segunda-feira, 31 de outubro de 2016

OS TAMBORES DE SÃO LUÍS, de Josué Montello






Até ali os tambores da Casa-Grande das Minas tinham seguido seus passos, e ele via ainda os três tamboreiros, no canto esquerdo da varanda, rufando forte os seus instrumentos rituais, com o acompanhamento dos ogãs e das cabaças, enquanto a nochê Andreza Maria deixava cair o xale para os antebraços, recebendo Toi-Zamadone, o dono do lugar.

Por vezes, no seu passo firme pela calçada deserta, deixava de ouvir o tantantã dos tambores, calados de repente no silêncio da noite, com o vento que amainava ou mudava de direção. Daí a pouco Damião tornava a ouvi-los, trazidos por uma rajada mais fresca, e outra vez a imagem da nochê, cercada pelas noviches vestidas de branco, lhe refluía à consciência, magra, direita, porte de rainha, a cabeça começando a branquear.

Fora ela que viera buscá-lo, à entrada do querebetã. A intenção dele era apenas ouvir um pouco os tambores e olhar as danças, sentado no comprido banco da varanda, de rosto voltado para o terreiro pontilhado de velas. Já o banco estava repleto. Muitas pessoas tinham sentado no chão de terra batida, com as mãos entrelaçadas em redor dos joelhos; outras permaneciam de pé, recostadas contra a parede. Mas a nochê, que o trouxera pela mão, fez cair do banco um dos assistentes, e ele ali se acomodou, em posição realmente privilegiada, podendo ver de perto os tambores tocando e as noviches dançando, por entre o tinir de ferro dos ogãs e o chocalhar das cabaças.

Vez por outra sentia necessidade de ir ali, levado por invencível ansiedade nostálgica, que ele próprio, com toda a agudeza de sua inteligência superior, não saberia definir ou explicar. O certo é que, ouvindo bater os tambores rituais, como que se reintegrava no mundo mágico de sua progênie africana, enquanto se lhe alastrava pela consciência uma sensação nova de paz, que mergulhava na mais profunda essência de seu ser. Dali saía misteriosamente apaziguado, e era mais leve o seu corpo e mais suave o seu dia, qual se voltasse a lhe ser propício o vodum que acompanha na Terra os passos de cada negro.

Embora só houvesse no céu uma fatia de lua nova, por cima da igreja de São Pantaleão, uma tênue claridade violácea descia sobre a cidade adormecida, com a multidão de estrelas que faiscavam na noite de estio. Em cada esquina, a sentinela de um lampião, com seu bico de gás chiante. Todas as casas fechadas. Perto, para os lados da Rua da Inveja, o apressado rolar de um carro, com o ruído do cavalo a galope nas pedras do calçamento. E sempre o baticum dos tambores, ora fugindo, ora voltando, sem perder a cadência frenética, muito mais ligeira que o retinir das ferraduras.

No canto da Rua do Passeio com a Rua do Mocambo, antes de passar para a calçada fronteira, Damião parou um momento, batido em cheio pela claridade do gás.

Resguardado do sereno pelo chapéu de feltro inglês, presente do Governador Luís Domingues no último Natal, parecia mais comprido, a espinha dorsal direita, o corpo seco e rijo, os ombros altos. Aos oitenta anos, dava a impressão de ter sessenta, ou talvez menos, com muita luz nos olhos, o passo seguro, a cabeça levantada. Até o começo do século, não dispensava a bengala de castão de prata com que entrou pela primeira vez no sobrado do Foro, sobraçando a sua pasta de solicitador, para defender outro negro. Agora, trajava com simplicidade, muito limpo, a barba escanhoada, o paletó abotoado acima do peito, um alfinete de ouro junto ao laço da gravata.

- Faça favor...

Damião assustou-se com a voz rouca que lhe vinha por trás do ombro direito, do lado da Rua do Mocambo. Não tinha sentido rumor de passos. E deu de frente com o Sátiro Cardoso, pequenino, enxuto, metido na sua sovada casaca de mágico, o colarinho alto, o rosto encovado, bigode, nos negros olhos uma faísca de loucura, e que logo lhe disse, com um pedaço de papel impresso na ponta dos dedos:

- É o convite para o meu próximo espetáculo.

- Outra vez A queda da Bandeira?

- É. O pessoal pede sempre. E o público é quem manda.

Damião quis ainda saber por que o velho mágico preferia aquela hora da noite, com as casas fechadas, para distribuir os seus convites.

- De dia - redarguiu ele, dando-lhe outro convite - os moleques vêm atrás de mim, me chamando de Troíra. Chegam a atiçar cachorros para me morder. De noite é mais calmo: os moleques estão dormindo.

E lá se foi, Rua do Mocambo abaixo, a enfiar o papelucho por baixo das portas, sem ruído, apenas roçando o chão da calçada com seu passo macio.

Já fazia alguns anos que Damião vira aparecer na cidade aquela figura caricata, debaixo de uma cartola preta, casaca, sapatos cambados, a andar acima e abaixo, com uma pasta de couro, também preta, e apresentando-se no Largo do Carmo, no Palácio do Governo, na redação dos jornais, no Liceu, no Paço Episcopal, e também à porta das igrejas, nas missas dominicais e nos casamentos, como - o Ilusor Maranhense. Dias depois, apenas por curiosidade, tinha ido assistir, no Teatro São Luís, ao seu primeiro espetáculo, que daí em diante se repetia todos os anos: a caprichada mágica intitulada A queda da Bandeira. Sátiro subia uma escada, até o último degrau, bem no centro do palco, e dali, com uma bandeira desfraldada, recitava comprido bestialógico, cheio de palavras abstrusas, numa suposta língua de sua invenção, o gramazino, da qual proporcionava antes um pano de amostra com esta explicação: "O A do alfabeto gramazino é a mesma coisa que o A do alfabeto em português, com a diferença de que se escreve de cabeça para baixo e tem o som de bé." Em seguida, enrolava-se na bandeira. Um tiro de pólvora seca estrondava, assustando a platéia. E eis que o mágico se atirava lá do alto, em arremesso, como se fosse voar, e caía pesadamente cá embaixo, nas tábuas do chão.

