domingo, 29 de dezembro de 2019

الكوابيس / O AUTOCARRO DOS PESADELOS, de Najwân Darwîsh



رأيتهم يضعون خالاتي في أكياس بلاستيك سوداء

وفي زوايا الأكياس تتجمع دماؤهن الحارة

(لكن أنا ليس لي خالات)

عرفت أنهم قد قتلوا نتاشا -ابنتي التي في الثالثة

(لكن أنا ليس لي ابنة)

قيل لي أنهم اغتصبوا زوجتي قبل أن يجرّوا جسمها على الدرج ويتركوه في الشارع (لكن أنا لم أتزوج)

لا شك هذه نظارتي التي تحطمت تحت البسطار

(لكن أنا لا ألبس نظارة!)

. . .

كنتُ نائماً في بيتنا أَحلم بالسفر إلى بيتها، وحين استيقظت:

رأيت إخوتي

يتدلّون

من سقف كنيسة القيامة.

كان الرب يقول من الشفقة: هذا ألمي أنا.

وكنت أَستجمع كبرياء المُعلّقين وأقول: لا بل هذا ألمنا!

... الألم يضيء ويصير أحبّ إليّ من كوابيسي. ...

لن أهرب للشمال

أيها الرب

لا تحسبني من الذين يبحثون عن ملاذ.

- سنكمل لاحقاً هذا الحساب -

عليّ أن أمضي الآن إلى النوم:

لا أريد أن أتأخر عن باص الكوابيس، الذاهب إلى صبرا وشاتيلا

...



Tradução de André Simões:




vi-os deitar as minhas tias em sacos de plástico negro

e nos cantos dos sacos acumulava-se o sangue morno delas

(mas eu não tenho tias)

soube que tinham matado Natacha – a minha filha de três anos

(mas eu não tenho filha)

disseram-me que eles tinham violado a minha mulher antes de lhe arrojarem o corpo

pelas escadas e de o deixarem na rua

(mas eu não sou casado)

foram de certeza os meus óculos que foram esmagados debaixo das botas deles

(mas eu não uso óculos!)

...



dormia eu em casa dos meus pais e sonhava em viajar até à casa dela, e quando

acordei:

vi os meus irmãos

pendurados no telhado da igreja da Ressurreição.

dizia o Senhor por piedade: esta é a minha dor.

e eu recolhia o orgulho dos enforcados e dizia: não, esta é a nossa dor!

...



a dor ilumina e torna-se-me mais querida que os meus pesadelos

...



não fugirei para o norte

Senhor

não me contes entre os que procuram refúgio



– fecharemos estas contas mais tarde –



agora tenho de ir dormir:

não quero chegar atrasado ao autocarro dos pesadelos

o que vai para Sabra e Chatila...




(Ilustração: Ismael Shmoot)







sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

A NATUREZA NA POESIA DE EMILY DICKINSON, de Cecy Barbosa Campos




Pouco conhecida em seus 56 anos de vida, passados quase totalmente em Amherst, Massachusetts, Emily Dickinson só se revelou ao mundo como poeta após a sua morte. 

Foram encontrados na escrivaninha de seu quarto, de onde raramente saía, cerca de 1775 poemas amarrados com barbante em pacotinhos. Escritos à mão, muitos deles parecendo rascunho à espera de forma posterior, e todos eles sem título, o que faz com que, usualmente, sejam citados pelo primeiro verso ou por números. 

Em 1890, postumamente, é publicado o primeiro volume de uma série de três, com seus poemas e em 1894 são publicadas suas cartas. Desde então, Emily Dickinson torna-se uma das maiores figuras da literatura norte-americana. 

Sua vida misteriosa tem desafiado os biógrafos que se perdem na falta de provas para inúmeras suposições. Sabe-se que, após infância e adolescência normais, participante das atividades próprias à idade, retraiu-se por volta de 1860, afastando-se por completo das atividades sociais. 

Vestida de branco e sendo vista apenas no jardim, cuidando das flores, já a esta época desencadeava-se a efervescência literária que a levaria a obra tão extensa. 

Entre os muitos temas abordados em sua poesia, estão a Vida, a Morte, o Amor, a Imortalidade e a Natureza. 

A Natureza foi fonte de inspiração quase constante na poesia de Emily Dickinson e, mesmo quando não aparece tratada em profundidade sendo o tema principal, é mencionada brevemente, como complemento do cenário ou como imagem representativa da morte, nas muitas alusões que faz ao inverno, à neve e ao frio, ou simbolizando mudanças de caráter através do ciclo das estações do ano. 

Embora existam afinidades da poesia Dickinsoniana referente à Natureza com conceitos emitidos por autores transcendentalistas, principalmente Emerson e Thoreau, Emily Dickinson não pode ser enquadrada em nenhum movimento ou escola, pelas características absolutamente pessoais de sua obra. 

Se, às vezes, era irreverente com a religião e até mesmo com Deus, a quem chegou a chamar de “Ladrão – Banqueiro – Pai”, em um de seus poemas, mantinha em relação à Natureza uma atitude sempre reverente, como se ela representasse a manifestação divina mais intensamente que igrejas e credos. 

