivo eu tinha de dizê-lo, ficava nervoso, na expectativa das inevitáveis perguntas e gozações, era um incômodo ter de explicar seu significado.

E a explicação era bastante simples. Meus avós haviam saído do Ceará para cuidar de um pequeno negócio no interior do Pará, na cidade de Anajás, centro da região hidrográfica de Marajó, onde passaram a morar. Anajarino, portanto, refere-se a alguém proveniente de Anajás, tal como Amazonino indica o mesmo em relação ao Amazonas. Ambos são antropônimos, variantes de amazonense e anajaense. Anajás, por sua vez, designa o povo indígena que habitara a Ilha de Marajó.

De modo geral, o conhecimento do significado do nome esvaziava sua estranheza, eliminava sua ressonância bizarra e o revestia de um certo prosaísmo.

Para mim mesmo, essas explicações eram desnecessárias. Era como se meu pai preenchesse de tal forma seu nome que eu o tomava como uma imagem sua e não como a palavra que eu passei a entender que os demais achavam esquisita, uma série de letras, um agrupamento de sílabas, um vocábulo do léxico, que, como todos os outros, tem uma origem e uma significação. Esses elementos, que passei a convocar no interesse daqueles a quem eu tinha de ensinar a origem do nome, no fundo pouco me interessavam, tornados insignificantes pela presença concreta de meu pai.

Com sua morte e o correr dos anos, aos poucos sua pessoa se desprendeu do nome, deixando-o esvaziado, o que me permitiu finalmente enxergá-lo como tal e atentar para sua etimologia. Levando-a em conta, pareceu-me provável que outros homens nascidos naquele lugar o usassem, sem que me preocupasse em averiguar a veracidade de tal hipótese.

Essa antiga história veio à tona recentemente de forma inesperada. Estava procurando algo no Google - instrumento cuja amplitude e acurácia não cessam de me espantar - quando me ocorreu colocá-lo à prova, pesquisando minha hipótese sobre os homônimos de meu pai. Comprovei então, mais uma vez, o incrível poder do buscador e quão correta estava minha suposição, pois encontrei vários outros Anajarinos.

Essa descoberta teve um efeito curioso. Senti como se perdesse meu pai de novo numa segunda morte, pois ela como que banalizava seu nome, fazendo com que ele deixasse de ser seu emblema privado e restrito, seu inusitado galardão, sua marca registrada, por mais embaraçosa que me tivesse parecido durante um certo período. Passada essa primeira impressão, vi que a exclusividade do nome de meu pai, que o Google anulava de forma definitiva ao mostrar que muitos outros o compartilhavam, não colocava em risco o que realmente importava - sua posição única e especial, que, afinal, não residia em seu nome, mas no fato em si de ser meu pai, traço indelével em mim mesmo, no qual ele de certa forma sobrevivia e que jamais perderia seu significado e importância fundamentais.

Lembrando aquela época, quando tinha uns 10 anos e o nome do meu pai me constrangia, pensei que se então alguém me dissesse que anos depois eu estaria calmamente dizendo para todos, como estou fazendo agora, em alto e bom som, que era Anajarino o seu nome, isso me pareceria inacreditável, impossível, algo que jamais poderia acontecer, a não ser pela intervenção de forças que rompessem com a ordem natural das coisas, alguma mágica ou um milagre, pois naquela ocasião eu acreditava que tais coisas acontecessem.
Talvez tenha pensado tudo isso porque nesta época de Natal ficamos nostálgicos e saudosos do tempo em que acreditávamos em milagres, acontecimentos extraordinários como o nascimento de um messias cuja importância passa despercebida aos circunstantes, mas é detectada por reis de lugares distantes que, guiados por uma estrela, chegam para lhe render homenagens.

É frequente que a crença em magníficos milagres própria da infância desapareça com ela. A partir de um determinado momento, somos forçados a nos contentar com milagres bem mais modestos, embora não menos espantosos. Milagres advindos não da emergência do sobrenatural na realidade humana, mas decorrentes dos próprios movimentos da vida, que, em sua perseverante luta contra a destruição e a morte e com seus ininterruptos processos de transformação, tomam rumos e desdobramentos imprevisíveis, impondo mudanças e criando o novo.

Movimentos e transformações como, por exemplo, os que me distanciam hoje daquele menino que tanto se afligia em dizer que o pai se chamava Anajarino.



(OESP/22.12.2012)


(Ilustração: José Luis Muñoz)


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