sexta-feira, 30 de abril de 2021

A UM ADOLESCENTE, de Amadeu Amaral

 



I

Basta crer na Beleza. Ama-a no Cosmos, fora

de ti, e ama-a em ti mesmo. É a suprema pesquisa!

Busca-a. E esculpe teu ser, juntando, hora por hora,

à mente que concebe o escopro que realiza.



Perguntas: — Onde o metro, a norma, a arte precisa

para rasgar no bloco a forma que se ignora?

— Quem ao leão deu o ardor com que os desertos pisa?

E quem à águia ensinou a ser do azul senhora?



Tens o instinto voador de quem nasceu com asa.

Ama o que é forte e puro, odeia o que é perverso,

o que é baixo, o que é vil, tudo que anda de rastros.



E põe-te em comunhão, no entusiasmo que abrasa,

com a Beleza, esplendor da Vida e do Universo,

com a poesia, os heróis, os abismos e os astros.

II

Falta o preceito firme a que a ação se conforme?

Falta uma diretriz certa e definitiva?

— Quem a teve jamais? O bom ideal é informe,

e a Certeza, ai de nós! de todo o encanto o priva.







A torrente que corre e espadana, áurea e viva,

sem parar nem recuar no itinerário enorme,

busca um sonho que além, sob a névoa, se esquiva…

e ai! dela, se desvenda o sonho azul que dorme!



Sê tu como a caudal: foge ao remanso e ao charco.

A água pura é a que ferve e cintila entre abrolhos.

O miasma e o lodaçal moram nas águas mansas.



Avança, seja o sol resplandecente ou parco;

— e se a meta surgir, algum dia a teus olhos,

impele-a para além à proporção que avanças!



(Espumas: versos,1917)



(Ilustração: Camille Claudel - a pequena castelã 1893)

terça-feira, 27 de abril de 2021

AUTODEFINICIÓN / AUTODEFINIÇÃO, de Teresa Wilms Montt




Soy Teresa Wilms Montt

y aunque nací cien años antes que tú,

mi vida no fue tan distinta a la tuya.

Yo también tuve el privilegio de ser mujer.

Es difícil ser mujer en este mundo.

Tú lo sabes mejor que nadie.

Viví intensamente cada respiro y cada instante de mi vida.

Destilé mujer.

Trataron de reprimirme, pero no pudieron conmigo.

Cuando me dieron la espalda, yo di la cara.

Cuando me dejaron sola, di compañía.

Cuando quisieron matarme, di vida.

Cuando quisieron encerrarme, busqué libertad.

Cuando me amaban sin amor, yo di más amor.

Cuando trataron de callarme, grité.

Cuando me golpearon, contesté.

Fui crucificada, muerta y sepultada,

por mi familia y la sociedad.

Nací cien años antes que tú

sin embargo te veo igual a mí.

Soy Teresa Wilms Montt,

y no soy apta para señoritas.



Tradução de Wagner Mourão Brasil:



Sou Teresa Wilms Montt

e ainda que eu tenha nascido cem anos antes de ti,

minha vida não foi tão diferente da tua.

Eu também tive o privilégio de ser mulher.

É difíci ser mulher neste mundo.

Tu sabes melhor que ninguém.

Vivi intensamente cada respiração e cada instante de minha vida.

Destilei mulher.

Trataram de reprimir-me, mas não puderam comigo.

Quando me deram as costas, dei o rosto.

Quando me deixaram só, dei companhia.

Quando quiseram prender-me, busquei pela liberdade.

Quando me amavam sem amor, dei mais amor.

Quando trataram de calar-me, gritei.

Quando me golpearam, revidei.

Fui crucificada, morta e sepultada,

por minha família e pela sociedade.

Nasci cem anos antes de ti

Todavia te vejo como a mim.

Sou Teresa Wilms Montt,

e não sou apropriada a senhoritas.



Tradução de Sandra Santos:



Sou Teresa Wilms Montt

e ainda que tenha nascido cem anos antes de ti,

a minha vida não foi assim tão diferente da tua.

Eu também tive o privilégio de ser mulher.

É difícil ser mulher neste mundo.

Tu sabe-lo melhor que ninguém.

Vivi intensamente cada intervalo e cada instante da minha vida.

Transpirei mulher.

Quiseram reprimir-me, mas não o conseguiram.

Quando me viraram as costas, eu dei a cara.

Quando me deixaram sozinha, fiz companhia.

Quando quiseram matar-me, dei vida.

Quando quiseram fechar-me, procurei liberdade.

Quando me amavam sem amor, eu dei mais amor.

Quando quiseram calar-me, gritei.

Quando me golpearam, contestei.

Fui crucificada, morta e sepultada,

pela minha família e pela sociedade.

Nasci cem anos antes de ti

no entanto sou igual a ti.

Sou Teresa Wilms Montt,

e não sou apta para madames.



Tradução de Antonio Miranda:



Sou Teresa Wilms Montt

e embora nascida cem anos antes de ti,

minha vida não foi tão diferente da tua.

Eu também tive o privilégio de ser mulher.

É difícil ser mulher neste mundo.

Tu sabes melhor do que ninguém.

Vivi intensamente cada respiro e cada instante de minha vida.



Destilei mulher.

Tentaram me reprimir, mas não puderam comigo.

Quando me deram as costas, eu dei a cara.



Quando me deixaram sozinha, acompanhei.

Quando quiseram matar-me, deu vida.

Quando tentaram enclausurar-me, busquei a liberdade.

Quando me amavam sem amor, eu dei mais amor.

Quando trataram de calar-me, gritei.

Quando me golpearam, protestei.

Fui crucificada, morta e sepultada,

por minha família e pela sociedade.

Nasci cem anos antes de ti

no entanto te vejo igual a mim.

Sou Teresa Wilms Montt,

e não estou apta para senhoritas.




(Ilustração: Julio Romero de Torres - la poeta Teresa Wilms Montt)


sábado, 24 de abril de 2021

A REZA, 1930 (MAN RAY) OU COMO CONTAR OS DEDOS DO PÉ COM O PRÓPRIO CU, de Rodrigo Suzuki Cintra

 



Entre o claro e o escuro há um pouco de corpo. No escuro, nada podemos ver; no claro, vemos demais.

