terça-feira, 31 de julho de 2012

DA MALIGNIDADE DAS MULHERES, de Heinrich Kramer e Jacobus Sprenger





E da maldade das mulheres fala-se em Eclesiastes XXV: “Não há cabeça superior à de uma serpente, e não há ira superior à de uma mulher. Prefiro viver com um leão e um dragão, que com uma mulher malévola”. E entre muitas outras coisas que nesse ponto precedem e seguem ao tema da mulher maligna, concluímos: Todas as malignidades são pouca coisa em comparação com a de uma mulher. Pelo qual São João Crisóstomo diz em texto: “Não convém se casar”. São Mateus, XIX: Que outra coisa é uma mulher, senão um inimigo da amizade, um castigo inevitável, um mal necessário, uma tentação natural, uma calamidade desejável, um perigo doméstico, um deleitável detrimento, um mal da natureza pintado com alegres cores! Portanto, se é um pecado divorciar-se dela quando deveria mantê-la, é na verdade uma tortura necessária. Pois ou bem cometemos adultério ao nos divorciar, ou devemos suportar uma luta quotidiana. Em seu segundo livro A Retórica, Cícero diz: “Os muitos apetites dos homens levam-no a um pecado, mas o único apetite das mulheres as conduz a todos os pecados, pois a raiz de todos os vícios femininos é a avareza”. E Séneca diz em suas Tragédias: “Uma mulher ama ou odeia; não há uma terceira alternativa. E as lágrimas de uma mulher é um engano, pois podem brotar de uma pena verdadeira, ou ser uma armadilha. Quando uma mulher pensa sozinha, pensa o mal”.


Mas para as boas mulheres há tanto louvor que lemos que deram beatitude aos homens, e salvaram nações, países e cidades; como fica claro no caso de Judith, Déborah e Esther. Veja-se também Coríntios I: “Da mulher que tem um marido infiel, e consente em habitar com ele; não a dispense. Porque o marido infiel é santificado na mulher”. E Eclesiastes, XXVI: “Bendito o homem que tem uma mulher virtuosa, pois o número de seus dias se duplicará”. E ao longo desse capítulo se dizem muitos elogios sobre a excelência das mulheres boas, o mesmo que no último capítulo dos Provérbios a respeito de uma mulher virtuosa.



E tudo isto fica claro no Novo Testamento, a respeito das mulheres e virgens e outras mulheres santas que pela fé afastaram nações e reinos da adoração de ídolos, para leva-los à religião cristã. Quem ler Vincent de Beauvais - em Spec. Histor. XXM 9 - encontrará coisas maravilhosas na conversão da Hungria pela muito cristã Gilia, e dos francos por Clotilda, esposa de Clodoveo. Portanto, em muitas críticas que lemos contra as mulheres, a palavra mulher se usa para significar o apetite da carne. E como foi dito: Aqui verificamos que a mulher é mais amarga que a morte e uma boa mulher está submetida ao apetite carnal.





 (Malleus Maleficarum – O Martelo das Bruxas, tradução de Alex H.S.)



(Ilustração: Tamara de Lempicka - the girls)




sábado, 28 de julho de 2012

DÉJEUNER DU MATIN / CAFÉ DA MANHÃ, de Jacques Prévert






Il a mis le café
Dans la tasse
Il a mis le lait
Dans la tasse de café
Il a mis le sucre
Dans le café au lait
Avec le petit cuiller
Il a tourné
Il a bu le café au lait
Et il a resposé la tasse
Sans me parler
Il a alumé
Une cigarrette
Il a fait des ronds
Avec la fumée
Il a mis des cendres
Dans le cendrier
Sans me parler
Sans me regarder
Il s'est levé
Il a mis
Son chapeau sur la tête
Il a mis
Son manteau de pluie
Parce qu'il pleuvait
Il est parti
Sous la pluie
Sans une parole
Sans me regarder
E moi j'ai pris
Ma tête dans ma main
E j'ai pleuré.



Tradução de Silviano Santiago:



Pôs café
na xícara
Pôs leite
na xícara com café
Pôs açúcar
no café com leite
Com a colherzinha
mexeu
Bebeu o café com leite
E pôs a xícara no pires
Sem me falar
acendeu
um cigarro
Fez círculos
com a fumaça
Pôs as cinzas
no cinzeiro
Sem me falar
Sem me olhar
Levantou-se
Pôs
o chapéu na cabeça
Vestiu
a capa de chuva
porque chovia
E saiu
debaixo de chuva
Sem uma palavra
Sem me olhar
Quanto a mim pus
a cabeça entre as mãos
E chorei.




(Ilustração: William Bougeureau - pain of love)

quarta-feira, 25 de julho de 2012

DA ORIGEM DA RELIGIÃO, de Friedrich Nietzsche






— Da mesma maneira que o homem vulgar imagina ainda hoje que a cólera é a causa de seu arrebatamento; o espírito, a causa do pensamento; a alma, a causa do sentimento; em suma, da mesma forma que se admite ainda, inconsideradamente, inúmeras entidades psicológicas como causas — igualmente, ainda na mais ingênua escala social, o homem interpreta os fenômenos com a ajuda de entidades psicológicas personalizadas. Os estados de alma que lhe pareciam estranhos, arrebatadores, apaixonantes, considerava-os obsessões, encantamentos provocados pelo poder de alguém. (É assim que o cristão, hoje, a mais ingênua e atrasada categoria humana, condiciona a esperança, a tranquilidade, o sentimento de “redenção”, a uma inspiração psicológica de Deus. Por ser o tipo essencialmente sofredor e inquieto, a quietude, a felicidade, a resignação parecem-lhe como algo de estranho que necessita uma explicação.) Entre as raças de grande vitalidade, inteligentes e fortes, é o epiléptico que desperta mais comumente a convicção de que existe a intervenção de uma potência estranha; mas toda espécie de sujeição da mesma ordem, por exemplo: o constrangimento que se nota no entusiasta, no poeta, no grande criminoso, nas paixões como o amor e o ódio, arrasta à invenção de potência extra-humanas. Concretizam o estado de alma em uma única pessoa, e pretendem que, quando se nos manifesta, é por influência dessa pessoa. Em outras palavras: na formação psicológica de Deus, um estado, para ser o efeito de alguma coisa, é personificado.

