Mais um dia de perambulação estoica pela cidade, percorrendo a Union Street e sendo açoitado pelas rajadas de vento. Edimburgo podia ser um lugar desolador, mas Aberdeen realmente levou a pior. Dá pra desperdiçar uma vida inteira esperando o céu trocar de cinza pra azul. Mas tô passando a maior parte do meu tempo aqui agora e indo menos pra casa.
Na última vez que voltei, me entupi de heroína com o Matty, o Spud e o Keezbo no Swanney.
Não lembro como cheguei no apê do Swanney depois de sair de uma noite de drogas na moradia do junky veterano Dennis Ross naquela nojeira de Abbeyhill, embora eu lembre vagamente de vasculhar os bolsos por uma eternidade, procurando grana pra pagar o viado do táxi que não parava de cornetear na minha orelha, mas retornei ao mundo consciente em Tollcross. Lembro do sol nascendo e derramando na sala do Johnny uma luz devastadora que jogou de volta em cima da gente toda a nossa decadência e fraqueza humana. Levantei e fui com o Matty e o Spud encontrar o resto da turma no Roseburn Bar, que abriu cedo antes do clássico entre Hearts e Hibs, e depois eu e mais uns outros continuamos bebendo em Haymarket. As duas torcidas tavam se ameaçando pela rua e aquela merda toda, mas a fileira de policiais se mantinha firme entre elas. A partida foi um empate suado e sem gols. Como eu tava lesado, quase todo o jogo passou batido por mim, mas lembro que o Hibs quase meteu uma bola no finalzinho; McBride driblando um Jambo e passando pro Jukebox, que deixou outro marrom pra trás e passou pro Steve Cowan, que deu um petardo de direita que passou raspando e derrubou o goleiro. Sick Boy, o papa-feto, também tava entupido de heroína, mas continuava totalmente maluco, arrastando aquela pobrezinha da Maria atrás dele. Ela é meio novinha pra ele, e parecia totalmente perdida no meio do oceano revolto de malucos.
Depois do jogo, rolaram várias sandices com o Begbie. Ele, o Saybo e uns outros desceram a porrada nuns otários em Fountainbridge. Esse viado vai acabar preso em Saughton se continuar com essa merda, tenho certeza. Mas o caos de Edimburgo me fez lembrar do quanto aprendi a gostar do ritual da minha vida em Aberdeen. Me fez perceber que minha pretensão de ser um espírito livre era besteira. Na verdade, eu saturava a minha vida de rotina até ficar tão irritado que precisava subverter tudo com um rompante dramático. Mergulhar na heroína ajudava. Aqui, porém, eu tinha Fiona, meus estudos e minhas caminhadas. E minha necessidade de visitar Edimburgo tinha diminuído: eu tinha encontrado um fornecedor de heroína.
Caminhei pra caramba; investigando as ruas por horas sem fim, não importava o clima. Parecia que era sem rumo, mas eu era atraído invariavelmente pra área da estação de trem, na direção das docas. Eu parava e ficava olhando os barcos grandes saindo pra Orkney, Shetland e vai saber pra onde. As gaivotas gritavam em círculos no céu; às vezes eu caminhava pela Regent Quay e era como se elas tivessem dando risada da minha cara, como se soubessem o que eu pretendia, mesmo que eu próprio não soubesse.
Aqueles pubs náuticos: o Crown and Anchor Bar, a Regent Bridge Tavern (um barzinho ótimo) e o Cutter Wharf. E o Peep Peeps, bem mais sórdido, que fica na ruazinha lateral e onde eu sempre acabava parando; ficava ali sentado com minha cerveja, mas eu tava querendo outra coisa. Esperando chegar. Quase farejando. Sentado sempre no mesmo lugar, convencido de que ia aparecer, se eu esperasse o suficiente.
Foi lá que avistei ele; um viado sentado sozinho do lado do jukebox, lendo o Financial Times, com uma Pepsi na frente. Intocada. Um cabelo comprido, ensebado, preto e começando a ficar grisalho, no alto do corpo magro e cadavérico e com uma tonalidade azul translúcida. Uma barba rala e irregular brotando do ninho de espinhas amarelo-mostarda no queixo. Os dentes grandes e amarelados pareciam que iam sair voando se o viado espirrasse. Em outras palavras, ele transpirava heroína. Eu não. Eu era um estudante arrumadinho com uma namorada bonita. Eu não tinha como dar sinal, não com meus olhos brilhantes, pele lisa e dentes brancos. A Fiona tinha até me ensinado a usar fio dental. Mesmo assim, quando ele me viu, como se soubesse na hora. E eu também. Sentei do lado dele.