O erotismo é uma arte traiçoeira. Pode parecer, à primeira vista, que consiste em mostrar sem revelar a imagem por completo, mas, na verdade, consiste em um jogo de esconder. É o que se oculta que provoca o desejo, não o que se mostra visível.

Esta fotografia, no entanto, é erótica às avessas.

O corpo se contorce e dobrando-se sobre si mesmo dá a impressão de uma posição que, se não for impossível, é certamente improvável. Toda a obscenidade da imagem não está no que não vemos. De maneira desconcertante, é exatamente o que encobre os orifícios deste corpo o que faz a imaginação flutuar. O inusitado é que, neste caso singular, o que se vê claramente é que remete ao erótico.

Pois, há algo de excessivo em todos aqueles dedos.

Os orifícios cujas imagens nos são negadas, que poderiam apontar para o apelo sexual do instantâneo, não são, a bem da verdade, o que importa na representação. São os dedos, escancaradamente nítidos, que provocam o pensamento a tomar certas formas mais sensuais.

Os glúteos, são excessivamente redondos. Também são demasiadamente brancos. Lembram uma maçã que perdeu a cor. E na composição da totalidade da imagem, junto aos dedos que estão em escala de cinza, correspondem a uma corporalidade quase que meramente sugerida. Mas, a imagem está perceptivelmente completa, mesmo que tenha algo de menos corpo no que foi retratado.

Os pés estão juntos, mas os vemos pela metade. Estão profundamente inertes. É a sombra dos glúteos o que os coloca no limiar entre o claro e o escuro. Porém, podemos ver todos os dedos. Existe algo de profundamente obsceno em tentar contá-los. É no momento exato em que examinamos se todos os dedos estão aparentes que somos pegos por uma sexualidade menos sutil e mais evidente. Todo escândalo que advém desse jogo de somar os dedos dos pés consiste, paradoxalmente, no fato de que, nesta imagem, é o esforço de minúcia que induz ao sexual. Na foto, os pés e as mãos são de uma nudez mais provocativa do que os orifícios que tentam esconder. É preciso perceber isso. Por trás das mãos e pés, que inclusive nos enganam quando pretendem não ter nada a ver com a posição corporal inusitada, algo de sexual se insinua.

O sexo está no detalhe.

As mãos que pretendem esconder os orifícios são quase que exclusivamente dedos. Dedos que, ao contrário dos pés, podem se movimentar. A imagem é estática, como não poderia deixar de ser, mas, o sugestivo está justamente em imaginar estes dedos em movimento. Dedos que tentam nervosamente esconder o sexo. Existe, inclusive, uma vontade de que os dedos, dada a posição que estão, não consigam cumprir seu papel no jogo de esconde e fiquem se movimentando, uma mão sobre outra, de modo que quando conseguem cobrir uma parte do sexo, acabam, invariavelmente, por deixar outra parte comprometedora descoberta.

Além disso, não é exatamente alguma forma de toque o que precipita uma fantasia mais imaginativa. É a disposição dos dedos.

Dedos sobre dedos.

As mãos podem até ser nervosas, mas os pés são calmos. Reclinado como em uma forma de reza, o corpo é contraditório. Os pés juntos, com seus múltiplos dedos, podem até sugerir ave-marias se o caso fosse o de rezar. Se não provocassem, maliciosamente, na sua visão, certa inclinação para verificar se todos os dedos estão realmente ali. Mas as mãos, com a sobreposição de dedos sobre dedos, denunciam evidentemente, certas vontades menos religiosas.



(Ilustração: Man Ray - a reza)

quarta-feira, 21 de abril de 2021

WHEN YOU ARE OLD / QUANDO VELHA / MOMENTO DA VELHICE / QUANDO FORES VELHA, de W. B. Yeats

 


When you are old and grey and full of sleep,

And nodding by the fire, take down this book,

And slowly read, and dream of the soft look

Your eyes had once, and of their shadows deep;



How many loved your moments of glad grace,

And loved your beauty with love false or true,

But one man loved the pilgrim soul in you,

And loved the sorrows of your changing face;



And bending down beside the glowing bars,

Murmur, a little sadly, how Love fled

And paced upon the mountains overhead

And hid his face amid a crowd of stars.



Tradução de Rodrigo Suzuki Cintra (Quando velha):



Quando velha e grisalha e cheia de sono,

E cochilando ao fogo, resolver esse livro pegar,

Lendo-o lentamente, sonhando com o doce olhar

Que costumavas ter, com suas sombras de abandono;



Quantos amaram teus momentos de imensa graça,

E amaram, de verdade ou não, tua beleza,

Mas apenas um homem amou tua tristeza,

E amou os sofrimentos de tua face em mudança;



E ao dobrar-te sobre as brasas para vê-las,

Murmurar, quase infeliz, como voou o amor radiante,

Passou por cima das montanhas logo adiante,

E escondeu sua face ao meio de um milhão de estrelas.



Tradução de Cunha e Silva Filho (Momento da velhice):



Quando a velhice chegar, grisalha e sonolenta,

A cabeça movendo-se, ao pé da lareira, pegue este livro

Leia-o sem pressa, e sonhe com o doce olhar de outrora

E sonhe com suas sombras profundas.



Quantos lhe amaram o tempo de viço e alegrias

Quantos lhe amaram a beleza com sinceridade, ou não.

Um homem, porém, sua alma peregrina amou, sim,

E amou ainda as tristezas de sua face mutável.



Inclinando-se, junto às grades em brasas

Sussurrou algo triste: o amor se foi e

Atravessou as montanhas bem distantes

E ela, entre miríades de estrelas, dele ocultou a face.