Contudo a lógica psicológica diz assim: o sentimento de potência, quando subitamente se apossa do homem e o subjuga — é o caso de todas as grandes paixões — desperta certa dúvida quanto à capacidade da pessoa: o homem não ousa imaginar que é a causa desse sentimento — imagina uma personalidade mais forte, uma divindade que o substitui.

A origem da religião encontra-se, portanto, nos extremos sentimentos de potência que surpreendem o homem por seu caráter estranho; e, semelhante ao doente que ao sentir estranhos torpores em um de seus membros daí concluísse que sobre ele outro homem estivesse deitado, o ingênuo homo religiosus se dissocia em diversas pessoas. A religião é um caso de “alteração da personalidade”, espécie de sentimento de terror e de medo diante de si mesmo... Mas, ao mesmo tempo, extraordinária sensação de felicidade e de superioridade. Nos doentes, a impressão da saúde basta para que creiam em Deus, na influência de Deus.

Os estados de potência inspiram no homem a sensação de que ele é independente da causa, que é irresponsável: sobrevêm sem serem desejados, logo não somos os autores... A vontade não libertada (isto é, a consciência de uma mutação em nós, sem que a quiséssemos) exige urna vontade estranha.

O homem não ousou atribuir a si mesmo todos os momentos surpreendentes e fortes de sua vida, imaginou que esses momentos eram “passivos”, que os “sofria”, e a eles estava “subjugado”... A religião é um produto da dúvida quanto à unidade do indivíduo, uma alteração da personalidade... A proporção que tudo quanto é grande e forte foi sendo considerado sobre-humano e estranho pelo homem, este foi se amesquinhando e separou as duas faces em duas esferas absolutamente diferentes, uma desprezível e fraca, outra forte e surpreendente, chamando à primeira “homem”, à segunda, “Deus”.

E portou-se assim quase sempre; no período da idiossincrasia moral, não considerou como “desejadas”, como “obra do indivíduo”, suas sublimes condições morais. O cristão também substitui sua pessoa em duas ficções, uma mesquinha e fraca, a que chama homem, outra sobrenatural, a que chama Deus (Salvador, Redentor)... A religião amesquinhou o conceito “homem”; sua extrema conclusão é que tudo quanto é bom, grande, verdadeiro, permanece sobre-humano e só nos é dado pela graça...



(Vontade de Potência)


(Ilustração: Zurbarán - são Francisco ajoelhado)



domingo, 22 de julho de 2012

FEAR / MEDO, de Raymond Carver








Fear of seeing a police car pull into the drive.
Fear of falling asleep at night.
Fear of not falling asleep.
Fear of the past rising up.
Fear of the present taking flight.
Fear of the telephone that rings in the dead of night.
Fear of electrical storms.
Fear of the cleaning woman who has a spot on her cheek!
Fear of dogs I've been told won't bite.
Fear of anxiety!
Fear of having to identify the body of a dead friend.
Fear of running out of money.
Fear of having too much, though people will not believe this.
Fear of psychological profiles.
Fear of being late and fear of arriving before anyone else.
Fear of my children's handwriting on envelopes.
Fear they'll die before I do, and I'll feel guilty.
Fear of having to live with my mother in her old age, and mine.
Fear of confusion.
Fear this day will end on an unhappy note.
Fear of waking up to find you gone.
Fear of not loving and fear of not loving enough.
Fear that what I love will prove lethal to those I love.
Fear of death.
Fear of living too long.
Fear of death.
             I've said that.




Tradução de Cide Piquet:




Medo de ver a polícia estacionar à minha porta.
Medo de dormir à noite.
Medo de não dormir.
Medo de que o passado desperte.
Medo de que o presente alce voo.
Medo do telefone que toca no silêncio da noite.
Medo de tempestades elétricas.
Medo da faxineira que tem uma pinta no queixo!
Medo de cães que supostamente não mordem.
Medo da ansiedade!
Medo de ter que identificar o corpo de um amigo morto.
Medo de ficar sem dinheiro.
Medo de ter demais, mesmo que ninguém vá acreditar nisso.
Medo de perfis psicológicos.
Medo de me atrasar e medo de ser o primeiro a chegar.
Medo de ver a letra dos meus filhos em envelopes.
Medo de que eles morram antes de mim, e que eu me sinta
[ culpado.
Medo de ter que morar com a minha mãe em sua velhice,
[ e na minha.
Medo da confusão.
Medo de que este dia termine com uma nota infeliz.
Medo de acordar e ver que você partiu.
Medo de não amar e medo de não amar o bastante.
Medo de que o que amo se prove letal para aqueles que amo.
Medo da morte.
Medo de viver demais.
Medo da morte.
          Já disse isso.




(Ilustração: escultura de Antoine Bourdelle - centaure mourant)





quinta-feira, 19 de julho de 2012

LONGHI E O REALISMO SEDUTOR DE CARAVAGGIO, de Lorenzo Mammì








Como artista da dimensão que tem hoje, Caravaggio foi uma descoberta do século 20. Mais exatamente, uma descoberta de Roberto Longhi, que ao pintor dedicou textos e exposições durante a vida inteira, desde a tese universitária de 1911 até a versão definitiva da monografia que aqui se publica, de 1968, dois anos antes de sua morte. Antes de Longhi, apesar da enorme difusão da escola "caravagesca" no começo dos Seiscentos e de sua influência sobre artistas do calibre de Velázquez, Zurbarán, Rembrandt ou La Tour, Caravaggio sempre fora um artista problema para teóricos e historiadores, difícil de encaixar numa linha evolutiva da arte ou num contexto histórico e ideológico determinado. 