O sol, a neve e até os relâmpagos, a fascinavam. Em um de seus primeiros poemas, “An Altered look about the Hills”, catalogava as belezas da primavera e o esplendor da paisagem novamente iluminada. As “criaturas da natureza” também eram alvo de sua atenção, não importando quão insignificantes parecessem ser. Assim, a abelha, a borboleta, o passarinho, o rato são por ela lembrados. A serpente aparece de maneira dramatizada em “A Narrow Fellow in the Grass” e apesar da graça e da observação aguçada com que é feita a descrição, infere-se que ali existe uma ameaça psicológica. 

A proximidade do outono e a beleza natural do fim de verão impressionam Emily Dickinson, que registra com sensibilidade os sons e visões da paisagem, passando depois de observadora a participante da cena na qual se insere e descreve em “The Morns are meeker than they were”. Em “These are the days when Birds come back” o mesmo tema é abordado – o período de transição entre o verão e o outono, quando dias quentes e ensolarados retornam interrompendo o outono e dando lugar ao chamado “Indian Summer”, o verão indiano, fenômeno climático tipicamente americano. Os pássaros se enganam com estes dias tardios de verão que surgem no meio do outono e também se engana a poeta induzida ao erro pela mistificação da natureza que a envolve em “azul e ouro”. 

Este poema sugere, alegoricamente, a caminhada inexorável do tempo, com o verão representando a juventude, o outono a meia idade que vai levar ao inverno representativo da morte. Apesar da conotação negativa que nos é trazida pelas ideias de fraudes e mistificações há o aspecto positivo que nos é transmitido pelo ciclo das estações, trazendo o renascimento após a morte, ou seja, o fato de o inverno ser seguido pela primavera. 

As duas estrofes finais do poema assemelham-se a uma prece em que os termos principais são “sacramento”, “última Comunhão”, “emblemas sagrados”, “pão abençoado” e “vinho imortal”. Parece residir aí uma súplica para inclusão num ciclo contínuo de vida e morte. 

Emily Dickinson faz uso frequente de metáforas em suas poesias da natureza. A madrugada e o anoitecer também são descritos metaforicamente em “I’ll tell you how the Sun Rose”, com vívido contraste entre a exuberância do dia que nasce e a atmosfera intimista que chega com o pôr do sol. O poema “I taste a Liquor Never Brewed” descreve a exaltação da poeta ante o azul do céu, o brilho do verão e a suavidade do orvalho, que agem como bebida embriagadora. 

Através destes poucos exemplos verificamos que a Natureza, em seus diversos aspectos, sempre alertou os sentidos e a sensibilidade de Emily Dickinson. Por isso ela foi capaz de tornar permanente a fugacidade de um momento como o nascer do sol e de fixar emoções inspiradas pelo canto dos pássaros ou pelo terror advindo de relâmpagos e de tempestades. 

Para melhor ilustrar o que foi dito, apresentamos aqui dois dos poemas citados com as traduções feitas pela autora deste trabalho. 



130 

These are the days when Birds come back– 

A very few – a Bird or two – 

To take a backward look. 



These are the days when skies resume 

The old – old sophistries of June – 

A blue and gold mistake 



Oh Fraud that cannot cheat the Bee – 

Almost thy plausibility 

Induces my belief. 



Till ranks of seeds their witness bear – 

And softly thro’ the altered air 

Hurries a timid leaf. 



Oh Sacrament of summer days, 

Oh Last Communion in the Hoze – 

Permit a child to join 



Thy sacred emblems to partake 

Thy consecrated bread to take 

And thine immortal wine! 



130 



Estes sãos os dias em que os pássaros [voltam – 

Muito poucos – apenas um ou dois – 

Para dar uma olhada para trás. 



Estes são os dias em que os céus [retornam 

Aos velhos – velhos sofismas de Junho– 

Em mistificação azul e ouro 



Ó fraude que não consegue enganar a [Abelha – 

A sua plausibilidade 

Quase me faz acreditar 



Até que as sementes aparecem 

Sopradas, suavemente, pelo vento 

E escapa uma folha tímida 



Oh, Sacramento dos dias de verão, 

Oh, Última Comunhão na névoa 

Permite que mais um filho se junte 



Para compartilhar de emblemas [sagrados 

Comendo de seu pão abençoado 

E bebendo de seu vinho imortal 



214 



I taste a liquor never brewed – 

From Tankards scooped in Pearl – 

Not all the Vats upon the Rhine 

Yield such san Alcohol? 



Inebriate of Air – am I – 

And Debauchee of Dew – 

Reeling – thro endless summer days – 

From inns of Molten Blue – 



When “Landlords” turn the drunken Bee 

Out of the Foxglove’s door – 

When Butterflies – renounce their 

“drams” – 

I shall but drink the more! 



Till Seraphs swing their snowy Hats 

And Saints – to windows run – 

To see the little Tippler 

Learning against the – Sun - 



214 



Provo uma bebida nunca fermentada 

De Canecas esculpidas em Pérolas – 

Nenhum dos Barris do Reno 

Produz tal Bebida? 