Tradução de José Agostinho Baptista (Quando fores velha):



Quando fores velha, grisalha, vencida pelo sono,

Dormitando junto à lareira, toma este livro,

Lê-o devagar, e sonha com o doce olhar

Que outrora tiveram teus olhos, e com as suas sombras profundas;



Muitos amaram os momentos de teu alegre encanto,

Muitos amaram essa beleza com falso ou sincero amor,

Mas apenas um homem amou tua alma peregrina,

E amou as mágoas do teu rosto que mudava;



Inclinada sobre o ferro incandescente,

Murmura, com alguma tristeza, como o Amor te abandonou

E em largos passos galgou as montanhas

Escondendo o rosto numa imensidão de estrelas.



(The Rose;1893)



(Ilustração: George Gillis Haanen 1834)

sábado, 17 de abril de 2021

ME CHAMEM DE VELHA, Por Eliane Brum

 


A velhice sofreu uma cirurgia plástica na linguagem.

Na semana passada, sugeri a uma pessoa próxima que trocasse a palavra “idosas” por “velhas” em um texto. E fui informada de que era impossível, porque as pessoas sobre as quais ela escrevia se recusavam a ser chamadas de “velhas”: só aceitavam ser “idosas”. Pensei: “roubaram a velhice”. As palavras escolhidas – e mais ainda as que escapam – dizem muito, como Freud já nos alertou há mais de um século. Se testemunhamos uma epidemia de cirurgias plásticas na tentativa da juventude para sempre (até a morte), é óbvio esperar que a língua seja atingida pela mesma ânsia. Acho que “idoso” é uma palavra “fotoshopada” – ou talvez um lifting completo na palavra “velho”. E saio aqui em defesa do “velho” – a palavra e o ser/estar de um tempo que, se tivermos sorte, chegará para todos.

Desde que a juventude virou não mais uma fase da vida, mas uma vida inteira, temos convivido com essas tentativas de tungar a velhice também no idioma. Vale tudo. Asilo virou casa de repouso, como se isso mudasse o significado do que é estar apartado do mundo. Velhice virou terceira idade e, a pior de todas, “melhor idade”. Tenho anunciado a amigos e familiares que, se alguém me disser, em um futuro não tão distante, que estou na “melhor idade”, vou romper meu pacto pessoal de não violência. O mesmo vale para o primeiro que ousar falar comigo no diminutivo, como se eu tivesse voltado a ser criança. Insuportável.

A velhice é o que é. É o que é para cada um, mas é o que é para todos, também. Ser velho é estar perto da morte. E essa é uma experiência dura, duríssima até, mas também profunda. Negá-la é não só inútil como uma escolha que nos rouba alguma coisa de vital. Semanas atrás, em um programa de TV, o entrevistador me perguntou sobre a morte. E eu disse que queria viver a minha morte. Ele talvez não tenha entendido, porque afirmou: “Você não quer morrer”. E eu insisti na resposta: “Eu quero viver a minha morte”.

Na adolescência, eu acalentava a sincera esperança de que algum vampiro achasse o meu pescoço interessante o suficiente para me garantir a imortalidade. Mas acabei aceitando que vampiros não existem, embora circulem muitos chupadores de sangue por aí. Isso só para dizer que é claro que, se pudesse escolher, eu não morreria. Mas essa é uma obviedade que não nos leva a lugar algum. Que ninguém quer morrer, todo mundo sabe. Mas negar o inevitável serve apenas para engordar o nosso medo sem que aprendamos nada que valha a pena.

A morte tem sido roubada de nós. E tenho tomado providências para que a minha não seja apartada de mim. A vida é incontrolável e posso morrer de repente. Mas há uma chance razoável de que eu morra numa cama e, nesse caso, tudo o que eu espero da medicina é que amenize a minha dor. Cada um sabe do tamanho de sua tragédia, então esse é apenas o meu querer, sem a pretensão de que a minha escolha seja melhor que a dos outros. Mas eu gostaria de estar consciente, sem dor e sem tubos, porque o morrer será minha última experiência vivida. Acharia frustrante perder esse derradeiro conhecimento sobre a existência humana. Minha última chance de ser curiosa.

Há uma bela expressão que precisamos resgatar, cujo autor não consegui localizar: “A morte não é o contrário da vida. A morte é o contrário do nascimento. A vida não tem contrários”. A vida, portanto, inclui a morte. Por que falo da morte aqui nesse texto? Porque a mesma lógica que nos roubou a morte sequestrou a velhice. A velhice nos lembra da proximidade do fim, portanto acharam por bem eliminá-la. Numa sociedade em que a juventude é não uma fase da vida, mas um valor, envelhecer é perder valor. Os eufemismos são a expressão dessa desvalorização na linguagem.

Não, eu não sou velho. Sou idoso. Não, eu não moro num asilo. Mas numa casa de repouso. Não, eu não estou na velhice. Faço parte da melhor idade. Tenho muito medo dos eufemismos, porque eles soam bem intencionados. São os bonitinhos mas ordinários da língua. O que fazem é arrancar o conteúdo das letras que expressam a nossa vida. Justo quando as pessoas têm mais experiências e mais o que dizer, a sociedade tenta confiná-las e esvaziá-las também no idioma.

Chamar de idoso aquele que viveu mais é arrancar seus dentes na linguagem. Velho é uma palavra com caninos afiados – idoso é uma palavra banguela. Velho é letra forte. Idoso é fisicamente débil, palavra que diz de um corpo, não de um espírito. Idoso fala de uma condição efêmera, velho reivindica memória acumulada. Idoso pode ser apenas “ido”, aquele que já foi. Velho é – e está. Alguém vê um Boris Schnaiderman, uma Fernanda Montenegro e até um Fernando Henrique Cardoso como idosos? Ou um Clint Eastwood? Não. Eles são velhos.

Idoso e palavras afins representam a domesticação da velhice pela língua, a domesticação que já se dá no lugar destinado a eles numa sociedade em que, como disse alguém, “nasce-se adolescente e morre-se adolescente”, mesmo que com 90 anos. Idosos são incômodos porque usam fraldas ou precisam de ajuda para andar. Velhos incomodam com suas ideias, mesmo que usem fraldas e precisem de ajuda para andar. Acredita-se que idosos necessitam de recreacionistas. Acredito que velhos desejam as recreacionistas. Idosos morrem de desistência, velhos morrem porque não desistiram de viver.