A literatura artística de linhagem clássica costumava reconhecer em Caravaggio, sim, uma inegável eficácia e uma extraordinária habilidade na reprodução do real, mas não a imaginação e a capacidade de composição que se demandava a um grande artista. Revalorizações de meados do século 19, filtradas ou pelo realismo de Courbet ou pelo mito ultrarromântico do "pintor assassino", não chegaram a reverter esse julgamento. Na passagem para o século 20, nem a escola crítica da visibilidade pura, nem os movimentos artísticos mais avançados, em sua orgulhosa reivindicação da autonomia da arte, sabiam muito bem o que fazer com um pintor tão obcecado com a reprodução fiel da realidade. É nesse momento que o jovem Longhi assume Caravaggio como o desafio sobre o qual moldaria, em grande parte, sua postura de crítico militante e historiador.


Hoje é difícil focar a postura de Longhi como crítico e historiador da arte, porque a literatura artística tomou outros rumos. Mas seu grande interesse está justamente no que tem de inatual. Cresceu num período de reação ao positivismo, liderada, na Itália, pelo filósofo neo-hegeliano Benedetto Croce. Contra a pretensa objetividade de uma "ciência da arte", Croce reafirmava o caráter valorativo da história e da crítica (já dizia, antecipando muito o debate atual, que a afirmação "Há uma obra de arte" é um julgamento de valor, não uma observação objetiva); e negava que classificações abstratas (por exemplo, os gêneros) ou demasiado concretas (as técnicas) pudessem servir como grade de referência para a avaliação da obra. Aliás, ia além: a própria distinção entre as artes não seria essencial. Toda arte é expressão, toda expressão é linguagem; toda arte, portanto, no que tem de essencial, é poesia (Estética como Ciência da Expressão e Linguística geral, 1901). Croce chegava assim a uma definição universal da obra de arte como intuição que se torna imagem, ou melhor, que já é imediatamente imagem. E por intuição entendia uma forma de pensamento ("lírico", porque nele conhecimento e sentimento se identificam) distinto tanto do conhecimento racional, quanto da razão prática ou moral. A intuição artística, para ele, não é nem moral, nem cognitiva, nem meramente formal (neste último caso permaneceria no plano da percepção sensível), mas gera desdobramentos formais, morais e cognitivos que influenciam a sociedade como um todo, inclusive outras obras. Nesse sentido, certamente, é um fato histórico, mas não pode ser deduzida, no que tem de essencial, das condições históricas em que surge, como um efeito de uma causa. 

A intuição artística, diz Croce, é "auroral"; de resto, todo "fato histórico" é construção do pensamento, não mero dado objetivo. A função de críticos ou historiadores, então, seria a de identificar a intuição essencial que confere unidade estrutural à obra e destrinchar qual fato histórico ali se inaugura. Pesquisas sobre questões presentes na obra, mas não diretamente relacionadas com seu valor essencial (por exemplo, a filosofia de Dante ou a técnica de Tiziano), podem ser importantes culturalmente, mas não são, como tais, crítica ou história da arte. 

Longhi sempre reconheceu sua dívida com Croce, mas foi, desde a juventude, um croceano rebelde e inconformado. Em um de seus primeiros ensaios publicados, Renascimento Fantástico (1912), já vai ao ataque: Croce tem razão ao unificar as artes sob o conceito da intuição lírica, mas erra ao reduzir a experiência plástica à poética. Dizer - é o exemplo que escolhe - que a última produção de Michelangelo é expressão do conflito entre o ideal cultural clássico e uma nova postura ética ainda significa considerá-la a partir de conteúdos que poderiam ser igualmente ou melhor expressos em literatura. Na obra de arte plástica não há "conteúdo": ela é o que se vê. Por isso ela não é histórica, no sentido que a poesia o é. 

Naturalmente, é possível e necessário estabelecer genealogias, investigar de onde vem e para onde vai uma determinada solução formal. O valor de cada obra não é absoluto, é um valor de relação: relação, porém, não com os "conteúdos" da cultura da época, mas com outras obras de arte, e não necessariamente da mesma época. Qualquer generalização conceitual, nesse contexto, é indevida. Isso não significa, como veremos, que a arte se reduza a mero jogo formal.

Dentro da filosofia croceana, Longhi tentava assim escavar espaço para uma análise visual autônoma, em grande parte inspirada na escola da visibilidade pura (Hildebrand, Riegl, Wöllflin) que então estava começando a penetrar na Itália. Mas como não queria apelar a categorias gerais (os "conceitos fundamentais" de Wöllflin) nem a princípios como "espírito do tempo" ou o "espírito do povo", que afinal remeteriam a universalidades suspeitas; e como a objetividade da psicologia da forma lhe era ainda mais estranha; e como, finalmente, defendia, tal bom croceano, que o julgamento valorativo fosse critério da reconstrução histórica, e não vice-versa; o que restava de substancial ao crítico, afinal, era a presença física do objeto, perante o qual, como connaisseur, formula seu julgamento estético aqui e agora, aquém, ou além, de toda contextualização.



