domingo, 5 de janeiro de 2025

THE SECRET IN THE CAT / O SEGREDO NO GATO, de May Swenson





I took my cat apart

to see what made him purr.

Like an electric clock

or like the snore



of a warming kettle,

something fizzed and sizzled in him.

Was he a soft car,

the engine bubbling sound?



Was there a wire beneath his fur,

or humming throttle?

I undid his throat.

Within was no stir.



I opened his chest

as though it were a door:

no whisk or rattle there.

I lifted off his skull:



no hiss or murmur.

I halved his little belly

but found no gear,

no cause for static.



So I replaced his lid,

laced his little gut.

His heart into his vest I slid

and buttoned up his throat.



His tail rose to a rod

and beckoned to the air.

Some voltage made him vibrate

warmer than before.



Whiskers and a tail:

perhaps they caught

some radar code

emitted as a pip, a dot-and-dash



of woolen sound.

My cat a kind of tuning fork? –

amplifier? – telegraph? –

doing secret signal work?



His eyes elliptic tubes:

there’s a message in his stare.

I stroke him

but cannot find the dial.



Tradução de J. A. Rodrigues:



Desmontei o meu gato

para ver o que o fazia ronronar.

Como um relógio elétrico

ou como o ronco



de uma chaleira aquecida,

algo nele zumbia e chiava.

Era um carro macio,

com o som do motor a borbulhar?



Havia uma linha elétrica sob seu pelo,

ou o zumbido do acelerador?

Descerrei-lhe a garganta.

Dentro não havia agitação.



Abri o seu peito

como se uma porta fosse:

nenhum estalido ou guizo lá.

Despeguei-lhe o crânio:



sem silvos nem murmúrios.

Cortei ao meio seu pequeno ventre,

mas não topei com mecanismo algum,

nenhuma causa para a estática.



Então lhe repus a cachola,

entrancei-lhe o diminuto intestino.

Seu coração no torso eu assentei

e voltei a confinar sua garganta.



Sua cauda empinou feito um tirante,

e fez acenos ao ar.

Alguma voltagem o fez vibrar

mais aquecido do que antes.



Os bigodes e a cauda

talvez tenham capturado

algum código de radar

emitido como um sinal, um ponto e traço



de um som lanoso.

Meu gato é uma espécie de diapasão? –

amplificador? – telégrafo? –

prestando serviço de sinal secreto?



Seus olhos são tubos elípticos:

há uma mensagem em seu olhar.

Eu o acaricio,

mas não consigo dar com o sintonizador.





(100 plus american poems)



(Ilustração: Geoffrey Tristram - Luna1)

quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

O BARDO OSSIAN: UMA HISTÓRIA DE FAKE NEWS NO SÉCULO XVIII, de André Chermont de Lima

 


Entre 1760 e 1763, o jovem poeta escocês James Macpherson sacudiu o mundo literário europeu com a publicação de três coleções de fragmentos de epopeias e poemas dramáticos celtas, coletados nas Highlands e ilhas do oeste da Escócia e por ele traduzidos para o inglês. Boa parte das obras era atribuída a um bardo guerreiro da pré-cristandade conhecido como Ossian, filho do Rei Fingal da Irlanda. Seus originais derivaram tanto de manuscritos como da tradição oral, e versavam sobre o que se imagina da literatura céltica: feitos heroicos, batalhas sangrentas, traições e amores, monstros e magos, paisagens inóspitas, intempéries, sofrimentos e melancolia.

……

“Sento ao pé da fonte musgosa, no topo do morro dos ventos. Uma árvore farfalha sobre mim. Ondas escuras rolam sobre a campina. O lago, embaixo, está agitado. Os cervos descem o morro. Nenhum caçador é visto à distância […]. É meio-dia: mas tudo está silencioso. Tristes apenas são meus pensamentos.”

……

“Escuro é o outono nas montanhas; uma bruma cinzenta descansa sobre as colinas. O redemoinho é ouvido na campina. O rio corre, escuro, pela estreita planície. Uma árvore ergue-se solitária sobre a colina, e marca a cova de Connal […]. Às vezes os fantasmas dos mortos são vistos aqui, quando o caçador meditativo espreita, sozinho, pela campina. Aparece em tua armadura de luz, ó fantasma do poderoso Connal! Brilha junto à tua tumba, Crimora!, como um raio de luar saído de uma nuvem.”

….

“— Filho do nobre Fingal, Ossian,

Príncipe dos homens! Que lágrimas rolam

pelas faces do tempo? O que escurece

tua alma poderosa?

— Memória, Filho de Alpin, a memória

machuca os mais velhos. Meus pensamentos

estão noutros tempos; meus pensamentos estão

no nobre Fingal. A raça do rei regressa

à minha mente, e me machuca com a lembrança.”[1]

…..

Como todos os homens que revolucionam e transformam suas épocas, sejam eles guerreiros, políticos, filósofos ou artistas, Macpherson foi beneficiado pelo contexto histórico. O mundo, cansado do classicismo, estava sedento de um pouco de folclore, espíritos, antepassados semisselvagens. A arte queria forças indomáveis, humores pré-cristãos, espiritualidade no lugar da religião dogmática, irracionalismo no lugar do Iluminismo. É a antessala do romantismo, a década de Herder, Schlegel, do Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto), do nascimento dos nacionalismos. Se os poemas tivessem surgido vinte ou trinta anos antes, é bem possível que ninguém lhes desse a mínima importância. Mas, como escreveu Jacques Barzun, Ossian preencheu “uma necessidade não meramente emocional mas intelectual: eram solicitados novos nomes, novos cenários, novos modos de vida; o tédio tinha realizado seu trabalho de preparação para a renovação. Ossian, hoje ilegível, serviu seu propósito terapêutico até a época de Napoleão”.[2]

As traduções inglesas do gaélico escocês foram tomando a Europa de assalto. Versões em francês, alemão, espanhol, italiano, sueco e russo apareceram em ondas até o início do século seguinte, encantando algumas das melhores cabeças do continente. Bocage teria sido grande admirador, e providenciou as primeiras traduções para o português;[3] na França, Diderot “exultava”, nas palavras de Carpeaux; na Alemanha, Herder, Klopstock e sobretudo Goethe dedicaram ao celta críticas e traduções de seus próprios punhos. O outro tsunami, ainda maior, deflagrado pelos Sofrimentos do Jovem Werther (1774), ajudou a divulgar Ossian aos que ainda não o conheciam. Ao final do romance, antes da separação, Werther lê para Lotte um longo trecho do poeta, traduzido pelo próprio Goethe; a amada solta “uma torrente de lágrimas”, e ele “chora as lágrimas mais amargas”.[4] Napoleão, outro admirador, teria conversado com Goethe sobre Ossian quando ambos se encontraram, e maravilhou-se com a ópera Ossian, ou les Bardes (1804), de seu mestre-de-capela Jean-François Le Sueur. Beethoven, embora não tenha chegado a musicar seus poemas, considerava Ossian um de seus poetas favoritos, ao lado de Homero, Klopstock, Schiller e Goethe.

No século XVIII, a ausência de meios velozes de circulação manteve a sobrevivência da moda ossiânica por um bom tempo. Quando não restou mais nenhuma dúvida de que os poemas eram uma fraude, Macpherson já havia morrido.