– Tudo em paz? – perguntou ele.
Não fazia sentido enrolar. – Não muito. Tô meio mal.
– Tremelique?
Vai saber que porra isso queria dizer, mas soou correto, e ao reconhecer o meu estado foi como se eu tivesse me dado permissão pra me sentir uma bosta.
Antes, o mal-estar era um sentimento vago de sintomas como os de uma gripe; membros pesados, cabeça boiando, dores difusas. Agora havia a sensação de alguma coisa urgente escondida por trás desse abatimento.
– Tá precisando de um remédio, então?
– Sim.
Don me lançou um olhar baço como uma vela bruxuleante, similar ao de outros viciados mais velhos que conheci pelo caminho. – Sai e dá uma voltinha no quarteirão – disse-me ele com uma voz metálica e anasalada – e eu te encontro no portão das docas daqui a dez minutos – concluiu antes de voltar ao seu Financial Times.
Tive de esperar 17 minutos até o Don se dignar a sair do bar e vir na minha direção, parecendo tão detonado quanto eu. Eu não podia estar fisicamente viciado, não logo depois de um fim de semana me injetando, mas minha mente e meu corpo tavam se contorcendo de antecipação por uma dose. Fiz força pra esconder a excitação e a ansiedade quase massacrantes no caminho até o apê imundo dele, onde fechamos a compra.
A casa do Don podia ser a do Swanney, Dennis Ross, Mikey Forrester ou mesmo a nossa na Montgomery Street. Os mesmos cartazes meio descolados no papel de parede horrendo com padrões opressores colocado ali por uns viados que já tinham morrido ou tavam tão velhos que dava na mesma. Os cestos de lixo transbordando, uma pilha caótica de pratos numa pia que lembrava uma cidade mediterrânea atingida por um terremoto, e os obrigatórios montes de roupa suja pelo chão: os selos de garantia dos fracassados crônicos e desleixados em toda parte.
Don preparou a dose pra nós dois. Dei tapas no braço direito, fazendo a minha melhor veia no pulso saltar com obediência, e dei a picada. O produto era bom e o barato foi excelente. Percorreu meu corpo inteiro e o impacto me fez desabrochar irresistivelmente como a florescência da primavera. De repente alguma coisa frutosa e azeda começou a subir do meu estômago. Fiz menção de vomitar e Don meteu uma edição antiga do Financial Times embaixo do meu rosto, mas eu empurrei de volta. Aquele momento tinha passado e agora eu era invencível.
Embora eu não precisasse de mais nada, a não ser me deitar e curtir o efeito (incrível como a heroína torna possível ouvir até esses lixos imundos como a fita do Grateful Dead que o Don botou pra tocar), ele insistiu em puxar papo, mesmo depois de se picar. O viado aplicou uma tremenda duma dose e não pareceu se afetar quase nada. Fiquei imaginando a quantidade que ele andava injetando. – Mas então... cê é de Edimburgo, é? Tem heroína boa de sobra por lá.
– Sim... – falei. Tive vontade de explicar que no Leith a gente se considerava separado de Edimburgo, mas do jeito que eu tava agora, derretido e curtindo a onda, aquilo parecia uma questão trivial.
– É de lá que vem tudo. – Ergueu um saquinho plástico cheio de pó branco contra a luz de uma lâmpada descoberta. – É lá que fabricam: no belo centro de Gorgie. Cê conhece o Seeker?
Sei lá que caralho é esse papo de Gorgie, eu cresci no Leith, mas que sera. – Só pela reputação.
– Pois é, ele é barra-pesada, cara. Melhor ficar longe desse maluco.
Sorria diante da doce futilidade de tudo aquilo. Era inevitável que eu e esse tal de Seeker nos tornássemos no mínimo sócios de alguma espécie. A única coisa surpreendente era que isso ainda não tinha acontecido. Então fiquei ali sentado, ouvindo a ladainha monótona do Don e vendo a sala se enchendo de escuridão.