(OESP/ 8 de março de 2012)



(Ilustração: Caravaggio - Emmaus)






segunda-feira, 16 de julho de 2012

TO BE OR NOT TO BE / SER OU NÃO SER, de William Shakespeare






To be, or not to be, that is the question:
Whether 'tis Nobler in the mind to suffer
The Slings and Arrows of outrageous Fortune,
Or to take Arms against a Sea of troubles,
And by opposing end them: to die, to sleep
No more; and by a sleep, to say we end
The heart-ache, and the thousand Natural shocks
That Flesh is heir to? 'Tis a consummation
Devoutly to be wished. To die to sleep,
To sleep, perchance to Dream; Ay, there's the rub,
For in that sleep of death, what dreams may come,
When we have shuffled off this mortal coil,
Must give us pause. There's the respect
That makes Calamity of so long life:
For who would bear the Whips and Scorns of time,
The Oppressor's wrong, the proud man's Contumely,
The pangs of despised Love, the Law’s delay,
The insolence of Office, and the Spurns
That patient merit of the unworthy takes,
When he himself might his Quietus make
With a bare Bodkin? Who would Fardels bear,
To grunt and sweat under a weary life,
But that the dread of something after death,
The undiscovered Country, from whose bourn
No Traveller returns, Puzzles the will,
And makes us rather bear those ills we have,
Than fly to others that we know not of.





Tradução de Machado de Assis:




Ser ou não ser, eis a questão. Acaso
é mais nobre a cerviz curvar aos golpes
Da ultrajosa fortuna, ou já lutando
Extenso mar vencer de acerbos males?
Morrer, dormir, não mais. É um sono apenas,
Que as angústias extingue e à carne a herança
Da nossa dor eternamente acaba,
Sim, cabe ao homem suspirar por ele.
Morrer, dormir. Dormir? Sonhar, quem sabe?
Ai, eis a dúvida. Ao perpétuo sono,
Quando o lôdo mortal despido houvermos,
Que sonhos hão de vir? Pesá-lo cumpre.
Essa a razão que os lutuosos dias
Alongo do infortúnio. Quem do tempo
Sofrer quisera ultrajes e castigos,
Injúrias da opressão, baldões do orgulho,
Do mal prezado amor choradas mágoas,
Das leis a inércia, dos mandões a afronta,
E o vão desdém que de rasteiras almas
O paciente mérito recebe,
Quem, se na ponta da despida lâmina
Lhe acenara o descanso? Quem ao peso
De uma vida de enfados e misérias
Quereria gemer, se não sentira
Terror de alguma não sabida coisa
Que aguarda o homem para lá da morte,
Esse eterno país misterioso
Donde um viajor sequer há regressado?
Este só pensamento enleia o homem;
Este nos leva a suportar as dores
Caminho aos males que o futuro esconde;
E a todos acovarda a consciência.
Assim da reflexão à luz mortiça
A viva cor da decisão desmaia;
E o firme, essencial cometimento,
Que esta idéia abalou, desvia o curso,
Perde-se, até de ação perder o nome.





(Ilustração:Francisco Hayez - Carlota Chabert venere com due colombe)





sexta-feira, 13 de julho de 2012

AMIZADE A CONTA-GOTAS, de Sherry Turkle







Vivemos num universo tecnológico no qual estamos sempre nos comunicando. Mas parece que estamos sacrificando a conversa plena em nome de uma mera conexão.

Em casa, as famílias se sentam juntas e ao mesmo tempo mandam mensagens de texto e leem e-mails. No trabalho, executivos trocam SMS no meio das reuniões. Enviamos mensagens (além de fazer compras e atualizar o Facebook) durante as aulas e até encontros românticos. Meus alunos me contaram sobre uma nova habilidade: olhar nos olhos da pessoa enquanto digitamos uma mensagem no celular para outra; é difícil, mas não impossível.

Nos últimos 15 anos, estudei tecnologias móveis e conversei com centenas de pessoas sobre suas vidas plugadas. Aprendi que os pequenos aparelhos que carregamos são tão poderosos a ponto de mudarem não apenas o que fazemos, mas quem somos.

Nós nos acostumamos a uma nova situação: estar “juntos sozinhos”. Munidos da tecnologia, podemos estar em contato com qualquer um, em qualquer lugar, conectados ao ambiente que desejarmos. Queremos personalizar nossas vidas. Queremos entrar e sair de onde quer que estejamos. E com isso, nos acostumamos a estar em uma tribo de uma pessoa só, leais ao nosso próprio partido.

Colegas de trabalho querem participar das reuniões, mas só prestam atenção no que lhes interessa. Para alguns, é uma boa ideia, mas é possível que acabemos nos escondendo, mesmo constantemente conectados.

Um empresário lamenta que não tem mais colegas no trabalho. Ele não faz pausas para conversas casuais. Diz que não quer interromper. Todos estão “ocupados demais respondendo e-mails”, diz. Mas ele se corrige. “Não é verdade. Sou eu que não quero ser interrompido. Acho que eu deveria fazer diferente, mas prefiro resolver as coisas pelo BlackBerry.”

Um adolescente de 16 anos que recorre às mensagens de texto para praticamente tudo diz, com certa melancolia: “Um dia, algum dia, gostaria de aprender a manter uma conversa de verdade – mas não hoje”.

No ambiente de trabalho contemporâneo, jovens que cresceram com medo de conversar chegam para trabalhar usando fones de ouvido. Ao passear pela biblioteca de uma universidade ou pelo escritório de uma empresa de tecnologia, vemos a mesma cena: estamos juntos, mas cada um ocupa sua bolha, digitando furiosamente em teclados e telas sensíveis.

Um sócio sênior de um escritório de advocacia de Boston (EUA) descreve a situação no seu trabalho. Jovens advogados depositam seu arsenal tecnológico sobre a mesa: laptops, iPods e numerosos celulares. E então eles põem os fones nos ouvidos. “Fones imensos, como os de pilotos. Eles transformam suas mesas em cabines de avião.” Assim, o escritório fica em silêncio, uma calma que não é quebrada.

No silêncio da conexão, as pessoas se confortam com a ideia de estar em contato com um grande número de pessoas – cuidadosamente mantidas à distância. Mas não é possível ter uma relação boa se usarmos a tecnologia para nos manter separados por distâncias controladas: nem perto demais, nem longe demais, no ponto certo.