Já o primeiro volume de traduções de Macpherson causou alguma desconfiança, porque ele sabidamente escorregava no gaélico. Samuel Johnson foi um dos primeiros a identificar traços de Homero e Milton nos textos — sem desperdiçar a oportunidade de destilar a antipatia que tinha pelos escoceses, lançando dúvidas sobre a capacidade de “selvagens que não sabem contar até cinco” de comporem vastas epopeias. Em um ambiente de nacionalismos insipientes (mas orgulhos nacionais antiquíssimos), linguistas irlandeses revoltaram-se tanto com certas imprecisões a respeito de personagens como com a alegada origem escocesa dos poemas. A polêmica, contudo, não freou – talvez tenha mesmo estimulado — a febre dos poemas ossiânicos. Apenas no início do século XIX a questão finalmente se pacificou, quando foi demonstrado que os “originais” de Ossian eram textos da própria lavra de Macpherson, compostos em gaélico desajeitado e depois traduzidos. O bardo moderno já havia morrido há alguns anos, sem nada ter confessado abertamente. Hoje sabe-se que quase tudo nas três obras publicadas entre 1760 e 1763 foi escrito por ele, com enxertos dispersos de material original — que, como veremos, existe.

É curioso como, mesmo já desmascarado o golpista, uma sucessão de compositores românticos tenha insistido em manter Ossian bem vivo. É provável que Le Sueur, cuja ópera está hoje (dizem alguns imerecidamente) bem enterrada, ainda não soubesse. O jovem Schubert, que transformou meia dúzia de poemas em canções dramáticas (uma forma um pouco diferente dos seus Lieder a que estamos hoje acostumados), pode ter apenas se interessado pelos textos. Brahms, que musicou dois deles (dentre os quais a belíssima quarta canção da série para coro feminino, trompas e harpa, op. 17) em 1860, certamente sabia da fraude. Entre autores menos célebres que homenagearam a lírica ossiânica há algumas curiosidades, como uma das poucas compositoras do sexo feminino de que se tem notícia no século XVIII, a inglesa Harriet Wainwright, ou o brasileiro Alexandre Levy, que compôs o poema sinfônico Comala em 1890. Para a música, a legitimidade da autoria parece menos importante que o potencial expressivo e a força das imagens que os textos evocam. A atmosfera dos poemas, cheia de nostalgia por tempos muito caros aos românticos, embaladas por cenários misteriosos onde a chuva, o vento e a escuridão substituem o sol e as flores, parece mais uma demonstração de que os maiores compositores de Lieder no século XIX não deram grande importância para a qualidade artística da poesia que musicavam (isso só mudou ao final do século). Basta revermos os trechos aqui replicados, literariamente infantis mas que se prestam muito bem como letras de canções.

Além disso, em uma época em que obras literárias levavam às vezes décadas para circular de um país a outro, sempre dependendo do interesse de um editor bem informado, da capacidade de recepção das críticas, da repercussão da reação dos leitores e lentidão dos tradutores, a música era capaz de atravessar fronteiras e seduzir ouvintes com rapidez bem maior. Como se viu, traduções completas de Ossian levaram às vezes décadas para aparecer, mesmo em países vizinhos. O Werther esperou quase cinco anos pela tradução inglesa e sete pela italiana.[5] Já os compositores disseminavam suas criações com muito mais eficiência no final dos mil e setecentos: Don Giovanni e a Flauta Mágica, por exemplo, começaram a ser montadas fora de suas cidades de estreia no ano seguinte. Partituras de Lieder e peças para piano, que encontravam demanda nos lares de classe média de toda a Europa, eram logo editadas e distribuídas.

Outra dimensão importante da história do pecado de Macpherson é que ele pecou apenas pela metade. Não se sabe se Ossian (ou Oisín) existiu de fato, mas foi protagonista de uma herança folclórica, oral e escrita, verdadeira e compartilhada entre irlandeses e escoceses, que narra os feitos do Fianna Éireann, ou simplesmente Fianna, um grupo de guerreiros na Irlanda do século III. A saga começou a ser posta no papel mil anos mais tarde, numa antologia conhecida como “Ciclo Feniano”. Suas muitas centenas de páginas descrevem, entre outras coisas, a luta do rei Fingal contra os invasores vikings e os feitos de seu filho, o misto de poeta e guerreiro Ossian, “o último dos heróis” e líder do Fianna após a morte do pai. Macpherson, inclusive, usou as invasões como defesa contra os acadêmicos irlandeses: segundo ele, Fingal e seus exércitos teriam ajudado os escoceses a repelir os escandinavos, razão pela qual a vitória seria integrada à memória coletiva e à tradição oral no outro lado do Mar da Irlanda. O fato de a mais célebre história do ciclo, intitulada Colloquy of the Old Men — “Colóquio dos Anciãos”,[6] datar de cerca de 1200, e suas primeiras compilações se originarem não do punho de Macpherson, mas do século XVI (embora não traduzidas), reduz a convicção sobre a autoria de Ossian a praticamente uma lenda, não muito diferente (inclusive quanto à sua antiguidade) dos evangelistas. Além disso, qual a possibilidade de que as primeiras baladas de Ossian tenham permanecido inalteradas nos mil anos ou mais que levaram para ser postas no papel? Se quisermos ser rigorosos, portanto, Macpherson construiu sua farsa sobre mero folclore — uma invenção sobre outra invenção. Não é o suficiente para absolvê-lo, mas o bastante para reduzir sua culpa.

O musicólogo Charles Rosen soube explicar como ninguém o problema da culpa e da fidelidade na arte folclórica: “O Ossian de James Macpherson é apenas o exemplo mais escandaloso [de falsificações e imitações de arte popular ou folclórica]: um valor alto atribuído à autenticidade é estímulo imediato para o falsificador. Da compilação de material folclórico autêntico à imitação e depois à falsificação não é uma série de estágios separados mas uma linha contínua, e é difícil classificar muitos dos exemplos, [como] as transcrições literais vindas da tradição oral feitas pelos irmãos Grimm e publicadas, primeiro com notas filológicas e depois, em edições tardias, com melhorias artísticas”.[7] Entre os inúmeros exemplos que poderíamos mencionar, sem sair do mundo da música, estaria o de Villa-Lobos: na sua grande compilação de peças ditas folclóricas (o Guia Prático em especial), resgatadas em viagens não raro imaginárias pelo Brasil, não se sabe onde terminam os registros propriamente ditos e começam as composições originais.

Macpherson e Ossian são figuras hoje lembradas sobretudo por melômanos e acadêmicos. Na história da literatura, poderiam render um parágrafo; na da música, uma ou duas páginas. Nas artes plásticas, O Sonho de Ossian, de Ingres (1813), seja talvez a única tela que tenha merecido sobreviver. Seus nomes aparecem agora sempre juntos, como se a mesma confusão entre criador e criatura, ou descobridor e descoberto, tivesse voltado depois da separação, nesse eterno retorno que é a história da arte. Se Macpherson morreu praticamente impune (apesar dos ataques do Dr. Johnson e dos irlandeses durante sua vida) e saboreando a glória, há fraudes semelhantes com finais menos felizes, como a de Thomas Chatterton, o poeta que “descobriu” a obra de um monge medieval e se suicidou aos 18 anos, atormentado por ambições frustradas e, quem sabe, pelo sentimento de culpa.

