domingo, 30 de junho de 2024
TEMPO DE PAGAR O FORO À IGREJA, de Itamar Vieira Junior
Março era um mês de aflição para as famílias da Tapera. Era o tempo de pagar o foro à Igreja. A cobrança não era feita pelos monges, mas por vizinhos com posição privilegiada na comunidade. Os homens chegavam às casas com um carnê em branco, e o preenchiam com a caligrafia precária de quem era pouco escolarizado. Esse recibo com o carimbo de pago se tornava um documento valioso guardado pelas famílias. Tinha a importância de uma escritura, ainda que não tivesse de fato valor algum.
Em nossa casa não era diferente. Era momento de tensão, em especial para Luzia. Observávamos afastados o debate acalorado entre nosso pai e o cobrador. O cobrador — gente da própria Tapera com prestígio junto do abade por cerrar fileiras na igreja, como Matias, Almir, Mãozinha e Chico da Colmeia — vinha seguidas vezes à nossa porta à procura de meu pai. Queria saber se ele tinha deixado o pagamento do foro. Luzia gaguejava, inventava uma história para omitir a resistência do velho contra a cobrança. Mentia que ele havia esquecido, mesmo diante da contestação do cobrador. “Todo ano é a mesma coisa. Mundinho é sempre o último a pagar”, ouvíamos, “um dos poucos que me faz voltar muitas vezes.” A celeuma se arrastava durante vários dias. O cobrador retornava para então encontrar meu pai picando fumo ou amolando o facão para capinar a roça, em geral, aos domingos, quando ele saía mais tarde para trabalhar, permanecendo na tarefa de terra debaixo do sol até o meio-dia. A tensão escalava ainda mais, porque meu pai não se justificava como Luzia. O cobrador começava a dizer a que tinha vindo e meu pai escutava sem olhar para o vizinho. Eu e Luzia ficávamos em algum canto da casa tentando ouvir o que diziam, os sons de suas vozes competindo com a batida dos nossos corações acelerados.
Primeiro, meu pai dizia que não tinha como pagar, o que decerto era verdade. A produção era pequena e supria a casa na maior parte das vezes para livrá-la da fome. Depois as sobras eram embarcadas nos saveiros para serem vendidas nas feiras da cidade. Sem disfarçar a indignação, dizia que a Igreja era rica. Seus avós haviam nascido naquelas terras antes de a Ordem chegar — essa confusão entre tempo e história sempre embaralhava a todos. Pelo que sabia, nunca precisaram pagar imposto algum. “A velha dona dessas terras não exigia”, retrucava. Em seguida, mandava o homem passar um dia qualquer, sempre numa data distante, enquanto amolava o facão mais gasto do que o do cobrador, guardado na bainha em sua cintura. O homem ia embora, mas não sem antes ameaçar de cercar a roça para impedir o trabalho, caso o foro não fosse pago. Meu pai respondia sem medo: “Tá pra nascer o homem que vai me impedir de trabalhar na terra”.
A arrecadação se arrastava por semanas e a aflição para o pagamento não era apenas da nossa família, mesmo que o cobrador quisesse nos fazer acreditar no contrário. Na Tapera, não se falava em outra coisa: dos orgulhosos, que pagaram sacrificando muitas vezes o bem-estar da família, aos desassistidos, que não tinham como quitar de imediato a cobrança. Os pescadores complementavam o sustento com suas pequenas lavouras, mas como a atividade principal era a venda dos pescados, conseguiam pagar no devido tempo. As casas das viúvas e das poucas mulheres solteiras eram as que mais atrasavam. Nos dias de cobrança, o povo da Tapera se gabava, vaidoso, dos que podiam pagar sem maiores sacrifícios, diferente dos que faziam das tripas coração. Ano após ano Luzia retirou do colchão, depois de descosturar uma pequena abertura, o dinheiro minguado que ganhava da própria igreja como lavadeira. Era a quantia dada ao cobrador, para pôr fim à cobrança e termos paz. O recibo, às vezes com algumas cédulas de troco, era guardado dentro do colchão de palha, porque ela sabia que se Mundinho visse o pagamento a casa viria abaixo por ter contrariado sua autoridade. Conhecíamos bem nosso pai e sabíamos que não recusaria um conflito para exibir sua valentia. A certeza de que o respeitavam pela rudeza era tanta que considerava a não continuidade da cobrança uma vitória. Acreditava dever-se ao respeito que lhe restava.
Lá pela quinta ou sexta visita do cobrador, já adentrando abril, era certo que Luzia pagaria. Ainda ouviria de qualquer um deles que a Igreja era muito generosa em não cobrar juros. Ela pagava sem ressalvas, como se nosso pai a tivesse incumbido da tarefa. Eu queria ver onde guardava tudo, mas Luzia me enxotava quando a seguia até o quarto: “Ande, menino, corre, o que veio fazer atrás de mim?”. Apenas eu sabia que ela pagava com o dinheiro do trabalho. Apenas eu via o braço de Luzia estendido no ar depois de dar o dinheiro até que o recibo estivesse na mão. Só eu sabia que ela depositaria o recibo e o troco no colchão, se certificando antes se estava sendo observada, temerosa do nosso pai. À espreita, a observava alinhavar o tecido recobrindo as palhas, compenetrada em sua tarefa de salvar a terra de trabalho da família.