Inebriada de Ar – estou – 

E Bêbada de Orvalho – 

Cambaleando – pelos intermináveis dias de 

verão – 

De tabernas de Azul Metálico – 



Quando os “Proprietários expulsam a [Abelha 

bêbada 

Para fora das portas do Foxglove 

Quando as Borboletas – renunciam a seus 

“goles” – 

Eu bebo ainda mais! 



Até que os Serafins acenem com seus 

chapéus brancos 

E os Santos – corram às janelas – 

Para ver a Bebadazinha 

Apoiando-se ao – Sol – 





Bibliografia: 


DICKINSON, Emily. The Complete Poems of Emily Dickinson. (Ed. by Thomas H. Johnson). Cambridge, Mass. 1970. 


Notas: 

1. Tradução dos títulos dos poemas: 

An Altered look about the Hills – Uma visão diferente das montanhas 

A Narrow Fellow in the Grass – Um companheiro esguio na grama 

The Morns are meeker than they were – As manhãs são mais tranquilas agora 

These are the days when the Birds come Back – Estes são os dias em que os pássaros voltam 

I taste a liquor never brewed – Provo uma bebida nunca fermentada 

I’ll tell you how the Sun Rose – Eu lhe direi como o Sol nasce 

2. Uma das “excentricidades” de Emily Dickinson é o uso não convencional de letras maiúsculas. 



(Ilustração: Emily Dickinson - daguerreotipo aos 16 anos; oficialmente, a única foto conhecida da poeta)



terça-feira, 24 de dezembro de 2019

AOS POETAS CLÁSSICOS, de Patativa do Assaré



   

Poetas niversitário,

Poetas de Cademia,

De rico vocabularo

Cheio de mitologia;

Se a gente canta o que pensa,

Eu quero pedir licença,

Pois mesmo sem português

Neste livrinho apresento

O prazê e o sofrimento

De um poeta camponês.



Eu nasci aqui no mato,

Vivi sempre a trabaiá,

Neste meu pobre recato,

Eu não pude estudá.

No verdô de minha idade,

Só tive a felicidade

De dá um pequeno insaio

In dois livro do iscritô,

O famoso professô

Filisberto de Carvaio.



No premêro livro havia

Belas figuras na capa,

E no começo se lia:

A pá — O dedo do Papa,

Papa, pia, dedo, dado,

Pua, o pote de melado,

Dá-me o dado, a fera é má

E tantas coisa bonita,

Qui o meu coração parpita

Quando eu pego a rescordá.



Foi os livro de valô

Mais maió que vi no mundo,

Apenas daquele autô

Li o premêro e o segundo;

Mas, porém, esta leitura,

Me tirô da treva escura,

Mostrando o caminho certo,

Bastante me protegeu;

Eu juro que Jesus deu

Sarvação a Filisberto.



Depois que os dois livro eu li,

Fiquei me sintindo bem,

E ôtras coisinha aprendi

Sem tê lição de ninguém.

Na minha pobre linguage,

A minha lira servage

Canto o que minha arma sente

E o meu coração incerra,

As coisa de minha terra

E a vida de minha gente.



Poeta niversitaro,

Poeta de cademia,

De rico vocabularo

Cheio de mitologia,

Tarvez este meu livrinho

Não vá recebê carinho,

Nem lugio e nem istima,

Mas garanto sê fié

E não istruí papé

Com poesia sem rima.



Cheio de rima e sintindo

Quero iscrevê meu volume,

Pra não ficá parecido

Com a fulô sem perfume;

A poesia sem rima,

Bastante me disanima

E alegria não me dá;

Não tem sabô a leitura,

Parece uma noite iscura

Sem istrela e sem luá.



Se um dotô me perguntá

Se o verso sem rima presta,

Calado eu não vou ficá,

A minha resposta é esta:

— Sem a rima, a poesia

Perde arguma simpatia

E uma parte do primô;

Não merece munta parma,

É como o corpo sem arma

E o coração sem amô.



Meu caro amigo poeta,

Qui faz poesia branca,

Não me chame de pateta

Por esta opinião franca.

Nasci entre a natureza,

Sempre adorando as beleza

Das obra do Criadô,

Uvindo o vento na serva

E vendo no campo a reva

Pintadinha de fulô.



Sou um caboco rocêro,

Sem letra e sem istrução;

O meu verso tem o chêro

Da poêra do sertão;

Vivo nesta solidade

Bem destante da cidade

Onde a ciença guverna.

Tudo meu é naturá,

Não sou capaz de gostá

Da poesia moderna.



Dêste jeito Deus me quis

E assim eu me sinto bem;

Me considero feliz

Sem nunca invejá quem tem

Profundo conhecimento.

Ou ligêro como o vento

Ou divagá como a lêsma,

Tudo sofre a mesma prova,

Vai batê na fria cova;

Esta vida é sempre a mesma.



