terça-feira, 24 de dezembro de 2024

ALICE, WHERE ART THOU? / ALICE, ONDE ESTÁS?, de Vincent Starrett


 


“Quaint child, old-fashioned Alice, lend your dream:

I would be done with modern story-spinners,

Follow with you the laughter and the gleam:

Weary am I, this night, of saints and sinners.

We have been friends since Lewis and old Tenniel

Housed you immortally in red and gold.

Come! Your naivete is a spring perennial:

Let me be young again before I’m old.

 

You are a glass of youth: this night I choose

Deep in your magic labyrinths to stray,

Where rants the Red Queen in her splendid hues

And the White Rabbit hurries on his way.

Let us once more adventure, hand in hand:

Give me belief again – in Wonderland!

 

Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges:

 

Curiosa criança, remota Alice, empresta-me teu sonho:

Eu desprezaria os contadores de histórias de hoje,

Seguiria contigo o riso e o fulgor:

Estou fatigado, esta noite, de santos e pecadores.

Somos amigos desde que Lewis e o velho Tenniel

Encerraram tua imortalidade em vermelho e dourado.

Vem! Tua ingenuidade é uma fonte perene.

Deixa-me ser jovem de novo antes de ser velho.

És um espelho de juventude: esta noite escolho

Perder-me profundamente em teus labirintos mágicos,

Em que a Rainha Vermelha vocifera em esplêndidas nuances

E o Coelho Branco segue apressado seu caminho.

Vamos mais uma vez nos aventurar, de mãos dadas:

Faze-me de novo acreditar – no País das Maravilhas!

 

(Brillig, 1949)

 

(Ilustração: Charles Blackman — Alice in Wonderland)

sábado, 21 de dezembro de 2024

EU ACUSO! CARTA A M. FÉLIX FAURE, PRESIDENTE DA REPÚBLICA, de Émile Zola

 




Excelentíssimo Senhor Presidente da República, permita-me, em gratidão à generosa acolhida que o senhor me deu em uma ocasião passada, apelar para sua justa glória e dizer que sua estrela, tão honrada até aqui, está ameaçada pela maior das vergonhas, a mais indelével das manchas.

O senhor livrou-se, são e salvo, das maiores calúnias, tendo conquistado os corações; saiu apoteótica e radiosamente desta festa patriótica que foi para a Franca a aliança com a Rússia, e prepara-se para presidir ao triunfo solene da nossa Exposição Universal, que coroará nosso grande século cheio de trabalho, verdade e liberdade. Mas é enorme a mancha sob o seu nome – eu iria dizer sob seu governo – que é esse abominável caso Dreyfus! Uma corte marcial acaba, por ter recebido ordens nesse sentido, de ousar absolver o tal Esterhazy, supremo golpe em qualquer verdade, em qualquer justiça. E está feito: a vergonha está estampada no rosto da França, e a história registará que foi sob a sua presidência que tamanho crime social foi cometido.

E como foram ousados, serei da minha parte ousada também. Vou falar a verdade, pois prometi resguardá-la, já que a justiça, conspurcada diversas vezes, não faz isso, plena e inteiramente. Tenho o dever de falar, eu não quero ser cúmplice. Minhas noites seriam assombradas pelo espectro de um inocente que sofre no além-mar, mergulhado na mais dolorosa tortura, por um crime que ele não cometeu.

E será à sua Excelência, senhor Presidente, que dirigirei meus clamores, a verdade, com toda força da minha revolta de homem honesto. Conheço a sua honra e, por isso, sei que ignora a verdade. A quem mais eu poderia denunciar a turba malfeitora dos verdadeiros culpados, que não à Sua Excelência, o primeiro magistrado do país?

A verdade, para começar, sobre o processo e a condenação de Dreyfus.

Um homem nefasto, responsável por tudo, autor de tudo, é o comandante du Paty de Clam, naquele momento um simples oficial. Ele é a personificação do caso Dreyfus; nada será esclarecido até que uma investigação imparcial tenha estabelecido claramente seus atos e sua responsabilidade. Ele representa uma figura nebulosa, a mais complicada, obcecado pelas intrigas romanescas, comprazendo-se, à maneira dos folhetins baratos, com papéis que desaparecem, cartas anónimas, encontros e lugares desertos, mulheres misteriosas que carregam, à noite, provas irrefutáveis. Ele imagina ter ditado o documento a Dreyfus; é ele que sonha estudá-lo em um cómodo inteiramente revestido de espelhos, é ele que o comandante Forzinetti nos representa, empunhando uma lanterna velada, desejando se aproximar do acusado adormecido, para projetar sobre seus olhos um jato de luz e surpreendê-lo então em seu crime, na confusão do sonho. Não tenho mais nada a dizer: se procurar, alguma coisa aparece. Declaro simplesmente que o comandante du Paty de Clam, encarregado de instruir o caso Dreyfus, como representante da justiça, e, segundo a cronologia e a importância dos fatos, é o primeiro culpado do erro judicial que foi cometido.

Depois de algum tempo o documento foi parar nas mãos do coronel Sandherr, diretor do serviço de inteligência, que morreu de paralisia geral. Então, as coisas começaram a “desaparecer”, papéis sumiram, até hoje estão sumidos; e foram atrás de saber quem era o autor do documento, e um pré-requisito foi pouco a pouco se construindo: o culpado teria de ser um oficial do Estado-Maior e da artilharia: duplo erro manifesto, que mostra a superficialidade com que o processo foi tratado, pois um exame cuidadoso demonstra que o culpado necessariamente precisa ser um oficial de tropa.

Foi feita uma busca em domicílio, olharam os papéis, como se tudo fosse um caso de família, uma tramoia a ser desvendada dentro dos escritórios mesmo e então os culpados seriam expulsos. E, sem querer aqui contar uma história já conhecida em parte, entra em cena o comandante du Paty de Clam, quando as primeiras suspeitas começam a recair sobre Dreyfus. Foi então que ele inventou um Dreyfus, o caso tornou-se o seu caso, ele se esforçou para confundir o traidor e fazê-lo confessar tudo. Há ainda o ministro da Guerra, general Mercier, cuja inteligência parece medíocre; ao chefe do Estado-Maior, general Boisdeffre, que apresenta ter cedido à paixão clerical, e o subchefe do Estado-Maior, o general Gonse, cuja consciência se acomoda a quase tudo. Mas, no fundo, não se trata de ninguém além do comandante du Paty de Clam, que os guia a todos, que os hipnotiza, pois ele também se ocupa do espiritismo, do ocultismo: ele conversa com os espíritos. É impossível conceber as situações às quais ele submeteu o infeliz Dreyfus, as armadilhas nas quais ele quis apanhá-lo, as investigações delirantes, as invenções monstruosas, uma enorme demência torturante.