Continuemos brincando com o eterno retorno: e se James Macpherson ressurgisse, em carne e osso, nos dias de hoje? Poeta obscuro, embora com formação sólida e respeitável cultura, decide lançar no Twitter e no Instagram o nome de um colega de letras, igualmente obscuro, já morto há muitos séculos. O nome dessa figura longínqua aparece em livros antigos, esses objetos que nossos contemporâneos conhecem cada vez menos; tal desconhecimento, paradoxalmente, facilita a missão do Macpherson contemporâneo, que não precisa se dar ao trabalho de viajar pelo interior de seu país gravando cantigas de ninar ou anotando histórias de bisavôs à beira do fogo. Talvez nem mesmo os livros antigos sejam necessários, porque é duro pesquisar nas bibliotecas. Há referências a esse velho poeta na Wikipedia e em sites acadêmicos ou pseudoacadêmicos, blogs de amantes de poesia, monografias que não se sabe se foram aprovadas ou por quem foram aprovadas. Não é improvável que, cansado de pesquisar, Jimmy decida inventar mais e mais coisas a respeito desse druida, coisas tanto biográficas como artísticas, coisas que, sabe ele muito bem, serão postas em dúvida por um ou outro, mas não com força de convencimento ou rigor suficientes para sofrerem execração definitiva. Macpherson se dá conta de que o século XXI é muito semelhante ao século XVIII — nesta época pós-contemporânea, pós-realista, pós-tudo, os homens que escrevem e leem também sentem necessidade de novidades. Como a visão do todo falta aos olhos do presente, corre o perigo de não saber em vida se ele e seu “personagem” mudarão os rumos da estética; falta um Herder para sistematizar a importância dessa novidade. Em compensação, seu Ossian pode tornar-se trending topic no Twitter. Pelo que ele percebeu, a fome dos superpolitizados intelectuais e críticos de hoje é de polêmica, porque a polêmica lhes garante um lugar nas colunas dos jornais e nas redes sociais, sem que ninguém precise ler o que escrevem. Jimmy sabe que ninguém, ou pelo menos pouca gente, o lerá. Mas não importa: pensando bem, é até mais seguro que seu público permaneça escasso, pois, nestes dias, Orson Welles brincando de guerra dos mundos estaria na cadeia, e o garoto Chatterton acharia motivos verdadeiros para se matar, sofrendo um selvagem bullying virtual dos internautas, sem que uma linha sua sequer seja discutida.

Assim, manter viva a discussão é tarefa que, se depender da sua esperteza e do espírito do tempo, durará o bastante para assegurar-lhe sobrevidas. Nestes tempos, ao contrário do que disseram uma ou duas gerações antes, os quinze minutos de fama podem prolongar-se indefinidamente. Basta conhecer as regras do jogo e saber encarar os vereditos sem trânsito em julgado: Macpherson sabe que será condenado por uns e absolvido por outros, em um redemoinho jurídico interminável que nunca chegará a qualquer conclusão, porque acontece no mundo das meias-verdades. Ele aprenderá rápido a circular à vontade no meio de youtubers entendidos, adolescentes-cientistas, jornalistas-cientistas, heliocentristas, influenciadores de tudo e de nada. Macpherson se divertirá no Facebook com gente obcecada por nazistas e seus inimigos obcecados por comunistas (ele será comparado a Goebbels em algum momento), com racistas de todos os tipos, com representantes de gêneros sexuais que jamais imaginaria possíveis, cada um deles carente de atenção e do que chamam de “empoderamento”. Ninguém mais terá orgulho das contribuições legadas por épocas iluminadas, como o século de sua primeira encarnação. Ninguém mais tem certeza de feitos extraordinários, e a ida do homem à Lua pode não ter passado de um bom filme. Agora, a medida moral dos despotismos é confusa: às vezes, ela depende apenas da ideologia.

Nessa pequena aventura de ficção, somos tentados a convidar outros personagens a subir ao palco, as reedições dos antigos personagens da época do primeiro Macpherson. Eles se unirão em partidos diferentes e apresentarão diagnósticos diferentes sobre a mesma farsa. Nosso polêmico escocês, a julgar por seu caráter, poderá gostar de usar robôs para disparar mensagens em sua própria defesa — ou em defesa de sua criatura. Essa inundação será, por sua vez, replicada por usuários de verdade, não necessariamente todos estúpidos; muitos admiram Ossian com sinceridade e paixão, ainda que saibam que Ossian não tenha passado de um embuste. O Dr. Samuel Johnson, cheio de princípios, dirá: “Esse escocês é um picareta, e como todo picareta merece não apenas a prisão como a condenação moral do público pelo mal que sua mentira causou” — e acionará seu próprio exército de robôs. A reencarnação de Goethe vai declarar que nunca gostou de verdade do poeta milenar, mas será logo desmascarada pelas milícias digitais que descobrirão seu entusiasmo passado — inútil demonstrar que o entusiasmo fosse apenas de personagem seu. Schubert, Beethoven e talvez Napoleão permanecerão em cima do muro, porque apreciam as poesias e não desejam polemizar (Napoleão, em especial, tem essa característica já apontada por Goethe: gosta da música e da literatura contrárias à sua natureza. Por isso é leitor do Werther, e por isso talvez prefira não polemizar). Brahms e os artistas que o sucederam, como comedores de fois gras, já lavarão as mãos quando souberem como surgiram os poemas. Por fim, Macpherson contará também com apaixonados defensores, como seu compatriota Walter Scott, inventor de muitas coisas que hoje se supõe verdades históricas. E, se ressuscitarmos Borges, cuidaremos de sua redenção absoluta: “Fingal pode não ser uma reconstrução autêntica de uma epopeia celta; o indiscutível é que se trata do primeiro poema romântico da literatura europeia. Macpherson foi um poeta que deliberadamente se sacrificou para a maior glória da Escócia”.[8]

Borges, esse eterno fã das sagas islandesas (com as quais a poesia céltica tanto se parece), transcreve alguns trechos para defender que Ossian-Macpherson não é assim tão ilegível: “minha alma está cheia de outros tempos”; “viram a batalha em seus olhos, a matança dos exércitos em sua espada” etc.

Destaco ainda estas duas estrofes:

Ao lado duma pedra, no morro, debaixo

das antigas árvores, o velho Ossian

sentava sobre o musgo; o último da raça de

Fingal. Sem olhos cansados estão sem visão;

sua barba ondula com o vento. Vaga,

através das árvores nuas, ele ouviu a

voz do norte. Renasceu a tristeza em

sua alma: ele começou a chorar os mortos.

….

De que maneira caíste como um carvalho,

com todos os galhos à tua volta! Onde

está Fingal, o rei? Onde está Oscur, meu

filho? Onde estão todos de minha raça? O dor! Sob a

terra eles jazem. Sinto suas tumbas

com minhas mãos. Ouço o rio embaixo

murmurando, rouco, sobre as pedras.

O que me fizeste, ó rio? Trouxeste

de volta a memória do passado.

Legível ou não, a poesia ossiânica é um marco remoto da confusão gerada por notícias falsas no mundo da arte. A moral da história, se é que há alguma, deveria sustentar-se na força da consciência individual e na posteridade como os melhores — e talvez únicos — juízes.


Notas:

[1] Estes e os demais trechos transcritos neste artigo integram os Fragments of Ancient Poetry Collected in the Highlands of Scotland, a primeira coleção dos antigos poemas celtas publicada por Macpherson (1760). Disponível no sítio eletrônico do Projeto Gutenberg (www.gutenberg.org). Tradução livre, para a qual contei com a valiosa ajuda de Luís Guilherme Cintra.

[2] Barzun, Jacques. Da Alvorada à Decadência. Rio de Janeiro, Editora Campus, 2002. Pág. 449.

[3] Almeida Garrett e Fagundes Varella também deram suas contribuições. Apesar disso, não há, aparentemente, tradução integral dos poemas para o português.

[4] É possível que a admiração de Goethe por Ossian não tenha sido tão intensa, ou possa ter declinado ao fim de sua vida. Em 1829, comentou em uma entrevista que Werther admirava Homero enquanto mantinha a sanidade, substituindo-o por Ossian quando começou a enlouquecer. De fato, o já apaixonado Werther escreve em uma de suas cartas que “Ossian tomou o lugar de Homero em meu coração”.