(Ilustração: Georges De La Tour - Saint Jerome lisant)





sábado, 21 de dezembro de 2019

A GRAMA DO VIZINHO, de Martha Medeiros



Ao amadurecer, descobrimos que a grama do vizinho não é mais verde coisíssima nenhuma. 

Estamos todos no mesmo barco. 

Há no ar certo queixume sem razões muito claras. 

Converso com mulheres que estão entre os 40 e 50 anos, todas com profissão, marido, filhos, saúde, e ainda assim elas trazem dentro delas um não-sei-o-quê perturbador, algo que as incomoda, mesmo estando tudo bem. 

De onde vem isso? Anos atrás, a cantora Marina Lima compôs com o seu irmão, o poeta Antonio Cícero, uma música que dizia: 

“Eu espero/ acontecimentos/ só que quando anoitece/ é festa no outro apartamento”. 

Passei minha adolescência com esta sensação: a de que algo muito animado estava acontecendo em algum lugar para o qual eu não tinha convite. É uma das características da juventude: considerar-se deslocado e impedido de ser feliz como os outros são, ou aparentam ser. Só que chega uma hora em que é preciso deixar de ficar tão ligada na grama do vizinho. 

As festas em outros apartamentos são fruto da nossa imaginação, que é infectada por falsos holofotes, falsos sorrisos e falsas notícias. Os notáveis alardeiam muito suas vitórias, mas falam pouco das suas angústias, revelam pouco suas aflições, não dão bandeira das suas fraquezas, então fica parecendo que todos estão comemorando grandes paixões e fortunas, quando na verdade a festa lá fora não está tão animada assim. Ao amadurecer, descobrimos que a grama do vizinho não é mais verde coisíssima nenhuma. Estamos todos no mesmo barco, com motivos pra dançar pela sala e também motivos pra se refugiar no escuro, alternadamente. 

Só que os motivos pra se refugiar no escuro raramente são divulgados. 

Pra consumo externo, todos são belos, sexys, lúcidos, íntegros, ricos, sedutores. 

“Nunca conheci quem tivesse levado porrada/ todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo”. 

Fernando Pessoa também já se sentiu abafado pela perfeição alheia, e olha que na época em que ele escreveu estes versos não havia esta overdose de revistas que há hoje, vendendo um mundo de faz-de-conta. Nesta era de exaltação de celebridades – reais e inventadas – fica difícil mesmo achar que a vida da gente tem graça. Mas, tem. Paz interior, amigos leais, nossas músicas, livros, fantasias, desilusões e recomeços, tudo isso vale ser incluído na nossa biografia. Ou será que é tão divertido passar dois dias na Ilha de Caras fotografando junto a todos os produtos dos patrocinadores? Compensa passar a vida comendo alface para ter o corpo que a profissão de modelo exige? Será tão gratificante ter um paparazzo na sua cola cada vez que você sai de casa? Estarão mesmo todos realizando um milhão de coisas interessantes enquanto só você está sentada no sofá pintando as unhas do pé? Favor não confundir uma vida sensacional com uma vida sensacionalista. 

As melhores festas acontecem dentro do nosso próprio apartamento. 



(Ilustração: George Grosz - the agitator, 1928)






quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

O NAVIO NEGREIRO, de Castro Alves



I



'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço

Brinca o luar - dourada borboleta;

E as vagas após ele correm... cansam

Como turba de infantes inquieta.



'Stamos em pleno mar... Do firmamento

Os astros saltam como espumas de ouro...

O mar em troca acende as ardentias,

- Constelações do líquido tesouro...



'Stamos em pleno mar... Dois infinitos

Ali se estreitam num abraço insano,

Azuis, dourados, plácidos, sublimes...

Qual dos dous é o céu? qual o oceano?...



'Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas

Ao quente arfar das virações marinhas,

Veleiro brigue corre à flor dos mares,

Como roçam na vaga as andorinhas...



Donde vem? onde vai? Das naus errantes

Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?

Neste saara os corcéis o pó levantam,

Galopam, voam, mas não deixam traço.



Bem feliz quem ali pode nest'hora

Sentir deste painel a majestade!

Embaixo - o mar em cima - o firmamento...

E no mar e no céu - a imensidade!



Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!

Que música suave ao longe soa!

Meu Deus! como é sublime um canto ardente

Pelas vagas sem fim boiando à toa!



Homens do mar! ó rudes marinheiros,

Tostados pelo sol dos quatro mundos!

Crianças que a procela acalentara

No berço destes pélagos profundos!



Esperai! esperai! deixai que eu beba

Esta selvagem, livre poesia

Orquestra - é o mar, que ruge pela proa,

E o vento, que nas cordas assobia...


..........................................................


Por que foges assim, barco ligeiro?

Por que foges do pávido poeta?

Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira

Que semelha no mar - doudo cometa!



Albatroz! Albatroz! águia do oceano,

Tu que dormes das nuvens entre as gazas,

Sacode as penas, Leviathan do espaço,

Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas.





II





Que importa do nauta o berço,

Donde é filho, qual seu lar?

Ama a cadência do verso

Que lhe ensina o velho mar!

Cantai! que a morte é divina!