Basta evocar a literatura para perceber a diferença. Alguém leria um livro chamado “O idoso e o mar”? Não. Como idoso o pescador não lutaria com aquele peixe. Imagine então essa obra-prima de Guimarães Rosa, do conto “Fita Verde no Cabelo”, submetida ao termo “idoso”: “Havia uma aldeia em algum lugar, nem maior nem menor, com velhos e velhas que velhavam…”.

Velho é uma conquista. Idoso é uma rendição.

Como em 2012 passei a estar mais perto dos 50 do que dos 40, já começo a ouvir sobre mim mesma um outro tipo de bobagem. O tal do “espírito jovem”. Envelhecer não é fácil. Longe disso. Ainda estou me acostumando a ser chamada de senhora sem olhar para os lados para descobrir com quem estão falando. Mas se existe algo bom em envelhecer, como já disse em uma coluna anterior, é o “espírito velho”. Esse é grande.

Vem com toda a trajetória e é cumulativo. Sei muito mais do que sabia antes, o que significa que sei muito menos do que achava que sabia aos 20 e aos 30. Sou consciente de que tudo – fama ou fracasso – é efêmero. Me apavoro bem menos. Não embarco em qualquer papinho mole. Me estatelei de cara no chão um número de vezes suficiente para saber que acabo me levantando. Tento conviver bem com as minhas marcas. Conheço cada vez mais os meus limites e tenho me batido para aceitá-los. Continua doendo bastante, mas consigo lidar melhor com as minhas perdas. Troco com mais frequência o drama pelo humor nos comezinhos do cotidiano. Mantenho as memórias que me importam e jogo os entulhos fora. Torço para que as pessoas que amo envelheçam porque elas ficam menos vaidosas e mais divertidas. E espero que tenha tempo para envelhecer muito mais o meu espírito, porque ainda sofro à toa e tenho umas cracas grudadas à minha alma das quais preciso me livrar porque não me pertencem. Espero chegar aos 80 mais interessante, intensa e engraçada do que sou hoje.

Envelhecer o espírito é engrandecê-lo. Alargá-lo com experiências. Apalpar o tamanho cada vez maior do que não sabemos. Só somos sábios na juventude. Como disse Oscar Wilde, “não sou jovem o suficiente para saber tudo”. Na velhice havemos de ser ignorantes, fascinados pelas dimensões cada vez mais superlativas do que desconhecemos e queremos buscar. É essa a conquista. Espírito jovem? Nem tentem.

Acho que devíamos nos rebelar. E não permitir que nos roubem nem a velhice nem a morte, não deixar que nos reduzam a palavras bobas, à cosmética da linguagem. Nem consentir que calem o que temos a dizer e a viver nessa fase da vida que, se não chegou, ainda chegará. Pode parecer uma besteira, mas eu cometo minha pequena subversão jamais escrevendo a palavra “idoso”, “terceira idade” e afins. Exceto, claro, se for para arrancar seus laços de fita e revelar sua indigência.

Quando chegar a minha hora, por favor, me chamem de velha. Me sentirei honrada com o reconhecimento da minha força. Sei que estou envelhecendo, testemunho essa passagem no meu corpo e, para o futuro, espero contar com um espírito cada vez mais velho para ter a coragem de encerrar minha travessia com a graça de um espanto.



(Revista Época - 08/03/2014)

(Ilustração: Aleah Chapin - Seattle, Estados Unidos – 1986) 

quinta-feira, 15 de abril de 2021

PITÔCO, de Abílio Victor (Nhô Bentico)

 



Pitôco era um cachorrinho

Qu’eu ganhei do meu padrinho

Numa noite de Natá:

Era esperto, bem ativo,

Tinha dois zóio bem vivo

Sartano de lá pra-cá.

Deminhã cedo, quando me levantava,

Pitôco é que me acordava

C’os latido, sem pará,

Me fazia tanta festa,

Me lambia minha testa,

Chegava inté me bêjá.

E domingo, bem cedinho,

Eu pegava o meu bodoquinho,

Os pelote no emborná,

Pitôco corria na frente,

Dano sarto de contente,

Rolando nos capinzá.

Era domingo de méis

Dia de Santa Inêis:

Tinha festa no arraiá.

Minha mãe, co’as criançada

Tudo de rôpa trocada,

Na capela foi rezá;

Eu, fugino por uma estrada

Com Pitôco fui caçá.

Hoje, dói a minha conscência,

Da minha desobidiência.

Em não podê le sarvá.

Pitôco latia... latia,

De tanta alegria,

Sem nada podê cismá;

Eu tacava um pelote,

Fazendo virá cambóte

Um pobre cará-cará.

De repente – fiquei co’arma fria...

Gritei pr’a Virge Maria,

Que pudia me sarvá.

Uma urutu das dorada,

Num gaio dipindurada

Tava pronta pra sartá!

Pitôco... fico arripiado,

Ficô c’o zóio vidrado

I deu um sarto mortá:

Se cumbateu c’a serpente,

Arrepicô tuda de dente,

Mas num pôde se escapá.

Pitôco morreu latindo,

O seu zoinho tão lindo,

Foi fechano devagá;

Parecia inté que ria

Da minha patifaria

De num podê lhe sarvá.

E nesse mundo tão ôco,

Onde os amigo são pôco,

Dispois que morreu Pitôco

Nunca mais achei ôtro iguá!



(Ilustração: Leonid Afremov - lovely dog)



terça-feira, 13 de abril de 2021

PREGUIÇOSO QUEM, CARA PÁLIDA?, de Luís Fernando Pereira



O padre Antônio Vieira (1608-1697) ressaltava nos nativos brasileiros a tendência à ociosidade, não sendo o trabalho cotidiano e voluntário parte das suas vidas. Os colonizadores tentavam compreender o indígena usando como parâmetros a cultura e a visão de mundo difundidas na Europa, como se estas fossem um padrão universal. Ao contrário do que pensavam os europeus, religião, direito, poder, propriedade, cultura e trabalho não são temas universais, encontrados aqui e em outras partes.

