sábado, 30 de dezembro de 2017

O MILAGRE DA TÉCNICA, de Hermann Hesse






Nosso amigo Olavo é um sujeito bom, mas um pouco esquisito, que já nos causou muita preocupação. Uma de suas muitas singularidades é uma repulsa fantasticamente exagerada contra pequenas descobertas e resultados práticos da técnica moderna. Fica doido quando vê um isqueiro niquelado, e considera invenções de Satã aqueles pequenos milagres da técnica, como lanternas elétricas em miniatura. Essa repulsa esteve sempre na sua personalidade, fundada na sua maneira de pensar, mas só se manifestou plenamente há pouco tempo, sob a pressão de várias experiências, uma das quais me interessa especialmente, pois, ainda que inocente, participei dela. Vou poupar-me de introduções e, sem qualquer comentário, relato a triste história, assim como Olavo descreveu numa longa carta de Rapallo.


Rapallo, 15 de março

Pois ainda estou vivo, e quero contar-te resumidamente o que me aconteceu nesta viagem. No começo estive muito decepcionado e desconsolado com ela, mas agora as coisas piores se acamaram, e em caso de necessidade posso pensar em toda essa história sem bater a cabeça nas paredes. Começo até a aprender, com meu triste destino.

Quanto às viagens em si, nunca tive muita sorte. Já quando jovem, quando ainda lia Schopenhauer, anotei na minha agenda de viagens as seguintes sentenças:

1) Procura evitar qualquer viagem, mesmo a mais curta!

2) Aquele jornalista que pela primeira vez introduziu o nosso lamentável idioma a expressão “viagem de diversão”, deve ter sido louco. Viajar e divertir-se são conceitos que se excluem totalmente.

3) Nunca te apaixones, muito menos em viagens!

Agora estou em condições de acrescentar a essas recomendações algumas novas, nascidas de recentes experiências. Não te contarei todas elas, mas uma diz: “Protege-te de todos os aparelhos, máquinas e objetos de uso que foram criados por inventores, são recomendados por vendedores, e patenteados pelo Ministério de Patentes, imperial, real ou republicano!” Confesso que com isso, infelizmente, também devo pensar na caneta automática que me deste de presente antes da viagem. Foi bondade tua, e tuas intenções podem ter sido as mais nobres, mas devo dizer-te: amaldiçoei com terríveis palavras tua caneta e a ti. Espero que continues com saúde.

Mas agora basta, quero contar o que houve.

Já sabes mais ou menos por que iniciei aquela maldita viagem. Posso agora confessar, calmamente, foi por causa da Meta Hagemann. Vocês tentaram estragar a coisa com bons conselhos dizendo que a bela moça era uma perigosa flertadora. Bem, soubera que que seus pais queriam viajar com ela para Rapallo, e também sabia em que trem. Preparei minha viagem, comprei um terno novo e um novo chapéu, passei adiante minha motocicleta e preparei-me como pude. Como sabes, tenho um fabuloso respeito por aqueles jovens invejáveis que andam sempre tão elegantes e impecáveis, e fiz novas tentativas nessa direção. Bem, sabia que podia fazer o que quisesse, que comigo sempre alguma coisa havia de dar errado e falhar. Mas, dessa vez, desafiei meu destino. Quando, pouco antes da viagem, ao fazer a barba, me cortei, ocorreu-me que eu deveria possuir um aparelho mais moderno. Comprei um, da marca Siegfried. Era um aparelho misterioso, prateado, num fino estojo de couro preto. No estoja havia a imagem dum homem jovem e elegante, exatamente como eu sonhava ser; esse jovem estava num automóvel em movimento, e barbeava-se com sorriso frio. Embaixo estavam impressas em ouro as seguintes palavras: “Nós alemães tememos a Deus, e a nada mais neste mundo”. Aí, ocorreu-me que esses jovens elegantes sempre têm na boca, ou na mão, um cachimbo inglês de cano curto. Eu sabia que gosto horrível o fumo tem nessas coisas, e que só ingleses e americanos são capazes de aguentá-lo, mas estava disposto a me sacrificar. Comprei um ousado cachimbo, tão curto que a fumaça penetrava diretamente nos meus olhos. Na mesma loja deixei-me atrair por um cortador mecânico de charutos, patente do Reich alemão. Eu também possuía um gorro de seda para viagens, tinha corrente de outro no relógio, e para ocasiões especialmente festivas levava comigo meu distintivo do clube de esqui de Verarlberg.