[5] Traduções soltas para o francês vieram à luz com extraordinária rapidez, em questão de alguns meses, mas a obra completa só foi vertida em 1777 por Le Tourneur, o grande tradutor de Shakespeare.

[6] No Colóquio, Ossian, após passar séculos na Terra da Juventude, narra a São Patrício os feitos de seu pai e avô à frente do Fianna.

[7] Rosen, Charles. The Romantic Generation. Cambridge-Massachussets, Harvard University Press, 1998. Pág. 411

[8] Borges, Jorge Luis (com Vázquez, Maria Esther). Introducción a la Literatura Inglesa in Biblioteca Borges. Madri, Alianza Editorial, 1999. Pág. 52



Bibliografia adicional:

Carpeaux, Otto Maria. “Falsificações” in Ensaios Reunidos, vol. 1. Rio de Janeiro, UniverCidade Editora e Topbooks, 1999. Págs. 515-6.

Goethe, Johann Wofgang von. Os Sofrimentos do Jovem Werther. São Paulo, Editora Estação Liberdade, 1999.

Porter, James. Beyond Fingal’s Cave. Rochester, University of Rochester Press, 2019



(Ilustração: Jean Auguste Dominique Ingres - The Dream of Ossian, 1813)

segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

LA LOBA / A LOBA, de Alfonsina Storni

 





Yo soy como la loba.

Quebré con el rebaño

Y me fui a la montaña

Fatigada del llano.



Yo tengo un hijo fruto del amor, de amor sin ley,

Que no pude ser como las otras, casta de buey

Con yugo al cuello; ¡libre se eleve mi cabeza!

Yo quiero con mis manos apartar la maleza.



Mirad cómo se ríen y cómo me señalan

Porque lo digo así: (Las ovejitas balan

Porque ven que una loba ha entrado en el corral

Y saben que las lobas vienen del matorral).



¡Pobrecitas y mansas ovejas del rebaño!

No temáis a la loba, ella no os hará daño.



Pero tampoco riáis, que sus dientes son finos

¡Y en el bosque aprendieron sus manejos felinos!



No os robará la loba al pastor, no os inquietéis;



Yo sé que alguien lo dijo y vosotras lo creéis

Pero sin fundamento, que no sabe robar

Esa loba; ¡sus dientes son armas de matar!

Ha entrado en el corral porque sí, porque gusta



De ver cómo al llegar el rebaño se asusta,

Y cómo disimula con risas su temor

Bosquejando en el gesto un extraño escozor...

Id si acaso podéis frente a frente a la loba

Y robadle el cachorro; no vayáis en la boba

Conjunción de un rebaño ni llevéis un pastor...



¡Id solas! ¡Fuerza a fuerza oponed el valor!

Ovejitas, mostradme los dientes. ¡Qué pequeños!

No podréis, pobrecitas, caminar sin los dueños

Por la montaña abrupta, que si el tigre os acecha

No sabréis defenderos, moriréis en la brecha.



Yo soy como la loba. Ando sola y me río

Del rebaño. El sustento me lo gano y es mío

Donde quiera que sea, que yo tengo una mano

Que sabe trabajar y un cerebro que es sano.

La que pueda seguirme que se venga conmigo.



Pero yo estoy de pie, de frente al enemigo,

La vida, y no temo su arrebato fatal

Porque tengo en la mano siempre pronto un puñal.



El hijo y después yo y después... ¡lo que sea!

Aquello que me llame más pronto a la pelea.

A veces la ilusión de un capullo de amor

Que yo sé malograr antes que se haga flor.



Yo soy como la loba,

Quebré con el rebaño

Y me fui a la montaña

Fatigada del llano. .



Tradução de Wilson Alves-Bezerra:



Eu sou como a loba.

Deixei o rebanho

E parti à montanha

Cansada do campo.



Eu tenho um filho fruto do amor, amor sem lei

Ser como as outras não quero, gente que nasceu para ser gado,

Cabisbaixo, arrastando arado; levo erguida a cabeça

É com as mãos que eu afasto o capim.



Olha como riem, como me apontam

Só porque eu falo: (as ovelhinhas balem

Porque sentem que a loba invadiu o curral

E sabem que as lobas vêm do matagal).



Pobrezinhas e mansas ovelhas do rebanho!

Não tenham medo da loba, ela não lhes fará nenhum mal.

Mas também não riam, os dentes dela são finos

E da selva trazem a arte dos manejos felinos!



Ela não roubará vocês do pastor, por favor,

Eu sei que alguém disse e vocês acreditaram,

Mas não tem porquê, essa loba não rouba,

Seus dentes apenas matam quando devoram.



Ela entrou no curral porque sim, porque gosta

De ver como ao chegar o rebanho todo se acossa,

E disfarça com um riso a superfície do medo

Sugerindo com esgares um estranho ardor …



Vão, se puderem, ficar de frente com a loba

E roubar dela o filhote. Mas vão sozinhas, não podem?

Nem escondidas no bando nem acudindo ao pastor.

Vão sozinhas! Vamos ver quem afronta o pavor!



Ovelhinhas, mostrem os dentes! Que pequeninos!

Não conseguem, coitadas, caminhar sem os donos

Pela montanha escarpada, porque se a onça à espreita

Der o bote, não têm defesa, vocês morrem-lhe à boca.



Eu sou como a loba. Ando sozinha e dou risada

Do rebanho. Não preciso de nada. Quem me sustenta sou eu.

Onde quer que for, pois tenho uma mão que é hábil,

Um cérebro ágil e não deixo por menos.



Aquela que puder, que me siga.

Eu já estou de pé, diante do inimigo,

A vida, e não tenho medo de seu ataque final

Porque trago sempre comigo meu punhal.



O filho na frente, eu em seguida e depois… o que vier!

Quem me chamar primeiro para a briga, venha se puder.

Às vezes me iludo com uma semente de amor

Que eu sei impedir que floresça antes do amanhecer.



Eu sou como a loba.

Deixei o rebanho

E parti à montanha

Cansada do campo.”



(Sou uma selva de raízes vivas)



(Ilustração: escultura de Carybé – Amazonas)

sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

O LEVIANO, de Saadi de Xiraz

 


Conheci um negociante que possuía cinquenta camelos, sessenta escravos e vinte fâmulos. Uma tarde, na ilha de Kich, ele arrastou-me ao seu quarto, onde me importunou com incessante parolagem:

– Tenho tal associado no Turquestão, e tal entreposto no Indostão. Este papel que vês é uma escritura de arrendamento. Para tal negócio, Fulano é o meu procurador.

De repente anunciou-me:

– Tenciono ir a Alexandria: o clima dessa cidade é muito saudável.

Pôs-se a refletir.

– Não! – gritou subitamente. – Não irei a Alexandria. O mar do Ocidente é muito agitado. Ó Saadi, eu tenho na cabeça outras viagens. Quando as tiver feito, abandonarei o comércio e ficarei sentado a um canto de casa, até o derradeiro dia.

– Bem! Mas quais são os teus projetos?

– Quero exportar enxofre persa para a China, louça chinesa para a Grécia, brocados gregos para a Índia, aço indiano para Alepo, espelhos de Alepo para o Iêmene, panos de riscado do Iêmene para a Pérsia...

Continuou assim, por muito tempo. Afinal, notou que eu já não o escutava.

– E as tuas intenções, Saadi? – perguntou-me. – Gostaria muito de conhecê-las.

– Só tenho uma intenção: a de contar-te esta breve história: Um dia, na Síria, um agitado da tua espécie caiu do camelo e machucou os rins. Corri para ele e disse-lhe: – “Aonde vais, agora? Para que endereço devo mandar a tua bagagem? Ao Paraíso ou para o Inferno?”