- Bis, bis - gritava-lhe da torrinha.

E Sátiro repetiu o monólogo, uma, duas, várias vezes, com o mesmo tiro e a mesma queda, até que Damião, compadecido de sua insânia, começou a reclamar - Chega! Chega! - e o mágico afinal se retirou, manquejando, uma das mãos no quadril machucado, enquanto o pano do teatro vinha descendo, debaixo de gritos e assobios.

Antes que ele desaparecesse, sempre a enfiar o impresso por baixo das portas, Damião mudou de calçada, ainda ouvindo o baticum dos tambores. Para trás, em linha reta, ficava o Cemitério do Gavião, com o Padre Policarpo, a Genoveva Pia, a Aparecida, o Dr. Celso de Magalhães, a Dona Bembém, a Dona Páscoa, a Dona Calu, o amigo Barão, cada qual no seu jazigo ou na sua cova rasa, na santa paz do Senhor. A frente, era o Largo do Quartel; em seguida, torcendo para a direita, a Rua das Hortas, o Largo da Cadeia, a Praia do Jenipapeiro e por fim a Gamboa, com a casa de sua bisneta, num cômoro verde que escorregava para o mar.


(Os Tambores de São Luís, 1975.)



(Ilustração: Francisco Sousa Ferreira)



sexta-feira, 28 de outubro de 2016

RONDÓ DOS CAVALINHOS, de Manuel Bandeira






Os cavalinhos correndo,

E nós, cavalões, comendo...

Tua beleza, Esmeralda,

Acabou me enlouquecendo.





Os cavalinhos correndo,

E nós, cavalões, comendo...

O sol tão claro lá fora

E em minhalma — anoitecendo!





Os cavalinhos correndo,

E nós, cavalões, comendo...

Alfonso Reys partindo,

E tanta gente ficando...





Os cavalinhos correndo,

E nós, cavalões, comendo...

A Itália falando grosso,

A Europa se avacalhando...





Os cavalinhos correndo,

E nós, cavalões, comendo...

O Brasil politicando,

Nossa! A poesia morrendo...

O sol tão claro lá fora,

O sol tão claro, Esmeralda,

E em minhalma — anoitecendo!




(Antologia Poética)





(Ilustração: Picasso - Guernica
)




terça-feira, 25 de outubro de 2016

OS CAVALINHOS CORRENDO..., de Aurélio Buarque de Holanda




- Eu não queria que terminasse assim...

Ouvi muitas vezes a frequentadores de cinema esse comentário ao filme a que acabavam de assistir. A fita lhes agradara até certo trecho, ia tudo muito bem.. mas findava de um jeito que desiludira o espectador. E, mais poderosa que tudo, erguia-se, dura e inflexível, a sua inconformação:

- Eu não queria que terminasse assim...

Não queria. Isto dizia ele do filme como diria de um romance - no tempo em que o cinema americano ainda não generalizara a pratica dos banalíssimos happy-ends. E tinha o direito de não querer. A vida é um bem comum, de que participa cada um de nós de corpo e alma. É domínio público, e todos têm o direito de opinar sobre ela, de querer afeiçoá-la a seu gosto, conformá-la ao padrão do seu sentir pessoal. E, como por vezes se malogram os esforços em tal sentido, resta o consolo, embora inútil, do protesto, do "eu não queria...".

Isto me ocorre a propósito de um poema - o "Rondó dos Cavalinhos", de Manuel Bandeira. Também na poesia, que é vida, e vida funda, há da parte do leitor o direito de querer torcer a direção das coisas, para ajeitá-las ao mundo particular da sua sensibilidade. O leitor de poesia pode muito bem não querer que o poema tenha acabado assim... E pode até não querer que o poeta haja sentido ou pensado assim como pensou ou sentiu.

Este último caso é o meu em relação àquele poema de Bandeira. Uns versos batizados "Rondó dos Cavalinhos" e que principiam desta maneira:

Os cavalinhos correndo

- Que lembrança viriam suscitar em mim? A de uma corrida de pequenos cavalos, ou mesmo de cavalos grandes liricamente reduzidos a cavalinhos? Não. O que esses versos num momento me trouxeram aos olhos foram os cavalinhos do carrossel ou trivoli, aqueles cavalinhos de pau, firmemente presos, e em que no entanto a gente realizava as mais prodigiosas viagens, imensas viagens circulares obrigadas a música de harmônica, e com paisagens humanas – pessoas que em redor nos fitavam, encantadas, talvez invejosas.

Ora, a imaginação, escanchada nesses cavalinhos da meninice - que deram a Jorge de Lima um belo poema -, não quis mais apear-se, não ouviu o apito que anunciava o fim da corrida. A corrida era longa, muito longa, sem fim: "Os cavalinhos correndo"... E, ao passo que o mundo se enchia desse lirismo infantil, a gente grande, os homens feitos e práticos, alheios a cavalinhos, comiam, grosseiros como cavalões:

E nós, cavalões, comendo...
E, enquanto isso,
Tua beleza, Esmeralda,
Acabou me enlouquecendo

Sim, me enlouquecendo, deixando-me "tonto", "gira". Os cavalinhos correm, giram, e a cabeça gira, e Esmeralda anoita a alma do poeta:

Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo.
O sol tão claro lá fora,
E em minh'alma - anoitecendo!

O Sol. A Terra gira em torno do Sol, como está girando em redor dos cavalinhos. E, cada vez com ímpeto maior, lá se vão

Os cavalinhos correndo.
E nós, cavalões, comendo...
E, ao mesmo tempo,
Alfonso Reyes partindo,
E tanta gente ficando...