Luzia foi nossa valência durante os anos; sem cobradores à porta, nosso pai se ocupava do trabalho e sua inquietação parecia encontrar o sossego nunca sentido por seus pais e avós, contrariando o que ele mesmo contava. Não sei se era mentira deliberada ou se meu pai acreditava piamente na farsa de uma paz nas terras da Tapera. O fato era que ele prosseguia com sua vida, caminhava de cabeça erguida, a enxada no ombro e o facão na cintura, como se não tivesse qualquer dívida. Trabalhava o pedacinho de chão escolhido a cada chuva, sempre próximo à última fração que, por fim, entrava em pousio. Trabalhava com esmero e o corpo agitado deixava a roupa molhada de suor, da mesma maneira que o orvalho brotava na terra vermelha dos canaviais do passado e do presente, úmida o bastante para fazer nascer qualquer semente que o chão encontrasse.
Mas nem todos conseguiam pagar. Acumulando dívidas ano após ano, algumas famílias iam sucumbindo ao destino de serem excluídas do convívio de sua gente. Nos sermões proferidos nas missas, e mesmo diante do orgulho dos bons pagadores, se enchiam de uma vergonha que tornava a convivência cada vez mais difícil. Por fim, quando não morriam de velhice ou de doença, deixavam a Tapera pelo rio, nos saveiros, ou pela estrada, nos velhos ônibus, como um dia aconteceria comigo.
(Salvar o fogo)
(Ilustração : Pieter Brueghel theYounger - The taxcollectors office)
quinta-feira, 27 de junho de 2024
NOCTURNO / NOTURNO, de Conrado Nalé Roxlo
El bosque se duerme y sueña,
el río no duerme, canta.
Por entre las sombras verdes
el agua sonora passa
dejando en la orilla oscura
manojos de espuma blanca.
Llenos los ojos de estrelas,
en el fondo de una barca,
yo voy como una emoción
por la música del agua,
y llevo el río en los lábios,
y llevo el bosque en el alma.
Tradução de Antonio Miranda:
O bosque dorme e sonha,
o rio não dorme, canta.
Por entre as sombras verdes
a água sonora passa
deixando na margem escura
quantidade de espuma branca.
Cheios os olhos de estrelas,
no fundo de um barco,
Eu vou como uma emoção
pela música da água,
e levo o rio nos lábios,
e levo o bosque na alma.
(Ilustração: Anders Zorn - Fors under Gammal - 1884)
el río no duerme, canta.
Por entre las sombras verdes
el agua sonora passa
dejando en la orilla oscura
manojos de espuma blanca.
Llenos los ojos de estrelas,
en el fondo de una barca,
yo voy como una emoción
por la música del agua,
y llevo el río en los lábios,
y llevo el bosque en el alma.
Tradução de Antonio Miranda:
O bosque dorme e sonha,
o rio não dorme, canta.
Por entre as sombras verdes
a água sonora passa
deixando na margem escura
quantidade de espuma branca.
Cheios os olhos de estrelas,
no fundo de um barco,
Eu vou como uma emoção
pela música da água,
e levo o rio nos lábios,
e levo o bosque na alma.
(Ilustração: Anders Zorn - Fors under Gammal - 1884)
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Conrado Nalé Roxlo - Nocturno / Noturno
segunda-feira, 24 de junho de 2024
BAUMAN E A DIFICULDADE DE AMAR, de Anna Carolina Pinto
Zygmunt Bauman é autor de inúmeras obras com a palavra líquido em seu título. A noção de liquidez proposta pelo filósofo e sociólogo polonês, falecido no começo desse mês [*], é aplicada aos mais variados temas como a modernidade, o amor, o medo, a vida e o tempo, expressando a fluidez, isto é, a imensa facilidade com que estes elementos escorrem pelas mãos do homem moderno. A ideia, extraída de “O Manifesto Comunista” de Marx e Engels, vem da célebre afirmação de que tudo que é sólido se desmancha no ar e de que tudo que é sagrado é profanado: assim é a modernidade e sua essência que se alastra pela vida do homem moderno transformando-o não só como indivíduo, mas também como ser relacional.
O primeiro livro do Bauman que li foi “Amor Líquido” o qual, carinhosamente, valendo-me das palavras de Caetano, defino como “um sopapo na cara do fraco”, que me fez e faz, já que essa sorte de questionamento é constante, pensar na forma como nos relacionamos hoje em dia. Um ponto alto do livro, aos meus olhos, é o capítulo no qual Bauman fala sobre a dificuldade de amar o próximo destacando o modo como lidamos com os estranhos. Penso que nessa dificuldade é que se encontra a raiz de tantos dos nossos problemas seja na esfera pessoal ou pública. E é sobre isso que eu gostaria de refletir conjuntamente hoje.
Vivemos em uma sociedade fortemente marcada pelo conflito ser x ter na qual o homem passa a se expressar pelas suas posses, elementos definidores de sua própria identidade, o que reflete na busca por certa conformidade que ceifa a pluralidade de existências e segrega o que é diferente, estranho. O modo como as cidades se dividem é exemplo disso, os nichos considerados seguros são aqueles onde todos se parecem, exacerbando a nossa dificuldade em lidar com os estranhos que passam a ser evitados através de sistemas de segurança, muros, priorização de espaços que assegurem a conformidade de seus frequentadores como os shoppings etc. Evitar a todo custo o incômodo de estar na presença de estranhos, começar a enxergar naquele que sequer se sabe o nome um inimigo em potencial e desconfiar de tudo e de todos só é possível graças ao desengajamento e ruptura de laços para o sociólogo polonês.