(O Jardim das Rosas. Saadi. Tradução de Aurélio Buarque de Holanda, a partir da edição francesa traduzida por Franz Toussaint)



(Ilustração: Paul Zenker - ilustration pour Le jardin des roses de Saadi)

terça-feira, 24 de dezembro de 2024

ALICE, WHERE ART THOU? / ALICE, ONDE ESTÁS?, de Vincent Starrett


 


“Quaint child, old-fashioned Alice, lend your dream:

I would be done with modern story-spinners,

Follow with you the laughter and the gleam:

Weary am I, this night, of saints and sinners.

We have been friends since Lewis and old Tenniel

Housed you immortally in red and gold.

Come! Your naivete is a spring perennial:

Let me be young again before I’m old.

 

You are a glass of youth: this night I choose

Deep in your magic labyrinths to stray,

Where rants the Red Queen in her splendid hues

And the White Rabbit hurries on his way.

Let us once more adventure, hand in hand:

Give me belief again – in Wonderland!

 

Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges:

 

Curiosa criança, remota Alice, empresta-me teu sonho:

Eu desprezaria os contadores de histórias de hoje,

Seguiria contigo o riso e o fulgor:

Estou fatigado, esta noite, de santos e pecadores.

Somos amigos desde que Lewis e o velho Tenniel

Encerraram tua imortalidade em vermelho e dourado.

Vem! Tua ingenuidade é uma fonte perene.

Deixa-me ser jovem de novo antes de ser velho.

És um espelho de juventude: esta noite escolho

Perder-me profundamente em teus labirintos mágicos,

Em que a Rainha Vermelha vocifera em esplêndidas nuances

E o Coelho Branco segue apressado seu caminho.

Vamos mais uma vez nos aventurar, de mãos dadas:

Faze-me de novo acreditar – no País das Maravilhas!

 

(Brillig, 1949)

 

(Ilustração: Charles Blackman — Alice in Wonderland)

sábado, 21 de dezembro de 2024

EU ACUSO! CARTA A M. FÉLIX FAURE, PRESIDENTE DA REPÚBLICA, de Émile Zola

 




Excelentíssimo Senhor Presidente da República, permita-me, em gratidão à generosa acolhida que o senhor me deu em uma ocasião passada, apelar para sua justa glória e dizer que sua estrela, tão honrada até aqui, está ameaçada pela maior das vergonhas, a mais indelével das manchas.

O senhor livrou-se, são e salvo, das maiores calúnias, tendo conquistado os corações; saiu apoteótica e radiosamente desta festa patriótica que foi para a Franca a aliança com a Rússia, e prepara-se para presidir ao triunfo solene da nossa Exposição Universal, que coroará nosso grande século cheio de trabalho, verdade e liberdade. Mas é enorme a mancha sob o seu nome – eu iria dizer sob seu governo – que é esse abominável caso Dreyfus! Uma corte marcial acaba, por ter recebido ordens nesse sentido, de ousar absolver o tal Esterhazy, supremo golpe em qualquer verdade, em qualquer justiça. E está feito: a vergonha está estampada no rosto da França, e a história registará que foi sob a sua presidência que tamanho crime social foi cometido.

E como foram ousados, serei da minha parte ousada também. Vou falar a verdade, pois prometi resguardá-la, já que a justiça, conspurcada diversas vezes, não faz isso, plena e inteiramente. Tenho o dever de falar, eu não quero ser cúmplice. Minhas noites seriam assombradas pelo espectro de um inocente que sofre no além-mar, mergulhado na mais dolorosa tortura, por um crime que ele não cometeu.

E será à sua Excelência, senhor Presidente, que dirigirei meus clamores, a verdade, com toda força da minha revolta de homem honesto. Conheço a sua honra e, por isso, sei que ignora a verdade. A quem mais eu poderia denunciar a turba malfeitora dos verdadeiros culpados, que não à Sua Excelência, o primeiro magistrado do país?

A verdade, para começar, sobre o processo e a condenação de Dreyfus.

Um homem nefasto, responsável por tudo, autor de tudo, é o comandante du Paty de Clam, naquele momento um simples oficial. Ele é a personificação do caso Dreyfus; nada será esclarecido até que uma investigação imparcial tenha estabelecido claramente seus atos e sua responsabilidade. Ele representa uma figura nebulosa, a mais complicada, obcecado pelas intrigas romanescas, comprazendo-se, à maneira dos folhetins baratos, com papéis que desaparecem, cartas anónimas, encontros e lugares desertos, mulheres misteriosas que carregam, à noite, provas irrefutáveis. Ele imagina ter ditado o documento a Dreyfus; é ele que sonha estudá-lo em um cómodo inteiramente revestido de espelhos, é ele que o comandante Forzinetti nos representa, empunhando uma lanterna velada, desejando se aproximar do acusado adormecido, para projetar sobre seus olhos um jato de luz e surpreendê-lo então em seu crime, na confusão do sonho. Não tenho mais nada a dizer: se procurar, alguma coisa aparece. Declaro simplesmente que o comandante du Paty de Clam, encarregado de instruir o caso Dreyfus, como representante da justiça, e, segundo a cronologia e a importância dos fatos, é o primeiro culpado do erro judicial que foi cometido.

Depois de algum tempo o documento foi parar nas mãos do coronel Sandherr, diretor do serviço de inteligência, que morreu de paralisia geral. Então, as coisas começaram a “desaparecer”, papéis sumiram, até hoje estão sumidos; e foram atrás de saber quem era o autor do documento, e um pré-requisito foi pouco a pouco se construindo: o culpado teria de ser um oficial do Estado-Maior e da artilharia: duplo erro manifesto, que mostra a superficialidade com que o processo foi tratado, pois um exame cuidadoso demonstra que o culpado necessariamente precisa ser um oficial de tropa.

Foi feita uma busca em domicílio, olharam os papéis, como se tudo fosse um caso de família, uma tramoia a ser desvendada dentro dos escritórios mesmo e então os culpados seriam expulsos. E, sem querer aqui contar uma história já conhecida em parte, entra em cena o comandante du Paty de Clam, quando as primeiras suspeitas começam a recair sobre Dreyfus. Foi então que ele inventou um Dreyfus, o caso tornou-se o seu caso, ele se esforçou para confundir o traidor e fazê-lo confessar tudo. Há ainda o ministro da Guerra, general Mercier, cuja inteligência parece medíocre; ao chefe do Estado-Maior, general Boisdeffre, que apresenta ter cedido à paixão clerical, e o subchefe do Estado-Maior, o general Gonse, cuja consciência se acomoda a quase tudo. Mas, no fundo, não se trata de ninguém além do comandante du Paty de Clam, que os guia a todos, que os hipnotiza, pois ele também se ocupa do espiritismo, do ocultismo: ele conversa com os espíritos. É impossível conceber as situações às quais ele submeteu o infeliz Dreyfus, as armadilhas nas quais ele quis apanhá-lo, as investigações delirantes, as invenções monstruosas, uma enorme demência torturante.