Ah! Esse primeiro fato é um pesadelo para quem o conhece nos seus verdadeiros detalhes! O comandante du Paty de Clam prende Dreyfus e o coloca na solitária. Vai até a casa da senhora Dreyfus, amedronta-a, e diz que se ela contar alguma coisa para alguém seu marido estará perdido. Durante esse tempo, o infeliz se desespera, clamando inocência. E a instrução foi feita dessa forma, como se fosse uma crónica do século XV, misteriosa, com expedientes cruéis e todo baseado exclusivamente em uma evidência infantil, esse documento imbecil, que não passa de uma traição vulgar, a patifaria mais grosseira, pois os maiores segredos transmitidos se revelaram todos sem nenhum valor. Eu insisto porque é aqui que está a semente de onde surgirá o verdadeiro crime, a espantosa recusa de justiça que torna a França um lugar doente. Eu gostaria de entender como esse erro judicial pôde ser possível, como ele surgiu das maquinações do comandante du Paty de Clam; como o general Mercier e os generais de Boisdeffre e Gonse puderam se deixar levar e tornar-se pouco a pouco cúmplices desse erro, que mais tarde acreditaram dever impor como uma verdade santa, uma verdade indiscutível. A priori, só houve da parte deles falta de cuidado e burrice. De mais a mais, sentimos que eles cederam às paixões religiosas da comunidade e ao preconceito corporativista. Permitiram que a estupidez acontecesse.

Mas então Dreyfus se submete ao Conselho de Guerra. Exige-se o mais absoluto sigilo. Mesmo que um traidor houvesse aberto a fronteira ao inimigo para permitir que o imperador alemão tomasse Notre Dame, não seriam tomadas precauções de sigilo e mistério tão severas. A nação treme de espanto, um diz-que-diz de ocorrências terríveis, dessas traições monstruosas que indignam a História; e naturalmente o país se dobra. Não há punição que chegue, ele apoiará a degradação pública, desejará que o culpado se enterre em um solo imutável de infâmia, devorado pelo remorso. E, por isso, os fatos indizíveis, as coisas perigosas capazes de incendiar a Europa e que por isso tiveram de ser em sigilo soterrados serão verdadeiros? Não! Tudo não passou de fruto da imaginação romanesca e desvairada do comandante du Paty de Clam. Tudo foi feito apenas para esconder o mais estapafúrdio dos folhetins. Para que isso fique claro, basta que o ato de acusação, lido diante do conselho de guerra, seja analisado com um pouco de cuidado.

Ah! A inutilidade desse ato de acusação! É um prodígio de iniquidade que um homem tenha condenado por meio desse ato. Desafio todos os homens corretos a lê-lo sem que seu coração se encha de indignação e não grite de revolta, vendo o exagero da pena da distante Ilha do Diabo. Dreyfus domina vários idiomas: crime; não há um papel sequer em sua casa que o comprometa: crime; de vez em quando ele retorna à sua pátria: crime; trabalha muito, tem o cuidado de se informar sobre tudo: crime; não perde a calma: crime; perde a calma: crime. E as platitudes de redação, as assertivas formais do vazio! Falou-se em 14 itens de acusação: no final das contas, não encontramos mais do que um, o tal documento; e já sabemos que nem com relação a ele os especialistas estão de acordo; e que um deles, o Sr. Gobert, foi militarmente constrangido porque ousou chegar a uma conclusão diversa daquela que se desejava. Falou-se ainda em 23 oficiais que teriam arrasado Dreyfus em seus testemunhos. Nada sabemos do que falaram, mas é fato que parte deles não o acusou; é obrigatório observar, ainda, que todos pertenciam ao Ministério da Guerra. É um processo interno, feito entre pares, e não se deve esquecer: o Estado-Maior queria o processo, levou a cabo o julgamento e termina de fazer outro.

Portanto, nada mais que o documento, a respeito do qual os especialistas não se entendem. Conta-se que, dentro da sala do conselho, os juízes estavam na iminência de absolvê-lo. E, então, para justificar a obstinação desesperada pela condenação, afirma-se hoje que há um documento secreto, incontornável, um documento que não se pode mostrar, que legitima tudo, diante do qual devemos nos inclinar, o bom Deus invisível e incognoscível! Eu o recuso, recuso esse documento, recuso-o como todas as minhas forças! Um documento ridículo, sim, deve ser o documentos em que se trata de umas mulherzinhas e se fala de um tal D... que se transforma em figura muito exigente: algum marido sem dúvida decepcionado porque não lhe pagaram um bom preço por sua esposa. Mas esse documento, que interessa tanto à defesa nacional, não poderia ser exibido sem que uma guerra fosse declarada amanhã, não, não! É mentira! E é de tal maneira odiosa e cínica que essas pessoas mentem impunemente, sem que nada os convença. Elas amotinam a França, esconde-se atrás da legítima emoção, fazem calar as bocas confundindo os corações, pervertendo os espíritos. Não conheço crime cívico maior.

Aqui, está, portanto, senhor Presidente, os fatos que explicam como um erro judiciário pôde ser cometido; e as provas morais, a situação do destino de Dreyfus, a ausência de motivos, contínuo clamor de inocência, exigem que eu o apresente como uma vítima da extraordinária imaginação do comandante du Paty de Clam, do meio clerical em que ele está, da perseguição aos “judeus sujos”, que desonram a nossa época.

E aqui chegamos ao caso Esterhazy. Três anos se passaram, muitas consciências permanecem profundamente confusas, inquietam-se, questionam e terminam se convencendo da inocência de Dreyfus.

Não farei o histórico da dúvida e da posterior certeza do Sr. M. Scheurer-Kestner. Mas, enquanto ele investigava por conta própria, passavam-se fatos graves no próprio Estado-Maior. O coronel Sandherr morre, e o tenente-coronel Picquart lhe sucede na chefia do serviço de inteligência. E, por sua vez, no exercício de suas funções foi que chegou às mãos desse último um telegrama, endereçado ao comandante Esterhazy, remetido por um agente a serviço no exterior. Seu estrito dever era o de abrir uma sindicância. Fato é que ele nunca deixou de obedecer a seus superiores. Ele apresentou, pois, suas suspeitas aos seus superiores hierárquicos, o general Gonse, e depois o general Boisdeffre e, por fim, o general Billot, que ocupou o lugar do general Mercier no Ministério da Guerra. O famoso dossiê Picquart, de que tanto se fala, nunca foi além do que o dossiê Billot, um dossiê feito por um subordinado para o seu ministro, dossiê que deve estar ainda no Ministério da Guerra. As investigações duraram de maio a setembro de 1896, e o que é preciso, dizer em alto e bom som é que o general Gonse estava convencido da culpabilidade de Esterhazy e que o general Boisdeffre e o general Billot não tinham nenhuma dúvida de que o autor do documento era Esterhazy. A investigação do tenente-coronel Picquart tinha conduzido a essa constatação certeira. Mas o constrangimento era grande, pois a condenação de Esterhazy acarretaria necessariamente a revisão do processo Dreyfus; e isso é que o Estado- Maior queria evitar a qualquer custo.

