quinta-feira, 15 de maio de 2014

PARA QUE CONSTRUIR UM TEMPLO INVISÍVEL?, de Henry Miller

  



Por volta do meio dia, Mara telefonou. A conversa deve ter durando um quarto de hora. Pensei que não desligaria nunca mais. Disse que estivera relendo minhas cartas; algumas delas tinha lido em voz alta para sua tia, isto é, parte de algumas delas. (Sua tia dissera que eu devia ser um poeta.) Estava preocupada com o dinheiro que eu tomara emprestado. Teria eu condições de pagá-lo no prazo ou devia ela tentar conseguir um empréstimo? Era estranho que eu fosse pobre - comportava-me como um homem rico. Mas ela se alegrava de que eu fosse pobre. Da próxima vez faríamos um passeio de bonde a qualquer lugar. Não fazia questão de clubes noturnos; preferia uma caminhada no campo ou um passeio pela praia. O livro era maravilhoso - só tinha começado a sua leitura naquela manhã. Por que não tentava eu escrever? Tinha a certeza de que eu podia escrever um grande livro. Ela tinha ideias para um livro e me contaria essas ideias quando voltássemos a nos encontrar. Se eu quisesse me apresentaria a alguns escritores que conhecia - só teriam satisfação em me ajudar...

E assim prosseguia ela interminavelmente. Eu estava entusiasmado e preocupado ao mesmo tempo. Preferia que ela colocasse tudo no papel. Mas ela raramente escrevia carta, assim dizia. Por que, eu não podia entender. Sua fluência era maravilhosa. Dizia coisas a esmo, intrincadas, flamejantes, ou deslizava para um limbo de parênteses pavimentado com fogos de artifício - admiráveis feitos linguísticos que um escritor com prática lutaria horas para conseguir. E no entanto suas cartas - lembro o que que tive quando abri a primeira - eram quase infantis. 

Suas palavras, no entanto, produziam um feito inesperado. Em vez de sair correndo de casa imediatamente depois do jantar naquela noite, como habitualmente fazia, deitei-me no divã no escuro e caí em profundo devaneio. - Por que você não tenta escrever?... Esta era frase que tinha ficado atravessada em minha cabeça o dia inteiro, que se repetia insistentemente, mesmo no momento em que eu dizia obrigado a meu amigo Mc Gregor pelos dez dólares que conseguira arrancar-lhe depois das mais humilhantes lisonjas e adulações.

No escuro comecei a voltar-me para o centro das coisas. Comecei a pensar naqueles dias muito felizes da infância, nos longos dias de verão em que minha me segurava pela mão e levava aos campos para ver meus amiguinhos, Joey e Tony. Quando criança, era impossível penetrar no segredo daquela alegria oriunda de um senso de superioridade. Aquele sentido extra, que nos permite participar e ao mesmo tempo observar nossa participação, parecia-me ser o dom normal de cada um. Eu não tinha consciência de que saboreava todas as coisas mais do que as outras crianças da minha idade. A discrepância entre mim e os os outros só me foi revelada à medida que eu crescia. 

Escrever, meditava eu, deve ser um ato destituído de vontade. A palavra, como a profunda corrente oceânica, tem que flutuar na superfície de seu próprio impulso. Uma criança não tem nenhuma necessidade de escrever, é inocente. Um homem escreve para destilar o veneno que acumulou devido à sua maneira falsa de vida. Está tentando recapturar sua inocência e no entanto tudo que consegue fazer (escrevendo) é inocular no mundo o vírus da desilusão. Homem nenhum colocaria uma palavra no papel se tivesse a coragem de viver aquilo em que acreditava. Sua inspiração é desviada na fonte. Se é um mundo de verdade, beleza e mágica que deseja criar, por que põe milhões palavras entre si e a realidade daquele mundo? Por que retarda a ação - a não ser que, como outros homens, o que realmente deseja seja o poder, a fama, o sucesso. "Os livros são ações humanas na morte", disse Balzac. No entanto, tendo percebido a verdade, ele deliberadamente entregou o anjo ao demônio que o possuiu.

Um escritor corteja o seu público tão ignominiosamente como um político ou qualquer outro saltimbanco; adora levar os dedos ao grande pulso, receitar como um médico, conquistar um lugar para si mesmo, ser reconhecido como uma força, receber a taça cheia de adulação, mesmo que isso demore mil anos. Ele não quer um novo mundo que possa ser estabelecido imediatamente, porque sabe que jamais seria adequado para ele. Quer um mundo impossível em que seja um soberano fantoche sem coroa dominado por forças totalmente fora do seu controle. Contenta-se em dominar insidiosamente - no mundo fictício dos símbolos - porque a simples ideia de contato com realidades rudes e brutais o assusta. Certo, tem um domínio da realidade maior do que outros homens, mas não faz nenhum esforço para impor ao mundo aquela realidade superior pela força do exemplo. Satisfaz-se apenas em pregar, em arrastar-se na esteira de desastres e catástrofes, um profeta crocitante da morte sempre sem honra, sempre apedrejado, sempre evitado por aqueles que, por mais inadequados que sejam para suas tarefas, estão prontos e dispostos a assumir responsabilidade pelos negócios do mundo. O escritor verdadeiramente grande não quer escrever: quer que o mundo seja um lugar em que possa viver a vida da imaginação. A primeira palavra trepidante que põe no papel é a palavra do anjo ferido: dor. O processo de colocar palavras no papel equivale a tomar um narcótico. Observando o crescimento de um livro sob suas mãos, o autor incha-se com ilusões de grandeza. - Eu também sou um conquistador - talvez o maior dos conquistadores! O meu dia está chegando. Escravizarei o mundo - pela mágica das palavras... Et cetera ad nauseam.