Eu não tava nem um pouco interessado em nada que ele tava dizendo; o viado podia estar falando do cachorrinho que deu de presente pra sobrinha ou nos cadáveres que tavam debaixo do assoalho, mas a voz ritmada dele tinha um efeito calmante e confortante.
Quando consegui me mexer de novo, fui embora e voltei pro meu quarto na moradia estudantil. A Fiona tinha deixado um bilhete por baixo da porta.
M
Passei aqui e não encontrei nenhum lindo
limpinho do Leith. Buá.
Te vejo amanhã na aula de Renascimento
ou passo aqui de noite pra
tomar um chá... e bolinhos?
Com amor
F xxxx
O bilhete tremia na minha mão. Eu amava essa garota, amava mesmo. Senti um espasmo terrível por dentro ao perceber, ali e naquele instante, que em breve ela ia ser menos importante pra mim do que um vagabundo que eu tinha acabado de conhecer e com quem não ia muito com a cara. Mas foi só um sussurro passageiro, logo abafado pelo discursinho da heroína, que cantarolava: “Cê tá bem, tá tudo bem.”
Mas não fui atrás dela. Fiquei deitado na minha cama, encarando as espirais do reboco do teto. Depois de cair num sono sofrido e anêmico, acordei com contrações de fome na luz fraca do início do dia. Percebi que não tinha comido nada no dia anterior. Minhas roupas tavam no chão, do lado da cama; de algum jeito eu tinha me livrado delas durante a noite. Tinha uma mancha amarela na dobra do meu braço. Naquela manhã, decidi não ir na aula sobre Renascimento.
Em vez disso, fui caminhar. Tava frio. Durante cerca de um minuto, o céu cinzento se abriu com ferocidade e a luz do sol conseguiu passar, se derramando por cima da cidade e refletindo no granito cintilante. O sangue pulsou na minha cabeça, me dando vontade de estar em outro lugar. Em seguida o sol sumiu e o manto cinzento nos encobriu de novo. Eu preferia assim; gosto do jeito que minha mente se desacelera ao caminhar debaixo de um céu desses, até eu ficar amortecido e vazio de pensamentos, livre do peso opressor das infinitas escolhas mundanas.
Eu só tinha que trocar uma sepultura por outra, mais acima no litoral. Mas tudo bem; Aberdeen me servia. Gostava da cidade e gostava das pessoas em geral. Eram calmas e tranquilas; diferentes da maioria dos cretinos presunçosos e autorreferentes das Terras Baixas, que vivem se gabando, acreditando que cê achava que eles eram grande coisa, enquanto na verdade são todos um pé no saco. Em vez da vida estudantil, em preferia beber com os velhos que me contavam histórias de pesca de arrastão e do cotidiano das docas. Coroas jogadores de bola que falavam de partidas e brigas do passado; eles raramente sentiam necessidade de enfeitar as histórias em favor próprio, era tudo muito casual. Eu sempre era o único aluno nesses lugares.
Mesmo assim, isso tudo ficava muito perto de Marischal College, o prédio da Universidade de Aberdeen, que parecia um projeto desenhado em papel quadriculado. Só de vez em quando eu me aventurava a entrar no bar do diretório estudantil com o Bisto e alguns outros, ou com a Fiona. Mas eu evitava ao máximo. Uma vez fui arrastado até lá pra comemorar o aniversário da Joanne.
Ela ficou meio bêbada e falou comigo de um jeito agressivo e condenatório: – O que cê vive fazendo, Mark, onde cê vai? Alguma outra pessoa disse algo sobre “o misterioso Mark Renton” e percebi que a Fiona me encarava com um olhar de incentivo. Tava todo mundo prestando atenção em mim, e eu só ri e disse alguma coisa sobre gostar de andar por aí. Na verdade, eu tava passando uma boa parte do meu tempo livre frequentando os bares da área das docas, esperando o Don.
Fiona apareceu de novo numa manhã de sábado. Ela não era nem um pouco boba, mas, embora a gente tivesse um relacionamento, cada um também tinha uma vida independente. Edimburgo ficava perto o bastante pra que eu pudesse dizer pra ela que ia passar a noite em casa por um motivo qualquer, em geral pra ficar de olho na minha família fragilizada. Mas eu ia pro sofá do Don, que ficava numa parte de Aberdeen em que poucos alunos ou professores apareciam. Dessa vez, porém, meu estado geral parecia confirmar a impressão que minha ausência das aulas durante a semana já tinha causado, ou seja, a de que algo tava errado. – Mark... onde cê tem andado... tá tudo bem?