Os cavalinhos não param. E, girando no cavalinho que não para de girar, vemos, nas voltas que dá o mundo, o artista, o amigo, o do peito, partindo, irremediavelmente partindo, e os vulgares, os infiéis, os neutros, ficando. E nesse desadoro de gerúndios - "correndo", "comendo", "partindo", "ficando", "anoitecendo", "enlouquecendo" - as coisas se prolongam num indefinido girar, realizando nós, adultos, numa segunda e melhor infância, uma demorada, interminável viagem de cavalinhos, sem o apito do fim da corrida.

Nada de apito, senhores. A viagem se prolonga, o rodar dos cavalinhos se prolonga – porque tudo é prolongado. Até o nome de Alfonso Reyes: "Al-fon-so Re-yes par-tin-do". E, para que tudo se prolongue mais, e não cesse tão cedo o girar dos cavalinhos, surgiram aquelas novas reticências, depois "ficando", além das que até então sucediam ao "correndo": "E tanta gente ficando..." A demora desse "ficando" dilata-se nos três pontinhos.

E, entretanto:

Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
A Itália falando grosso,
A Europa se avacalhando...

Decididamente, é o mundo que roda em torno do menino, é o girar da vida, é uma revista passada ao universo, alongado pelas novas reticências do "avacalhando". O fascismo a caminho da vitória: coisa grave, de fazer estacar os cavalinhos; mas os cavalinhos são inocentes, liricamente ignorantes, são a infância feliz, os cavalões são ávidos, querem comer bem, gozar a vida, e...

Os cavalinhos correndo.
E nós, cavalões, comendo...
O Brasil politicando,
Nossa! A poesia morrendo...
O sol tão claro lá fora,
O sol tão claro, Esmeralda.
E em minh'alma - anoitecendo!

No incessante voltear dos cavalinhos, nessa excursão maravilhosa, os cavalões não largaram o talher. Já passou Esmeralda com a sua funesta beleza; já desapareceu a claridade alta do Sol, que não impediu o anoitecer da alma do poeta; já se partiu Alfonso Reyes; já surgiu e se foi a política europeia, infestada de fascismo. Agora entra na roda o Brasil, politicando. Coisa tão grave que a rapidez do giro se abranda um pouco para o inquieto "Nossa!". O Brasil politicando - e a morte da poesia... Agora a sombra vai tomando conta de tudo: tudo anoitece com aquele íntimo anoitecer. O homem do trivoli faz soar o apito; a criança experimenta um súbito e inexplicável cansaço. Que é isso? Há um pegajoso de suor no pescoço dos cavalinhos. A viagem para. Anda lá fora, lá no alto, o Sol. Mas - o Brasil está politicando, a poesia está morrendo, a beleza de Esmeralda está anoitecendo a alma do poeta, a alma dos pequeninos cavaleiros. Que é isso? A vida parou? Pararam os cavalinhos.

Ora, Manuel Bandeira, o suposto dono do poema, disse-me que este nada tem que ver com os cavalinhos de carrossel; refere-se aos cavalos do Jóquei Clube. Os versos foram escritos após um almoço de despedida a Alfonso Reyes no restaurante do hipódromo da Gávea. Enquanto se banqueteavam, os cavalões assistiam à corrida dos cavalos de carne e osso, a alguma distância. Naturalmente a distância, aliada à ternura pelos bichos que se matavam para gozo ou proveito dos homens, apequenava-os poeticamente em cavalinhos. E, vendo aquilo, Bandeira teria começado a ver também o mundo correr, girar, como giravam os animais na pista.

Assim, ou mais ou menos assim, se formou o poema na fantasia de Bandeira. São estes os seus cavalinhos.

Os meus, porém, mesmo após a explicação, continuam sendo os outros, os do trivoli. Segundo confissão do meu amigo o poeta Emílio Moura, a sua interpretação do poema de Bandeira coincide com a minha. Como os frequentadores de cinema não queriam que a fita "acabasse assim", também eu não quero que o "Rondó dos Cavalinhos" "seja assim" como Bandeira pensou. Para mim, eles são o que eu senti, e sinto. Já vivi tanto com esses versos e esses cavalinhos na cabeça, apurando e cristalizando aquela imagem da vida a andar à roda dos cavalinhos que giram, enquanto a harmônica ("o harmônico", dizia a gente) vai soluçando, e o rumor da festa vai crescendo, e o pessoal, à margem, nos está invejando, aos velozes cavaleiros, que não me é possível desistir dos meus direitos em favor de Bandeira. Não. Ele me deu também a mim, dando-o ao mundo, o seu poema. Merece toda a gratidão o doador generoso; mas não pode impor à doação outra cláusula senão a de que seja lembrado o seu nome. (E isso mesmo, que adianta? Quem conhece o autor de tantas mil cantigas populares? Como na Escritura, o poeta às vezes ganha a vida perdendo-a.) Quanto ao mais - que eu ou qualquer outro leitor empreste ao seu poema esta ou aquela interpretação, que o sinta deste ou daquele modo: nada pode Bandeira fazer contra isso. Não pode, e não deve; pois justamente a riqueza e força de um poeta é tanto maior quanto mais numerosas sejam as interpretações que a sua poesia possa acordar na sensibilidade dos leitores, quanto mais numerosos os colaboradores que ele venha a ter, pelo tempo fora. E não será, nalguns casos, a interpretação do leitor preferível à do próprio autor? Não digo preferível por mais bela, por mais lírica, somente; mas também pela possibilidade de ser a verdadeira, estando a interpretação do próprio poeta relacionada com o sentimento que determinou proximamente o poema, e que ainda se acha, mais ou menos, presente à sua consciência, quando a inspiração inicial, profunda, lhe ficou mergulhada no subconsciente - não vindo à tona no instante da realização poética - e coincide com a exegeses do leitor.

Assim como assim, se há um poema carregado de sugestões líricas bastantes para lhe assegurarem grande colaboração dos leitores, será esse "Rondó dos Cavalinhos".


1947.