Resvala o brigue à bolina

Como golfinho veloz.

Presa ao mastro da mezena

Saudosa bandeira acena

As vagas que deixa após.



Do Espanhol as cantilenas

Requebradas de langor,

Lembram as moças morenas,

As andaluzas em flor!

Da Itália o filho indolente

Canta Veneza dormente,

- Terra de amor e traição,

Ou do golfo no regaço

Relembra os versos de Tasso,

Junto às lavas do vulcão!



O Inglês - marinheiro frio,

Que ao nascer no mar se achou,

(Porque a Inglaterra é um navio,

Que Deus na Mancha ancorou),

Rijo entoa pátrias glórias,

Lembrando, orgulhoso, histórias

De Nelson e de Aboukir.. .

O Francês - predestinado -

Canta os louros do passado

E os loureiros do porvir!



Os marinheiros Helenos,

Que a vaga jônia criou,

Belos piratas morenos

Do mar que Ulisses cortou,

Homens que Fídias talhara,

Vão cantando em noite clara

Versos que Homero gemeu ...

Nautas de todas as plagas,

Vós sabeis achar nas vagas

As melodias do céu! ...





III





Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!

Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano

Como o teu mergulhar no brigue voador!

Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras!

É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ...

Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!





IV





Era um sonho dantesco... o tombadilho

Que das luzernas avermelha o brilho.

Em sangue a se banhar.

Tinir de ferros... estalar de açoite...

Legiões de homens negros como a noite,

Horrendos a dançar...



Negras mulheres, suspendendo às tetas

Magras crianças, cujas bocas pretas

Rega o sangue das mães:

Outras moças, mas nuas e espantadas,

No turbilhão de espectros arrastadas,

Em ânsia e mágoa vãs!



E ri-se a orquestra irônica, estridente...

E da ronda fantástica a serpente

Faz doudas espirais ...

Se o velho arqueja, se no chão resvala,

Ouvem-se gritos... o chicote estala.

E voam mais e mais...



Presa nos elos de uma só cadeia,

A multidão faminta cambaleia,

E chora e dança ali!

Um de raiva delira, outro enlouquece,

Outro, que martírios embrutece,

Cantando, geme e ri!



No entanto o capitão manda a manobra,

E após fitando o céu que se desdobra,

Tão puro sobre o mar,

Diz do fumo entre os densos nevoeiros:

"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!

Fazei-os mais dançar!..."



E ri-se a orquestra irônica, estridente. . .

E da ronda fantástica a serpente

Faz doudas espirais...

Qual um sonho dantesco as sombras voam!...

Gritos, ais, maldições, preces ressoam!

E ri-se Satanás!...





V





Senhor Deus dos desgraçados!

Dizei-me vós, Senhor Deus!

Se é loucura... se é verdade

Tanto horror perante os céus?!

Ó mar, por que não apagas

Co'a esponja de tuas vagas

De teu manto este borrão?...

Astros! noites! tempestades!

Rolai das imensidades!

Varrei os mares, tufão!



Quem são estes desgraçados

Que não encontram em vós

Mais que o rir calmo da turba

Que excita a fúria do algoz?

Quem são? Se a estrela se cala,

Se a vaga à pressa resvala

Como um cúmplice fugaz,

Perante a noite confusa...

Dize-o tu, severa Musa,

Musa libérrima, audaz!...



São os filhos do deserto,

Onde a terra esposa a luz.

Onde vive em campo aberto

A tribo dos homens nus...

São os guerreiros ousados

Que com os tigres mosqueados

Combatem na solidão.

Ontem simples, fortes, bravos.

Hoje míseros escravos,

Sem luz, sem ar, sem razão. . .



São mulheres desgraçadas,

Como Agar o foi também.

Que sedentas, alquebradas,

De longe... bem longe vêm...

Trazendo com tíbios passos,

Filhos e algemas nos braços,

N'alma - lágrimas e fel...

Como Agar sofrendo tanto,

Que nem o leite de pranto

Têm que dar para Ismael.



Lá nas areias infindas,

Das palmeiras no país,

Nasceram crianças lindas,

Viveram moças gentis...

Passa um dia a caravana,

Quando a virgem na cabana

Cisma da noite nos véus ...

... Adeus, ó choça do monte,

... Adeus, palmeiras da fonte!...

... Adeus, amores... adeus!...



Depois, o areal extenso...

Depois, o oceano de pó.

Depois no horizonte imenso

Desertos... desertos só...

E a fome, o cansaço, a sede...

Ai! quanto infeliz que cede,

E cai p'ra não mais s'erguer!...

Vaga um lugar na cadeia,

Mas o chacal sobre a areia

Acha um corpo que roer.



Ontem a Serra Leoa,

A guerra, a caça ao leão,

O sono dormido à toa

Sob as tendas d'amplidão!

Hoje... o porão negro, fundo,

Infecto, apertado, imundo,

Tendo a peste por jaguar...

E o sono sempre cortado

Pelo arranco de um finado,

E o baque de um corpo ao mar...



Ontem plena liberdade,

A vontade por poder...