Se levarmos em conta que amar outra pessoa não é amar o que projetamos nela e sim a sua humanidade e singularidades, não será difícil compreender que o amor é um desafio nos tempos de modernidade líquida. A busca pela felicidade individual nos transforma em tribunais individuais e, na disputa pela sentença a ser proferida, não raro, o que se vê é sair vencedor aquele que se recusa a ouvir o outro. Facilmente, pois, livramo-nos dos compromissos e de tudo aquilo que nos pareça incômodo. Ainda que tão agarrados a nós mesmos, paradoxalmente, é bastante comum que a solidão seja companhia (e problema) constante de quem vive a descartar.
Os muros que construímos ao nosso redor, físicos ou emocionais, têm mesmo esse condão de isolar e criar dois mundos em cada um de seus dois lados: o de dentro e o de fora. O último, espaço cativo dos que nos incomodam - aqui incluídos tanto quem nos relacionamos de forma íntima, quanto aqueles que preferimos distantes, inviabilizados de estar perto, enfim, aniquilados ao prender, matar, limitar a circulação, fixar em zonas periféricas etc. É que Narciso acha feio tudo que não é espelho, já diria, mais uma vez, o sempre genial Caetano Veloso.
Dessas reflexões que vão (muito) longe e que, por ora, encerro aqui fica sempre uma mensagem muito clara para mim: amar (mesmo) é um ato revolucionário e só ama quem tem coragem o bastante pra lidar com esse desafio porque sabe que, por mais que nem tudo sejam flores, esse amor “sólido” é que nos impulsiona a querermos ser melhores seja como pessoa ou sociedade. Parece distante e utópico, mas está dentro de nós: ame profunda e verdadeiramente. Até quem você não conhece.
Nota:
[*] Baumann faleceu em 9 de janeiro de 2017 (Nota do blog)
(Revista Prosa Verso e Arte)
(Ilustração: René Magritte - The Lovers)
sexta-feira, 21 de junho de 2024
POETRY / POESIA, de Marianne Moore
I, too, dislike it: there are things that are important beyond all this fiddle.
….Reading it, however, with a perfect contempt for it, one discovers in
….it, after all, a place for the genuine.
…….Hands that can grasp, eyes
…..that can dilate, hair that can rise
……….if it must, these things are important not because a
high-sounding interpretation can be put upon them but because they are
….useful. When they become so derivative as to become unintelligible,
….the same thing may be said for all of us, that we
….do not admire what
….. we cannot understand: the bat
…….. holding on upside down or in quest of something to
eat, elephants pushing, a wild horse taking a roll, a tireless wolf under
….. a tree, the immovable critic twitching his skin like a horse
….that feels a flea, the baseball
…fan, the statistician −
….nor is it valid
……..to discriminate against “business documents and
school-books”; all these phenomena are important. One must make a distinction
…..however: when dragged into prominence by half poets, the result is not poetry,
….nor till the poets among us can be
…“literalists of
…..the imagination” − above
……..insolence and triviality and can present
for inspection, “imaginary gardens with real toads in them,” shall we have
…..it. In the meantime, if you demand on the one hand,
….the raw material of poetry in
… all its rawness and
….that which is on the other hand
………..genuine, you are interested in poetry
Tradução de Mário Faustino:
Eu também não gosto lá muito dela: há coisas mais importantes
………………… que toda essa charanga.
Lendo-a, todavia, com o mais perfeito desdém, a gente acaba
…………………….descobrindo
nela, afinal de contas, um lugar para o genuíno.
…….Mãos que podem apertar, olhos
…….que se podem dilatar, cabelo capaz de eriçar-se
…………..se for preciso, tais coisas são importantes não porque uma
grandiloquente interpretação lhes possa ser aposta mas
…………………porque são
úteis. E se ficam tão derivativas que chegam a ser
……………………….ininteligíveis,
…….o mesmo se poderá dizer de qualquer um de nós, que não
…………..admiramos aquilo que
…………..não podemos compreender: o morcego
…………………pendurado de cabeça para baixo ou em busca de algo
……………………….que
comer, os elefantes empurrando, um cavalo selvagem se espojando,
…………………incansável lobo debaixo de
uma árvore, o crítico estacionário encolhendo a pele como um
…………………cavalo picado por um mosquito, o fan de base-
…….ball, o estatístico ―
…………..e nem está direito
…………………discriminar contra “documentos comerciais e
livros escolares”; todos esses fenômenos são importantes. A gente
……………………….deve fazer uma distinção
…….contudo: quando eles são arrastados à preeminência por semipoetas,
……………………….o resultado não é poesia,
…….e nem ― até que os poetas dentre nós possam ser
…………..“literalistas da
…………..imaginação”, acima
…………………do insolente e do trivial e possam apresentar a quem
quiser inspecionar, jardins imaginários contendo sapos de verdade ―
……………………….é que ela será
…….nossa. Enquanto isso, se você exigir por um lado
…….a matéria-prima da poesia
…………todo o seu primarismo e
…………aquilo que é por outro lado
…………….genuíno, então você se interessa por poesia.