(Território lírico, 1958.)




(Ilustração: Leonid Afremov - corrida de cavalos)




sábado, 22 de outubro de 2016

AS BRUXAS E SEU MUNDO, de Lucila Nogueira







O Graal se encontra

mas não se procura.




Cada um deve morrer três vezes

antes de descansar.



O corpo escreveu a palavra antes

a atravessou o dito e o interdito

como o silêncio dócil de Essomeriq em Honfleur

ou o sorriso ambíguo da Monalisa

pintado no rosto azul de Paraguaçu.



Moro no mar cinzento

do penhasco escuro

poções de esquecimento sobre o vidro

te esperam na almofada de cetim.



Entre brumas se escreve o vaticínio

que há de fazer-te escravo aos meus desígnios

enquanto satisfaço os teus caprichos

entre brumas o monte e o precipício



as bruxas e seu mundo

desde o início.





(Ilustração: Canato; Eva)

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

DIGRESSÃO SOBRE O SENTIDO DO TEMPO, de Thomas Mann







No fundo constitui fenômeno esquisito esse processo de aclimatação num lugar estranho, a adaptação - por mais laboriosa que seja - e a mudança de hábitos à qual as pessoas se submetem só para variar e na intenção firme de abandoná-la imediatamente ou pouco depois de completada, a fim de voltarem ao estado anterior. Intercala-se tal processo como uma espécie de interrupção ou entreato, no curso principal da vida, e isso para fins de "restabelecimento", quer dizer, para exercitar, renovar e revolucionar o organismo que corria perigo, e já estava a ponto de se animalhar, de enlanguescer e de entibiar, na desarticulada monotonia da existência rotineira. Mas, qual é a origem desse langor, dessa tibieza, nos casos de continuidade por demais extensa e ininterrupta de uma rotina? Trata-se menos do cansaço e do desgaste físico e espiritual, que causam as exigências da vida - para eles, o simples descanso bastaria como remédio reconstituinte -, do que de algo psíquico: é a consciência do tempo que ameaça perder-se na uniformidade constante, e que liga laços tão estreitos de parentesco e afinidade à própria sensação de vida, que não se pode debilitar uma sem que a outra sofra e definhe também. Com respeito à natureza do tédio encontram-se frequentemente conceitos errôneos. Crê-se em geral que a novidade e o caráter interessante do conteúdo "fazem passar" o tempo, quer dizer, abreviam-no, ao passo que a monotonia e a vacuidade lhe estorvam e retardam o fluxo. Isto não é verdade, senão com certas restrições. Pode ser que a vacuidade e a monotonia alarguem e tornem "tediosos" o momento e a hora; porém, as grandes quantidades de tempo são por elas abreviadas e aceleradas, a ponto de se tornarem um quase nada. Um conteúdo rico e interessante é, por outro lado, capaz de abreviar a hora e até mesmo o dia; mas, considerado sob o ponto de vista do conjunto, confere amplitude, peso e solidez ao curso do tempo, de maneira que os anos ricos em acontecimentos passam muito mais devagar do que aqueles outros, pobres, vazios, leves, que são varridos pelo vento e se vão voando. O que se chama tédio é, portanto, na realidade, antes uma brevidade mórbida do tempo, provocada pela monotonia: em casos de igualdade contínua, os grandes lapsos de tempo chegam a encolher-se a tal ponto, que causam ao coração um susto mortal; quando um dia é como todos, todos são como um só; passada numa uniformidade perfeita, a mais longa vida seria sentida como brevíssima e decorreria num abrir e fechar de olhos. O hábito representa a modorra, ou ao menos o enfraquecimento, do senso de tempo, e o fato de os anos de infância serem vividos mais vagarosamente, ao passo que a vida posterior se desenrola cada vez mais depressa - esse fato também se baseia no hábito. Sabemos perfeitamente que a intercalação de mudanças de hábitos, ou de hábitos novos, constitui o único meio para manter a nossa vida, para refrescar a nossa sensação de tempo, para obter um rejuvenescimento, um reforço, um retardamento da nossa experiência do tempo, e com isso, a renovação da nossa sensação de vida em geral. Tal é a finalidade da mudança de lugar e de clima, da viagem de recreio, e nisso reside o que há de salutar na variação e no episódico. Os primeiros dias num ambiente novo têm um curso juvenil, quer dizer, vigoroso e amplo. Isto se aplica a uns seis ou oito dias. Depois, na medida em que a pessoa se "aclimata", começa a sentir uma progressiva abreviação: quem se apega à vida, ou melhor, quem gostaria de fazê-lo, talvez note com horror como os dias voltam a tornar-se leves e começam a deslizar voando; e a última semana - de quatro, por exemplo - é de uma rapidez e fugacidade inquietante. Verdade é que a vitalização do nosso senso de tempo produz efeito além do interlúdio, fazendo-se valer ainda quando a pessoa já voltou à rotina; os primeiros dias que passamos em casa, depois da variação, se nos afiguram também novos, amplos e juvenis; mas esses são somente uns poucos, já que a gente se reacostuma mais rapidamente à rotina do que à sua suspensão. E o senso de tempo de quem já está fatigado, em virtude da idade, ou nunca o possui desenvolvido em alto grau - o que é sinal de pouca força vital -, volta a adormecer muito depressa, e já ao cabo de vinte e quatro horas é como se tal pessoa jamais se tivesse afastado do seu ambiente habitual, e a viagem não passasse do sonho de uma noite.





(A montanha mágica; tradução de Herbert Caro)





(Ilustração: Edward Hopper - people in the sun; 1960)



domingo, 16 de outubro de 2016

ESPLANADA, de Manuel António Pina










Naquele tempo falavas muito de perfeição

da prosa dos versos irregulares

onde cantam os sentimentos irregulares.

Envelhecemos todos, tu , eu e a discussão.



agora lês saramagos & coisas assim

e eu já não fico a ouvir-te como antigamente

olhando as tuas pernas que subiam lentamente

até um sítio escuro de mim.