A indolência dos indígenas brasileiros se revelou um poderoso estereótipo – ainda hoje muito difundido –, gerado por um absoluto desconhecimento do modo de vida dos nativos. Uma das origens do mito do índio preguiçoso reside na impressão errada que os europeus tinham da vida desses povos no Novo Mundo, associada à imagem do paraíso bíblico perdido. Acreditava-se que, habitando florestas fartas, que lhes ofereciam ao alcance das mãos os mais deliciosos frutos, os índios teriam que fazer muito pouco esforço em seu cotidiano.

No século XVIII, os povos indígenas passaram a ser vistos como representantes de uma era primitiva da humanidade e tornaram-se objeto de estudo para a observação de leis evolucionistas. Na época, o passado era cada vez mais associado a um estado de preguiça intelectual e indefinição entre coisas e homens – entre natureza e cultura. Já o futuro, no mundo ocidental, representaria o desenvolvimento e a evolução do trabalho e das ciências, o que afastaria os homens das antigas superstições. Aprisionados em um tempo longínquo e primitivo, os índios fariam parte desse passado habitado por homens preguiçosos e atrasados.

Este raciocínio persiste ainda hoje na sociedade brasileira, em argumentações que defendem a exploração de recursos em terras indígenas. [...]

De modo geral, as sociedades indígenas se organizam para garantir uma qualidade satisfatória de vida à maior parte do grupo. A relação com parentes e afins é central e está estreitamente vinculada às atividades econômicas e aos grupos de trabalho. Através dessas relações são fixados meios de troca, reciprocidade e obrigações.

Nas sociedades indígenas existem atividades específicas para homens e mulheres, outras feitas pelos casais e outras restritas a determinadas idades. As técnicas para a produção são compartilhadas e os frutos do trabalho são também distribuídos para aqueles que estão dentro dos círculos de relações. Por meio do trabalho, os membros do grupo se juntam e constroem relações. Ao contrário do Ocidente, onde a máxima reza que o trabalho deve ser deixado afastado do mundo familiar, entre os ameríndios o trabalho constitui esta vida familiar.

O choque dos diferentes sistemas de produção – entre brancos e índios – se torna mais evidente nas tentativas de estabelecimento da escravidão indígena no Brasil. Apesar do curto período legal (entre 1500 a 1570), persistiram formas de coerção de trabalho indígena, tanto nos engenhos de açúcar no Nordeste como na Amazônia, onde a escravatura africana não teve penetração. A preocupação de tornar os índios produtivos, de acordo com padrões europeus, sempre conduziu os esforços de contato, tanto na visão da distante metrópole quanto na dos colonos.

O Diretório dos Índios de 1755 (legislação criada pelo rei português D. José I) estipulava o trabalho nos moldes ocidentais, a imposição da língua portuguesa e a indução ao amor pela propriedade como uma forma de tornar os indígenas súditos verdadeiros da Coroa. Mesmo com a Independência (1822) e a República (1889), a mentalidade muda lentamente: a princípio ignorados no Império, os índios brasileiros só começam a receber alguma atenção do Estado depois de 1908, quando o Brasil é denunciado em Viena por massacrar índios, no XVI Congresso dos Americanistas. Isto levou à criação, em 1910, do Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais, órgão do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio. Os esforços do governo visavam transformá-los em “reais” trabalhadores, por meio de um processo de integração gradativa à sociedade nacional garantido inicialmente pela proteção às terras, como era defendido pelos positivistas desde 1894. O Código Civil de 1916 atestava a “incapacidade relativa” dos “silvícolas”, que estariam na mesma situação legal dos “pródigos” e das crianças.

A necessidade de transfigurar o indígena em branco e forçá-lo a integrar-se à nossa sociedade é hoje um discurso totalmente ultrapassado. Agora se sabe que há no mundo uma imensa diversidade de formas de produção, trabalho, organização social e constituição do saber – todas legítimas. Esta percepção abriu novas perspectivas para as políticas indigenistas. A transfiguração em branco não é destino inescapável.

A adaptação à interação com a sociedade não-indígena deve ser guiada pelas próprias culturas e necessidades dos povos e seus indivíduos. Hoje, várias populações adicionaram ao seu repertório de conhecimentos técnicas e instrumentos, como o uso de filmadoras, automóveis e a própria língua portuguesa, de acordo com padrões próprios. Também passaram a exercer outras atividades, como as de professores, microscopistas e pesquisadores.

O olhar sobre outras maneiras de encarar o mundo nos impele a deixarmos de considerar o Ocidente como padrão e referência para toda a humanidade. E aí reside o desafio: considerar nosso saber como mais um entre outros.



(Ilustração: foto de Nair Benedicto - Índios Arara - aldeia PV I, 1983)

domingo, 11 de abril de 2021

THE WIFE OF BATH / A MULHER DE BATH, de Geoffrey Chaucer

     


Middle-english



A good WIF was ther, OF biside BATHE,

But she was somdel deef, and that was scathe.

Of clooth-makyng she hadde swich an haunt,

She passed hem of Ypres and of Gaunt.

In al the parisshe wif ne was ther noon

That to the offrynge bifore hire sholde goon;

And if ther dide, certeyn so wrooth was she,

That she was out of alle charitee.

Hir coverchiefs ful fyne weren of ground;

I dorste swere they weyeden ten pound

That on a Sonday weren upon hir heed.

Hir hosen weren of fyn scarlet reed,

Ful streite yteyd, and shoes ful moyste and newe.

Boold was hir face, and fair, and reed of hewe.

She was a worthy womman al hir lyve:

Housbondes at chirche dore she hadde fyve,

Withouthen oother compaignye in youthe, -

But therof nedeth nat to speke as nowthe.

And thries hadde she been at Jerusalem;

She hadde passed many a straunge strem;

At Rome she hadde been, and at Boloigne,

In Galice at Seint-Jame, and at Coloigne.

She koude muchel of wandrynge by the weye.

Gat-tothed was she, soothly for to seye.

Upon an amblere esily she sat,

Ywympled wel, and on hir heed an hat

As brood as is a bokeler or a targe;

A foot-mantel aboute hir hipes large,

And on hir feet a paire of spores sharpe.