Hoje... cúm'lo de maldade,

Nem são livres p'ra morrer. .

Prende-os a mesma corrente

- Férrea, lúgubre serpente -

Nas roscas da escravidão.

E assim zombando da morte,

Dança a lúgubre coorte

Ao som do açoute... Irrisão!...



Senhor Deus dos desgraçados!

Dizei-me vós, Senhor Deus,

Se eu deliro... ou se é verdade

Tanto horror perante os céus?!...

Ó mar, por que não apagas

Co'a esponja de tuas vagas

Do teu manto este borrão?

Astros! noites! tempestades!

Rolai das imensidades!

Varrei os mares, tufão! ...





VI





Existe um povo que a bandeira empresta

P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...

E deixa-a transformar-se nessa festa

Em manto impuro de bacante fria!...

Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,

Que impudente na gávea tripudia?

Silêncio. Musa... chora, e chora tanto

Que o pavilhão se lave no teu pranto! ...



Auriverde pendão de minha terra,

Que a brisa do Brasil beija e balança,

Estandarte que a luz do sol encerra

E as promessas divinas da esperança...

Tu que, da liberdade após a guerra,

Foste hasteado dos heróis na lança

Antes te houvessem roto na batalha,

Que servires a um povo de mortalha!...



Fatalidade atroz que a mente esmaga!

Extingue nesta hora o brigue imundo

O trilho que Colombo abriu nas vagas,

Como um íris no pélago profundo!

Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga

Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!

Andrada! arranca esse pendão dos ares!

Colombo! fecha a porta dos teus mares!



(Espumas Flutuantes)



(Ilustração: Johann Moritz Rugendas - Navio negreiro - 1830)



domingo, 15 de dezembro de 2019

CAPITU SOU EU, de Dalton Trevisan






A professora de Letras irrita-se cada vez que, início da aula, ouve no pátio os estampidos da maldita moto. 

Aos saltos de três ou quatro degraus, lá vem ele na corrida, atrasado sempre. Esbaforido, se deixa cair na carteira, provocante de pernas abertas. Mal se desculpa ou nem isso. Ela reconhece o tipo: contestador, rebelde sem causa, beligerante. 

O selvagem da moto é, na verdade, um tímido em pânico, denunciado no rubor da face, que a barba não esconde. E, aos olhos dela, o torna assim atraente, um cacho do negro cabelo na testa. 

Na prova do curso, o único que sustenta a infidelidade de Capitu. Confuso, na falta de argumentos, supre-os com a veemência e gesticulação arrebatada: infiel, a nossa heroína, pela perfídia fatal que mora em todo coração feminino. Insiste na coincidência dos nomes: Ca-ro-li-na, da mulher do autor (com os amores duvidosos na cidade do Porto), e o da personagem Ca-pi-to-li-na... 

A traição da pobre criatura, para ele, é questão pessoal, não debate literário ou análise psicológica. Capitu? Simples mulherinha à-toa. "Mulherinha, já pensou?", ela se repete, indignada. "Meu Deus, este, sim, é o machista supremo. Um monstro moral à solta na minha classe!" E por fim: "Ai da moça que se envolver com tal bruto sem coração..." 

Na prova escrita os erros graves de sintaxe e mera ortografia já não são disfarçados pelo orador com pedrinhas na boca. E por que, ao sublinhá-los na caneta vermelha, tanto a perturbam as garatujas canhestras? 

Nas aulas, por sua vez, ela que o confunde: sadista e piedosa, arrogante e singela. Sentada no canto da mesa, cruza as longas pernas, um lampejo da coxa imaculada. E, no tornozelo esquerdo, a correntinha trêmula — o signo do poder da domadora que, sem chicotinho ou pistola, de cada aluno faz uma fera domesticada. Elegante, blusa com decote generoso, os seios redondos em flor — ou duas taças plenas de vinho branco? 

Finda a aula, deparam-se os dois no pátio, já desaba com fúria o temporal. Condoída, oferece-lhe carona de carro, não moram no mesmo bairro? No veículo fechado, o seu toque casual a estremece, perna cabeluda à mostra com o bermudão e botinas de couro. A cabeleira revolta não esconde, agora de perto, o princípio de calvície. 

Ao clarão do poste, as gotas de chuva lá fora desenham no rosto da professora fios tremidos de sombra. Com susto, o moço descobre que, sim, é bela: as bochechas rosadas pedem mordidas, sob a coroa solar dos grandes cachos loiros. Sem aviso, inclina-se e beija-a docemente. Para sua surpresa, em vez de se defender, a feroz inimiga lhe oferece a boquinha pintada, com a língua insinuante. 

Dia seguinte ela telefona, propõe irem ao teatro, já tem os convites. Essa, a norma no futuro: tudo ela paga — o ingresso, o sorvete na lanchonete, a conta do restaurante. 

Na volta, ela comenta o espetáculo. Ele ouve apenas. Silêncio inteligente? Ou não tem mesmo o que dizer? No carro, mais beijo, mais amasso. 