O café agora é um banco, tu professora de liceu;

Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu.

Agora as tuas pernas são coisas inúteis, andantes,

e não caminhos por andar como dantes.





(Ilustração: Gabriel Mark Lipper)

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

MÁGICAS, de Humberto Werneck






Não posso dizer, como Rubem Braga, que ultimamente têm passado muitos anos. Faz muito tempo que eles vêm passando.

Mas você não se dá conta disso, do fato de estar nessa correia transportadora sem pausa que nos leva para diante, para o fim - até que um dia, olhando-se no espelho, vê um tio-avô ou tia-avó. Nem é preciso ter sobrinhos que tenham procriado. Ainda em choque, você faz uma operação aritmética e descobre ter agora a idade daqueles parentes que tão forte impressão lhe causavam, misto de espanto, ternura e comiseração, nas reuniões de família da sua meninice: como podia ser alguém tão velho?

Era assim que eu via o tio Henrique, marido da tia Alice. Mais que qualquer outro, e eu tinha vários, ele preenchia todos os requisitos de um genuíno tio-avô de antanho, não lhe faltando os suspensórios e os óculos cujas lentes, de tão grossas, me faziam dar outro sentido ao adjetivo "garrafal". Era neto do almirante Tamandaré, cujo busto adornava as notas de 1 cruzeiro. De quebra, cientista ilustre, formado sob as asas de Oswaldo Cruz, condição que o colocava muito acima dos mortais - que dirá deste sobrinho-neto, menino de pernas escanifradas (só minha mãe para sacar de seu baú verbal palavras como essa) que durante um tempo os pais depositavam na casa da rua Ceará nas manhãs de sábado, para que se tornasse também ele um cientista.

Tudo, no Dr. Henrique Marques Lisboa, era suavidade e acolhimento. Tinha a doçura que me parecia faltar a meu avô Hugo, seu concunhado, também médico, que não cheguei a conhecer mas de quem muito ouvi falar (inclusive no retrato duro porém verossímil que dele fez o ex-aluno Pedro Nava), um carioca que, como ele, tinha se mudado, moço, para Belo Horizonte, cidade ainda mais jovem os dois, ambos em busca dos bons ares de que necessitavam seus pulmões tuberculosos.

Com o tio Henrique aprendi (tudo anotado num caderninho) vários números - números, sim, pois muito coisa em seus ensinamentos científicos me me soava a mágica. O ovo cozido que consegue deslizar gargalo abaixo se dentro do vidro de boca estreita você joga um chumaço de algodão ardendo em fogo, tudo bem rápido, assim sem vírgulas, fazendo com que o calor dilate o vidro ao ponto de dar passagem ao ovo entalado.

Do outro lado da mesa, em momentos como esse, em que no circo a mágica se produz ante a plateia, eu levantava os olhos, mais que nunca arregalados, e percebia que também o tio Henrique tinha os dele assim, ainda que fosse apenas pelo exagero das lentes encastoadas na armação de ouro. Ao contrário do mágico, ele não fazia mesuras para seu diminuto público, mas concedia um sorriso em que se lia "está vendo?, dilatação dos corpos, não é interessante?".

Eu também sorria e, de mim para mim, exultava, meio cúmplice, minimizando o abismo de sete décadas a me separar do "colega". Colega, sim. Só não tinha certeza se me animaria ao ponto de adotar o figurino completo, que além do avental banco exigia, achava eu, sobrancelhas hirsutas e tufos de pelos a emergir das orelhas e narinas.

Lamento ter perdido o caderninho recheado de ciência, e mais que ele o sonho de virar cientista, cercado de pipetas e tubos de ensaio num laboratório. Com direito, certamente, a um jeito meio avoado, que nem o do tio Henrique. Já não me lembro para qual experiência ele precisou de uma cobra, mas não esqueço o dia em que a serpente teve a ideia de escapulir. Como não conseguisse encontrá-la, chamou a filha Nair (paixão lancinante do jovem Nava, que por ela se derramará em suas memórias) e lhe disse, olha, não vá alarmar sua mãe, mas a cobra sumiu. Quem se alarmou foi a filha, que por muitos dias revirou discretamente a casa, até mesmo os lençóis das camas, até que a fugitiva reaparecesse no quintal.

Um dia o tio e a tia bateram asas rumo ao Rio, e só voltei à casa da rua Ceará quando em seus fundos se instalou um clube, o Ginástico, cujo time de basquete eu ia ver jogar. A mim me tocaria assistir também, muito tempo depois, no cemitério carioca de São João Batista, à exumação do que fora o tio Henrique, falecido seis anos antes, para que o jazigo da família recebesse o tio Jorge, ouvindo dois coveiros a matraquear palpites para o Flamengo e Bahia daquela noite (deu 1 a 1). Não gostei da mágica que fez do mestre inesquecível aqueles ossos. Mas estava intacta, e ainda está, a minha adoração por ele.



(OESP, 18.5.2015)



(Ilustração: Cosmo Clark - circus cene)



segunda-feira, 10 de outubro de 2016

AUTO DE FÉ, de Manuela Amaral







Não me arrependo dos amores que tive

dos corpos de mulher por quem passei

a todos fui fiel

a todos eu amei

Não me arrependo dos dias e das noites

em que o meu corpo herói ganhou batalhas

A um palmo do umbigo eu fui primeira

a divina

a deusa

a verdadeira mulher - sem rival

Amei tantas mulheres de quem nem sei o nome

eu só me lembro apenas

da abraços

de pernas

de beijos

e orgasmos

E no amor que dei

e no amor que tive

eu fui toda mulher - fui vertical.

Eu fui mulher em espanto

fui mulher em espasmo

fui o canto proibido e solitário

Só tenho um itinerário Amor-Mulher.