In felaweshipe wel koude she laughe and carpe.

Of remedies of love she knew per chaunce,

For she koude of that art the olde daunce.



Modern-english



There was a WIFE of BATH, or a near city,

Who was somewhat deaf, it is a pity.

At making clothes she had a skillful hand

She bettered those of Ypres and of Ghent.

In all the parish there was no wife to go

And proceed her in offering, it is so;

And if one did, indeed, so angry was she

It put her out of all her charity.

Her head-dresses were of finest weave and ground;

I dare swear that they weighed about ten pound

Which, on a Sunday, she wore on her head.

Her stockings were of the finest scarlet red,

Tightly fastened, and her shoes were soft and new.

Bold was her face, and fair, and red of hue.

She'd been respectable throughout her life,

Married in church, husbands she had five,

Not counting other company in youth;

But thereof there's no need to speak, in truth.

Three times she'd travelled to Jerusalem;

And many a foreign stream she'd had to stem;

At Rome she'd been, and she'd been in Boulogne,

In Spain at Santiago, and at Cologne.

She could tell much of wandering by the way:

Gap-toothed was she, it is the truth I say.

Upon a pacing horse easily she sat,

Wearing a large wimple, and over all a hat

As broad as is a buckler or a targe;

An overskirt was tucked around her buttocks large,

And her feet spurred sharply under that.

In company well could she laugh and chat.

The remedies of love she knew, perchance,

For of that art she'd learned the old, old dance.



Tradução de Paulo Vizioli:



Uma mulher de Bath havia em cena;

Mas era meio surda, o que era pena.

De bons tecidos era fabricante,

Chegando a superar Yprês e Gante.

Tirar-lhe alguém na igreja a precedência

No beijo da relíquia era imprudência,

Porque ela abandonava as boas maneiras

E perdia de vez as estribeiras.

Seus lenços, feitos das melhores fibras,

Por certo pesariam bem dez libras,

Que aos domingos na testa carregava.

Nas calças justas o escarlate usava,

E era novo e macio o seu calçado;

Rosto atrevido, belo e avermelhado.

Em sua vida digna. e benfazeja

Cinco vezes casara-se na igreja —

Fora os casos de sua juventude

(Falar disso, porém, seria rude).

Com três viagens a Jerusalém,

Atravessara rios mais que ninguém;

Em Roma tinha estado, e mais Boulogne;

Na Galícia, em Santiago, e então Colônia.

Vira assim muitas coisas diferentes.

Mostrava uma janela entre seus dentes.

Num cavalo equipado, usando um véu,

Cavalgava debaixo de um chapéu

Mais largo que um broquel ou que um escudo;

Sobre os amplos quadris, um sobretudo;

De esporas pontiagudas se servia.

Ria e tagarelava em companhia.

Dos remédios de amor tinha abundância,

Pois dessa arte sabia a velha dança.



(The Canterbury Tales / Os Contos da Cantuária; in A Literatura Inglesa Medieval)



(Ilustração: Anne Anderson - 1874-1930 - the wife of Bath)

quinta-feira, 8 de abril de 2021

OITAVA NOVELA: A HISTÓRIA DE NASTAGIO DEGLI ONESTI, de Giovanni Boccaccio

 



Em Ravena, antiquíssima cidade da Romanha, houve outrora muitos nobres e ricos, entre os quais um jovem chamado Nastagio degli Onesti que, com a morte do pai e de um tio, ficou desmedidamente rico. Não tendo mulher, tal como ocorre aos jovens apaixonou-se por uma filha de messer Paolo Traversaro, moça muitíssimo mais nobre que ele, que Nastagio tinha a esperança de conquistar com ações; estas, embora imensas, belas e louváveis, não só não adiantavam nada como até parecia que o prejudicavam, tão cruel, dura e esquiva se mostrava a jovem amada, que se tornara altiva e desdenhosa, talvez em razão da singular beleza ou da nobreza, a ponto de não gostar dele e de nada do que ele gostasse. Para Nastagio isso era tão difícil de suportar que várias vezes, depois de muito lastimar, teve ele desejos de matar-se. Por fim, abstendo-se disso, tomou frequentes decisões de esquecê-la totalmente ou, se pudesse, de sentir por ela o ódio que ela tinha por ele. Mas em vão se propunha tais coisas, pois parecia que, quanto mais a esperança minguava, tanto mais o amor aumentava.

Como o rapaz continuasse amando e gastando desmesuradamente, alguns amigos e parentes acharam que ele em breve consumiria a si mesmo e às suas coisas; por isso, diversas vezes lhe pediram e aconselharam que saísse de Ravena e fosse para algum outro lugar onde ficasse durante certo tempo, pois, fazendo isso, diminuiria o amor e os gastos. Nastagio frequentemente zombou desse conselho, mas foi tão instado por eles que, não podendo dizer não tantas vezes, prometeu que o faria; e, mandando fazer grandes preparativos, como se fosse para a França, para a Espanha, ou para algum outro lugar distante, montou a cavalo e, acompanhado por muitos amigos, saiu de Ravena e foi para um lugar a cerca de três milhas da cidade, chamado Chiassi; para ali mandou levar pavilhões e tendas, disse àqueles que o acompanhavam que queria ficar lá, e que voltassem para Ravena. Portanto, vivendo em tendas, Nastagio começou a levar a melhor e mais magnificente vida que já se viu, convidando ora estes, ora aqueles para cear ou almoçar, como era costume.




