segunda-feira, 31 de outubro de 2016
OS TAMBORES DE SÃO LUÍS, de Josué Montello
Até ali os tambores da
Casa-Grande das Minas tinham seguido seus passos, e ele via ainda os três
tamboreiros, no canto esquerdo da varanda, rufando forte os seus instrumentos
rituais, com o acompanhamento dos ogãs e das cabaças, enquanto a nochê Andreza
Maria deixava cair o xale para os antebraços, recebendo Toi-Zamadone, o dono do
lugar.
Por vezes, no seu passo
firme pela calçada deserta, deixava de ouvir o tantantã dos tambores, calados
de repente no silêncio da noite, com o vento que amainava ou mudava de direção.
Daí a pouco Damião tornava a ouvi-los, trazidos por uma rajada mais fresca, e
outra vez a imagem da nochê, cercada pelas noviches vestidas de branco, lhe
refluía à consciência, magra, direita, porte de rainha, a cabeça começando a
branquear.
Fora ela que viera buscá-lo,
à entrada do querebetã. A intenção dele era apenas ouvir um pouco os tambores e
olhar as danças, sentado no comprido banco da varanda, de rosto voltado para o
terreiro pontilhado de velas. Já o banco estava repleto. Muitas pessoas tinham
sentado no chão de terra batida, com as mãos entrelaçadas em redor dos joelhos;
outras permaneciam de pé, recostadas contra a parede. Mas a nochê, que o
trouxera pela mão, fez cair do banco um dos assistentes, e ele ali se acomodou,
em posição realmente privilegiada, podendo ver de perto os tambores tocando e
as noviches dançando, por entre o tinir de ferro dos ogãs e o chocalhar das
cabaças.
Vez por outra sentia
necessidade de ir ali, levado por invencível ansiedade nostálgica, que ele
próprio, com toda a agudeza de sua inteligência superior, não saberia definir
ou explicar. O certo é que, ouvindo bater os tambores rituais, como que se
reintegrava no mundo mágico de sua progênie africana, enquanto se lhe alastrava
pela consciência uma sensação nova de paz, que mergulhava na mais profunda
essência de seu ser. Dali saía misteriosamente apaziguado, e era mais leve o
seu corpo e mais suave o seu dia, qual se voltasse a lhe ser propício o vodum
que acompanha na Terra os passos de cada negro.
Embora só houvesse no céu
uma fatia de lua nova, por cima da igreja de São Pantaleão, uma tênue claridade
violácea descia sobre a cidade adormecida, com a multidão de estrelas que
faiscavam na noite de estio. Em cada esquina, a sentinela de um lampião, com
seu bico de gás chiante. Todas as casas fechadas. Perto, para os lados da Rua
da Inveja, o apressado rolar de um carro, com o ruído do cavalo a galope nas
pedras do calçamento. E sempre o baticum dos tambores, ora fugindo, ora
voltando, sem perder a cadência frenética, muito mais ligeira que o retinir das
ferraduras.
No canto da Rua do Passeio
com a Rua do Mocambo, antes de passar para a calçada fronteira, Damião parou um
momento, batido em cheio pela claridade do gás.
Resguardado do sereno pelo
chapéu de feltro inglês, presente do Governador Luís Domingues no último Natal,
parecia mais comprido, a espinha dorsal direita, o corpo seco e rijo, os ombros
altos. Aos oitenta anos, dava a impressão de ter sessenta, ou talvez menos, com
muita luz nos olhos, o passo seguro, a cabeça levantada. Até o começo do
século, não dispensava a bengala de castão de prata com que entrou pela
primeira vez no sobrado do Foro, sobraçando a sua pasta de solicitador, para
defender outro negro. Agora, trajava com simplicidade, muito limpo, a barba
escanhoada, o paletó abotoado acima do peito, um alfinete de ouro junto ao laço
da gravata.
- Faça favor...