(Poesia completa e traduzida; organização de Benedito Nunes. São Paulo, 1985)
(Ilustração: Elisa Riemer)
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Marianne Moore - Poetry / Poesia
terça-feira, 18 de junho de 2024
O BELO TERNO, de H. G. Wells
Um dia, existiu um rapazinho que ganhou um belo terno de sua mãe. Era verde e dourado, de uma costura tão delicada e elegante que mal consigo descrever, e tinha uma gravata ocre aveludada no pescoço. Os botões novinhos brilhavam como estrelas. Estava tão orgulhoso e satisfeito com o novo traje que se prostrou diante do espelho quando o vestiu pela primeira vez, tão maravilhado e radiante que não conseguia desviar o olhar. Queria usá-lo a todos os lugares, mostrá-lo a todo mundo. Pensou em todos os lugares que já havia visitado, em todos os locais que já lhe haviam descrito, e tentava imaginar a sensação de ir a esses lugares agora usando seu novo terno brilhante e desejava sair e caminhar logo pela grama alta, sob o forte sol do campo, vestindo-o. Apenas para usá-lo! Mas sua mãe o proibiu. Ela disse que deveria cuidar muito bem daquele terno, pois jamais teria outro tão elegante. Deveria guardá-lo e cuidá-lo, vesti-lo somente em ocasiões especiais. Esse seria o traje do seu casamento. Ela envolveu os botões com lenços de papel, temendo que aquele brilho se perdesse, protegeu os punhos e os cotovelos e onde mais julgava que poderia danificar-se facilmente. Ele odiou e opôs-se a tudo isso, mas o que poderia fazer? Por fim os alertas e a persuasão da mãe surtiram efeito e ele concordou em retirar o terno, dobrá-lo nos devidos vincos e guardá-lo. Foi como se o estivesse devolvendo. Mas sempre pensava em vesti-lo, e sonhava com as ocasiões especiais em que poderia usá-lo sem as proteções, sem os lenços de papel envolvendo os botões, completa e integralmente, sem preocupar-se, belo fora do normal.
Uma noite, enquanto sonhava com o terno, como de costume, sonhou que removia o lenço de papel de um dos botões e o encontrava levemente opaco, o que o aborreceu bastante. Ele polia e polia o pobre botão embaçado, mas ele ficava cada vez mais turvo. Então despertou-se mas não se levantou, pensando naquele brilho levemente fosco, e imaginando como se sentiria se quando o grande momento chegasse (o que quer que fosse), um dos botões tivesse perdido um tanto de seu brilho inicial. Remoeu esse pensamento por dias e dias, aflito. E quando sua mãe deixou que usasse o terno, quase cedeu à tentação de desembrulhar só um pouquinho e ver se os botões, de fato, mantinham o brilho de sempre.
Ia galante a caminho da igreja, tomado por esse desejo rebelde. Pois saiba você que sua mãe permitia, com repetidos e cautelosos alertas, que ele usasse seu terno de vez em quando: aos domingos, por exemplo, para a igreja, desde que não houvesse sinal de chuva, tempestades de poeira, ou qualquer coisa que pudesse danificar o traje. Os botões deveriam continuar cobertos e as proteções firmes, e deveria levar sempre uma sombrinha para protegê-lo, caso o sol estivesse forte o suficiente para desbotar suas cores. Após essas ocasiões, ele sempre o limpava antes de guardá-lo outra vez, com o asseio que sua mãe lhe havia ensinado.
Todas as restrições impostas pela mãe para uso do terno eram obedecidas, ele sempre as obedeceu, até que uma noite acordou e percebeu o brilho da lua pela janela. O luar não parecia um luar comum, nem a noite parecia uma noite comum, e permaneceu deitado e sonolento por um tempo, refletindo sobre aquele sentimento. Um pensamento uniu-se a outro, como sussurros calorosos nas sombras. Sentou-se na pequena cama de repente, alerta, com o coração disparado e um tremor dos pés à cabeça. Estava decidido. Vestiria o terno como ele deveria ser vestido. Não lhe restavam dúvidas. Tinha medo, muito medo, mas sentia-se feliz, feliz.
Levantou-se da cama e se deteve por um instante na janela, observando o jardim invadido pelo luar, temeroso pelo que estava prestes a fazer. A noite estava tomada pelo canto sussurrado dos grilos, dos gritos quase inaudíveis dos pequenos seres vivos. Caminhou com cuidado pelo piso de madeira, temendo que o barulho pudesse despertar a casa adormecida, até o enorme e escuro guarda-roupas onde seu belo terno encontrava-se dobrado. Retirou peça por peça e, silenciosa e avidamente, arrancou os lenços de papel que cobriam os botões e as proteções até que lá estava ele, perfeito e encantador como na primeira vez que o viu, quando sua mãe o entregou. Parecia que havia passado tanto tempo. Nenhum botão havia desbotado, não havia sequer um fio fora do lugar em seu querido terno. Estava tão feliz que seus olhos se encheram d’água enquanto o vestiu, apressado. E então voltou, suave e veloz, para a janela com vista para o jardim, deteve-se ali por um instante brilhando sob o luar, com seus botões cintilantes como estrelas, antes de sair ao peitoril e, fazendo o menor barulho possível, arrastou-se até o jardim lá embaixo. Parou em frente à casa materna, branca e quase tão clara quanto era de dia, todas as cortinas fechadas como olhos adormecidos, exceto as dele. As árvores projetavam sombras imóveis, como um bordado intrincado nas paredes.