Assim, apareci na estação. Odeio aquela pressa nojenta que domina a maioria das pessoas antes da partida, por isso comprara a passagem no dia anterior. A carruagem encomendada chegou pontualmente, o carregador botou minha mala no ombro e saiu com ela, mas eu – havia ainda vinte minutos de tempo – tomei calmamente uma xícara de café no restaurante. Quando o trem chegou, fui até lá, lento e indiferente. A mala estava guardada, não havia nada a carregar senão bengala e o guarda-chuva, e podia procurar com calma o melhor lugar no trem. Quase me sentia como um boa-vida. Nisso chegou o condutor, e eu estava sem passagem! Assustei-me, então toda a minha previdência fora em vão, essa viagem começava também com uma calamidade! Nada continham, nem o bolso do casaco, do colete nem das calças. Por fim, pensei que deixara a passagem na mala. Mas esta há muito estava no trem. Demorou um terrível quarto de hora até recebe-la de novo. O funcionário contemplava com infinito desprezo o meu nervosismo crescente. O carregador, que tivera de buscar de novo minha mala, deu-me, com aplauso dos que nos rodeavam, o conselho de levar minha mãezinha comigo, caso viajasse de novo.

Enquanto eu abria a pobre mala no chão de cimento sujo, diante de toda aquela gente, enquanto remexia roupa e pantufas, livros e escova de cabelo, para achar a passagem, enquanto o suor me escorria do rosto e os visitantes mie rodeavam com irônico interesse, chegou a família Hagemann, e percebi as mulheres rindo. Mas ainda assim esperava não ter sido reconhecido. Entre minhas mãos, que remexiam desesperadas, apareceu o estojo de barbear, que caiu da bolsa, rolando pela plataforma.

- Olha aí, marca Siegfried! – exclamou um caixeiro viajante, e todos riram.

No último instante ainda consegui entrar no trem com minha mala. Coberto de suor, exausto, arrastei aquele peso pelo corredor, abri a primeira porta de cabine, e forcei a mala à minha frente, entre as pernas dos passageiros. Com minhas últimas forças tentei colocar a mala no bagageiro, num desesperado impulso, mas meu movimento foi curto demais, e a mala bateu no peito dum senhor, que caiu para trás, apavorado. Por instante, julguei-o morto. Mas ele se ergueu logo, berrando comigo, indignado. Eu o reconheci, era o senhor Hagemann. Não era nada agradável, mas enfim, a gente se conhecia e se desculpou, e furiosos fizemos as pazes. Depois saudei as damas, e só então percebi como parecia desmazelado com meu chapéu amassado, meu rosto suado, meus punhos descolados e a calças sujas de ajoelhar-me na gare. Pois as damas me receberam frias e distantes.

Como o senhor Hagemann acendesse um charuto, pedi permissão para fumar. Tirei meu novo cachimbo esportivo, e o tabaco e enchi-o cuidadosamente. O brilhante cachimbo, como como todo o aparato de enchê-lo, e acendê-lo, interessou à senhorita. Mas o cachimbo não puxava, cheirava horrivelmente, e quando, depois de desgastar toda a força dos meus pulmões e incontáveis fósforos, ele ainda não acendesse, soprei desesperado. Todo o conteúdo do tabaco, cinza, fuligem e fogo espalhou-se pelos ares, enchendo a cabine com uma infernal chuva de cinzas. Por essa cortina acinzentada ainda pude ver a senhora Hagemann esfregando desesperada os olhos, seu marido lutando com um acesso de tosse, enquanto a filha tentava afastar com os dedos alguns restos de tabaco em fogo, que tinham caído sobre seus sapatos de tecido cor de creme. Gaguejei uma palavra de desculpa, e fugi para o corredor, amaldiçoando a mim, ao cachimbo e à viagem.