A pequena frase - Por que você não tenta escrever? - envolvia-me, como o fizera desde o início, num atoleiro de irremediável confusão. Eu queria encantar, mas não escravizar; queria uma vida mais ampla, mais rica, mas não à custa dos outros; eu queria libertar a imaginação de todos o homens imediatamente porque sem o apoio do mundo inteiro, sem um mundo imaginativamente unificado, a liberdade da imaginação se torna um vício. Eu não tinha respeito por escrever per se, assim como não o tinha por Deus per se. Ninguém, nenhum princípio, nenhuma ideia tem validez por si mesma. O que é válido é somente aquele tanto - de tudo, Deus incluído - que é realizado por todos os homens em comum. As pessoas sempre se preocupam com o destino do gênio. Eu nunca me preocupei pelo gênio: o gênio toma conta do gênio num homem. Minha preocupação sempre se voltou para o joão ninguém, para o homem que se perde na confusão, o homem que é tão comum, tão ordinário, que sua presença nem chega a ser notada. Um gênio não inspira outro. Todos os gênios são sanguessugas, por assim dizer. Nutrem-se da mesma fonte - o sangue da vida. A coisa mais importante para o gênio é se fazer inútil, ser absorvido pelo fluxo comum, tornar-se um peixe de novo e não uma aberração da natureza. O único benefício, refleti, que o ato de escrever podia me oferecer, era eliminar as diferenças que me separavam do próximo. Definitivamente não queria me tornar o artista, no sentido de me tornar algo estranho, algo à parte e fora da corrente da vida.

A melhor coisa que há em escrever não é o labor em si de colocar palavra contra palavra, tijolo sobre tijolo, mas as preliminares, o duro trabalho inicial, que se faz em silêncio, debaixo de quaisquer circunstâncias, em sonho assim como acordado. Em suma, o período de gestação. Homem nenhum jamais consegue escrever o que tencionava dizer: a criação original, que está acontecendo o tempo todo, quer a gente escreva ou não escreva, pertence ao fluxo primário: não tem dimensões, forma ou elemento de tempo. Nesse estado preliminar, que é a criação e não o nascimento, o que desaparece não sofre destruição; algo que estava ali, algo imperecível como a memória, ou a matéria, ou Deus, é convocado, e a esse algo nos atiramos como um galho numa torrente. Palavras, sentenças, ideias, não importa quão sutis ou engenhosas, os voos mais loucos da poesia, os sonhos mais profundos, as visões mais alucinantes, nada mais são do que hieróglifos toscos cinzelados em dor e tristeza para comemorar um evento que é intransmissível. Num mundo inteligentemente ordenado não haveria necessidade de fazer a tentativa irracional de registrar tais acontecimentos miraculosos. Na verdade, isso não faria sentido, pois se os homens apenas parassem para refletir, quem se contentaria com a falsificação quando o autêntico está à disposição e ao alcance de todos? Que homem desejaria ligar o rádio e ouvir Beethoven, por exemplo, quando poderia ele mesmo experimentar as harmonias arrebatadoras que Beethoven lutou tão desesperadamente para registrar? Uma grande obra de arte, quando chega a realizar alguma coisa, serve para nos lembrar, ou digamos melhor, para nos pôr a sonhar com tudo aquilo que é fluido e intangível. Vale dizer, o universo. Não pode ser entendida; só pode ser aceita ou rejeitada. Caso aceita, ficamos revitalizados; se for rejeitada, isso nos diminuirá. O que quer que pretenda ser, não o será: é sempre algo mais a respeito de que nunca se dirá a última palavra. Ela é tudo o que nela colocamos devido à fome daquilo que nos negamos cada dia de nossas vidas. Se nos aceitássemos tão completamente assim, a obra de arte, na verdade o mundo todo da arte, morreria de subnutrição. Todo mortal como nós se movimenta sem os pés pelo menos algumas horas por dia, quando os olhos se fecham e o corpo fica de bruços. A arte de sonhar completamente desperto estará à alçada de todo homem um dia. Muito antes disso os livros terão deixado de existir, pois, quando os homens estiverem inteiramente acordados e sonhando, seus poderes de comunicação (uns com os outros e com o espírito que anima todos os homens) serão tão realçados que farão o ato de escrever parecer-se com os grunhidos ásperos e roucos de um idiota.

Penso e tomo consciência de tudo isso, deitado sobre a memória obscura de um dia de verão, sem ter chegado a dominar, ou sem ter mesmo displicentemente tentado dominar a arte do hieróglifo tosco. Antes mesmo de começar fico enojado com os esforços dos mestres consagrados. Desprovido da habilidade e do conhecimento para fazer pelo menos um portal na fachada do grande edifício, critico e lamento a própria arquitetura. Se eu fosse apenas um minúsculo tijolo na vasta catedral desta fachada antiquada, seria infinitamente mais feliz; teria vida, a vida de toda a estrutura, mesmo como uma parte infinitesimal sua. Mas estou do lado de fora, um bárbaro que nem um esboço sabe fazer, quanto mais uma planta do edifício em que sonha morar. Sonho com um novo mundo resplandecente magnífico que desmorona assim que a luz é acesa. Um mundo que desaparece mas não morre, pois basta-me ficar quieto de novo e olhar a escuridão com os olhos bem abertos que ele reaparece... Existe então um mundo em mim que é completamente diverso de qualquer mundo que conheço. Não o julgo propriedade exclusiva minha - só o ângulo de minha visão é que é exclusivo e portanto único. Se falo a linguagem de minha visão singular, ninguém me entende; o edifício mais colossal poderá ser erguido e no entanto permanecer invisível. Este pensamento me atormenta. Para que construir um templo invisível?




(Sexus; tradução de Roberto Muggiati)



(Ilustração: Jacek Yerka)



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