Deve ter havido um instante cheio de angústia psicológica. É fato que o general Billot não estava comprometido com nada, ele tinha acabado de saber de tudo, podia, portanto, dizer a verdade. Ele não ousou, temendo sem dúvida a opinião pública, certamente também acreditando que livraria todo o Estado-Maior, o general Boisdeffre e o general Gonse, sem falar dos inferiores. Depois, houve apenas um minuto de combate entre a sua consciência e o que ele acreditava ser um interesse militar. Quando esse minuto passou, já era muito tarde. Ele estava engajado, já estava comprometido. E, desde então, sua responsabilidade não para de crescer. Ele tomou para si o crime de outrem, é tão culpado quanto os outros, é mais culpado que os outros, pois tinha a oportunidade de fazer justiça, e não a fez. Veja isso! Faz um ano que o general Billot, os generais Boisdeffre e Gonse sabem que Dreyfus é inocente, e guardam para si essa verdade aterradora! E dormem tranquilos em casa, com suas esposas e filhos que os amam!

O tenente-coronel Picquart estava cumprindo suas obrigações de homem honesto. Insistia com seus superiores, em nome da justiça. Respondia, dizia quanto suas decisões eram apolíticas, diante da terrível tempestade que se construía, que se daria quando a verdade fosse conhecida. Essa foi, mais tarde, a argumentação que M. Scheurer-Kestner dirige igualmente ao general Billot, conclamando-o, por patriotismo, a pegar o caso com as mãos, não deixá-lo mais se agravar para evitar um desastre público. Não! O crime estava cometido, o Estado-Maior não poderia mais evitar seu crime. E o tenente-coronel Picquart foi enviado para o exterior, cada vez mais distante, até a Tunísia, onde se quis até mesmo certa vez honrar sua bravura, encarregando-o de uma missão que o teria seguramente massacrado, em lugares em que o Marques de Mores encontrou a morte. Ele não caiu em desgraça, o general Gonse manteve com ele uma correspondência amigável. Apenas não era muito conveniente divulgar alguns segredos.

Em Paris, a verdade começava irresistivelmente a aparecer e sabia-se que em algum momento a tempestade explodiria. M. Mathieu Dreyfus denuncia o comandante Esterhazy como verdadeiro autor do documento, no mesmo momento em que M. Scheurer-Kestner colocava, nas mãos do Ministério da Justiça, um pedido de revisão do processo. E aqui aparece o comandante Esterhazy. Testemunhas o descrevem de início descontrolado, disposto a se suicidar ou fugir. Depois, de repente, cria coragem e assusta Paris pela violência de sua atitude. É que tinha chegado ajuda, ele havia recebido uma carta anónima advertindo-o das manobras de seus inimigos, uma dama misteriosa chegou mesmo a se abalar durante a noite para roubar do Estado-Maior um documento que o salvaria. E aqui eu não posso deixar de lembrar a imaginação fértil do comandante du Paty de Clam. Sua obra, a culpabilidade de Dreyfus, estava em perigo, e ele quis seguramente defender a própria criação. A revisão do processo, seria esse o desfecho do extravagante e trágico folhetim, cujo abominável desenlace realizou-se na Ilha do Diabo! Isso ele não podia permitir. Então, o duelo ocorrerá entre o tenente-coronel Picquart e o comandante du Paty de Clam, um de cara aberta, o outro mascarado. Nós os reencontraremos em breve, diante da justiça civil. No fundo, é sempre o Estado-Maior que se defende, que não quer admitir seu crime, cuja abominação cresce a cada hora.

Com espanto, perguntou-se quem eram os protetores do comandante Esterhazy. Em primeiro lugar, na surdina, o comandante du Paty Clam, que maquinou e coordenou a coisa toda. Ele foi traído pelos seus próprios métodos bizarros. Depois, é o general de Boisdeffre, o general de Gonse, e o próprio general Billot, que são obrigados a absolver o comandante, já que não podem deixar que a inocência de Dreyfus seja reconhecida sem que o Ministério da Guerra caia em descrédito. E o fantástico resultado dessa prodigiosa situação é que o honesto tenente-coronel Picquart, que apenas cumpriu seu dever, será ele a vítima, o ridicularizado e o punido. Ah!, justiça, que terrível desespero rasga o coração! Chega-se ao cúmulo de dizer que ele é o falsificador, que fabricou o telegrama para incriminar Esterhazy. Mas, ó Deus! Por quê? Com que razão? Dai-me um motivo. Ele também foi pago pelos Judeus? O mais engraçado é que ele é justamente o antissemita! Sim! Assistimos a esse espetáculo infame, homens perdidos em divida e crimes que se proclamam inocentes, enquanto se mancha a honra de um homem de vida irresponsável. Quando uma sociedade chega a esse ponto, está desintegrada.

Eis, portanto, senhor Presidente, o caso Esterhazy: um culpado que era preciso inocentar. Retroagindo dois meses, podemos acompanhar hora por hora esse admirável serviço. Vou abreviar, pois aqui não trago nada mais que um resumo da história, cujas páginas vibrantes serão um dia escritas na integra.

E, então, vimos o general de Pellieux, depois o comandante Ravary, conduzir uma investigação criminosa em que os canalhas foram purificados, e os honestos, manchados. Logo depois, o Conselho de Guerra foi convocado.

Como se pode esperar que um Conselho de Guerra corrija o erro de outro Conselho de Guerra?

E nem estou me referindo aqui à escolha dos juízes. A ideia superior de disciplina, que ocorre no sangue desses soldados, não bastaria por si só invalidar sua capacidade de julgar imparcialmente? Quem fala disciplina, fala obediência. Quando o ministro de Guerra, a principal autoridade, estabeleceu publicamente, sob os aplausos da representação nacional, a autoridade do julgamento, não se pode esperar que um Conselho de Guerra o desminta. Hierarquicamente, é impossível. O general Billot influenciou os juízes com a sua declaração, e eles a julgaram como se devessem partir para o ataque, sem refletir. A opinião preconcebida, que levaram para julgamento, é evidentemente essa: “Dreyfus foi condenado por traição por um Conselho de Guerra, é, portanto, culpado; e nós, O Conselho de Guerra, não podemos declará-lo inocente, pois sabemos que reconhecer a culpa de Esterhazy é proclamar a inocência de Dreyfus”. Nada os demoveria dessa ideia.