Mensagens de texto, e-mails e atualizações de status permitem que mostremos o “eu” que desejamos ser. Isto significa que podemos editar. E, se quisermos, podemos deletar. Ou retocar: a voz, a carne, o rosto, o corpo. Nem muito, nem pouco – na medida certa.

Os relacionamentos humanos são ricos, caóticos e exigem muito de nós. Com a tecnologia, adquirimos o hábito de organizá-los melhor. E a mudança da conversa para a simples conexão faz parte deste fenômeno. Mas, neste processo, estamos nos enganando. Pior ainda, parece que, com o tempo, paramos de nos importar, esquecendo que há uma diferença entre as duas formas de relacionamento.

Somos tentados a pensar que nossas pequenas “gotas” de conexão online equivalem a um grande gole de conversa. Mas não é verdade. E-mail, Twitter, Facebook, todos têm seu lugar – na política, no comércio, no romance e na amizade. Mas, por mais valiosos, não devem ser considerados substitutos de uma conversa.

Conectar-se em pequenas gotas funciona quando precisamos de informações específicas, ou para dizer “Estou pensando em você”. Ou até para dizer “Eu te amo”. Mas conectar-se em pequenas gotas não dá tão certo quando queremos conhecer e compreender um ao outro. Nas conversas, damos atenção ao próximo. Podemos reparar no tom de voz, nas nuances. Somos levados a ver as coisas do ponto de vista de uma outra pessoa.

As conversas cara a cara se desenrolam lentamente. Elas nos ensinam a paciência. Quando nos comunicamos por nossos aparelhos, desenvolvemos hábitos diferentes. Conforme aumentamos o volume e a velocidade das conexões online, começamos a exigir respostas mais rápidas. Para obtê-las, fazemos perguntas mais simples; reduzimos a sofisticação da comunicação, mesmo sobre temas importantes. Shakespeare diria: “Somos consumidos por aquilo que nos alimentou”.

Usamos as conversas para aprender a conversar com nós mesmos. Assim, nossa fuga delas pode diminuir a autorreflexão. Hoje em dia, as mídias sociais perguntam constantemente “No que você está pensando?”, mas temos pouca motivação para dizer algo que seja de fato fruto de uma reflexão pessoal. Refletir sobre nós mesmos exige confiança. 

Quando temos 3 mil amigos no Facebook, é difícil ter uma relação além do simples “conectar-se”aos outros.

Conforme nos acostumamos a esta conversa mais superficial, nos mostramos quase dispostos a dispensar as pessoas completamente. Pesquisadores pensam que, no futuro, programas de computador farão o papel de psiquiatras. Um aluno do ensino médio me confessou que preferiria conversar sobre garotas com uma inteligência artificial do que com o próprio pai. Ele diz que a I.A. teria mais informações. De fato, muitas pessoas me dizem esperar que a Siri, assistente digital do iPhone 4S, se torne cada vez mais uma melhor amiga: alguém que possa escutar quando ninguém mais se dispõe.

Durante os anos que dediquei à pesquisa do relacionamento das pessoas com a tecnologia, ouvi com frequência desabafos como “ninguém me dá ouvidos”. Acredito que este sentimento ajude a explicar por que desejamos tanto uma página no Facebook e uma conta no Twitter – elas nos proporcionam um grande número de ouvintes automaticamente. E também explica por que tantas pessoas se dispõem a conversar com máquinas que simulam o contato humano. Pesquisadores de todo o mundo têm inventado robôs sociáveis, projetados para fazer companhia a idosos, crianças, e todos nós.

Uma das experiências mais assombrosas da minha pesquisa aconteceu quando comprei um desses robôs, em forma de filhote de foca, para uma instituição que cuidava de idosos, e uma senhora começou a conversar com ele sobre a perda do seu filho. O robô parecia olhar nos olhos dela. Parecia acompanhar a conversa. Ela se sentiu confortada.

Muitas pessoas consideraram isto incrível. Este entusiasmo revela até que ponto confundimos conversa e conexão, e o quanto adotamos coletivamente um novo tipo de delírio em que aceitamos a simulação da compaixão como substituto. Que motivo teríamos para conversar sobre amores e perdas com uma máquina sem quaisquer vivências no leque de possibilidades da vida?

Esperamos mais da tecnologia e menos um do outro, e parecemos cada vez mais atraídos pelas tecnologias que proporcionem a ilusão de companhia sem as exigências do relacionamento. Dispositivos que estão sempre conectados e sempre conosco induzem a crer em três fantasias poderosas: a ideia de que sempre seremos ouvidos; que podemos concentrar nossa atenção no que bem entender; e que nunca teremos de ficar sozinhos. De fato, nossos dispositivos transformaram o “estar sozinho” num problema que pode ser solucionado.

Quando as pessoas ficam sozinhas, ainda que por instantes, logo procuram um aparelho no bolso. Neste caso o nosso impulso constante (quase um reflexo) molda uma nova maneira de ser.

Pense nisto como “Compartilho, logo existo”. Usamos a tecnologia para definir a nós mesmos com os pensamentos e sentimentos que compartilhamos exatamente na hora que os vivenciamos. Costumávamos pensar “Sinto alguma coisa; quero ligar para alguém”. Agora, nosso impulso é “Quero sentir alguma coisa; preciso enviar um texto”.

Assim, para sentir mais, e nos sentirmos mais donos da própria personalidade, nós nos conectamos. Mas, em nossa busca apressada pela conexão, fugimos da solidão, da nossa capacidade de nos separar da multidão e organizar o próprio indivíduo. Sem capacidade de suportar a solidão, nos voltamos para outras pessoas, sem no entanto vivenciá-las como realmente são. É como se as usássemos, como se precisássemos delas como peças capazes de sustentar nosso ser, cada vez mais frágil.