(Ilustração: Gianni Strino)




sexta-feira, 7 de outubro de 2016

PETITE MORT, de Priscila Lira






As flores amarelas de medo daquele velhinho pornográfico estão por toda parte. Hoje, domingo ensolarado, uma delas acordou tremelicando sobre o meu peito. Desonrarei os compromissos, quebrarei amizades novas, pouparei o exercício de simpatia alheio, não sairei de casa. Além do mais, posso aproveitar o calor e lavar minhas calcinhas.

"É crua a vida. Alça de tripa e metal. / Nela despenco: pedra mórula ferida. / É crua e dura a vida. Como um naco de víbora". Será que a Hilda lavava suas calcinhas? Será que as estendia no varal da Casa do Sol? Ou, como eu, não gostava de expor assim o seu sexo e as secava atrás da geladeira?

Por todo lugar brotam as flores amarelas, hoje o mundo tremelica de medo, os ditadores, o povo, os democráticos, os ex-militantes, as mães de estudantes, o moço revistado com maconha no bolso, as mulheres com o rosto escaldado condenadas à feiura eterna, eu. Morreremos todos, medrosos. Mas preciso lavar as calcinhas.

Sonhei que havia um espelho na cozinha, eu parava em frente a ele e me observava, tirava a camisa e o reflexo me dava um tesão imenso. Deslizava a mão sobre os seios e descia até a barriga, os olhos fixos no meu outro. Acordei. Uma pena, a excitação do sonho perdeu-se junto com ele.

Fumarei um cigarro, colocarei uma música e vamos às calcinhas. Também não gosto de lavá-las na área de serviço do prédio, uso a pia da cozinha mesmo, podia ser a do banheiro, mas a janela que fica contra a torneira é muito agradável. Gosto de pensar que as tantas janelas vizinhas estão logo ali, de frente para esse quadrado, a me olhar, de costas, esfregando minhas calcinhas. E saber que, apesar disso, ninguém está vendo.

Eu cheiro cada fundo antes de lavar, para ter certeza que meus fluidos continuam transparentes e inodoros, ou com o odor de sempre. Imagine um voyeur assistindo isso tudo e ficando louco. Essa branca de bolinhas pretas eu usei no dia em que esqueci de descer no ponto de ônibus do trabalho, a rosa, não lembro, a cuequinha preta foi naquele dia que encontrei o pessoal, ela fica bem com a minha saia longa, aperta a barriga e meu corpo parece mais bonito.

"Tinta, lavo-te os antebraços. Vida. Lavo-me"

Essa é a melhor parte, o momento em que eu coloco as mãos dentro do vestido, seguro em cada ponta do meu quadril e deslizo a calcinha que uso. Sinto-a passando pelas coxas, até ficar cambaleante e eu apará-la no pé. Ah, um voyeur assistindo isso tudo. Assistem, todas essas janelas me veem tirando a calcinha e ficam boquiabertas, fazendo promessas para que eu também lave o vestido.

"No estreito-pouco / Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida"

Calcinhas escondidas, uma por uma, no varal elétrico. Meio domingo para ainda existir. Podia continuar a brincadeira do sonho, não mais com o espelho, com a janela do quarto. Todos esses quadrados, preparem-se, o vestido cairá! A cama de frente para o sol, as pernas abertas para todas essas pessoas, o meu corpo despido para mim. Todos esses sinais, esse par de seios que contrasta tanto com os meus braços bronzeados, o pequeno relevo que se forma nas costelas, o umbigo, o quadril estreito, as coxas com uma leve penugem que reflete a luz, as canelas ásperas, quando tomar banho vou depilar, tudo isso é meu. No sonho, eu tinha razão. Vocês, medrosos, olhem para mim, esqueçam o câncer de próstata e as doenças venéreas, esqueçam as crianças mortas da Síria, esqueçam Fukushima, eu estou aqui, de pernas abertas, o vestido caiu, paguem suas promessas.

"A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos". A Hilda ia gostar de me assistir.

Meu dedo andando em círculos percorrendo os pelos, desce, desce, molha-se. Desculpem-me, não há narrativa aqui, apenas hidromúrias rebeldes, solitárias, quebrando o protocolo. O meu corpo convulsiona na cama, os dedos encharcam, "a vida é líquida". Fecharei as cortinas, uma salva de palmas antes e voltem aos seus afazeres dominicais ensolarados. Preciso chorar o medo do mundo.








(Ilustração: Antonio Tordesillas - Morning Glory)



terça-feira, 4 de outubro de 2016

PÂNTANO, de Mariana Ianelli







Haverá uma noite

No fundo desta lama

Para tudo o que foi teu :

O caminho de partida,

O horizonte das bandeiras,

O extraordinário ano de 1980.

Entre guelras e barbatanas,

No ventre de uma água sonolenta,

O castelo de tua memória se acende.

Ressurge um alto portão de madeira,

De longe brilha a pesada maçaneta,

Cresce para baixo o tronco do velho castanheiro.

No escuro passeia o teu amigo inexistente,

Deitam-se juntas as tuas amantes insatisfeitas,

Do topo de uma escada o teu filho te acena.

Os muros contornados e logo desconhecidos,

As alamedas visitadas e já desaparecidas

Formarão ali tua cidade secreta e sem fronteiras.

O retorno para casa como se para um cativeiro,

Toda vacuidade do suplício e do desejo,

Um gemido de orgasmo reboando no silêncio :

Tudo o que foi teu renascerá

No pântano de uma noite derradeira

Para além do tempo do esquecimento.





(Ilustração:Jean-Marie Poumeyrol  - Les arches)



sábado, 1 de outubro de 2016

O LIMPADOR DE CHAMINÉS, de Isaac Bashevis Singer






Há pancadas e pancadas. Uma pancada na cabeça não é brincadeira. O cérebro e um órgão delicado, se não fosse assim, por que a alma estaria localizada no cérebro? Por que não no fígado ou, se me perdoam, nas tripas? Pode-se ver a alma nos olhos. Os olhos são janelinhas pelas quais a alma espia.