Proclamaram uma sentença iniqua, que pesará para sempre sobre os nossos conselhos de guerra e que manchará a suspeita daqui em diante todas as decisões. O primeiro Conselho de Guerra não foi inteligente; mas o segundo é forçosamente criminoso. Sua desculpa, repito, é que a autoridade principal já tinha decidido, declarando inatacável o julgamento anterior, santo e superior aos homens, de modo que os inferiores não podiam dizer o contrario.

Falam-nos da honra do exército, querem que nós o amemos e o respeitemos. Há!, claro, o exército que se erguerá diante da primeira ameaça, que defenderá o território francês, ele é o povo, e não sentimos por ele nada além de ternura e respeito. Mas não se trata dele, quem, em nossa necessidade de justiça, desejamos justamente a dignidade. Trata-se aqui do sabre, o senhor que, quem sabe, nos dará amanhã. Mas beijar com devoção seu punho, ó deus, isso não!

Já o demonstrei: o caso Dreyfus foi o caso do Ministério da Guerra; um oficial de Estado-Maior, denunciado por seus colegas do Estado–Maior, condenado sob pressão dos chefes do Estado-Maior. E mais uma vez: ele não pode ser inocentado sem que todo o Estado-Maior seja culpado. Também os ministérios, por todos os meios imagináveis, com campanhas nos jornais, com comunicados e tráfico de influência, só cobriram Esterhazy para culpar Dreyfus uma segunda vez. Ah! o governo republicano deveria pôr no olho da rua esse bando de jesuítas, como o próprio general Billot os chama!

Onde está o ministério verdadeiramente forte, de um patriotismo sábio, que terá a coragem de tudo renovar e recriar? Quanta gente não conheço que, diante de uma possível guerra, treme de angústia sabendo em que mãos está a defesa nacional? E a que ninho de baixarias, fofocas e esbanjamentos está entregue esse lugar sagrado, onde se decide o futuro da pátria? Assusta o que o caso Dreyfus acabou revelando, esse sacrifício humano de um infeliz, de um “Judeu porco”! Ah!, que agitação de demência e imbecilidade, de imaginações estúpidas, de práticas de políticas mesquinhas, de costumes inquisitoriais e tirânicos, a satisfação de alguns oficiais agaloados esmagando a nação com suas botas, enfiando goela abaixo seu grito de verdade e justiça, sob o pretexto mentiroso e sacrílego da razão de estado!

E é um crime ainda terem se apoiado na impressa imunda, terem se deixado defender por toda a canalha de Paris, de modo que é essa canalha que triunfa insolentemente, diante da derrota do direito e da simples probidade. É um crime terem acusado de perturbar a França aqueles que a querem generosa, na vanguarda das nações livres e justas, quando tramaram eles próprios a impudente conspiração para impor o erro ao mundo inteiro. É um crime confundir a opinião pública, utilizar para uma sentença fatal essa opinião pública que foi corrompida até o delírio. É um crime envenenar os pequenos e humildes, exasperar as paixões de reação e de intolerância, abrigando-se atrás de um odioso antissemitismo, de que a grande França liberal dos direitos do homem sucumbirá, se não for curada. É um crime explorar o patriotismo para as obras do ódio; é um crime, por fim, fazer do sabre o deus moderno, quando toda a ciência humana está a serviço da obra iminente da verdade e da justiça.

Essa verdade, essa justiça, que tão apaixonadamente desejamos, que aflição vê-las assim esbofeteadas, mais desprezadas e mais obscurecidas! Desconfio do desmoronamento que deu na de Scheurer-Kestner, e acredito que ele acabará sentido remorsos, o de não ter agido revolucionariamente no dia da interpelação no Senado, revelando o que sabia, para pôr tudo abaixo. Foi o grande homem de bem da história, o homem de vida leal, acreditou que a verdade se bastaria a si própria, sobretudo quando ela lhe aparecia clara como a luz do dia. De que valeria todo o transtorno, se logo o sol a tudo esclareceria? E foi por essa serenidade confiante que foi tão cruelmente punido. O mesmo para o tenente-coronel Picquart, que, por um sentimento de grande dignidade, não quis publicar as cartas do general Gonse. Esses escrúpulos o tornam ainda mais honrado quando sabemos que, enquanto ele se mantinha respeitoso na disciplina, seus superiores o faziam cobrir-se de lama, instruindo eles mesmos o processo, da maneira mais inesperada e ultrajante. Há duas vítimas, dois homens corajosos, dois corações simples, que se entregaram a Deus, enquanto o Diabo se movimentava. E até mesmo se viu, da parte do tenente-coronel Picquart, essa ignomínia: um tribunal francês, depois de ter permitido que o promotor atacasse publicamente uma testemunha, acusando-a de todos os crimes, apesar à audiência secreta justamente quando a testemunha começou a se explicar e a se defender. Afirmo ser este mais um crime, um crime que provocará a indignação da consciência universal. Decididamente, nossos tribunais militares têm uma ideia muito particular de justiça.

Essa é, pois, a simples verdade, senhor Presidente, e ela é assustadora, e marcará sua presidência como uma mancha. Desconfio que o senhor não pode fazer nada esse respeito, que é prisioneiro da Constituição e de seus assessores. Mas tem ainda assim um dever como homem, no qual pensa, e que cumprirá. Não que eu duvide, aliás, nem um pouco, que a verdade triunfará. Repito-o, e com uma certeza ainda mais veemente: a verdade está apenas a caminho e ninguém a deterá́. As coisas estão apenas começando, pois apenas agora os fatos estão claros: de um lado, os culpados que não querem que a justiça se faça; de outro, os honestos que darão sua vida para que ela se faça. Já o disse antes, e vou repeti-lo aqui: quando a verdade fica soterrada, ela toma corpo, e ganha tal força explosiva que, quando explode, leva tudo consigo. Veremos se o que acaba de ser preparado não será́ mais tarde o mais retumbante dos desastres.

Mas essa carta já vai longe, senhor Presidente, e é hora de concluí-la.

Acuso o comandante du Paty de Clam de ter sido o criador diabólico do erro judicial, inconscientemente, quero crer, e ter saído em defesa de sua obra nefasta, durante três anos, por maquinações as mais estapafúrdias e as mais culposas.

Acuso o general Mercier de ter se tornado cúmplice, ainda que por franqueza de carácter, de uma das maiores iniquidades do século.