– Acho que peguei uma gripe daquelas de derrubar.
– Cê tá com uma cara horrível... vou descer e comprar um antigripal, amado.
– Cê pode me fazer uma cópia das suas anotações do Renascimento?
– Claro que posso. Cê devia ter me falado que tava mal desse jeito, bobalhão – disse ela, me dando um beijo na testa suada e saindo. Voltou cerca de meia hora depois com os remédios. Depois me deixou ali e foi pro trabalho que ela fazia no sábado. Esperei um pouco e então, ansioso pra sair do cheiro rançoso e químico daquele quarto, o meu cheiro (como ela podia não sentir o meu cheiro, se eu próprio sentia?), fiz a mesma coisa que ela e fui pra rua.
Fiona fazia trabalho voluntário nos sábados com crianças carentes; uns pivetinhos briguentos que adoravam ela. Psicopatas embrionários com orelhas de abano ficavam vermelhos de vergonha quando ela os cumprimentava; garotinhas de olhar fulminante, mascando chiclete, começavam a implorar atenção de uma hora pra outra. Algumas semanas atrás, num dos meus passeios sem rumo, vi ela encontrando uma turma deles em frente ao teatro Lemon Tree. Parecia feliz; era careta. Andava falando sobre a gente procurar um apê pra morar junto ano que vem. Depois formatura, emprego das nove às cinco e outro apê com financiamento. Depois noivado. Depois casamento. Financiamento maior ainda pra comprar uma casa. Filhos. Despesas. Depois os quatro Ds: desencanto, divórcio, doença e decesso. Apesar dela fazer questão de dizer o contrário, ela era assim. Era isso que ela esperava. Mas eu amava ela, e por isso lutava pra esconder os sentimentos ruins que ela despertava em mim. Ali parado na rua, vendo ela conduzir a garotada como um bando de gatos pra dentro do teatro, eu sabia que nunca ia conseguir ser daquele jeito. Nunca ia poder ter ela: ter ela de verdade, no sentido de me entregar pra ela. Ou talvez eu só estivesse agindo como um babaca. Tinha mais que uma migalha de aceitação pra mim no mundo dela. As aspirações dos meus pais eram dignas. Eu odiava essa merda dessa palavra. Me dava calafrios.
Mas eles se importavam.
Dentro da livraria, fiquei numa posição de onde podia espiar, escutando o que diziam na cafeteria ao lado. Tinha um quatro-olhos desajeitado e entusiasmado junto com Fi e as crianças. – Ei, meninada, podem largar o papel e caneta agora mesmo e me acompanhar?
Ela acabaria ficando com um cara como ele. Talvez uma versão mais descolada, que comia alguém de vez em quando, talvez um viado um pouco mais arrogante, que cedo ou tarde acabaria sacaneando ela; mas essencialmente a mesma coisa. Dá pra fazer o cara vestir um anoraque ou meter óculos de fundo de garrafa bele, ou botar uma camisa de rúgbi e um monte de músculos; não faria diferença alguma, um janotinha é sempre um janotinha.
Vou pra casa. Quando Fiona chega, tô sentado esperando. Não tomei nada além de dois antigripais. O cabelo dela tá molhado de chuva. Ela tira uma toalha da mochila e se seca. A chaleira aquece e eu preparo um pouco de chocolate quente.
Sabendo da minha queda por cabelos molhados, Fiona lança um olhar na direção da cama, mas então percebe que o grau da minha doença elimina a possibilidade de que eu a agarre e jogue no colchão. – Cê tá tremendo, amor.
Devia ir no médico...
– Posso te contar uma coisa?
Assim que as pupilas dela se dilatam e ela diz “É claro, Mark, o que foi?”, sei que não vou ser capaz de dizer o que pretendo, mas pra esconder isso tenho que contar alguma outra coisa igualmente profunda e importante.
– Meu irmão menor – me pego dizendo, quase chocado com minha própria voz, como se uma outra pessoa no recinto tivesse me dedurado. – Nunca contei isso pra ninguém...
Ela assente com a cabeça, enrola os cabelos com a toalha e pega a caneca fumegante. Parece aquela mina que toma um pé na bunda no comercial de Nescafé.