Tínhamos um limpador de chaminés na cidade, cujo apelido era Yash Preto. Todos os limpadores de chaminé são pretos - que mais podem ser? mas Yash parecia ter nascido preto. Seu cabelo era eriçado e negro como o piche. Os olhos eram negros e a pele nunca estava limpa da fuligem. Só os dentes eram brancos. O pai tinha sido limpador de chaminés da cidade e Yash herdara o oficio. Já era um homem adulto, mas continuava solteiro e morava com a velha mãe, Maciechowa.

Vinha a nossa casa uma vez por mês, descalço, e a cada passo deixava uma marca negra no chão. Minha mãe, que ela descanse em paz, corria para recebê-lo e não deixá-lo ir além. Era pago pela cidade, mas as mulheres lhe davam um groschen(*) ou uma fatia de pão quando acabava o serviço. Era o costume. As crianças tinham terror dele, embora nunca fizesse mal a ninguém. E enquanto foi limpador de chaminés, as chaminés nunca pegaram fogo. Aos domingos, como todos os cristãos, ele se lavava e ia a igreja com a mãe. Mas, lavado, parecia ainda mais negro do que antes; talvez por isso nunca encontrasse esposa.

Uma segunda-feira - lembro-me como se fosse ontem -, Feitel, o aguadeiro, entrou e nos contou que Yash caíra do telhado de Tevye Boruch. Tevye Boruch era dono de um sobrado na praça do mercado. Todos sentiram pena do limpador de chaminés. Yash sempre trepara pelos telhados com a agilidade de um gato, mas se um homem está predestinado a sofrer um acidente, não há como evitá-lo. E tinha que ser no prédio mais alto da cidade. Feitel disse que Yash batera com a cabeça, mas não quebrara nenhum membro. Alguém o levara para casa. Ele morava nos arredores da cidade, próximo às matas, num casebre decrépito.

Durante algum tempo ninguém soube notícias de Yash. Mas que importava um limpador de chaminés? Se não podia mais trabalhar, a cidade contratava outro. Então um dia Feitel voltou, com dois baldes de água no balancim e disse a minha mãe:

– Feige Braine, soube das notícias? Yash, o limpador de chaminés agora lê pensamentos.

Minha mãe riu e cuspiu.

– Que brincadeira é essa? - perguntou.

– Não é brincadeira, Feige Braine. Não é brincadeira mesmo. Ele está deitado no catre com a cabeça enfaixada adivinhando os segredos de todo mundo.

– Você ficou maluco? – ralhou minha mãe.

Não tardou e a cidade inteira estava comentando. A pancada na cabeça de Yash afrouxara algum parafuso em seu cérebro e ele se tornara vidente.

Tínhamos um professor na cidade, Nochem Mecheles, e ele chamava Yash de adivinho. Quem já ouvira falar numa coisa dessas? Se uma pancada na cabeça podia tornar um homem vidente, deveria haver centenas deles em cada cidade. Mas as pessoas tinham ido lá e presenciado com os próprios olhos. Um homem podia pegar um punhado de moedas no bolso e perguntar: “Yash, o que tenho na mão?”. E Yash respondia: “Tantas moedas de três groschen, tantas de quatro e de seis copeques”. Contavam as moedas e estava tudo certinho até o ultimo groschen. Outro homem perguntava: “Que foi que fiz na semana passada a essa hora em Lublin?”. E Yash dizia que fora a uma taverna com dois homens. E os descrevia como se estivessem diante dele.

Quando o médico e as autoridades da cidade ouviram a história, foram correndo ver. O casebre de Maciechowa era tão minúsculo e tão baixo que os chapéus dos visitantes tocavam no teto. Começaram a interrogá-lo e ele respondia tudo certo. O padre se alarmou; os camponeses estavam dizendo que Yash era santo. Um pouquinho mais, e principiariam a sair com ele em peregrinação como se fosse um ícone. Mas o médico dizia que não deviam removê-lo. Além do mais, ninguém nunca vira Yash na igreja exceto aos domingos.

Bem, lá estava ele deitado na enxerga, falando como uma pessoa normal - comendo, bebendo, brincando com o cachorro que a mãe criava. Mas sabia tudo: o que as pessoas traziam nos bolsos do casaco e nos bolsos das calças; onde esse tinha escondido o dinheiro; quanto aquele gastara em bebidas anteontem.

Quando a mãe viu o afluxo de visitantes, começou a cobrar um copeque de entrada por pessoa. E elas pagavam. O médico escreveu uma carta para Lublin. O prefeito da cidade mandou - como chamam agora? - um relatório, e vieram personagens em altos postos de Zamosc e Lublin. Diziam que o próprio governador enviara um representante. O prefeito se assustou e mandou limpar todas as ruas. A praça do mercado ficou tão limpa que não se via nenhum graveto ou palha no chão. A prefeitura foi rapidamente caiada. E tudo por causa de quem? De Yash, o limpador de chaminés. A casa de Gitel, o estalajadeiro, estava num alvoroço - quem alguma vez sonhara com hospedes tão importantes?

A comitiva inteira partiu para ver Yash em seu casebre. Interrogaram-no, e as coisas que disse encheram de medo os corações dos funcionários. Quem sabe as culpas que pessoas assim carregam? Todas recebiam suborno, e ele lhes disse. Do que entende um limpador de chaminés? O visitante mais ilustre - esqueço seu nome - insistiu que Yash estava doido e devia ser mandado para um hospício. Mas o nosso médico argumentou que o paciente não podia viajar, isso o mataria.

Corria o boato de que o médico e o representante do governador tinham trocado palavras ásperas e quase chegaram às vias de fato. Mas o nosso médico também era funcionário público; era o médico da municipalidade e fazia parte da junta de alistamento. Era um homem inflexível - ninguém conseguia comprá-lo, por isso não temia a clarividência de Yash. Seja como for, o médico venceu. Mas depois o representante informou que Yash estava louco, e deve ter se queixado do médico, porque não tardou e ele foi transferido para outro distrito.