Ah! Esse primeiro fato é um pesadelo para quem o conhece nos seus verdadeiros detalhes! O comandante du Paty de Clam prende Dreyfus e o coloca na solitária. Vai até a casa da senhora Dreyfus, amedronta-a, e diz que se ela contar alguma coisa para alguém seu marido estará perdido. Durante esse tempo, o infeliz se desespera, clamando inocência. E a instrução foi feita dessa forma, como se fosse uma crónica do século XV, misteriosa, com expedientes cruéis e todo baseado exclusivamente em uma evidência infantil, esse documento imbecil, que não passa de uma traição vulgar, a patifaria mais grosseira, pois os maiores segredos transmitidos se revelaram todos sem nenhum valor. Eu insisto porque é aqui que está a semente de onde surgirá o verdadeiro crime, a espantosa recusa de justiça que torna a França um lugar doente. Eu gostaria de entender como esse erro judicial pôde ser possível, como ele surgiu das maquinações do comandante du Paty de Clam; como o general Mercier e os generais de Boisdeffre e Gonse puderam se deixar levar e tornar-se pouco a pouco cúmplices desse erro, que mais tarde acreditaram dever impor como uma verdade santa, uma verdade indiscutível. A priori, só houve da parte deles falta de cuidado e burrice. De mais a mais, sentimos que eles cederam às paixões religiosas da comunidade e ao preconceito corporativista. Permitiram que a estupidez acontecesse.

Mas então Dreyfus se submete ao Conselho de Guerra. Exige-se o mais absoluto sigilo. Mesmo que um traidor houvesse aberto a fronteira ao inimigo para permitir que o imperador alemão tomasse Notre Dame, não seriam tomadas precauções de sigilo e mistério tão severas. A nação treme de espanto, um diz-que-diz de ocorrências terríveis, dessas traições monstruosas que indignam a História; e naturalmente o país se dobra. Não há punição que chegue, ele apoiará a degradação pública, desejará que o culpado se enterre em um solo imutável de infâmia, devorado pelo remorso. E, por isso, os fatos indizíveis, as coisas perigosas capazes de incendiar a Europa e que por isso tiveram de ser em sigilo soterrados serão verdadeiros? Não! Tudo não passou de fruto da imaginação romanesca e desvairada do comandante du Paty de Clam. Tudo foi feito apenas para esconder o mais estapafúrdio dos folhetins. Para que isso fique claro, basta que o ato de acusação, lido diante do conselho de guerra, seja analisado com um pouco de cuidado.

Ah! A inutilidade desse ato de acusação! É um prodígio de iniquidade que um homem tenha condenado por meio desse ato. Desafio todos os homens corretos a lê-lo sem que seu coração se encha de indignação e não grite de revolta, vendo o exagero da pena da distante Ilha do Diabo. Dreyfus domina vários idiomas: crime; não há um papel sequer em sua casa que o comprometa: crime; de vez em quando ele retorna à sua pátria: crime; trabalha muito, tem o cuidado de se informar sobre tudo: crime; não perde a calma: crime; perde a calma: crime. E as platitudes de redação, as assertivas formais do vazio! Falou-se em 14 itens de acusação: no final das contas, não encontramos mais do que um, o tal documento; e já sabemos que nem com relação a ele os especialistas estão de acordo; e que um deles, o Sr. Gobert, foi militarmente constrangido porque ousou chegar a uma conclusão diversa daquela que se desejava. Falou-se ainda em 23 oficiais que teriam arrasado Dreyfus em seus testemunhos. Nada sabemos do que falaram, mas é fato que parte deles não o acusou; é obrigatório observar, ainda, que todos pertenciam ao Ministério da Guerra. É um processo interno, feito entre pares, e não se deve esquecer: o Estado-Maior queria o processo, levou a cabo o julgamento e termina de fazer outro.

Portanto, nada mais que o documento, a respeito do qual os especialistas não se entendem. Conta-se que, dentro da sala do conselho, os juízes estavam na iminência de absolvê-lo. E, então, para justificar a obstinação desesperada pela condenação, afirma-se hoje que há um documento secreto, incontornável, um documento que não se pode mostrar, que legitima tudo, diante do qual devemos nos inclinar, o bom Deus invisível e incognoscível! Eu o recuso, recuso esse documento, recuso-o como todas as minhas forças! Um documento ridículo, sim, deve ser o documentos em que se trata de umas mulherzinhas e se fala de um tal D... que se transforma em figura muito exigente: algum marido sem dúvida decepcionado porque não lhe pagaram um bom preço por sua esposa. Mas esse documento, que interessa tanto à defesa nacional, não poderia ser exibido sem que uma guerra fosse declarada amanhã, não, não! É mentira! E é de tal maneira odiosa e cínica que essas pessoas mentem impunemente, sem que nada os convença. Elas amotinam a França, esconde-se atrás da legítima emoção, fazem calar as bocas confundindo os corações, pervertendo os espíritos. Não conheço crime cívico maior.

Aqui, está, portanto, senhor Presidente, os fatos que explicam como um erro judiciário pôde ser cometido; e as provas morais, a situação do destino de Dreyfus, a ausência de motivos, contínuo clamor de inocência, exigem que eu o apresente como uma vítima da extraordinária imaginação do comandante du Paty de Clam, do meio clerical em que ele está, da perseguição aos “judeus sujos”, que desonram a nossa época.

E aqui chegamos ao caso Esterhazy. Três anos se passaram, muitas consciências permanecem profundamente confusas, inquietam-se, questionam e terminam se convencendo da inocência de Dreyfus.

Não farei o histórico da dúvida e da posterior certeza do Sr. M. Scheurer-Kestner. Mas, enquanto ele investigava por conta própria, passavam-se fatos graves no próprio Estado-Maior. O coronel Sandherr morre, e o tenente-coronel Picquart lhe sucede na chefia do serviço de inteligência. E, por sua vez, no exercício de suas funções foi que chegou às mãos desse último um telegrama, endereçado ao comandante Esterhazy, remetido por um agente a serviço no exterior. Seu estrito dever era o de abrir uma sindicância. Fato é que ele nunca deixou de obedecer a seus superiores. Ele apresentou, pois, suas suspeitas aos seus superiores hierárquicos, o general Gonse, e depois o general Boisdeffre e, por fim, o general Billot, que ocupou o lugar do general Mercier no Ministério da Guerra. O famoso dossiê Picquart, de que tanto se fala, nunca foi além do que o dossiê Billot, um dossiê feito por um subordinado para o seu ministro, dossiê que deve estar ainda no Ministério da Guerra. As investigações duraram de maio a setembro de 1896, e o que é preciso, dizer em alto e bom som é que o general Gonse estava convencido da culpabilidade de Esterhazy e que o general Boisdeffre e o general Billot não tinham nenhuma dúvida de que o autor do documento era Esterhazy. A investigação do tenente-coronel Picquart tinha conduzido a essa constatação certeira. Mas o constrangimento era grande, pois a condenação de Esterhazy acarretaria necessariamente a revisão do processo Dreyfus; e isso é que o Estado- Maior queria evitar a qualquer custo.

Deve ter havido um instante cheio de angústia psicológica. É fato que o general Billot não estava comprometido com nada, ele tinha acabado de saber de tudo, podia, portanto, dizer a verdade. Ele não ousou, temendo sem dúvida a opinião pública, certamente também acreditando que livraria todo o Estado-Maior, o general Boisdeffre e o general Gonse, sem falar dos inferiores. Depois, houve apenas um minuto de combate entre a sua consciência e o que ele acreditava ser um interesse militar. Quando esse minuto passou, já era muito tarde. Ele estava engajado, já estava comprometido. E, desde então, sua responsabilidade não para de crescer. Ele tomou para si o crime de outrem, é tão culpado quanto os outros, é mais culpado que os outros, pois tinha a oportunidade de fazer justiça, e não a fez. Veja isso! Faz um ano que o general Billot, os generais Boisdeffre e Gonse sabem que Dreyfus é inocente, e guardam para si essa verdade aterradora! E dormem tranquilos em casa, com suas esposas e filhos que os amam!