O jardim à noite era muito diferente do jardim de dia. O brilho da lua se emaranhava na cerca viva e se alongava pelas teias de aranha fantasmagóricas em cada ramo. As flores eram ou de um branco reluzente ou de um preto avermelhado, e o trinado dos pequenos grilos e os cantos dos rouxinóis escondidos na profundeza das árvores tornavam o ar estremecedor.
Não havia escuridão no mundo, apenas sombras cálidas e misteriosas, e todas as folhas e espinhos eram pontiagudos e cravejados de cristais de orvalho iridescentes. A noite estava mais acolhedora que nunca. Por algum milagre, o céu estava maior e mais perto e, apesar da grande lua marfim que dominava o mundo, o céu estava repleto de estrelas.
O menino não gritou nem cantou para comemorar tamanha alegria. Ele parou por um instante, estupefato, e então, com um estranho e silencioso choro, ergueu os braços e correu como se quisesse abraçar de uma só vez toda a imensidão do mundo. Ele não seguiu pelo caminho que cortava o jardim, mas cruzou os canteiros e a grama alta, úmida e perfumada, pelas matíolas e nicotianas, pelo aglomerado de malvas-brancas fantasmagóricas e pelo emaranhado de artemísias e lavanda, e afundou-se pelo grande campo de resedás que batiam em seus joelhos. Alcançou a enorme cerca-viva e abriu caminho, ainda que os espinhos dos pés de amora o tivessem machucado muito, arrancando fios do seu maravilhoso terno, e embora carrapichos e capim grudassem nele, não se importava. Não se importava, pois sabia que isso era parte de usar o terno, algo tão sonhado.
— Estou feliz por ter usado meu terno — disse. — Estou feliz por ter vestido meu terno.
Passada a cerca, alcançou o lago de patos, ou pelo menos o que seria o lago de dia. À noite, era uma grande tigela prateada de luar, ruidosa com o coaxar dos sapos, de um maravilhoso brilho que dançava e se detinha em formas estranhas, e o menino correu até as águas por entre a charneca escura, os joelhos submersos, a cintura, até que a água estivesse na altura dos ombros. Ele golpeava a água com uma das mãos até formar pequenas ondas escuras e brilhantes, pequenas ondas que oscilavam e brilhavam e capturavam estrelas com a rede dos reflexos entrelaçados das árvores na margem. Mergulhou antes de começar a nadar e atravessou até o lado oposto, arrastando-se, ao que parecia, não pelo musgo, mas sim por uma grande massa prateada pegajosa e gotejante. E seguiu pelo emaranhado transfigurado das lavandas e da grama alta na outra margem. Alcançou a estrada principal contente e ofegante.
— Estou feliz — declarou —, estou tão feliz por ter me vestido de acordo com a ocasião.
A estrada era reta como a trajetória de uma flecha, e culminava no poço azul escuro do céu além da lua, uma estrada branca e reluzente entre o canto dos rouxinóis, e ele seguiu, por vezes correndo e saltitando, outras caminhando e regozijando-se, vestindo as roupas que sua mãe havia feito com suas próprias mãos amorosas e incansáveis. A estrada estava coberta de poeira, mas para ele era apenas uma brancura suave. Conforme caminhava, uma enorme mariposa escura veio tremulando ao redor de sua silhueta, cintilante e apressada. A princípio, ignorou-a, mas logo estendeu-lhe as mãos e dançou com ela, enquanto a mariposa circundava sua cabeça.
— Delicada mariposa! — murmurou. — Querida mariposa! Que bela noite, a mais bela noite do mundo! Acha minhas roupas bonitas, querida mariposa? Tão bonitas quanto suas asas e toda a roupagem prateada do céu e da Terra?
E a mariposa se aproximou mais e mais até que, finalmente, uma de suas asas aveludadas pincelaram os lábios do menino…
#
Na manhã seguinte, encontraram-no morto, com o pescoço quebrado, no fundo de uma pedreira, com seu belo traje um tanto ensanguentado, sujo e manchado pelo musgo do lago. Mas seu semblante era de uma felicidade tamanha que, se o tivesse visto, você teria compreendido de fato como ele morreu feliz, mesmo que nunca tenha visto aquele prateado frio e esvoaçante do musgo do lago.
(Tradução de Juliana Pavão)
(Ilustração : René Magritte - the infinite recognition, 1963)
sábado, 15 de junho de 2024
DENTRO DA NOITE VELOZ, de Ferreira Gullar
I
Na quebrada do Yuro
eram 13,30 horas
(em São Paulo era mais tarde;
em Paris anoitecera;
na Ásia o sono era seda)
Na quebrada do rio Yuro
a claridade da hora
mostrava seu fundo escuro:
as águas limpas batiam
sem passado e sem futuro.