Acuso o general Billot de ter tido entre as mãos as provas indubitáveis da inocência de Dreyfus e de tê-las ocultado, tornando-se, pois, culpado de crime de lesa-humanidade e lesa–justiça, por motivos políticos e para livrar um Estado-Maior comprometido.

Acuso o general de Boisdeffre e o general Gonse de tornarem-se cúmplices do mesmo crime, um sem dúvida por paixão clerical, o outro por esse corporativismo que faz do Ministério da Guerra uma arca santa inatacável.

Acuso o general de Pellieux e o comandante Ravary de terem feito uma investigação criminosa, um inquérito da mais monstruosa parcialidade e do qual temos, no relatório do segundo, um monumento perene da mais ingênua audácia.

Acuso os três especialistas sem grafologia, os senhores Belhomme, Varinard e Couard de terem emitido pareceres mentirosos e fraudulentos, a menos que um laudo médico os declare tomados por alguma patologia da vista e do juízo.

Acuso o Ministério da Guerra de ter promovido na imprensa, particularmente no L’éclair e no L’Écho de Paris, uma campanha abominável, para manipular a opinião pública e acobertar sua falha.

Acuso por fim o primeiro Conselho de Guerra de ter violado o direito, condenando um acusado com base em um documento secreto, e acuso o segundo Conselho de Guerra de ter encoberto essa ilegalidade, por ter recebido ordens, cometendo por sua vez o crime jurídico de absolver conscientemente um culpado.

Fazendo essas acusações, não ignoro enquadrar-me nos artigos 30 e 31 da lei de imprensa de 29 de julho de 1881, que pune os delitos de difamação. E é voluntariamente que eu me exponho.

Quanto às pessoas que eu acuso, não as conheço, nunca as vi, não nutro por elas nem rancor nem ódio. Não passam para mim de entidades, de espíritos da malevolência social. O ato que aqui realizo não é nada além de uma ação revolucionária para apressar a explosão de verdade e justiça.

Não tenho mais que uma paixão, uma paixão pela verdade, em nome da humanidade que tanto sofreu e que tem direito à felicidade. Meu protesto inflamado nada mais é que o grito da minha alma. Que ousem, portanto levar–me perante ao tribunal do júri e que o inquérito se dê à luz do dia!

É o que espero.

Receba, senhor Presidente, minhas manifestações de mais profundo respeito.





(Eu acuso! O Processo do Capitão Dreyfus. Organização e tradução de Ricardo Lísias)



(A degradação de Alfred Dreyfus, 5 de janeiro de 1895. Desenho de Henri Meyer na capa do Petit Journal de 13 de janeiro de 1895, com a legenda "O traidor")

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

SWATCH, de Catarina Lins

 

 


O relógio Swatch que eu levava no pulso, quando criança, no pátio

de um navio, talvez, no Chile, segurando os cabelos com uma das mãos, para a fotografia.

Os mesmos cabelos e o relógio que eu vejo agora, na volta de levar o lixo, antes de ligar para a faxina,

antes de ver as mensagens e fazer a lista para o Casamento.

Agora,

outros cabelos adentram a sala sem que ninguém perceba, trazidos pelo vento ou na cabeça de alguém

ainda muito mais jovem

(mas ainda assim, com mesma idade, mais ou menos) –

A melhor brincadeira

era a de índio

todos nas nossas cabanas

feitas de plástico

com arcos e flechas

de plástico.

Eu gostava de ti porque eras

ou parecias, em parte,

incapaz de machucar

alguém

(teoricamente)

incapaz

de machucar.

Mas todas as pessoas ou coisas que parecem incapazes

são assim apenas

na superfície,

na fotografia.

Anos depois, eu olharia

diferente para essa aparência

inofensiva.

 

(Ilustração : Pablo Picasso: Femme à la montre, 1932)

 

domingo, 15 de dezembro de 2024

CARTA A JOAQUIM NABUCO, EM RESPOSTA À CARTA SOBRE O FALECIMENTO DA ESPOSA, de Machado de Assis

 




Rio de Janeiro, 20 de novembro de 1904



Meu caro Nabuco,

Tão longe, e em outro meio, chegou-lhe a notícia da minha grande desgraça, e você expressou a sua simpatia por um telegrama. A única palavra com que lhe agradeci é a mesma que ora lhe mando, não sabendo outra que possa dizer tudo o que sinto e me acabrunha. Foi-se a melhor parte da minha vida e aqui estou só no mundo. Note que a solidão não me é enfadonha, antes me é grata, porque é um modo de viver com ela, ouvi-la, assistir aos mil cuidados que essa companheira de 35 anos de casados tinha comigo; mas não há imaginação que não acorde, e a vigília aumenta a falta da pessoa amada. Éramos velhos, e eu contava morrer antes dela, o que seria um grande favor; primeiro, porque não acharia a ninguém que melhor me ajudasse a morrer; segundo, porque ela deixa alguns parentes que a consolariam das saudades, e eu não tenho nenhum. Os meus são os amigos, e verdadeiramente são os melhores; mas a vida os dispersa, no espaço, nas preocupações do espírito e na própria carreira que a cada um cabe. Aqui me fico, por ora na mesma casa, no mesmo aposento, com os mesmos adornos seus. Tudo me lembra a minha meiga Carolina.

Como estou à beira do eterno aposento, não gastarei muito tempo em recordá-la.

Irei vê-la, ela me esperará.

Não posso, caro amigo, responder agora à sua carta de 8 de outubro; recebi-a dias depois do falecimento de minha mulher, e você compreende que apenas posso falar deste fundo golpe.

Até outra e breve; então lhe direi o que convém ao assunto daquela carta que, pelo afeto e sinceridade, chegou à hora dos melhores remédios. Aceite este abraço do triste amigo velho

Machado de Assis



(Ilustração: Carolina Machado de Assis)

quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

AZ ÁLOM... / O SONHO..., de Sándor Petőfi


 



Az álom

A természetnek legszebb adománya.

Megnyílik ekkor vágyink tartománya.

Mit nem lelünk meg ébren a világon.

Álmában a szegény

Nem fázik és nem éhezik,

Bibor ruhába öltözik,

S jár szép szobák lágy szőnyegén.

Álmában a király

Nem büntet, nem kegyelmez, nem birál...

Nyugalmat élvez.

Álmában az ifju elmegy kedveséhez,

Kiért epeszti tiltott szerelem,

S ott olvad égő kebelén. -

Álmamban én

Rabnemzetek bilincsét tördelem!



(Szalkszentmárton, 1846. március 10. Előtt)



Tradução de Yvette K. Centeno:





O sonho

É o dom mais belo da natureza.

Abre o país dos desejos

Para encontrarmos nele

Tudo o que falta à nossa vida.