Certa sexta-feira, porém, quase chegava maio e o tempo estava belíssimo, ele começou a pensar naquela mulher cruel e, ordenando a todos os criados que o deixassem só para poder meditar mais à vontade, foi dando um passo após outro, sempre a pensar, e acabou por se transportar ao pinhal. Havia já quase passado a quinta hora do dia, e ele, tendo penetrado cerca de meia milha pelo pinhal, sem se lembrar de comer nem de coisa nenhuma, de repente teve a impressão de ouvir choro e lamentos altos de mulher; assim se desfizeram seus doces pensamentos, e ele, erguendo a cabeça para ver o que era, admirou-se por estar no pinhal; além disso, olhando à frente, viu chegar correndo por um bosquezinho denso, cheio de arbustos e espinheiros, em direção ao lugar onde estava, uma belíssima jovem nua, desgrenhada e toda arranhada por ramos e espinhos, chorando e gritando por piedade; ao lado dela, viu dois grandes e ferozes mastins, que a perseguiam implacavelmente e, sempre que a alcançavam, a mordiam com crueldade; atrás, viu chegar, montado num ginete negro, um cavaleiro moreno, de semblante muito irado, que, com um estoque na mão, a ameaçava de morte com palavras assustadoras e vis. Diante daquilo, ele se encheu de admiração e espanto e, sentindo compaixão da desventurada mulher, teve desejo de libertá-la da angústia e da morte, caso pudesse. Mas, estando sem armas, recorreu a um galho de árvore à guisa de porrete e começou a investir contra os cães e a enfrentar o cavaleiro. Mas o cavaleiro, vendo isso, gritou-lhe de longe:

– Nastagio, não se meta, deixe que os cães e eu façamos o que essa mulher malvada mereceu.

E, enquanto dizia isso, os cães agarraram fortemente a jovem pelos flancos e a detiveram; o cavaleiro chegou e apeou. Nastagio, aproximando-se dele, disse:

– Não sei quem é você, que me conhece; mas digo-lhe que é muita covardia um cavaleiro armado querer matar uma mulher nua e pôr os cães no seu encalço como se ela fosse uma fera selvagem; e sem dúvida eu a defenderei o quanto puder.

O cavaleiro então disse:

– Nastagio, fui de sua cidade, e você ainda era pequeno quando eu, que me chamava messer Guido degli Anastagi, estava muito mais apaixonado por essa mulher do que você está agora pela filha dos Traversari, e, por causa da atrocidade e da crueldade dela, a minha desgraça chegou a tal ponto que um dia, desesperado, me matei com este estoque que está vendo em minha mão e estou condenado às penas eternas. Não muito tempo depois, ela, que ficou felicíssima com minha morte, morreu também e, não se arrependendo do pecado da crueldade e da alegria que sentiu com os meus tormentos, por achar que não tinha havido pecado, mas merecimento, também foi condenada às penas do inferno e assim está. Pois, tão logo ela desceu ao inferno, recebemos os dois uma pena: ela está condenada a fugir de mim, e eu, que já a amei tanto, estou condenado a segui-la como inimiga mortal, e não como mulher amada; e, sempre que a alcanço, devo matá-la com este estoque que usei para me matar, abri-la pelas costas, arrancar do corpo o coração duro e frio, no qual nunca puderam entrar amor nem piedade e, como você verá em breve, dá-lo junto com as outras vísceras de comer a estes cães. Depois, não demora muito para que ela – conforme querem a justiça e o poder de Deus – ressurja como se nunca tivesse estado morta e recomece a dolorosa fuga, enquanto os cães e eu a seguimos. E todas as sextas-feiras a esta hora eu a alcanço aqui e aqui faço a carnificina que verá; e nos outros dias não pense que descansamos, mas eu a alcanço em outros lugares nos quais ela pensou ou agiu contra mim com crueldade; e eu, que passei de amante a inimigo, como está vendo, preciso segui-la dessa maneira durante tantos anos quantos foram o meses em que ela usou de crueldade contra mim. Por isso, deixe que execute a justiça divina, não queira opor-se àquilo que você não poderia combater.

Nastagio, ao ouvir essas palavras, intimidou-se totalmente e quase não lhe sobrou pelo do corpo que não se arrepiasse; então recuou e começou a olhar a mísera moça e a esperar, temeroso, o que o cavaleiro ia fazer. Este, terminando de falar, de estoque em punho arremeteu como cão raivoso contra a moça que, ajoelhada e fortemente retida pelos dois mastins, gritava por piedade, e feriu-a com toda a força no meio do peito, varando-a até o outro lado. A jovem, ao receber esse golpe, caiu de bruços, sempre chorando e gritando; e o cavaleiro, pegando uma faca, abriu-a nas costas e, extraindo-lhe o coração e todas as outras coisas em torno dele, atirou-o aos dois mastins, que o comeram imediatamente com muita fome. Não demorou muito para que a jovem, como se nada daquilo tivesse acontecido, se pusesse em pé de repente e começasse a fugir em direção ao mar, com os cães atrás, sempre a mordê-la; e o cavaleiro, voltando a montar e a empunhar seu estoque, começou a segui-la, de modo que em pouco tempo se afastaram e Nastagio deixou de vê-los.




Depois de ver essas coisas, Nastagio ficou um bom tempo entre apiedado e amedrontado; passado algum tempo, veio-lhe à mente que aquilo poderia lhe ser muito útil, pois ocorria todas as sextas-feiras; por isso, marcando bem o lugar, voltou até onde estavam seus empregados e, quando lhe pareceu oportuno, mandou chamar vários parentes e amigos e lhes disse:

– Durante muito tempo vocês me incentivaram a deixar de amar aquela minha inimiga e a pôr fim aos meus gastos; estou disposto a isso desde que me façam um favor, que é o seguinte: sexta-feira que vem, arranjem tudo para que messer Paolo Traversaro, esposa, filha e todas as parentes, bem como outras mulheres que queiram, venham almoçar aqui comigo. O motivo deste meu desejo vocês entenderão então.

Eles acharam que era coisa simples de fazer e prometeram que o fariam; e, voltando a Ravena, no momento oportuno convidaram as pessoas que Nastagio queria e, mesmo sendo difícil levar a sua amada, ela acabou indo com os outros. Nastagio mandou preparar um almoço magnífico e ordenou que as mesas fossem postas debaixo dos pinheiros ao redor daquele lugar onde ele vira a dilaceração da mulher cruel; e, convidando os homens e as mulheres a sentarem-se à mesa, organizou tudo de tal modo que a jovem amada se sentasse bem em frente ao local onde o fato deveria ocorrer.