Achamos que a conexão constante nos fará menos sozinhos. Mas o contrário é verdadeiro. Se não formos capazes de ficar sozinhos, é muito maior a probabilidade de nos sentirmos solitários. Se não ensinarmos nossos filhos a ficar sozinhos, eles não aprenderão a suportar a solidão.

Sou uma defensora da conversa. Para abrir mais espaço para ela, considero necessários alguns passos fundamentais. Em casa, podemos criar espaços sagrados: a cozinha, a sala de jantar. Podemos transformar nossos carros em “zonas de exclusão”. Podemos mostrar o valor da conversa aos filhos. E fazer o mesmo no trabalho. No ambiente profissional, estamos sempre tão ocupados nos comunicando que falta tempo para conversar sobre o que realmente importa.

Hoje há as sextas-feiras casuais; talvez os administradores devam pensar em criar as quintas-feiras de conversa. Acima de tudo, precisamos lembrar – entre mensagens de textos, e-mails e atualizações do Facebook – de ouvir uns aos outros. É nos momentos sem edição, nos momentos em que hesitamos, quando gaguejamos e ficamos em silêncio, que revelamos nosso “eu” aos outros.

Eu costumava passar os verões num chalé na baía de Cape Cod, perto de Boston, e, durante décadas, caminhei pelas mesmas dunas que Thoreau um dia percorreu. Não faz muito tempo, as pessoas costumavam caminhar com a cabeça erguida, olhando para a água, para o céu, para a areia e umas para as outras, conversando. Agora, com frequência caminham olhando para baixo, digitando. Mesmo quando estão acompanhadas de amigos, namorados, crianças, todos estão mexendo nos seus dispositivos.

Então, recomendo que ergamos o rosto, que olhemos uns para os outros e comecemos a conversar.



(OESP, 20/5/2012 - tradução de Augusto Calil)



(Ilustração: Ada Breedveld)








terça-feira, 10 de julho de 2012

ARIEL / ARIEL, de Sylvia Plath






Stasis in darkness.
Then the substanceless blue
Pour of tor and distances.

God's lioness,

How one we grow,
Pivot of heels and knees! -- The furrow

Splits and passes, sister to

The brown arc
Of the neck I cannot catch,

Nigger-eye

Berries cast dark
Hooks ----

Black sweet blood mouthfuls,

Shadows.
Something else

Hauls me through air ----

Thighs, hair;
Flakes from my heels.

White

Godiva, I unpeel ----
Dead hands, dead stringencies.

And now I

Foam to wheat, a glitter of seas.
The child's cry

Melts in the wall.

And I
Am the arrow,

The dew that flies,

Suicidal, at one with the drive
Into the red

Eye, the cauldron of morning.



Tradução de Rodrigo G. Lopes e  Maurício A. Mendonça:



 Êxtase no escuro, 

 E um fluir azul sem substância 
 De penhasco e distâncias. 

 Leoa de Deus, 

 Nos tornamos uma, 
 Eixo de calcanhares e joelhos! – O sulco 

 Fende e passa, irmã do 

 Arco castanho 
 Do pescoço que não posso abraçar, 

 Olhinegra 

 Bagas cospem escuras 
 Iscas – 

 Goles de sangue negro e doce, 

 Sombras. 
 Algo mais 

 Me arrasta pelos ares – 

 Coxas, pelos; 
 Escamas de meus calcanhares. 

 Godiva 

 Branca, me descasco – 
 Mãos secas, secas asperezas. 

 E agora 

 Espumo com o trigo, reflexo de mares. 
 O grito da criança 

 Escorre pelo muro 

 E eu 
 Sou flecha,  

 Orvalho que avança, 

 Suicida, e de uma vez se lança 
 Contra o olho 
 Vermelho, fornalha da manhã. 


Ter coragem de acabar

quando se quer, é privilégio
daqueles que viveram tão
intensamente que mais nada
os pode afetar.



(Poemas)


(Ilustração: Alyssa Monks - glass)

sábado, 7 de julho de 2012

KID FOGUETE NO MATADOURO, de Charles Bukowski






me vi de novo na lona e desta vez nervoso demais de tanto tomar vinho; o olhar desvairado, caindo de fraqueza, tão deprimido que nem podia pensar em recorrer ao quebra-galho de sempre, à minha pausa para recalibrar, topando qualquer serviço em departamento de expedição ou almoxarifado. por isso resolvi ir ao matadouro.

entrei no escritório.

não te conheço? perguntou o cara.

que eu saiba não, menti.

já tinha estado lá duas ou três vezes, preenchendo toda aquela papelada, passando por exames médicos, etc. e tal. e então me levaram até uma escada, por onde descemos quatro andares, o frio cada vez pior, o chão reluzente de sangue, ladrilhos verdes e o azulejo das paredes também. explicaram o que eu tinha que fazer: consistia em apertar um botão e aí, pelo buraco aberto na parede, se escutava um barulhão semelhante ao estouro de uma boiada ou dois elefantes caindo pesadamente no chão para trepar, e lá vinha aquela enorme posta de carne morta, pingando sangue, e o cara me mostrou: você pega isso aí e joga dentro do caminhão, depois aperta de novo o botão e vem outro pedaço. e aí se afastou. quando me vi sozinho, tirei o avental, o capacete, as botas (sempre davam 3 números menor que o da gente), subi a escada e dei o fora. agora estava ali de volta, outra vez na pior.

tá me parecendo meio velho pro trabalho.

tenho que endurecer os músculos. preciso de serviço pesado, pesado à beça, menti.

acha que vai aguentar?

sou forte pra burro. já lutei como profissional. enfrentei campeões.

não diga, é mesmo?