Em sonhos

O pobre não passa fome nem frio.

Anda vestido de púrpura

Sobre a mole alcatifa de belas salas.

Em sonhos

O rei não julga, não castiga, não concede perdão…

Saboreia a calma.

Em sonhos o adolescente encontra a sua amada

Por quem sofre de um amor proibido

Que lhe arde no peito e o consome.

Eu, nos meus sonhos,

Rompo as cadeias dos povos escravizados!



(Szalkszentmárton, antes de 10 de março de 1846)



(Ilustração: Sandor Petofi - estátua do poeta em Budapeste)

segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

AUTOCOMPLETAR TUDO: A ASCENSÃO DOS MODELOS DE LINGUAGEM, de Mustafa Suleyman e Michael Bhaskar

 


Há não muito tempo, o processamento de linguagem natural parecia complexo, variado e com nuances demais para a IA moderna. Então, em novembro de 2022, a empresa de pesquisa de inteligência artificial OpenAI lançou o ChatGPT. Em uma semana, ele tinha mais de 1 milhão de usuários e era descrito em termos extasiados, uma tecnologia tão perfeitamente útil que poderia eclipsar a pesquisa do Google em pouco tempo.

O ChatGPT é, em termos simples, um chatbot. Mas é muito mais poderoso e polímata que qualquer coisa já apresentada ao público. Faça uma pergunta e ele responde instantaneamente em prosa fluente. Peça que ele escreva um ensaio, um comunicado de imprensa ou um plano de negócios no estilo da Bíblia do rei James ou de um rapper da década de 1980 e ele fará isso em segundos. Peça que ele escreva o programa de um curso de física, um manual de dieta ou um script de Python e ele responderá à altura.

Grande parte do que torna os humanos inteligentes é o fato de olharmos para o passado a fim de prevermos o que pode acontecer no futuro. Nesse sentido, a inteligência pode ser entendida como a habilidade de gerar cenários plausíveis sobre como o mundo à nossa volta pode se modificar e basear ações razoáveis nessas previsões. Em 2017, um pequeno grupo de pesquisadores do Google estava focado em uma versão mais específica desse problema: como fazer com que um sistema de IA focasse somente nas partes importantes de uma série de dados, a fim de fazer previsões precisas e eficientes sobre o que viria em seguida. O trabalho desse grupo criou a base do que foi nada menos do que uma revolução no campo dos grandes modelos de linguagem (LLMs em inglês) — incluindo o ChatGPT.

Os LLMs tiram vantagem do fato de que os dados da linguagem fluem em ordem sequencial. Cada unidade de informação está, de alguma forma, relacionada a dados anteriores em uma série. Os modelos leem números muito grandes de frases, aprendem uma representação abstrata das informações contidas nelas e então geram uma previsão sobre o que virá a seguir. O desafio está em projetar um algoritmo que “saiba onde olhar” em busca de sinais em determinada frase. Quais são as palavras-chave, mais salientes, e como elas se relacionam umas com as outras? Na IA, essa noção é comumente chamada de “atenção”.

Quando um grande modelo de linguagem ingere uma frase, ele constrói o que pode ser considerado um “mapa de atenção”. Primeiro, ele organiza os grupos de letras ou de sinais de pontuação que ocorrem mais comumente em “tokens”, algo como sílabas, mas, na verdade, somente amontoados de letras que ocorrem frequentemente e que tornam mais fácil o processamento das informações. Vale notar que os humanos fazem isso com palavras, é claro, mas o modelo não usa nosso vocabulário. Ele cria um novo vocabulário de tokens comuns que o ajuda a localizar padrões em bilhões e bilhões de documentos. No mapa de atenção, cada token tem algum relacionamento com todos os outros tokens antes dele e, para cada frase dada, a força desse relacionamento descreve algo sobre a importância do token naquela frase. Na prática, o LLM aprende em quais palavras prestar atenção.

Assim, na frase “Haverá uma grande tempestade no Brasil amanhã” o modelo provavelmente criaria tokens para as letras “ver” na palavra “haverá” e “ade” na palavra “tempestade” já que elas ocorrem comumente em outras palavras. Ao analisar toda a frase, ele aprenderia que “tempestade”, “Brasil” e “amanhã” são as características-chave, inferindo que Brasil é um lugar, a tempestade ocorrerá no futuro e assim por diante. Com base nisso, sugeriria quais tokens deveriam ocorrer em seguida, ou seja, que output se seguiria logicamente ao input. Em outras palavras, ele autocompletaria o que poderia vir em seguida.

Esses sistemas são chamados de transformadores. Desde que os pesquisadores do Google publicaram o primeiro artigo sobre eles em 2017, o ritmo do progresso foi estonteante. Logo depois, a OpenAI lançou o GPT-2 (GPT significa generative pre-trained transformer ou transformador pré-treinado generativo). Na época, ele era um modelo enorme. Com 1,5 bilhão de parâmetros (o número de parâmetros é uma medida central da escala e complexidade de um sistema de IA),” o GPT-2 foi treinado com 8 milhões de páginas de textos da web. Mas foi só no verão de 2020, quando a OpenAI lançou o GPT-3, que as pessoas realmente começaram a apreender a magnitude do que estava acontecendo. Com colossais 175 bilhões de parâmetros, ele era a maior rede neural já construída, mais de cem vezes maior que seu predecessor de somente um ano antes. Impressionante, sim, mas essa escala agora é rotineira, e o custo de treinar um modelo equivalente caiu dez vezes nos últimos dois anos.

Quando o GPT-4 foi lançado em março de 2023, os resultados foram novamente impressionantes. Como no caso de seus predecessores, você pode pedir ao GP'T-4 para compor poesia no estilo de Emily Dickinson e ele o atenderá; pedir que ele continue a partir de um trecho aleatório de O senhor dos anéis e subitamente estará lendo uma imitação plausível de Tolkien; solicitar planos para uma startup e o resultado será parecido com o de ter uma sala cheia de executivos. Além disso, ele acerta todas as questões de um teste-padrão do GRE (Graduate Record Examination).

Ele também consegue trabalhar com imagens e códigos, elaborar jogos em 3D que rodam em navegadores, criar apps para smartphone, corrigir bugs em programas, identificar fragilidades em contratos e sugerir componentes para novos medicamentos, chegando a oferecer maneiras de modificá-los a fm de que não sejam patenteados. Ele produz websites a partir de imagens desenhadas à mão e entende dinâmicas humanas sutis em cenas complexas; mostre a ele uma geladeira e ele dará sugestões de receitas com base no que há dentro; escreva o esboço de uma apresentação e ele a finalizará com aparência profissional. Ele parece “entender” raciocínio espacial e causal, medicina, leis e psicologia humana. Dias após o lançamento, as pessoas já haviam construído ferramentas para automatizar petições iniciais, ajudar pais a criarem os filhos e oferecer conselhos de moda em tempo real. Semanas depois, haviam criado extensões para que o GPT-4 pudesse realizar tarefas complexas como projetar aplicativos para celulares ou pesquisar e escrever detalhados relatórios de mercado.