Havia já chegado o último prato quando todos começaram a ouvir o desesperado estrépito da caçada da jovem e, espantando-se muito, perguntavam o que era aquilo; como ninguém soubesse dizer, levantaram-se todos e foram olhar o que seria; então viram a pobre moça, o cavaleiro e os cães, e não demorou muito para que estes chegassem aonde estavam os convidados. Então estes começaram a gritar para os cães e o cavaleiro, e muitos se adiantaram para ajudar a jovem, mas o cavaleiro, falando-lhes como falara a Nastagio, não só os fez recuar como também os encheu de pavor de espanto; e, fazendo o mesmo que fizera da outra vez, provocou triste pranto em todas as mulheres que ali estavam, como se aquilo fosse feito contra elas mesmas (e muitas havia lá que eram parentes da jovem sofredora e do cavaleiro, e que se lembravam do amor e da morte dele). Terminado aquilo tudo, depois que a mulher e o cavaleiro foram embora, todos os que haviam visto a cena começaram a conversar sobre muitas e várias coisas, mas entre os que mais tinham ficado assustados estava a cruel jovem que Nastagio amava e que vira e ouvira tudo distintamente e sabia que a si mesma mais que a qualquer outra pessoa aquelas coisas diziam respeito, pois se lembrava da crueldade de que sempre usara com Nastagio; de modo que já tinha a impressão de se ver a fugir dele, que a seguia irado, e de ter os mastins no seu encalço.




E foi tamanho o medo nela causado que, para evitar que aquilo lhe acontecesse, assim que se apresentou a ocasião oportuna (o que ocorreu naquela mesma noite), ela – em quem o ódio se transmudara em amor – mandou em segredo uma fiel camareira falar com Nastagio, pedindo-lhe em seu nome que fizesse o favor de ir falar com ela, pois estava disposta a fazer tudo o que fosse do seu agrado. Nastagio mandou dizer que aquilo lhe dava muito gosto, mas que, desde que fosse do agrado dela, ele queria ter sua vontade satisfeita com honra para ela, e que a vontade dele era tê-la por mulher. A jovem, sabendo que só dependera dela não ter sido mulher de Nastagio, mandou responder que aceitava. Assim, sendo ela mesma a mensageira, disse ao pai e à mãe que ficaria contente em ser esposa de Nastagio, com o que eles ficaram muito felizes.

No domingo seguinte Nastagio a desposou e, celebradas as bodas, viveu feliz com ela muito tempo. Aquele medo não deu ensejo apenas a esse bom efeito; ao contrário, todas as mulheres de Ravena ficaram tão amedrontadas, que a partir de então se tornaram muito mais compreensivas do que antes tinham sido com os desejos dos homens. 



(Decameron; tradução de Ivone C. Benedetti)



(Ilustrações: Sandro Boticelli pintou 4 painéis ilustrando a história de Boccaccio:

1 - Nastagio degli Onesti encontra a mulher e o cavaleiro no pinhal de Ravena

2 - Nastagio degli Onesti - matando a mulher

3 - Nastagio degli Onesti - o banquete na floresta

4 - Nastagio degli Onesti - o casamento)


sábado, 3 de abril de 2021

TABACARIA, de Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)

 



Não sou nada.

Nunca serei nada.

Não posso querer ser nada.

À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,

Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é

(E se soubessem quem é, o que saberiam?),

Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,

Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,

Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,

Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,

Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,

Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.

Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,

E não tivesse mais irmandade com as coisas

Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua

A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada

De dentro da minha cabeça,

E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.

Estou hoje dividido entre a lealdade que devo

À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,

E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.

Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.

A aprendizagem que me deram,

Desci dela pela janela das traseiras da casa.

Fui até ao campo com grandes propósitos.

Mas lá encontrei só ervas e árvores,

E quando havia gente era igual à outra.

Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?

Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!

E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!

Gênio? Neste momento

Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,

E a história não marcará, quem sabe?, nem um,

Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.

Não, não creio em mim.

Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!

Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?

Não, nem em mim...

Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo

Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?

Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -

Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,

E quem sabe se realizáveis,

Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?

O mundo é para quem nasce para o conquistar

E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.

Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.

Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,

Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.

Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,

Ainda que não more nela;

Serei sempre o que não nasceu para isso;

Serei sempre só o que tinha qualidades;

Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,

E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,

E ouviu a voz de Deus num poço tapado.

Crer em mim? Não, nem em nada.

Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente

O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,

E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.

Escravos cardíacos das estrelas,

Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;

Mas acordamos e ele é opaco,

Levantamo-nos e ele é alheio,

Saímos de casa e ele é a terra inteira,

Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;

Come chocolates!

Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.

Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.

Come, pequena suja, come!

Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!

Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,

Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei

A caligrafia rápida destes versos,

Pórtico partido para o Impossível.

Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,

Nobre ao menos no gesto largo com que atiro

A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,

E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,

Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,

Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,

Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,

Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,

Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,

Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -

Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!

Meu coração é um balde despejado.

Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco

A mim mesmo e não encontro nada.

Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.

Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,

Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,

Vejo os cães que também existem,

E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,

E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,

E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.

Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,

E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses

(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);

Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo

E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube

E o que podia fazer de mim não o fiz.

O dominó que vesti era errado.

Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.

Quando quis tirar a máscara,

Estava pegada à cara.

Quando a tirei e me vi ao espelho,

Já tinha envelhecido.

Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.

Deitei fora a máscara e dormi no vestiário

Como um cão tolerado pela gerência

Por ser inofensivo

E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,

Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,

E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,

Calcando aos pés a consciência de estar existindo,

Como um tapete em que um bêbado tropeça

Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.

Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada

E com o desconforto da alma mal-entendendo.

Ele morrerá e eu morrerei.

Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.

A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.

Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,

E a língua em que foram escritos os versos.

Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.

Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente

Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,

Sempre uma coisa tão inútil como a outra,

Sempre o impossível tão estúpido como o real,

Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,

Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)

E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.

Semiergo-me enérgico, convencido, humano,

E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los

E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.

Sigo o fumo como uma rota própria,

E gozo, num momento sensitivo e competente,

A libertação de todas as especulações

E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira

E continuo fumando.

Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira

Talvez fosse feliz.)

Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).

Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.

(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)

Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.

Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo

Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.



(15-1-1928)


(Ilustração: Tabacaria Africana - Lisboa – Portugal)