é, sim.

hum, tem cara. pelo que vejo, te pegaram de jeito.

deixa a minha cara de lado. eu era um raio com as mãos. ainda sou. também tive que me abaixar, senão ia ficar parecendo marmelada.

eu costumo acompanhar as lutas de boxe. teu nome não me diz nada.

é que eu tinha apelido. Kid Foguete.

Kid Foguete? não me lembro de ninguém com esse nome.

lutei na América do Sul, na África, na Europa, nas ilhas. em cidades do interior. por isso é que tem todos esses espaços em branco aí na minha carteira - não gosto de escrever pugilista porque são capazes de pensar que estou brincando ou mentindo. simplesmente deixo em branco. e o resto que se dane.

tá bom. aparece amanhã de manhã às 9 pro exame médico que eu tenho um serviço pra você. quer dizer que quer um trabalho pesado?

bem, se não tiver outra coisa...

não, de momento não. sabe que você aparenta ter quase cinquenta anos? será que não estou cometendo um erro? aqui ninguém gosta de perder tempo com qualquer mocorongo que aparece.

não sou nenhum mocorongo - sou Kid Foguete.

tá legal, Kid. - deu uma risada, - vamos te botar pra TRABALHAR mesmo!

não gostei do jeito que ele disse isso.

2 dias depois passei pelo portão e entrei no galpão de madeira, onde mostrei a um velhote o crachá com o meu nome:Henry Charles Bukowski Jr., e ele me mandou procurar o Thurman no pavilhão de carga. fui até lá. tinha uma fila de sujeitos sentados num banco de madeira que me olharam como se fosse bicha ou débil mental.

encarei o grupo com ar de sereno desdém e caprichei no meu melhor estilo de boçal.

quedê o Thurman? me disseram que tenho que falar com esse cara.

um deles apontou.

Thurman?

quê?

vou trabalhar com você.

é?

é.

olhou bem para mim.

cadê as botas?

(botas?)

não tenho, respondi.

meteu a mão embaixo do banco e me entregou um par. velho e mai duro que bacalhau. calcei no pé. a mesma história de sempre: 3 números menor. me esmagava os dedos, que viraram para baixo.

depois me deu um avental sujo de sangue e o capacete. fiquei ali parado enquanto ele acendia um cigarro. jogou o fósforo longe com calma digna de macho.

vem cá.

eram todos negros. quando cheguei perto me olharam como se fossem Muçulmanos. tenho quase um metro e oitenta, mas não havia nenhum que fosse mais alto que eu ou 2 ou 3 vezes mais corpulento.

Charley! berrou Thurman.

Charley, pensei. Charley, que nem eu. que bom.

já estava suando por baixo do capacete.

bote ele pra TRABALHAR!

ah meu deus do céu, que fim levaram as noites suaves e tranquilas? por que isso não acontece o Walter Winchell, que acredita piamente no Sistema Americano? não fui um dos mais brilhantes alunos de antropologia? o que foi que houve?

Charley me pegou pelo braço e me levou para a frente de um caminhão vazio, do tamanho da metade de um quarteirão, que estava parado na plataforma.

fica esperando aqui.

aí então um bando de negros Muçulmanos veio correndo com carrinhos de mão pintados com uma tinta branca pastosa e grudenta, como se tivesse sido misturada com merda de galinha, cada carrinho trazendo um montão de pernas de porco boiando no meio de um sangue ralo e aguado. não, não boiavam no meio do sangue. estavam mergulhadas nele, que nem chumbo, feito balas de canhão, que nem mortas.

um dos negros saltou para dentro do caminhão atrás de mim e outro começou a me atirar as pernas de porco, que eu pegava e jogava para o cara parado às minhas costas, que se virava e lançava para a parte traseira do caminhão. as pernas vinham rápidas RÁPIDAS, eram pesadas e foram ficando cada vez mais. mal pegava uma e e me virava, e já vinha outra a caminho, pelo ar. sabia que estavam dispostos a liquidar com o meu couro. não demorou muito comecei a suar, a suar, feito água jorrando de torneira aberta com toda a força, e a sentir dores nas costas, nos pulsos, nos braços. me doía tudo, e os joelhos, no limite da resistência possível, já baqueavam de tanto tentar manter o equilíbrio. nem conseguia enxergar direito, fazendo um esforço tremendo para apanhar mais uma perna e atirar, mais uma perna e atirar. todo salpicado de sangue e aparando com as mãos aquele PLOFT macio, morto e pesado, a carne cedendo feito nádegas de mulher ao contato dos dedos, e eu fraco demais para poder abrir a boca e reclamar, ei caras que bicho mordeu vocês, PORRA? as pernas de porco continuavam vindo e eu a girar, pregado no chão, que nem um crucificado de capacete, e não acabavam mais de chegar, carrinhos e mais carrinhos, cheios de pernas e e mais pernas de porco, até que afinal ficaram todos vazios, e eu ali parado, zonzo, o corpo oscilante, respirando o fulgor amarelado das lâmpadas elétricas. uma verdadeira noite no inferno. ué, por que estou me queixando? sempre gostei de trabalho noturno.

venha!

me levaram pra outro lugar. lá em cima, dependurado no ar, através de uma vasta abertura no alto da parede distante, a metade de um novilho, ou talvez até fosse um inteiro, sim, pensando bem, eram novilhos inteiros, com todas quatro patas, e um deles veio saindo pelo buraco, preso a um gancho, tinha acabado de ser morto, e parou exatamente em cima de mim. ficou ali imóvel, bem na minha cabeça, suspenso por aquele gancho.

acabou de ser morto, pensei, mataram essa joça. como poderiam diferenciar um homem de um novilho? como é que iriam saber que não sou um novilho?

TÁ BOM - SACODE ELE!

sacudir ele?

isso mesmo - DANÇA COM ELE!

quê?

ah pelo amor de deus! GEORGE, vem cá!