"Louca! Louca! O que está fazendo? Nada de se envolver. Logo esse, um babuíno iletrado, que coça o joelho e odeia Capitu? E o teu filho, mulher? Não pensa que...?" É tarde: língua contra língua, apenas uma boca faminta que pede mais e mais. 

Dias depois, convida-o para jantar. Música em surdina, luz de vela, vinho branco. Um filme clássico no vídeo, nenhum dos dois chega a ver. É a confusão da primeira vez: 

— Como é que desabotoa? Não consigo... 

— Cuidado, bem. Assim você rasga! 

Só o bruxuleio da tela. Tudo acontece no falso tapete persa da sala, onde ele derruba o seu copo de vinho: ó dunas calipígias movediças! E sai de joelho todo esfolado. 

Flutua dois palmos acima do chão: "Como é gostosa, a minha professorinha!" 

À sua mercê, na pose lânguida de pomba branca arrulhante. O queixo apoiado na mãozinha esquerda (com tais dedos fofinhos, tal Mariazinha estaria perdida na gaiola da bruxa). O sestro de apertar o olhinho glauco que a faz tão sensual — e era apenas, ele soube depois, o da míope sem a lente de contato. 

Uma semana mais tarde, de volta do cinema, ele entra para um cálice de vinho do Porto. Daí se queixa do joelho esfolado. Ela o recolhe no quarto, a ampla cama redonda. 

Ao clarão da lua na janela. Sempre a luz apagada, uma cicatriz de cesariana? Arrepiado, ele evita acariciar-lhe o ventre. Mais excitante: 

— Eu não sei fazer direito. Com ele... nunca fiz. 

Casada sete anos com um dentista. Divorciada há dois. Um filho de cinco. 

— Com o tal nunca senti prazer. Me ensine. 

O que ela não conta: dez anos mais velha. 

— Eu quero aprender. Só para te agradar. 

— ... 

— Com você é por amor. 

De súbito, já esquecida: 

— Põe tudo, seu puto. Vem todo dentro de mim! 

É o ritual. Mais um filme clássico, que ele abomina e não vê. Ela, aos gemidos e suspiros: 

— É assim que se faz? Pode pedir. Tudo o que... Sou a tua escrava! 

Escrava, sim, rastejadora e suplicante ou professora despótica, ainda na cama: 

— Estes dois, está vendo? Não são para exibir. 

— ? 

— São para pegar, seu puto. Não é enfeite! 

A suposta aprendiz, na verdade, mestra com louvor em toques e blandícias. 

— Agarre. Sim. Com força. Assim. 

— ... 

— Aqui, beba o teu vinho. 

Quer viciá-lo, ela, a droga fatal? 

— E mate a tua sede! 

Se domina com fluência quatro ou cinco línguas, mais graduada é a linguinha poliglota em ciências e artes. 

— Estou fazendo direito? Ai, meu amor, vem... Eu quero tudo. Você todinho. Mais, seu... 

Ó grande gata angorá — luxo, preguiça e volúpia —, os olhos azuis coruscantes no escuro. 

— Fale, você. Ei, por que não fala? 

Ele, durão. Nem um pio. Aturdido com tamanho delírio verbal. 

De repente, batidas na porta. Fracas, mas insistentes. 

— Pô, quem será? 

O moço, um coração latindo no joelho trêmulo. Decerto o maldito ex-marido (Não é minha? É de mais ninguém!). 

— Orra, o que eu... agora... 

Nu, só de meia branca. "E agora, cara? Se esgueirar para debaixo da cama? Pular a janela? Sair voando pelo telhado?" 

Um fio de voz: 

— Mãe, por favor. 

Ela já enfia o roupão. 

— Mãezinha, estou com medo! 

De chinelinho, a mão na sua boca: 

— Não se mexa. Quietinho. Já volto. 

Fecha a porta. As vozes se afastam. Ele acende o abajur: mania dela, só no escuro. Algum defeito, além da famosa cicatriz? Vergonha do grosso tornozelo? 

Todo vestido, espera sentado no sofá. "Nu, já não me pegam. Nunca mais." 

De volta, ela explica que, isso mesmo, o menino se assustou. Medroso, quer dormir na cama da mãe. Sossega-o, mas não deixa: nada de fixação edipiana. Sempre as malditas fórmulas do velho charlatão, diz ele. Ou pensa, mas não diz. 

Dois beijos, ele se despede. E sai de mansinho. 

Dias depois, ela o convida, ele dá uma desculpa. Outro convite, outra desculpa. Na terceira vez, o encontro no teatro. 

Logo no início da peça, ela não se contém. Voz alta e estridente, chamando a atenção dos espectadores, exige uma explicação. Cansada de amores furtivos. Não é mulherinha qualquer. O moço que se decida: assume o compromisso? 

Em pânico, ele encolhe-se na cadeira. 

— Eu passo a tomar pílula? 

Olha fixo para o palco — depois dessa, Beckett nunca mais. 

— Ou é o fim? 