O tenente-coronel Picquart estava cumprindo suas obrigações de homem honesto. Insistia com seus superiores, em nome da justiça. Respondia, dizia quanto suas decisões eram apolíticas, diante da terrível tempestade que se construía, que se daria quando a verdade fosse conhecida. Essa foi, mais tarde, a argumentação que M. Scheurer-Kestner dirige igualmente ao general Billot, conclamando-o, por patriotismo, a pegar o caso com as mãos, não deixá-lo mais se agravar para evitar um desastre público. Não! O crime estava cometido, o Estado-Maior não poderia mais evitar seu crime. E o tenente-coronel Picquart foi enviado para o exterior, cada vez mais distante, até a Tunísia, onde se quis até mesmo certa vez honrar sua bravura, encarregando-o de uma missão que o teria seguramente massacrado, em lugares em que o Marques de Mores encontrou a morte. Ele não caiu em desgraça, o general Gonse manteve com ele uma correspondência amigável. Apenas não era muito conveniente divulgar alguns segredos.

Em Paris, a verdade começava irresistivelmente a aparecer e sabia-se que em algum momento a tempestade explodiria. M. Mathieu Dreyfus denuncia o comandante Esterhazy como verdadeiro autor do documento, no mesmo momento em que M. Scheurer-Kestner colocava, nas mãos do Ministério da Justiça, um pedido de revisão do processo. E aqui aparece o comandante Esterhazy. Testemunhas o descrevem de início descontrolado, disposto a se suicidar ou fugir. Depois, de repente, cria coragem e assusta Paris pela violência de sua atitude. É que tinha chegado ajuda, ele havia recebido uma carta anónima advertindo-o das manobras de seus inimigos, uma dama misteriosa chegou mesmo a se abalar durante a noite para roubar do Estado-Maior um documento que o salvaria. E aqui eu não posso deixar de lembrar a imaginação fértil do comandante du Paty de Clam. Sua obra, a culpabilidade de Dreyfus, estava em perigo, e ele quis seguramente defender a própria criação. A revisão do processo, seria esse o desfecho do extravagante e trágico folhetim, cujo abominável desenlace realizou-se na Ilha do Diabo! Isso ele não podia permitir. Então, o duelo ocorrerá entre o tenente-coronel Picquart e o comandante du Paty de Clam, um de cara aberta, o outro mascarado. Nós os reencontraremos em breve, diante da justiça civil. No fundo, é sempre o Estado-Maior que se defende, que não quer admitir seu crime, cuja abominação cresce a cada hora.

Com espanto, perguntou-se quem eram os protetores do comandante Esterhazy. Em primeiro lugar, na surdina, o comandante du Paty Clam, que maquinou e coordenou a coisa toda. Ele foi traído pelos seus próprios métodos bizarros. Depois, é o general de Boisdeffre, o general de Gonse, e o próprio general Billot, que são obrigados a absolver o comandante, já que não podem deixar que a inocência de Dreyfus seja reconhecida sem que o Ministério da Guerra caia em descrédito. E o fantástico resultado dessa prodigiosa situação é que o honesto tenente-coronel Picquart, que apenas cumpriu seu dever, será ele a vítima, o ridicularizado e o punido. Ah!, justiça, que terrível desespero rasga o coração! Chega-se ao cúmulo de dizer que ele é o falsificador, que fabricou o telegrama para incriminar Esterhazy. Mas, ó Deus! Por quê? Com que razão? Dai-me um motivo. Ele também foi pago pelos Judeus? O mais engraçado é que ele é justamente o antissemita! Sim! Assistimos a esse espetáculo infame, homens perdidos em divida e crimes que se proclamam inocentes, enquanto se mancha a honra de um homem de vida irresponsável. Quando uma sociedade chega a esse ponto, está desintegrada.

Eis, portanto, senhor Presidente, o caso Esterhazy: um culpado que era preciso inocentar. Retroagindo dois meses, podemos acompanhar hora por hora esse admirável serviço. Vou abreviar, pois aqui não trago nada mais que um resumo da história, cujas páginas vibrantes serão um dia escritas na integra.

E, então, vimos o general de Pellieux, depois o comandante Ravary, conduzir uma investigação criminosa em que os canalhas foram purificados, e os honestos, manchados. Logo depois, o Conselho de Guerra foi convocado.

Como se pode esperar que um Conselho de Guerra corrija o erro de outro Conselho de Guerra?

E nem estou me referindo aqui à escolha dos juízes. A ideia superior de disciplina, que ocorre no sangue desses soldados, não bastaria por si só invalidar sua capacidade de julgar imparcialmente? Quem fala disciplina, fala obediência. Quando o ministro de Guerra, a principal autoridade, estabeleceu publicamente, sob os aplausos da representação nacional, a autoridade do julgamento, não se pode esperar que um Conselho de Guerra o desminta. Hierarquicamente, é impossível. O general Billot influenciou os juízes com a sua declaração, e eles a julgaram como se devessem partir para o ataque, sem refletir. A opinião preconcebida, que levaram para julgamento, é evidentemente essa: “Dreyfus foi condenado por traição por um Conselho de Guerra, é, portanto, culpado; e nós, O Conselho de Guerra, não podemos declará-lo inocente, pois sabemos que reconhecer a culpa de Esterhazy é proclamar a inocência de Dreyfus”. Nada os demoveria dessa ideia.

Proclamaram uma sentença iniqua, que pesará para sempre sobre os nossos conselhos de guerra e que manchará a suspeita daqui em diante todas as decisões. O primeiro Conselho de Guerra não foi inteligente; mas o segundo é forçosamente criminoso. Sua desculpa, repito, é que a autoridade principal já tinha decidido, declarando inatacável o julgamento anterior, santo e superior aos homens, de modo que os inferiores não podiam dizer o contrario.

Falam-nos da honra do exército, querem que nós o amemos e o respeitemos. Há!, claro, o exército que se erguerá diante da primeira ameaça, que defenderá o território francês, ele é o povo, e não sentimos por ele nada além de ternura e respeito. Mas não se trata dele, quem, em nossa necessidade de justiça, desejamos justamente a dignidade. Trata-se aqui do sabre, o senhor que, quem sabe, nos dará amanhã. Mas beijar com devoção seu punho, ó deus, isso não!

Já o demonstrei: o caso Dreyfus foi o caso do Ministério da Guerra; um oficial de Estado-Maior, denunciado por seus colegas do Estado–Maior, condenado sob pressão dos chefes do Estado-Maior. E mais uma vez: ele não pode ser inocentado sem que todo o Estado-Maior seja culpado. Também os ministérios, por todos os meios imagináveis, com campanhas nos jornais, com comunicados e tráfico de influência, só cobriram Esterhazy para culpar Dreyfus uma segunda vez. Ah! o governo republicano deveria pôr no olho da rua esse bando de jesuítas, como o próprio general Billot os chama!

Onde está o ministério verdadeiramente forte, de um patriotismo sábio, que terá a coragem de tudo renovar e recriar? Quanta gente não conheço que, diante de uma possível guerra, treme de angústia sabendo em que mãos está a defesa nacional? E a que ninho de baixarias, fofocas e esbanjamentos está entregue esse lugar sagrado, onde se decide o futuro da pátria? Assusta o que o caso Dreyfus acabou revelando, esse sacrifício humano de um infeliz, de um “Judeu porco”! Ah!, que agitação de demência e imbecilidade, de imaginações estúpidas, de práticas de políticas mesquinhas, de costumes inquisitoriais e tirânicos, a satisfação de alguns oficiais agaloados esmagando a nação com suas botas, enfiando goela abaixo seu grito de verdade e justiça, sob o pretexto mentiroso e sacrílego da razão de estado!