E tudo isso é só o começo. Estamos apenas começando a ver o profundo impacto que os grandes modelos de linguagem estão prestes a ter. Se o DQN e o AlphaGo foram os primeiros sinais de que algo chegara à praia, o ChatGPT e os LLMs indicam que a onda já começou a quebrar à nossa volta. Em 1996, 36 milhões de pessoas usaram a internet; este ano, serão bem mais de 5 bilhões. Esse é o tipo de trajetória que devemos esperar dessas ferramentas, só que muito mais rapidamente. Acredito que nos próximos cinco anos a IA se tornará tão onipresente quanto a internet: igualmente disponível e com consequências ainda mais importantes."



(A próxima onda: inteligência artificial, poder e o maior dilema do século XXI; tradução de Alessandra Bonrruquer)



(Ilustração: Integração entre humano e máquina. Imagem gerada por inteligência artificial pelo Adobe Firefly)

sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

FALA, de Orides Fontela

 



Tudo

será difícil de dizer:

a palavra real

nunca é suave.



Tudo será duro:

luz impiedosa

excessiva vivência

consciência demais do ser.



Tudo será

capaz de ferir. Será

agressivamente real.

Tão real que nos despedaça.



Não há piedade nos signos

e nem o amor: o ser

é excessivamente lúcido

e a palavra é densa e nos fere.



(Toda palavra é crueldade.)





(Transpiração, 1969)



(Ilustração: Fernando Botero, 1987)

terça-feira, 3 de dezembro de 2024

O DOMÍNIO PELO PRONOME, de Aldo Bizzocchi

  


Em muitas línguas, a diferença entre o formal e o informal não é tanta quanto no português. Aprendemos inglês sem notar grande diferença entre o que é dito nas ruas, na imprensa ou nas gramáticas. Aqui, os gramáticos são menos sensíveis ao registro popular, baseiam-se quase sempre nos clássicos e impõem um uso linguístico lusitano.

Costuma-se dizer que o português é uma língua difícil. Logo de início, é preciso esclarecer que não existe língua fácil: até mesmo um idioma artificial como o esperanto, criado para ser simples, tem lá as suas artimanhas. Todas as línguas apresentam dificuldades, sejam gramaticais, fonéticas ou mesmo ortográficas, e isso tanto para o estrangeiro quanto para o falante nativo.

No entanto, estudos comparativos entre línguas permitem quantificar de forma objetiva o grau de complexidade de um idioma. Por exemplo, a comparação entre as conjugações verbais de várias línguas possibilita identificar qual delas possui mais paradigmas de flexão distintos, qual apresenta mais formas irregulares, e assim por diante.

Se compararmos o português às demais línguas da Europa Ocidental (não vou tratar aqui do grego ou das línguas eslavas, cuja fama de complicadas já se tornou proverbial), observaremos que ela é mais simples em alguns aspectos e mais complexa em outros.

Em matéria de colocação pronominal, por exemplo, o português é uma língua bem mais complexa - e mais conservadora - do que todas as suas irmãs românicas, e mais ainda do que as suas primas germânicas. Para entendermos o porquê disso, vamos analisar primeiro a gênese das regras de colocação pronominal, que remontam ao latim.

Na língua latina, as funções sintáticas (sujeito, objeto direto, adjunto adverbial etc.) são indicadas pela terminação das palavras e não pela sua posição na oração. Por isso, a sintaxe do latim é bastante "frouxa", dando ao falante grande liberdade de escolha da ordem dos elementos na frase.

À medida que o latim evoluiu para as línguas românicas, essa característica sintática foi se perdendo. Por força de um fenômeno puramente fonético - a perda das consoantes finais das palavras -, tornou-se quase impossível distinguir a função sintática de uma palavra apenas pela sua terminação.

Como resultado, as línguas românicas adotaram uma nova maneira de indicar a função sintática: por meio da posição da palavra na oração. É nesse momento que as gramáticas vão fixar a posição em que devem se situar os pronomes pessoais oblíquos átonos. Essa regulamentação se deu com base no uso que os falantes cultos faziam desses pronomes à época do estabelecimento das gramáticas.

Com isso, praticamente todas as línguas provenientes do latim apresentavam em suas primeiras descrições gramaticais, entre os séculos 16 e 17, regras de colocação pronominal consideravelmente complexas, que envolviam duas posições relativas ao verbo: a próclise (pronome oblíquo anteposto ao verbo - me sento) e a ênclise (pronome oblíquo posposto ao verbo - sento-me). O português, por sinal, apresentava uma terceira posição nos tempos futuros: a mesóclise, isto é, o pronome oblíquo átono enxertado no meio do verbo (sentar-me-ei). A existência da mesóclise já distinguia, de princípio, a colocação portuguesa da de suas irmãs românicas.

Embora num texto espanhol ou italiano do século 16 fosse possível encontrar os pronomes ora antepostos ora pospostos aos verbos, a escolha da posição do pronome nessas línguas era mais ou menos livre, ao gosto do escritor. No português dessa época, já havia restrições ao posicionamento dos pronomes (por exemplo, a presença de palavras de significado negativo, como não, nunca, nenhum etc., exigia a próclise).

Mas o fato é que, sobretudo a partir do final do século 19, e mais ainda após a Segunda Guerra Mundial, as línguas da família românica, com exceção do português, simplificaram sensivelmente os seus sistemas de colocação pronominal. Por iniciativa do uso popular e, a seguir, por adesão dos gramáticos a esse uso, fixou-se com a maioria das formas verbais o emprego da próclise, nas demais adotando-se a ênclise.

Atualmente, o francês, o occitano e o romeno utilizam próclise com todas as formas verbais, exceto o imperativo positivo, em que ocorre ênclise (no imperativo negativo também se usa a próclise). O espanhol, o catalão e o italiano usam próclise em todas as formas, com exceção do imperativo positivo e das formas nominais do verbo (infinitivo, gerúndio e particípio).

Nas línguas germânicas, a regra é ainda mais simples: ênclise sempre. (Em alemão e holandês, o pronome oblíquo às vezes aparece antes do verbo; na verdade, nessas línguas é o verbo que se desloca para o final da oração se esta for subordinada ou se o verbo estiver numa das formas nominais. Ainda assim, a regra é bastante simples.). Em português, como se vê no quadro abaixo, tudo é muito mais rígido.