Foi esse o começo da minha viagem italiana. Através de longa experiência conheço as armadilhas e obstinação com que nesses dias o destino persegue suas vítimas, e decidi resignar-me por aquele dia. Estou absolutamente convencido: tivesse voltado à minha cabine, outras desgraças teriam acontecido, uma após as outras e eu teria me prejudicado para sempre com a família. Teria pisado nos pés da mãe e furado o olho da filha com meu cotovelo, e ao pai, em vez de conhaque, teria oferecido meu frasco com a loção de barba. Ou, tentando abrir a janela para as damas, teria puxado o alarme de emergência, causado um escândalo, teria lançado a mim e à inocente família em opróbrio, perigo e infinito embaraço. Conheço tudo isso.

Por isso enfiei-me quieto num corredor lateral, depois numa outra cabine, onde passei, triste e sozinho, as 12 horas até Milão, entre comerciantes que jogavam cartas, mas ali não causei nenhuma desgraça. Joguei pela janela o cachimbo inglês junto com o tabaco. Só na alfândega revi os Hagemann, por um momento. Os velhos me ignoraram, e ainda pareciam furiosos, mas mocinha me presentou um olhar compassivo, sorrindo com simpatia, ao ver minha tristeza e contrição. Afinal eu dançara com ela algumas vezes, e recebera dela muitos pequenos sinais de simpatia. Colocara toda a minha esperança em Rapallo. Meu azar teria de ter um fim.

Mas não pensei que levava comigo na mala um instrumento do diabo. Por sorte o cachimbo inglês se fora, mas devia ter logo jogado fora também o aparelho de barba, o cortador de charutos e a caneta-tinteiro. Mas tudo aconteceu como tinha de acontecer.

Em Rapallo, pedi um quarto e desfiz a mal. Na primeira manhã quis usar o aparelho Sigfried, inaugurar o terno e chapéu novos, e assegurar uma estreia decente. Mas, ou porque o aparelho estava mal montado, ou por ter sofrido com a queda da mala, minha tentativa com o Siegfried não deu certo. Li ainda uma vez a inscrição: “Nós alemães tememos a Deus” etc. Depois comecei a agir. Foi uma terrível catástrofe. Sangrando de cima abaixo, cortado e esfolado, fitava-me meu rosto no desbotado espelho do hotel. Com dores, tive que permanecer no quarto alguns dias. Depois, deformado e desanimado, reapareci pela noite, dando meu primeiro passeio, ainda com alguns esparadrapos no rosto.

Mas eis que chegou a boa sorte. Na praia encontrei o senhor Hagemann com sua filha sem a mãe. Embevecidos com a paisagem tão bonita, estavam tão contentes e bem-dispostos, que me saudaram com a maior amabilidade. A senhorita Meta nunca fora tão gentil comigo. Obviamente sentia, por instinto, que eu estava em Rapallo só por causa dela, e veio tão abertamente ao encontro do meu silencioso cortejar, que imediatamente esqueci todas as desgraças.

Foi um anoitecer lindo, eles queriam sair de barco para o mar. Como eu soubesse italiano, aceitaram gratos minha ajuda, convidando-me para acompanha-los. Tratei tudo com o barqueiro, dei-lhe às escondidas seis francos, mentido ao encantado senhor Hagemann que barganhara até chegar a dois francos. Tornara-me quase um herói, e de qualquer modo era considerado amigo da família.

Mas devo mencionar uma pequena perturbação dessa felicidade. Enquanto passeávamos de barco sobre as águas azuis, o pai de Meta se preparara para um prazer todo especial. Conforme me contou em muitos detalhes, contrabandeara pela fronteira finos charutos importados, e guardara o último para aquela hora. Mas esquecera o canivete, e não podia cortar a ponta do charuto e isso o aborrecia. Entusiasmado, tirei do bolso o meu cortador de charutos patenteado, oferecendo-o ao senhor Hagemann. Ele contemplou o moderno instrumento, expressando desconfiança, mas depois pediu que eu lhe cortasse o charuto. Lembrava-me exatamente das instruções, e metendo a ponta do charuto no pequeno orifício, segurei-o e lancei sobre Hagemann um olhar triunfante, enquanto este olhava em expectativa. Despois, exatamente segundo as instruções, apertei a mola, rapidamente. O resultado foi horrível. O belo charuto rachou ao meio em todo o comprimento, ficando estragado, enquanto o meu indicador, prensado no aparelho, inchava, todo azul, com violentas dores.