Estalo de mato, pio
de ave, brisa nas folhas
era silêncio o barulho
a paisagem
(que se move)
está imóvel, se move
dentro de si
(igual que uma máquina de lavar
lavando sob o céu boliviano, a paisagem
com suas polias e correntes de ar)
Na quebrada do Yuro
não era hora nenhuma
só pedras e águas
II
Não era hora nenhuma
até que um tiro
explode em pássaros
e animais até que passos
vozes na água rosto nas folhas
peito ofegando a clorofila
penetra o sangue humano
e a história se move a paisagem
como um trem começa a andar
Na quebrada do Yuro eram 13,30 horas
III
Ernesto Che Guevara
teu fim está perto
não basta estar certo
para vencer a batalha
Ernesto Che Guevara
Entrega-te à prisão
não basta ter razão
pra não morrer de bala
Ernesto Che Guevara
não estejas iludido
a bala entra em teu corpo
como em qualquer bandido
Ernesto Che Guevara
por que lutas ainda?
a batalha está finda
antes que o dia acabe
Ernesto Che Guevara
é chegada a tua hora
e o povo ignora
se por ele lutavas
IV
Correm as águas do Yuro, o tiroteio agora
é mais intenso, o inimigo avança
e fecha o cerco.
Os guerrilheiros
em pequenos grupos divididos
aguentam a luta, protegem a retirada
dos companheiros feridos.
No alto,
grandes massas de nuvens se deslocam lentamente
sobrevoando países
em direção ao Pacífico, de cabeleira azul.
Uma greve em Santiago. Chove
na Jamaica. Em Buenos Aires há sol
nas alamedas arborizadas, um general maquina um golpe.
Uma família festeja bodas de prata num trem que se aproxima
de Montevidéu. À beira da estrada
muge um boi da Swift. A Bolsa
no Rio fecha em alta ou baixa.
Inti Peredo, Benigno, Urbano, Eustáquio, Ñato
castigam o avanço dos rangers .
Urbano tomba, Eustáquio
Che Guevara sustenta
o fogo, uma rajada o atinge, atira ainda, solve-se-lhe
o joelho, no espanto
os companheiros voltam
para apanhá-lo. É tarde. Fogem.
A noite veloz se fecha sobre o rosto dos mortos.
V
Não está morto, só ferido
Num helicóptero ianque
é levado para Higuera
onde a morte o espera
Não morrerá das feridas
ganhas no combate
mas de mão assassina
que o abate
Não morrerá das feridas
ganhas a céu aberto
mas de um golpe escondido
ao nascer do dia
Assim o levam pra morte
(sujo de terra e de sangue)
subjugado no bojo
de um helicóptero ianque
É seu último voo
sobre a América Latina
sob o fulgir das estrelas
que nada sabem dos homens
que nada sabem do sonho,
da esperança, da alegria,
da luta surda do homem
pela flor da cada dia
É seu último voo
sobre a choupana de homens
que não sabem o que se passa
naquela noite de outubro
quem passa sobre seu teto
dentro daquele barulho
quem é levado pra morte
naquela noite noturna
VI
A noite é mais veloz nos trópicos
(com seus na vertigem das folhas na explosão
monturos) das águas sujas
surdas
nos pantanais
é mais veloz sob a pele da treva, na
conspiração de azuis
e vermelhos pulsando
como vaginas frutas bocas
vegetais (confundidos com sonhos)
ou um ramo florido feito um relâmpago
parado sobre uma cisterna d´água
no escuro
É mais funda
a noite no sono
do homem na sua carne
de coca e de fome
e dentro do pote uma caneca
de lata velha de ervilha
da Armour Company
A noite é mais veloz nos trópicos
com seus monturos
e cassinos de jogos
entre as pernas das putas
o assalto a mão armada
aberta em sangue a vida.
É mais veloz (e mais demorada)
nos cárceres
a noite latino-americana
entre interrogatórios
e torturas (lá fora as violetas)
e mais violenta (a noite)
na cona da ditadura
Sob a pele da treva, os frutos
crescem
conspira o açúcar
(de boca para baixo) debaixo
das pedras, debaixo
da palavra escrita no muro
ABAIX
e inacabada Ó Tlalhuicole
as vozes soterradas da platina
Das plumas que ondularam já não resta
mais que a lembrança
no vento
Mas é o dia (com seus monturos)
pulsando dentro do chão
como um pulso
apesar da South American Gold and Platinum
é a língua do dia
no azinhavre
Golpeábamos en tanto los muros de adobe
y era nuestra herencia una red de agujeros
é a língua do homem
sob a noite
no leprosário de San Pablo
nas ruínas de Tiahuanaco
nas galerias de chumbo e silicose
da Cerro de Pasço Corporation
Hemos comido grama salitrosa
piedras de adobe lagartijas ratones
tierra en polvo y gusanos
até que
(de dentro dos monturos) irrompa
com seu bastão turquesa
VII
Súbito vimos ao mundo
E nos chamamos Ernesto
Súbito vimos ao mundo
e estamos
na América Latina
Mas a vida onde está
nos perguntamos
Nas tavernas?
nas eternas tardes tardas?
nas favelas
onde a história fede a merda?
no cinema?
na fêmea caverna de sonhos
e de urina?
ou na ingrata
faina do poema?
(a vida
que se esvai
no estuário do Prata)
Serei cantor
serei poeta?
Responde o cobre (da Anaconda Copper):
Serás assaltante
E proxeneta
Policial jagunço alcagueta
Serei pederasta e homicida?
serei o viciado?