Complicações fixadas

As normas oficiais da gramática do português para a colocação de pronomes

No português, segundo as normas oficiais da gramática, temos próclise:

a) se a oração traz advérbio antes do verbo (Não o procurei. Aqui se faz, aqui se paga.);

b) se o sujeito é um pronome substantivo (isso, aquilo, nada, algo, tudo);

c) se a oração for subordinada expandida (Quero que você me faça um favor.), ou ainda

d) se a frase for uma interrogação direta ou indireta (Quanto me custará isso? Quero saber quanto isso me custará.).

Por outro lado, a ênclise é obrigatória:

a) se a frase se inicia pelo verbo (Gasta-se muito dinheiro com bobagens.), ou

b) se a oração é subordinada reduzida de infinitivo (É preciso portar-se bem.).

A mesóclise se usa nos mesmos casos em que se usaria a próclise, porém nos tempos futuros (do presente e do pretérito): gastar-se-á muito dinheiro, etc.

Com as formas nominais do verbo, as coisas ficam ainda mais complicadas. Se não há fator que exija a próclise, o pronome pode ser colocado após o verbo auxiliar ou após a forma nominal: quero-lhe pedir ou quero pedir-lhe.

Se houver fator que determine a próclise, o pronome deverá ser colocado antes do verbo auxiliar ou depois da forma nominal: não lhe quero pedir ou não quero pedir-lhe. Se a forma nominal do verbo for regida por preposição, pode haver próclise ou ênclise: tenho de lhe dizer ou tenho de dizer-lhe.

Segundo tais regras, o correto seria dizer isso me está incomodando (ou isso está incomodando-me) em lugar do natural isso está me incomodando. Pior ainda, se conjugarmos o verbo fazer acompanhado de um pronome "o" enclítico, teremos as bizarras formas faço-o, fazê-lo, fá-lo, fazemo-lo, fazei-lo, fazem-no. Além de três formas diferentes para o mesmo pronome (o, lo e no), surgem formas verbais estranhas, como fá ou fazê. Nenhuma outra língua românica ou germânica apresenta tais anomalias.

Com todas essas regras tão simples e lógicas, não é à toa que a colocação pronominal seja um dos grandes pesadelos de qualquer estudante de língua portuguesa. Imagine agora um estrangeiro tendo de assimilar esse emaranhado de prescrições e exceções!

É preciso lembrar que essas regras valem para a chamada norma culta, mas, tanto na fala popular quanto nos textos literários e jornalísticos da atualidade, as regras são bem mais simples: para o povão, próclise o tempo todo e fim de papo; para os escritores e jornalistas, algum respeito pela norma culta, mas sem fanatismo. Por exemplo, mesóclise é algo terminantemente proibido.

Aliás, a mesóclise hoje em dia é algo que praticamente só se vê em textos jurídicos. Só que os profissionais do direito também empregam "aluguer" por "aluguel", "teúda" e "manteúda" por "tida" e "mantida", e outros arcaísmos que remontam ao século 12. Ou seja, o idioma dos tribunais não pode ser considerado um bom exemplo do português moderno.

Na prática, toda língua de cultura possui pelo menos três padrões de linguagem, ou registros: o registro formal, o informal e o popular (também chamado de não-padrão). O registro formal é aquele usado pelos falantes cultos (isto é, altamente escolarizados) em situações formais, como um discurso em cerimônia de formatura ou um livro didático. O informal é o utilizado pelos mesmos falantes cultos em situações informais (numa roda de amigos, por exemplo). Finalmente, o popular é usado pelos falantes de baixa ou nenhuma escolaridade em todas as situações.

Em outras línguas europeias, tanto românicas quanto germânicas, a diferença entre o padrão formal e o informal não é tão grande. O brasileiro que aprende a língua inglesa não percebe muita diferença entre o inglês falado nas ruas, o dos jornais, revistas e livros e o inglês das gramáticas. Ao contrário, um estrangeiro que tenha aprendido português em seu país de origem com base na gramática normativa - e é isso o que geralmente acontece - logo perceberá a distância abismal entre a colocação pronominal dos livros escolares e o uso feito tanto pelos falantes cultos quanto pelos incultos.

Por que isso acontece? Em primeiro lugar, porque os gramáticos do português são bem mais conservadores e resistentes às inovações de origem popular que os de outras línguas. Em segundo lugar, porque a gramática normativa toma por base o uso da língua feito sobretudo por autores clássicos, como Eça de Queirós e Machado de Assis. Em terceiro lugar, porque a gramática do português brasileiro, imbuída de um verdadeiro complexo de colônia, impõe um uso linguístico que é fundamentalmente lusitano: enquanto a ênclise é a colocação mais comum em Portugal, no Brasil nenhum "mancebo" conseguiria conquistar uma "rapariga" lascando um sonoro amo-te, querida.

O fato é que o povo tende a simplificar a língua, recorrendo frequentemente à analogia. Por exemplo, se o futuro do subjuntivo de "colocar" é "colocar", por que o de "pôr" é "puser", o de "ver" é "vir" e o de "vir" é "vier"? O falante ingênuo (isto é, o que não é estudioso do idioma) ignora as razões históricas que geraram essas irregularidades e simplesmente profere "se eu pôr, quando eu ver, se ele vir falar comigo", e assim por diante.

No inglês, o futuro dos verbos, que antes era feito com o verbo auxiliar shall nas primeiras pessoas do singular e do plural e com will nas demais, hoje se faz com will em todas as pessoas, e isso consta em todas as gramáticas e livros escolares da língua. Mesmo a nobreza britânica, que sente pruridos em relação à fala cockney da plebe, abandonou há muito o uso de shall. De modo igual, a simplificação na colocação dos pronomes operada pelo espanhol, francês, italiano etc., está contemplada em todos os compêndios de ensino dessas línguas.

Portanto, se as gramáticas de outros idiomas são mais abertas à simplificação e preocupam-se acima de tudo com a eficácia da comunicação, no português o que fala mais alto é o apego à tradição. Daí essa disparidade tão grande entre a língua real das ruas e dos jornais e a língua ideal das gramáticas e das aulas de português.

Isso revela algo mais sobre a nossa identidade cultural tupiniquim: as elites brasileiras, ciosas de nosso passado colonial, têm horror a tudo o que é popular e zelam pela complexidade gramatical como instrumento de dominação. Nossa cultura bacharelesca preza muito a fala rebuscada e a verborragia vazia de conteúdo desde que muito bem ornada de floreios e preciosismos.

 


(Ilustração: Egbert van Heemskerck - le maître d'école)