Devo dizer que meu amigo se portou de modo brilhante. Naturalmente, ficou furioso, mas dominou-se e conseguiu esboçar um sorriso azedo, enquanto Meta ecoava uma clara gargalhada. Mordi os dentes, disfarçando a dor, que só me teria envergonhado ainda mais, e o passeio prosseguiu. O sol mergulhava no mar, tudo estava violeta e ouro, e por trás das costas do pai subitamente a mão de Meta colocara-se sobre a minha. Por mim, naquela hora, o mundo todo poderia acabar, tão feliz eu estava. Começava a escurecer, eu segurava a mão de Meta e brincava com seus dedos, e quando o senhor Hagemann disse que ele mesmo queria remar um pouco, ajudei-o a passar para o banco do remador, instruindo o barqueiro com o meu melhor italiano. Agora eu estava bem junto de Meta, seu vestido branco rebrilhava fosco no azul-escuro, e quando coloquei o casaco nos seus ombros, beijei-lhe rápida e secretamente os cabelos.

O velho sentava-se à nossa frente, na penumbra, e tínhamos de ter cuidado. No começo fiquei rígido e longe da moça, com as mãos nos bolsos do casaco, onde por nervosismo brinquei com o porta-moedas, a caixa de fósforos e depois com um pauzinho arredondado, que entrou nos meus dedos e parecia ser um lápis.

Mas quando escureceu, e infelizmente, já nos aproximávamos de novo da terra, não pude me conter mais. Tirei as mãos dos bolsos, fiz de conta que queria ajeitar meu colarinho, depondo suavemente, por trás, o braço direito em volta da cintura de Meta. Assim seguimos, felizes, sentindo-nos no paraíso, mas a praia iluminada se aproximava cada vez mais, finalmente tivemos de nos levantar e desembarcar. Ajudei a moça a passar sobre os bancos e a pequena ponte até à terra, o velho pagou ao barqueiro suas duas liras, e eu fiquei junto dos dois Hagemanns, para acompanha-los até seu hotel.

Passávamos por uma vitrina bem iluminada quando um senhor, saindo da loja, parou fitando Meta, depois a mim, depois de novo a moça. Ela percebera tudo, ficou inquieta, e olhou para si mesma. Por um momento parou, empalidecendo, depois num louco nervosismo fechou mais seu casaco, lançou-me do belo rosto branco um olhar cheio de raiva e mortal desprezo, e começou a correr, a correr o mais que podia. O pai, pensando que ela estava doente, seguiu-a destemperado com o olhar, e começou a trotar também. Fiquei atrás, perplexo e paralisado. O que acontecera agora?

Nisso aproximou-se o senhor que tanto assustara Meta, e apontou com discreto sorriso para a minha mão direita. Meu Deus, ela estava preta como a noite. Primeiro pensei nalgum terrível castigo de Deus, até que devagar entendi todo o triste acontecimento. A coisa com que eu brincara, em nervosa distração, no meu bolso, fora a tua caneta-tinteiro, que vasara, enchendo minha mão e punho de uma indestrutível tinta azul-escuro. Essa minha mão com tinta eu pusera na cintura de Meta, onde ficara, eternizado preto no branco, cada delicado aperto dos meus dedos!

Tombei junto da primeira mesinha de mármore, mandei trazer um vermute, depois outro, voltei à praia dos barcos, olhei longa e iradamente o mar escuro. Depois pesquei a caneta que pingava do bolso molhado, jogando-a nas ondas. Teria gostado de estar junto dela, pois teria me sentido melhor.

A família Hagemann viajou, e eu, há muito, não estaria mais aqui, mas ainda não tive coragem de me confiar de novo a um trem.


(por volta de 1908)



(Vivências; tradução de Lya Luft)



(Ilustração: James Tissot, Jeune fille dans une barque)





Nenhum comentário:

Postar um comentário