Limpo a garganta enquanto ela senta na poltrona em posição de lótus. – O Pequeno Davie, eu percebi uma vez, tinha uma queda pela Mary Marquis, que apresentava o noticiário na TV. Cê deve ter visto, ela tem um visual... italiano, digamos; cabelo preto, um monte de maquiagem, com atenção especial aos olhos, e batom vermelho brilhante.
– Acho que sei quem é, amor. A do jornal da noite?
– Sim, ela mesma. Bom, eu meio que percebi que o Pequeno Davie ficava agitado quando ela falava pra câmera. A respiração dele ficava mais intensa. E não dava pra não reparar no que acontecia ali na calça de moletom...
Fiona dá um aceno de cabeça compreensivo. Tem uma mancha vermelha no joelho da calça jeans dela, eu não tinha visto antes. Deve ser tinta de alguma oficina com a crianças.
– Eu costumava ficar cuidando dele na hora do chá, nas sextas. Quando começava o noticiário local, eu via o Davie encarando a tela com o pau visivelmente ereto, e aí comecei a pensar, caralho, ele tem 15 anos, porra, coitado do pirralho... entende o que eu tô dizendo?
– Sim – diz Fiona com um tom pesaroso, mas analítico. – Tipo, ele tem uma sexualidade, mas nenhuma válvula de escape.
– Exatamente – expiro, aliviado porque finalmente alguém é capaz de entender essa porra. – Então... decidi que ia bater uma punheta pra ele.
Os olhos da Fiona se cravam no chão por um momento e depois procuram os meus. Seus lábios se comprimem. Ela não tá me estimulando a prosseguir nem me pedindo pra parar.
Respiro fundo. – E foi o que eu fiz. Ele pareceu ficar aliviado.
– Ai, Mark...
– Eu sei, eu sei... ele é meu irmão e é um ato sexual, então não foi uma atitude muito sensata. Hoje eu percebo isso. Só que na época eu só tava pensando em aliviar o tormento dele, igual a bater nas costas dele pra ajudar a drenar o fluido do peito. Então eu fiz. O pobrezinho ficou maluco e esporrou no que pareceu ser uma fração de segundo. Depois ele caiu no sono, todo feliz. Nunca tinha visto ele tão em paz. Limpei ele, e então ele tirou a melhor soneca da vida.
De modo que eu pensei: tá tudo bem.
– O que aconteceu? – Ela relaxa a posição e larga a caneca no piso, sem tirar os olhos de mim nem por um instante.
– Ele começou a ficar na expectativa. Crianças autistas são programadas pra aderir a uma rotina. Como um relógio. Refeições sempre na mesma hora, sono sempre na mesma hora. Aquilo virou uma espécie de presentinho de sexta-feira pra ele; não fossem os outros problemas físicos, ele continuaria fazendo sozinho, dia e noite. Mas nos outros dias em que a TV ficava ligada ele olhava pra tela, depois pra mim e gritava – e aí eu imito aquele guincho horrível – MAY-HAY! MAY-HAY!... e é claro que eu não podia mais ajudar, com todo mundo em casa.
Agora a expressão da Fiona é de aversão. Ela senta bem reto na poltrona, de pernas cruzadas.
– Todo mundo pensava que ele tava gritando “Marky ” e achava bonitinho. Só eu e ele sabíamos que ele tava gritando “Mary ” – explico, e agora a Fiona tá tão imóvel que começo a ficar nervoso. – Cê acha que eu fiz errado?
– Não... – diz ela, hesitante – claro que não, amor... é só que... é só que... cê não podia contar pra eles do que aconteceu com o Davie?
– A gente não tem esse tipo de relação. São os meus pais.
Fiona acena com a cabeça pensativamente, pega a caneca e acaricia entre as mãos.
– Bom, continuei batendo punheta pra ele, toda sexta, diante da imagem da Mary na tevê. Não era fácil; foi ficando cada vez mais complicado. Ela tava lendo as notícias no estúdio e ele tava quase gozando, mas aí cortavam pra uma tomada externa e ele se encolhia todo, gritava e às vezes tinha um acesso de tosse. A coisa continuou nesse rumo. Chegou a um ponto em que eu tinha que caprichar muito pra conseguir fazer ele gozar. Bem, aí teve o dia em que esqueci que o Billy tinha folga em Belfast e tava vindo pra casa. Não ouvi ele chegando de mansinho, como ele costumava entrar pra fazer surpresa pra mãe. Ele chegou por trás da gente no sofá... bem na hora que a Mary apareceu de novo na tela...