Nesse meio tempo, a cabeça de Yash sarou e ele voltou a limpar chaminés. Mas conservou os seus estranhos poderes. Entrava numa casa para receber o seu groschen e a mulher lhe perguntava: “Yash, o que esta guardado na gaveta do lado esquerdo?”, ou: “O que tenho na mão?”, ou: “O que ceei ontem à noite?”. E ele dizia tudo. Perguntavam:

“Yash, como é que você sabe disso?” Ele dava de ombros: “Sei. Foi a pancada na cabeça”. E apontava para a têmpora. Poderia ter sido levado para as grandes cidades e as pessoas comprariam entradas para vê-lo, mas quem se preocupava com essas coisas.

Havia diversos ladrões na cidade. Roubavam roupa dos sótãos e tudo o mais em que pudessem pôr as mãos. Agora já não podiam roubar. A vítima procurava Yash e ele dizia o nome do ladrão e o lugar onde o produto do roubo estava escondido. Os camponeses das aldeias próximas ouviram falar de Yash e sempre que um cavalo era roubado, o dono vinha vê-lo para descobrir onde se encontrava. Muitos ladrões já estavam na cadeia. Os ladrões ficaram de olho nele e diziam abertamente que era um homem marcado. Mas Yash sabia de seus planos com antecedência. Foram espancá-lo certa noite, mas ele se escondera no celeiro do vizinho. Atiravam pedras, mas ele pulava de lado ou se abaixava bem antes de a pedra passar voando.

As pessoas esqueciam onde punham as coisas - dinheiro, joias - e Yash sempre lhes dizia onde achá-las. Nem parava para pensar. Se uma criança se perdia, a mãe corria para Yash, e ele a levava até a criança. Os ladrões começaram a dizer que ele próprio sequestrara a criança, mas ninguém lhes dava credito. Ele nem mesmo recebia pela consulta. A mãe exigia dinheiro, mas ele era um bobalhão. Nunca aprendera muito bem o valor de uma moeda.

Tínhamos um rabino na cidade, Reb Arele. Viera de uma cidade grande. No Grande Sabá antes da Páscoa ele pregou na sinagoga. E qual foi o tema? Yash, o limpador de chaminés. Os céticos, disse, negam que Moises seja profeta. Dizem que tudo deve ser explicado pela razão. No entanto, como é que Yash, o limpador de chaminés, sabe que Itte Chaye, a padeira, deixou cair a aliança no poço? E se Yash, o limpador de chaminés, sabe das coisas ocultas, como alguém pode duvidar dos poderes dos santos? Havia alguns hereges na cidade, mas nem eles tinham resposta.

Nesse ínterim, as noticias sobre Yash tinham chegado a Varsóvia, e outras cidades. Os jornais escreveram sobre ele, e de Varsóvia enviaram uma comissão. Mais uma vez o prefeito despachou o pregoeiro da cidade para avisar que as casas e quintais deviam ser limpos. A praça do mercado foi novamente varrida ate ficar tinindo. Depois do Sukkoth(**) vieram as chuvas. Só tínhamos uma rua calçada - a da igreja. Tábuas e toras foram estendidas por toda a parte para que as pessoas importantes de Varsóvia não precisassem andar na lama. Gitel, o estalajadeiro, preparou camas e acomodações. A cidade inteira se alvoroçou. Yash era o único que não ligava. Continuava a correr as casas e a limpar chaminés, como de costume. Nem tinha o bom senso de recear os funcionários de Varsóvia.

Mas escutem só: um dia antes da comissão chegar, houve uma nevada e uma súbita geada. Na noite anterior, viram faíscas e até línguas de fogo voando da chaminé de Chaim, o padeiro. Chaim, preocupado que irrompesse um incêndio, mandou buscar Yash, o limpador de chaminés. Yash veio com a vassoura e limpou a chaminé. O forno de um padeiro permanece aceso muitas horas e uma grande quantidade de fuligem se prende à chaminé. Quando Yash estava descendo, escorregou e tornou a cair. Bateu mais uma vez com a cabeça, mas não com tanta força quanto da primeira vez. Nem saiu sangue. Ele se levantou e foi para casa.

Meus queridos amigos, no dia seguinte, quando a comissão chegou e começou a interrogar Yash, ele não sabia nada. A primeira pancada abrira alguma coisa, e a segunda a fechara. Os figurões perguntaram quanto dinheiro traziam, o que fizeram no dia anterior, o que comeram uma semana atrás àquela hora, mas Yash apenas sorria como um tolo e respondia: “Não sei”.

Os funcionários se enfureceram. Repreenderam o chefe de polícia e o novo médico. Exigiram saber por que tinham vindo de tão longe para ver aquele parvo, aquele campônio que não passava de um limpador de chaminés comum.

O chefe de polícia e os outros juraram que Yash sabia de tudo há um ou dois dias, mas os visitantes não quiseram escutar. Alguém lhes disse que Yash caíra de um telhado e tornara a bater com a cabeça, vocês sabem como as pessoas são: só acreditam no que veem. O chefe de polícia se aproximou de Yash e começou a bater com os punhos na cabeça dele. Talvez o parafuso se soltasse outra vez. Mas, uma vez que a portinhola no cérebro se fecha, permanece fechada.

A comissão regressou a Varsóvia e negou a historia do princípio ao fim. Yash continuou a limpar chaminés mais um ou dois anos. Então irrompeu uma epidemia na cidade e ele morreu.

O cérebro é cheio de todo tipo de portinholas e câmaras. Às vezes uma pancada na cabeça desarruma tudo. Ainda assim, tudo isso tem relação com a alma. Sem a alma, a cabeça seria tão sábia quanto o pé.



(*) Moeda de pouco valor.

(**) Festa judaica (Festa dos Tabernáculos).



(Tradução de Mirra Ginsburg)



(Ilustração: Iberê Camargo)