Ah, bandido querido, ela começa a chorar por dentro. Mil palavras nada podem contra o brado retumbante do seu silêncio. Não encobre, certo, verdades profundas e caladas. É apenas uma linda cabecinha vazia de idéias — e sentimentos. Desesperada, agarra-lhe a mão. Geme, baixinho: 

— Me perdoa... Me perdoa... 

Não ele. E aproveita a deixa: 

— Você tem razão. É o fim. 

Só falar em enigma de Capitu, ele já passa a mão no revólver. 

— Sou muito moço para... 

Sem perdão ela foi condenada, sequer o benefício da dúvida. 

— Isso aí. Já falou. É o fim. 

Dia e noite, ela telefona. E pede, roga, suplica, por favor. Que volte, por Jesus Maria José. Ele acaba cedendo. E já os mesmos não são: o doce leite que, só para ele, secretavam ainda os seus peitinhos presto azedou. 

O mau aluno revela o pior: bebe o seu uísque, o seu vinho, o seu licor. Perde o acanho, prepotente e abusivo. Só deixar um tímido à vontade nos jogos do amor — e sua audácia não tem limite. Quer tudo, e já. Se, dengosa, ela nega para, entre agradinhos e ternurinhas, logo ceder — não com ele. Segunda vez não pede, o bruto simplesmente toma à força. 

Ali na cama do casal, sob o crucifixo bento e a santa de sua devoção, ela se descobre uma bem-dotada contorcionista. É ela? é a sua gata angorá? possessa e possuída, aos uivos, em batalhas sangrentas pelos telhados na noite quente de verão? 

Pela manhã, depois que ele se vai, chora de vergonha. "Como eu fui capaz... Não só concordei. Quem acabou tomando a iniciativa? Só eu. Euzinha. Não jurei que nunca, nunca eu faria... Meu Deus, como beijar agora o meu filho? Ó Jesus, sou mulherinha à-toa? Eu, culpada. Eu... Capitu?" 

Muito desconfia que, apesar da fanfarronice, ele o mais inexperiente. Disfarça o enleio com a feroz truculência. Chegará logo logo ao tabefe de mão aberta (que não deixa marca) e às palmadas sonoras na bundinha arrebitada. Não é o que merece uma cadelinha feminista, advogada graciosa da filha do Pádua? 

Deixa-o de carro diante do barzinho, para encontrar os amigos. Amigos? As coleguinhas lindas e frescas, além de desfrutáveis. Boa safra, essa, para um jovem garanhão! 

Ao sentir que o perde, tudo o que ela faz para retê-lo mais o afasta. Ah, quão pouco lhe serve agora a prosápia dos barões legendários: com a paixão e o desespero, vem o ciúme furioso. Não esquece que ele pode ter quantas queira — dez anos mais novas que... a tia? E que, elas mesmas, se oferecem agressivas. Sem promessa de constância ou fidelidade. 

A tia bem o sufoca, executora de promissórias vencidas e extintas. Tão diferente da outra (vestida só de cabeleira dourada — adeus, nunca mais, ó dunas calipígias movediças!). Agora exige votos de eterno amor antes, durante e depois do amor efêmero. 

Até que uma noite ele cavalga a moto, selvagens a máquina e o piloto, impávido na jaqueta negra de couro — surdo aos gritos que o estampido do motor abafa —, fruindo a liberdade da cabeleira ao vento (merda para o capacete!) e antegozando a próxima conquista. 

— Adeus, gorda grotesca de coxa grossa! 

Ela, arrependida e já resignada com o seu próximo calvário: a perseguição humilhante pelos bares, onde ele exibe o troféu de guerra da correntinha do tornozelo (essa tia louca lá fora, sabe quem é?), a longa vigília diante da sua casa (mora com a mãe viúva), as preces não atendidas, as cartas patéticas, ainda que sem erros de sintaxe ou ortografia — merda para a correção gramatical! 

Um babuíno tatibitate, ah, é, que coça o joelho? Quem dera, ainda uma vez, beijar esse joelho esfolado e, rastejando aos uivos, lamber as suas feridas... Ai dela, mesma situação da outra, enjeitada lá na Suíça pelo bem-amado, desgraciado machista. E, apesar da péssima prova, graduado por média, com distinção em Literatura. 

Essa mesma que, ciosa de sua dignidade, rejeitara uma carona de moto, ao ver que ele se vai, dela esquecido, quer segurá-lo — tarde demais. Na fantasia doida, alcança-o e salta-lhe na garupa, agarrada firme à cintura. Lá seguem os dois, abraçados, à caça de aventuras. 

Depois que ele recolhe a moto na garagem e dorme serenamente na cama, ela continua na dura garupa. Condenada a vigiá-lo, a guardá-lo, sempre a esperá-lo. 

Caminha descalça pelo inferno de brasas vivas. Uma série vergonhosa de casos: fotógrafo homo, pintor futurista, professor impotente, sei lá, poeta bêbado. 

E, última tentativa de reconquistar o seu amor, acaba de publicar na Revista de Letras um artigo em que sustenta a traição de Capitu. 

A sonsa, a oblíqua, a perdida Capitu. Essa mulherinha à-toa. 



(Capitu sou eu) 



(Ilustração: Paula Rego)