Os olhos da Fiona ficam arregalados. – Então... então... ele te pegou fazendo aquilo no Davie? Seu irmão, o Billy?
– Pior. A caceta do Pequeno Davie entrou em erupção, o jorro saiu voando no ar e a porra acertou o Billy em cheio como uma serpentina, no rosto e na frente do uniforme do exército.
Fiona leva as mãos à boca. – Ai meu Deus... ai, Mark... o que aconteceu?
– Ele me arrancou pra longe do Davie, me afastou do sofá e me acertou um chute nas costelas. Levantei e até que consegui acertar uns socos, mas tomei uma surra. O Pequeno Davie só gritava. Os vizinhos escutaram a briga e a sra. McGoldrick começou a bater na porta ameaçando chamar a polícia, o que provavelmente me livrou de uma sova muito maior. A gente acabou se acalmando, mas quando o pai e a mãe chegaram perceberam na hora que a gente tinha brigado. Fomos interrogados e cada um contou seu lado da história.
Começou a chover. Escuto os pingos batendo no vidro.
– O que eles disseram?
– Eles mais ou menos ficaram do lado dele. Disseram que eu era um merdinha doente e depravado. Eu mal tinha acabado o colégio; não conseguia articular o que pretendia ao fazer aquilo com ele. O direito dos deficientes físicos à sexualidade! – Bato no peito, como se ela tivesse me questionado, mas ela se mantém tesa, concordando com a cabeça numa tentativa de mostrar empatia.
Diante do silêncio dela, porém, me dou conta da impressão que tô passando. Sei que se Fiona tivesse uma irmã deficiente, a última coisa que passaria pela cabeça dela seria tocar uma siririca pra mina diante da imagem de, digamos, o David Hunter de Crossroads. Pela primeira vez, sou obrigado a reconhecer que talvez eu seja, em algum nível, um pervertido, ou pelo menos um cara equivocado.
Meu tom de voz se reduz a um apelo angustiado: – Ele tava sofrendo, e eu só tava tentando dar algum alívio pro pobre desgraçado. Não dá pra dizer que eu gostei de fazer aquilo!
Por um momento, no meio da luz que se esvai, Fiona me observa com um olhar quase vazio, mas seu rosto mantém a compostura de uma pessoa perfeitamente em paz. – Você não pode dizer isso pra eles agora? Pros seus pais?
– Já tentei algumas vezes, mas o momento certo nunca chega. Além disso, acho que já decidiram o que pensam de mim.
Ela assopra entre os lábios apertados. – Por que não escreve uma carta pra eles? Coloca tudo ali, preto no branco.
– Não sei, Fi... ia parecer que eu tava dando mais importância que o devido... – digo, me sentindo cansado e enjoado de repente. Me encosto na poltrona, mas em seguida me inclino de novo pra frente e cruzo os braços em volta do corpo.
– Mas é óbvio que isso significa alguma coisa pra eles, Mark. E pra você também, do contrário cê não estaria contando isso pra mim.
– Eu sei. – Olho pra ela com ar derrotado. – Vou pensar nisso. Obrigado por escutar.
– É claro, amor... – Fiona abre um sorriso tristonho, percebendo como estou suando e me contorcendo. – Vou sair agora, querido, e te deixar descansando um pouco – ela sussurra, e então põe a mão e dá um beijo na minha testa suada. O abraço dela parece duro e pesado, e fico aliviado quando ela sai.
Assim que passa um bom par de minutos, desço até o telefone público e ligo pro Sick Boy na Montgomery Street. Começo a falar descontroladamente, conto a respeito de Don e pergunto como ele anda fazendo pra descolar heroína. Ele me diz: – Cê não se interessa por nada além de um pico.
Protestos parecem inapropriados e fúteis, e pela primeira vez me dou conta de que essa afirmação é basicamente verdadeira. O que me faz pensar: tá realmente na hora de parar. Não ouço mais nada que ele diz até as moedas acabarem.
Cê precisa parar com isso agora mesmo ou vai arruinar tudo.
O que eu fiz, então, foi sair e atravessar a pé a cidade fria e tempestuosa até a Union Street.
(Skagboys; tradução de Daniel Galera e Daniel Pelizzari)
(Ilustração: Samadhi Rajakarunanayake – autismo)
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