Responde o ferro (da Bethlehem Steel):
Serás ministro de Estado
e suicida
Serei dentista
talvez quem sabe oftalmologista?
Otorrinolaringologista?
Responde a bauxita (da Kaiser Aluminium):
serás médico aborteiro
que dá mais dinheiro
Serei um merda
quero ser um merda
Quero de fato viver.
Mas onde está essa imunda
vida – mesmo que imunda?
No hospício?
num santo
ofício?
no orifício da bunda?
Devo mudar o mundo,
a República? A vida
terei de plantá-la
como um estandarte
em praça pública?
VIII
A vida muda como a cor dos frutos
lentamente
e para sempre
A vida muda como a flor em fruto
velozmente
A vida muda como a água em folhas
o sonho em luz elétrica
a rosa desembrulha do carbono
o pássaro da boca
mas
quando for tempo
E é tempo todo o tempo
mas
não basta um século para fazer a pétala
que um só minuto faz
ou não
mas
a vida muda
a vida muda o morto em multidão
(Ilustração: Che Guevara e as crianças - Santa Clara – Cuba)
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Ferreira Gullar - Dentro da noite veloz
quarta-feira, 12 de junho de 2024
O HOMEM QUE ESPALHOU O DESERTO, de Ignácio de Loyola Brandão
Quando menino, costumava apanhar a tesoura da mãe e ia para o quintal, cortando folhas das árvores. Havia mangueiras, abacateiros, ameixeiras, pessegueiros e até mesmo jabuticabeiras. Um quintal enorme, que parecia uma chácara e onde o menino passava o dia cortando folhas. A mãe gostava, assim ele não ia para a rua, não andava em más companhias. E sempre que o menino apanhava o seu caminhão de madeira (naquele tempo, ainda não havia os caminhões de plástico, felizmente) e cruzava o portão, a mãe corria com a tesoura: tome filhinho, venha brincar com as suas folhas. Ele voltava e cortava. As árvores levavam vantagem, pois eram imensas e o menino pequeno. O seu trabalho rendia pouco, apesar do dia a dia constante, de manhã à noite.
Mas o menino cresceu, ganhou tesouras maiores. Parecia determinado, à medida que o tempo passava, a acabar com as folhas todas. Dominado por uma estranha impulsão, ele não queria ir à escola, não queria ir ao cinema, não tinha namoradas ou amigos. Apenas tesouras, das mais diversas qualidades e tipos. Dormia com elas no quarto. À noite, com uma pedra de amolar, afiava bem os cortes, preparando-as para as tarefas do dia seguinte. Às vezes, deixava aberta a janela, para que o luar brilhasse nas tesouras polidas. A mãe, muito contente, apesar do filho detestar a escola e ir mal nas letras. Todavia, era um menino comportado, não saía de casa, não andava em más companhias, não se embriagava aos sábados como os outros meninos do quarteirão, não frequentava ruas suspeitas onde mulheres pintadas exageradamente se postavam às janelas, chamando os incautos. Seu único prazer eram as tesouras e o corte das folhas.
Só que, agora, ele era maior e as árvores começaram a perder. Ele demorou apenas uma semana para limpar a jabuticabeira. Quinze dias para a mangueira menor e vinte e cinco para a maior. Quarenta dias para o abacateiro que era imenso, tinha mais de cinquenta anos. E seis meses depois, quando concluiu, já a jabuticabeira tinha novas folhas e ele precisou recomeçar.
Certa noite, regressando do quintal agora silencioso, porque o desbastamento das árvores tinha afugentado pássaros e destruído ninhos, ele concluiu que de nada adiantaria podar as folhas. Elas se recomporiam sempre. É uma capacidade da natureza, morrer e reviver. Como o seu cérebro era diminuto, ele demorou meses para encontrar a solução: um machado.
Numa terça-feira, bem cedo, que não era de perder tempo, começou a derrubada do abacateiro. Levou dez dias, porque não estava habituado a manejar machados, as mãos calejaram, sangraram. Adquirida a prática, limpou o quintal e descansou aliviado.
Mas insatisfeito, porque agora passava os dias a olhar aquela desolação, ele saiu de machado em punho, para os arredores da cidade. Onde encontrava árvore, capões, matos, atacava, limpava, deixava os montes de lenha arrumadinhos para quem quisesse se servir. Os donos dos terrenos não se importavam, estavam em via de vendê-los para fábricas ou imobiliárias e precisavam de tudo limpo mesmo.
E o homem do machado descobriu que podia ganhar a vida com o seu instrumento. Onde quer que precisassem derrubar árvores, ele era chamado. Não parava. Contratou uma secretária para organizar uma agenda. Depois, auxiliares. Montou uma companhia, construiu edifícios para guardar machados, abrigar seus operários devastadores. Importou tratores e máquinas especializadas do estrangeiro. Mandou assistentes fazerem cursos nos Estados Unidos e Europa. Eles voltaram peritos de primeira linha. E trabalhavam, derrubavam. Foram do sul ao norte, não deixando nada em pé. Onde quer que houvesse uma folha verde, lá estava uma tesoura, um machado, um aparelho eletrônico para arrasar.