Damião assustou-se com a voz
rouca que lhe vinha por trás do ombro direito, do lado da Rua do Mocambo. Não
tinha sentido rumor de passos. E deu de frente com o Sátiro Cardoso, pequenino,
enxuto, metido na sua sovada casaca de mágico, o colarinho alto, o rosto
encovado, bigode, nos negros olhos uma faísca de loucura, e que logo lhe disse,
com um pedaço de papel impresso na ponta dos dedos:
- É o convite para o meu
próximo espetáculo.
- Outra vez A queda da
Bandeira?
- É. O pessoal pede sempre.
E o público é quem manda.
Damião quis ainda saber por
que o velho mágico preferia aquela hora da noite, com as casas fechadas, para
distribuir os seus convites.
- De dia - redarguiu ele,
dando-lhe outro convite - os moleques vêm atrás de mim, me chamando de Troíra.
Chegam a atiçar cachorros para me morder. De noite é mais calmo: os moleques
estão dormindo.
E lá se foi, Rua do Mocambo
abaixo, a enfiar o papelucho por baixo das portas, sem ruído, apenas roçando o
chão da calçada com seu passo macio.
Já fazia alguns anos que
Damião vira aparecer na cidade aquela figura caricata, debaixo de uma cartola
preta, casaca, sapatos cambados, a andar acima e abaixo, com uma pasta de
couro, também preta, e apresentando-se no Largo do Carmo, no Palácio do Governo,
na redação dos jornais, no Liceu, no Paço Episcopal, e também à porta das
igrejas, nas missas dominicais e nos casamentos, como - o Ilusor Maranhense.
Dias depois, apenas por curiosidade, tinha ido assistir, no Teatro São Luís, ao
seu primeiro espetáculo, que daí em diante se repetia todos os anos: a
caprichada mágica intitulada A queda da Bandeira. Sátiro subia uma escada, até
o último degrau, bem no centro do palco, e dali, com uma bandeira desfraldada,
recitava comprido bestialógico, cheio de palavras abstrusas, numa suposta
língua de sua invenção, o gramazino, da qual proporcionava antes um pano de
amostra com esta explicação: "O A do alfabeto gramazino é a mesma coisa
que o A do alfabeto em português, com a diferença de que se escreve de cabeça para
baixo e tem o som de bé." Em seguida, enrolava-se na bandeira. Um tiro de
pólvora seca estrondava, assustando a platéia. E eis que o mágico se atirava lá
do alto, em arremesso, como se fosse voar, e caía pesadamente cá embaixo, nas
tábuas do chão.
- Bis, bis - gritava-lhe da
torrinha.
E Sátiro repetiu o monólogo,
uma, duas, várias vezes, com o mesmo tiro e a mesma queda, até que Damião,
compadecido de sua insânia, começou a reclamar - Chega! Chega! - e o mágico
afinal se retirou, manquejando, uma das mãos no quadril machucado, enquanto o
pano do teatro vinha descendo, debaixo de gritos e assobios.
Antes que ele desaparecesse,
sempre a enfiar o impresso por baixo das portas, Damião mudou de calçada, ainda
ouvindo o baticum dos tambores. Para trás, em linha reta, ficava o Cemitério do
Gavião, com o Padre Policarpo, a Genoveva Pia, a Aparecida, o Dr. Celso de
Magalhães, a Dona Bembém, a Dona Páscoa, a Dona Calu, o amigo Barão, cada qual
no seu jazigo ou na sua cova rasa, na santa paz do Senhor. A frente, era o
Largo do Quartel; em seguida, torcendo para a direita, a Rua das Hortas, o
Largo da Cadeia, a Praia do Jenipapeiro e por fim a Gamboa, com a casa de sua
bisneta, num cômoro verde que escorregava para o mar.
(Os Tambores de São Luís,
1975.)
(Ilustração: Francisco
Sousa Ferreira)
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