George se colocou embaixo do novilho morto. agarrou a carcaça. UM. vacilou para a frente. DOIS. vacilou para trás. TRÊS. tomou impulso e saiu correndo. o novilho ia quase rente ao chão. alguém apertou um botão estava tudo pronto. tudo pronto para os açougues do mundo. tudo pronto para as donas de casa fofoqueiras, rabugentas, bem descansadas e burras, espalhadas por todo este planeta, às 2 da tarde, com batas caseiras, tragando cigarros sujos de batom e não sentindo praticamente nada. me colocaram embaixo do novilho seguinte.

UM.

DOIS.

TRÊS.

já estava com ele. aqueles ossos inertes contra os meus vivos, aquela carne morta contra a minha palpitante, e o osso e o peso superpostos, pensei em óperas de Wagner, em cerveja gelada, na buceta provocante sentada num sofá na minha frente, com as pernas cruzadas e eu segurando o copo de bebida na mão e, aos poucos e com firmeza, falando e abrindo caminho para penetrar na mentalidade insensível daquele corpo, e aí Charley berrou PENDURA NO CAMINHÃO!

tomei a direção indicada. com medo do fracasso inculcado em mim quando criança no pátio de recreio das escolas americanas, sabia que não podia deixar o novilho cair no chão porque provaria que, em vez de ser homem, era um covarde e portanto só digno de escárnio, risadas e surras. na América a gente tem que ser vitorioso, não há escapatória, e é preciso aprender a lutar por ninharias, sem discutir, e de mais a mais, caso deixasse cair o novilho, era bem capaz de ter que levantá-lo sozinho. além disso, ele ficaria todo sujo. e não quero que fique, ou melhor - eles é que não querem que se suje.

levei-o para caminhão.

PENDURA!

o gancho que pendia do teto era liso como um polegar sem unha. deixava-se escorregar a parte traseira para trás e procurava-se a ponta superior, tateando à procura do gancho, ficando uma, duas , três vezes, e não havia jeito do desgraçado furar a carne. FILHA DA MÃE!!! era pura cartilagem e gordura, resistente e e duro como uma pedra.

ANDA DE UMA VEZ! VAMOS LOGO COM ISSO!

empreguei minhas últimas forças e consegui enfiar o gancho. foi uma visão maravilhosa, um verdadeiro milagre, aquele gancho cravado na carne, aquele novilho dependurado ali por si mesmo, completamente - enfim! longe do meu ombro, exposto às batas caseiras e às fofocas de açougue.

SAI DA FRENTE!

um negro de 150 quilos, insolente, brusco, frio, homicida, entrou, pendurou com estrépito a carne que trazia, e olhou lá de cima para mim.

aqui a gente fica na fila!

tá legal, campeão.

saí andando na frente dele. já tinha outro novilho à minha espera. cada vez que carregava um, ficava certo de que era o último que daria para aguentar, mas continuava dizendo

mais um

só mais um

aí eu paro.

fodam-

se.

estavam esperando que desistisse, dava para notar nos olhares, nos sorrisos, quando pensavam que não estava vendo. não queria dar o braço a torcer. fui buscar outro novilho. o lutador, na última investida do pugilista famoso liquidado, foi buscar a carne.

passaram-se 2 horas e aí alguém berrou PAUSA.

tinha conseguido. um descanso de dez minutos, um pouco de café e nunca que iam me fazer desistir. saí andando atrás deles em direção a uma carrocinha de lanches que havia se aproximado. dava para enxergar a fumaça do café se levantando na noite; as rosquinhas, cigarros, os bolos e sanduíches, sob lâmpadas acesas.

EI, VOCÊ AÍ!

era Charley. Charley que nem eu.

que é, Charley?

antes de descansar, pega esse caminhão aí, tira ele daqui e leva pro pavilhão 18.

era o caminhão que tínhamos acabado de carregar, o de meio quarteirão de comprimento. o pavilhão 18 ficava do outro lado do pátio.

consegui abrir a porta e subi para a cabine. tinha um assento de couro macio e tão confortável que logo vi que teria que lutar para não pegar no sono. não era motorista de caminhão. baixei os olhos e deparei com meia dúzia de caixas de mudanças, freios, pedais e se lá mai o quê. girei a chave de dei um jeito de ligar o motor. manobrei pedais e mudanças até que o caminhão começou a andar e saí dirigindo pelo pátio afora até chegar no pavilhão 18, tempo todo pensando - quando voltar, a carrocinha de lanches já foi embora. para mim isso significava uma tragédia, um verdadeira calamidade. estacionei o caminhão, desliguei o motor e fiquei ali sentado um instante, aproveitando o conforto macio daquele assento de couro. depois abri a porta e saltei. errei o degrau ou seja lá o que for que deveria estar ali e caí no chão com aquela porra de avental e merda de capacete, feito um homem que levou um tiro. não doeu nada, nem deu pra sentir. me levantei ainda a tempo de ver a carrocinha de lanches saindo pelo portão e desaparecendo na rua. o grupo todo já estava voltando para a plataforma, dando risadas e acendendo cigarros.

tirei as botas, o avental e o capacete e fui até o galpão de madeira na entrada do pátio. joguei tudo em cima do balcão. o velhote olhou para mim.

quê? vai largar um emprego BOM desses? 

diz pra eles me mandarem o cheque de 2 horas de trabalho pelo correio ou então enfiar ele no cu, pouco tou ligando, porra!

saí. atravessei a rua, entrei num bar mexicano, tomei cerveja, depois peguei o ônibus. tinha sido novamente derrotado pelo pátio de recreio das escolas americanas.




(Crônica de um amor louco, tradução de Milton Persson)





(Ilustração: Giger - Wallz Baphomet)