E enquanto ele ficava milionário, o país se transformava num deserto, terra calcinada. E então, o governo, para remediar, mandou buscar em Israel técnicos especializados em tornar férteis as terras do deserto. E os homens mandaram plantar árvores. E enquanto as árvores eram plantadas, o homem do machado ensinava ao filho sua profissão.
(Cadeiras proibidas; 1979)
(Ilustração: Zdzisław Beksiński)
domingo, 9 de junho de 2024
O MÍNIMO DE NÓS DOIS, de Camila Sintra
No pequeno espaço
entre teu olhar e o meu
brilha a estrela do desejo
que nos guia um para o outro
Na ausente distância
entre teus lábios e os meus
brincam e fundem-se os hormônios
da nossa química mais secreta
No mínimo silêncio
onde somente nossos corpos falam
deslizam mãos em carícias
de tatos cegos que tudo dizem
No fugaz e eterno momento
da consumação de nosso amor
gritam gargantas no gozo do prazer
da quase dor desse explodir...
(Ilustração: Jacqueline Secor)
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Camila Sintra - O mínimo de nós dois
quinta-feira, 6 de junho de 2024
OS NEONAZISTAS NÃO GOSTAM DE MIM, de José António Baço
Se está publicado... é público.
Mas hoje em dia, em tempos de Internet, o texto pode chegar aos lugares mais surpreendentes. Um dia destes fui alertado por um e-mail a recomendar que visitasse um certo blog:
- Tem uma crônica tua lá. Mas acho que não vais gostar. Lê os comentários...
Fui ao tal blog e vi que realmente havia um texto meu, publicado aqui neste espaço faz algum tempo. Era uma crônica que, em tom de brincadeira, ensinava uns "truques" aos brasileiros que quisessem imigrar para Portugal. E recomendava que tentassem parecer com os portugueses:
- A melhor maneira é desaparecer na multidão, tentar ficar o mais parecido possível com os nativos.
E, claro, exagerava alguns estereótipos dos portugueses. Ter bigode, cuspir no chão, andar com os pelos do peito à mostra. Tudo na brincadeira.
Mas os idiotas não têm senso de humor. E ninguém consegue ser mais idiota do que um neonazista. O tal blog era frequentado por alguns desses skinheads imbecis que andam por aí a defender a tal "raça branca" e querem ver os estrangeiros fora da Europa.
Os comentários feitos por eles, como era de esperar, destilam ódio e violência. E como os textos contêm ofensas pessoais, vou reproduzir aqui apenas as partes mais genéricas. É o suficiente para perceber o grau de indigência mental desses cretinos.
O sujeito mais incomodado, que assina com o singelo nome de Adolf4Ever, não economiza palavrões (por isso a transcrição que segue está cheia de pontinhos):
- Brasileiros filhos da p..., vêm pra cá f... com esta m... toda. Sim, porque são um bando de marginais e criminosos. E ainda por cima tratam mal quem os acolhe. Filho de uma p... Volta pra casa, nojento.
Ah... o Adolf não sabe que eu sou português.
Outro sujeito, que assina com o nome Xixaboi, exacerba o seu ódio contra os brasileiros:
- Desgraçados, hipócritas e ingratos! Houve um tempo em que ainda pensava que os brasileiros seriam gente... Mas chego à conclusão de que não passam de ladrões, paneleiros e p...
Paneleiros, fique a saber, são homossexuais.
E a malhação continua. Um tal Micas dá um jeitinho de falar também nos africanos, que estão sempre na mira dos neonazistas:
- Brazucas dum cabrão, nunca vi maiores calões. Não querem fazer a ponta de um corno. São piores que os pretos. O vosso sustento são as vossas mulheres, essas p... que vêm para cá atacar para vos encher o c..., seus paneleiros.
Eu traduzo. "Calões" significa folgados, pessoas que não gostam de trabalhar. Não fazer a "ponta de um corno" é não trabalhar. "Atacar" é ir para a prostituição. "Encher o c...", neste caso, significa ganhar dinheiro.
E até uma professora chamada Shana (sem risos, por favor) entrou na dança:
- Até hoje discordei de quem vos apelidava de ingratos. Mas estou a rever as minhas teorias. É que, enquanto eu sou professora e me mato a trabalhar para conseguir ter alguma coisa, vocês chegam aqui e é só facilidades. Mas acho que até tem razão. Deus deu-vos boas bundas. Para alguma coisa deve ter sido!
O que dizer? Essa gente não gosta dos meus textos. Só posso sentir orgulho.
É como diz o velho deitado: "Você não gosta de mim? Ainda bem".
(Ilustração: Raffaello Gambogi - gli emigranti, 1894)
segunda-feira, 3 de junho de 2024
WONDERFUL, de Estela Rosa
Uma árvore
rebentada ao meio
não seria mais linda
que uma frase perfeita?
Seus braços
marcados pelas unhas
não seriam mais bonitos
que a simples ideia
de lucidez?
As luzes velhas que piscam
antes de queimar não trazem
mais sentido que as eternas
novidades em tecnologia
com 3 anos de garantia?
Não é divino
o vidro respingado
da chuva torta
a camisa manchada
do sorriso com doce na boca?
Se descobrir
sobrevivente
de dores de cabeça
de camisa com molho
de café nos livros
de descargas de eletricidade
de dedos que se tocaram
e se afastaram
Não seria maravilhoso?
(Ilustração: escultura de Maria Martins – anunciação)
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