E é um crime ainda terem se apoiado na impressa imunda, terem se deixado defender por toda a canalha de Paris, de modo que é essa canalha que triunfa insolentemente, diante da derrota do direito e da simples probidade. É um crime terem acusado de perturbar a França aqueles que a querem generosa, na vanguarda das nações livres e justas, quando tramaram eles próprios a impudente conspiração para impor o erro ao mundo inteiro. É um crime confundir a opinião pública, utilizar para uma sentença fatal essa opinião pública que foi corrompida até o delírio. É um crime envenenar os pequenos e humildes, exasperar as paixões de reação e de intolerância, abrigando-se atrás de um odioso antissemitismo, de que a grande França liberal dos direitos do homem sucumbirá, se não for curada. É um crime explorar o patriotismo para as obras do ódio; é um crime, por fim, fazer do sabre o deus moderno, quando toda a ciência humana está a serviço da obra iminente da verdade e da justiça.

Essa verdade, essa justiça, que tão apaixonadamente desejamos, que aflição vê-las assim esbofeteadas, mais desprezadas e mais obscurecidas! Desconfio do desmoronamento que deu na de Scheurer-Kestner, e acredito que ele acabará sentido remorsos, o de não ter agido revolucionariamente no dia da interpelação no Senado, revelando o que sabia, para pôr tudo abaixo. Foi o grande homem de bem da história, o homem de vida leal, acreditou que a verdade se bastaria a si própria, sobretudo quando ela lhe aparecia clara como a luz do dia. De que valeria todo o transtorno, se logo o sol a tudo esclareceria? E foi por essa serenidade confiante que foi tão cruelmente punido. O mesmo para o tenente-coronel Picquart, que, por um sentimento de grande dignidade, não quis publicar as cartas do general Gonse. Esses escrúpulos o tornam ainda mais honrado quando sabemos que, enquanto ele se mantinha respeitoso na disciplina, seus superiores o faziam cobrir-se de lama, instruindo eles mesmos o processo, da maneira mais inesperada e ultrajante. Há duas vítimas, dois homens corajosos, dois corações simples, que se entregaram a Deus, enquanto o Diabo se movimentava. E até mesmo se viu, da parte do tenente-coronel Picquart, essa ignomínia: um tribunal francês, depois de ter permitido que o promotor atacasse publicamente uma testemunha, acusando-a de todos os crimes, apesar à audiência secreta justamente quando a testemunha começou a se explicar e a se defender. Afirmo ser este mais um crime, um crime que provocará a indignação da consciência universal. Decididamente, nossos tribunais militares têm uma ideia muito particular de justiça.

Essa é, pois, a simples verdade, senhor Presidente, e ela é assustadora, e marcará sua presidência como uma mancha. Desconfio que o senhor não pode fazer nada esse respeito, que é prisioneiro da Constituição e de seus assessores. Mas tem ainda assim um dever como homem, no qual pensa, e que cumprirá. Não que eu duvide, aliás, nem um pouco, que a verdade triunfará. Repito-o, e com uma certeza ainda mais veemente: a verdade está apenas a caminho e ninguém a deterá́. As coisas estão apenas começando, pois apenas agora os fatos estão claros: de um lado, os culpados que não querem que a justiça se faça; de outro, os honestos que darão sua vida para que ela se faça. Já o disse antes, e vou repeti-lo aqui: quando a verdade fica soterrada, ela toma corpo, e ganha tal força explosiva que, quando explode, leva tudo consigo. Veremos se o que acaba de ser preparado não será́ mais tarde o mais retumbante dos desastres.

Mas essa carta já vai longe, senhor Presidente, e é hora de concluí-la.

Acuso o comandante du Paty de Clam de ter sido o criador diabólico do erro judicial, inconscientemente, quero crer, e ter saído em defesa de sua obra nefasta, durante três anos, por maquinações as mais estapafúrdias e as mais culposas.

Acuso o general Mercier de ter se tornado cúmplice, ainda que por franqueza de carácter, de uma das maiores iniquidades do século.

Acuso o general Billot de ter tido entre as mãos as provas indubitáveis da inocência de Dreyfus e de tê-las ocultado, tornando-se, pois, culpado de crime de lesa-humanidade e lesa–justiça, por motivos políticos e para livrar um Estado-Maior comprometido.

Acuso o general de Boisdeffre e o general Gonse de tornarem-se cúmplices do mesmo crime, um sem dúvida por paixão clerical, o outro por esse corporativismo que faz do Ministério da Guerra uma arca santa inatacável.

Acuso o general de Pellieux e o comandante Ravary de terem feito uma investigação criminosa, um inquérito da mais monstruosa parcialidade e do qual temos, no relatório do segundo, um monumento perene da mais ingênua audácia.

Acuso os três especialistas sem grafologia, os senhores Belhomme, Varinard e Couard de terem emitido pareceres mentirosos e fraudulentos, a menos que um laudo médico os declare tomados por alguma patologia da vista e do juízo.

Acuso o Ministério da Guerra de ter promovido na imprensa, particularmente no L’éclair e no L’Écho de Paris, uma campanha abominável, para manipular a opinião pública e acobertar sua falha.

Acuso por fim o primeiro Conselho de Guerra de ter violado o direito, condenando um acusado com base em um documento secreto, e acuso o segundo Conselho de Guerra de ter encoberto essa ilegalidade, por ter recebido ordens, cometendo por sua vez o crime jurídico de absolver conscientemente um culpado.

Fazendo essas acusações, não ignoro enquadrar-me nos artigos 30 e 31 da lei de imprensa de 29 de julho de 1881, que pune os delitos de difamação. E é voluntariamente que eu me exponho.

Quanto às pessoas que eu acuso, não as conheço, nunca as vi, não nutro por elas nem rancor nem ódio. Não passam para mim de entidades, de espíritos da malevolência social. O ato que aqui realizo não é nada além de uma ação revolucionária para apressar a explosão de verdade e justiça.

Não tenho mais que uma paixão, uma paixão pela verdade, em nome da humanidade que tanto sofreu e que tem direito à felicidade. Meu protesto inflamado nada mais é que o grito da minha alma. Que ousem, portanto levar–me perante ao tribunal do júri e que o inquérito se dê à luz do dia!

É o que espero.

Receba, senhor Presidente, minhas manifestações de mais profundo respeito.





(Eu acuso! O Processo do Capitão Dreyfus. Organização e tradução de Ricardo Lísias)



(A degradação de Alfred Dreyfus, 5 de janeiro de 1895. Desenho de Henri Meyer na capa do Petit Journal de 13 de janeiro de 1895, com a legenda "O traidor")

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

SWATCH, de Catarina Lins

 

 


O relógio Swatch que eu levava no pulso, quando criança, no pátio

de um navio, talvez, no Chile, segurando os cabelos com uma das mãos, para a fotografia.

Os mesmos cabelos e o relógio que eu vejo agora, na volta de levar o lixo, antes de ligar para a faxina,

antes de ver as mensagens e fazer a lista para o Casamento.

Agora,

outros cabelos adentram a sala sem que ninguém perceba, trazidos pelo vento ou na cabeça de alguém

ainda muito mais jovem

(mas ainda assim, com mesma idade, mais ou menos) –

A melhor brincadeira

era a de índio

todos nas nossas cabanas

feitas de plástico

com arcos e flechas

de plástico.

Eu gostava de ti porque eras

ou parecias, em parte,

incapaz de machucar

alguém

(teoricamente)

incapaz

de machucar.

Mas todas as pessoas ou coisas que parecem incapazes

são assim apenas

na superfície,

na fotografia.

Anos depois, eu olharia

diferente para essa aparência

inofensiva.

 

(Ilustração : Pablo Picasso: Femme à la montre, 1932)