quinta-feira, 28 de abril de 2022

EU, PÁSSARO PRETO, de Adão Ventura

 




eu,

pássaro preto,

cicatrizo

queimaduras de ferro em brasa,

fecho o corpo de escravo fugido

e

monto guarda

na porta dos quilombos.



(Cor da pele, 1988)



(Ilustração: Edouard Hildebrand - Landscape with Black People)



segunda-feira, 25 de abril de 2022

O SILÊNCIO É UMA FORÇA, de Marcel Proust




“Já se disse que o silêncio era uma força; num sentido completamente diferente, ele é uma força, e terrível, à disposição daqueles que são amados. Uma força que aumenta a ansiedade de quem espera. Nada convida tanto alguém a aproximar-se de um ser como o que dele o separa, e que barreira existe mais intransponível que o silêncio? Já se disse também que o silêncio era um suplício, e capaz de enlouquecer aquele que nas prisões a ele estava obrigado. Mas que suplício - maior que o de guardar silêncio - é o de sofrer o silêncio de quem se ama! Robert dizia de si para si: «Que estará ela a fazer para estar assim calada? Estará por certo a enganar-me com outros...» Dizia ainda: «Que fiz para ela estar assim calada? Provavelmente odeia-me, e para sempre.» E acusava-se a si mesmo. Assim, com efeito, o silêncio o punha louco de ciúme e de remorso. De resto, mais cruel que o das prisões, tal silêncio é ele mesmo uma prisão. Uma clausura imaterial, sem dúvida, mas impenetrável, aquela fatia interposta de atmosfera vazia, mas que os raios visuais do abandonado não podem atravessar. Haverá luz mais terrível que o silêncio, que não nos mostra uma ausente, mas mil, e cada uma delas entregando-se a alguma outra traição? Às vezes, numa brusca distensão, Robert acreditava que esse silêncio iria cessar daí a pouco, que a esperada carta iria chegar. Via-a a chegar, espiava cada ruído, a sua sede estava já saciada, murmurava: «A carta! A carta!» Depois de ter assim entrevisto um oásis imaginário de ternura tornava a dar consigo patinhando no deserto real do silêncio sem fim.

Sofria adiantadamente todas as dores, sem esquecer nenhuma, de um rompimento que em outras ocasiões julgava poder evitar, como aquelas pessoas que liquidam todos os seus assuntos na mira de uma expatriação que não irá efetuar-se, e cujo pensamento, que já não sabe onde deverá situar-se no dia seguinte se agita momentaneamente, despegado delas, semelhante a um coração que se arranca a um doente e que continua a bater, separado do resto do corpo. Em todo o caso, esta esperança de que a amante regressaria dava-lhe coragem para perseverar no rompimento, tal como a crença de poder regressar vivo do combate ajuda a enfrentar a morte. E como o hábito é, de todas as plantas humanas, aquela que menos necessidade tem para viver de um solo rico de alimento, e a primeira a aparecer no aparentemente mais desolado dos rochedos, talvez começando por praticar o rompimento a fingir acabasse por se lhe acostumar sinceramente. Mas a incerteza alimentava nele um estado que, ligado à recordação daquela mulher, se assemelhava ao amor. Forçava-se contudo a não lhe escrever (pensando acaso que o tormento era menos cruel de viver sem a amante que com ela em certas condições, ou que, depois da maneira como se haviam separado, esperar as suas desculpas era necessário para que ela conservasse o que acreditava que ela sentia por ele, senão de amor, pelo menos de estima e respeito). “



(Em busca do tempo perdido, volume III: O lado de Guermantes; tradução de Pedro Tamen)



(Ilustração: desenho de Jacques Falce - Proust contemplant la lagune à Venise)



sexta-feira, 22 de abril de 2022

CHOPIN / CHOPIN, de Marcel Proust

 




Chopin, mer de soupirs, de larmes, de sanglots

Qu’un vol de papillons sans se poser traverse

Jouant sur la tristesse ou dansant sur les flots.

Rêve, aime, souffre, crie, apaise, charme ou berce,

Toujours tu fais courir entre chaque douleur

L’oubli vertigineux et doux de ton caprice

Comme les papillons volent de fleur en fleur;

De ton chagrin alors ta joie est la complice:

L’ardeur du tourbillon accroit la soif des pleurs.

De la lune et des eaux pale et doux camarade,

Prince du désespoir ou grand seigneur trahi,

Tu t’exaltes encore, plus beau d’être pâli,

Du soleil inondant ta chambre de malade

Qui pleure a lui sourire et souffre de le voir…

Sourire du regret et larmes de l’Espoir!



Tradução de Fernando Py:



Chopin, mar de suspiros, lágrimas, soluços

Que um voo de borboletas cruza sem pousar

Brincando com a tristeza ou dançando sobre as ondas.

Ama, sonha, sofre, grita, acalma, encanta ou embala,

Fazes sempre escorrer entre cada dor

O olvido vertiginoso e doce do teu capricho

Como as borboletas voam de flor em flor;

E então de tua mágoa é cúmplice a alegria:

O ardor do turbilhão aumenta a sede de prantos.

Pálido, suave companheiro da lua e das águas,

Príncipe do desespero ou fidalgo traído,

Tu te exaltas ainda, mais belo em seres pálido,

Com o sol que inunda o teu quarto de doente

Que lhe chora a sorrir e sofre de o ver

Sorrir de pena e das lágrimas da Esperança!



Tradução de Carlos Felipe Moisés:




Chopin, mar de soluços, lágrimas, suspiros,

Que um voo de ágeis borboletas atravessa,

A brincar com a tristeza, a apascentar seus giros.

Seduz, aquieta, sofre, agita, grita, apressa,

Ama ou embala, e faz rolar em meio às dores

O doce olvido do capricho teu, fugaz,

Como as borboletas embriagadas de flores:

Tua alegria é cúmplice da dor tenaz,

O alado torvelinho amaina os dissabores.

Das águas e da lua meigo confidente,

Príncipe da aflição ou grão-senhor traído,

Quanto mais pálido mais belo, entretido

Com o sol a inundar teu quarto de doente,

Tu te exaltas com a luz, a bem-aventurança

Da luz que chora o seu sorriso de Esperança.



(Les Plaisirs et les Jours, Portraits de peintres et de musiciens – 1896)



(Ilustração: Hendrik Siemiradzi - Chopin playing the piano in prince Radziwills salon)


terça-feira, 19 de abril de 2022

UM SUSTO NA PACIFIC CREST TRAIL (*), de Cheryl Strayed

 


Caminhei por uma floresta densa durante toda a tarde e em determinado momento, depois de uma curva, encontrei um trio de alces enormes, que correu para dentro da mata com um barulhento tropel de cascos. Naquela noite, apenas momentos depois de eu ter parado para montar acampamento perto de um lago ao lado da trilha, dois caçadores com arco e flecha apareceram, seguindo pela trilha no sentido sul.

— Você tem um pouco d’água? — um deles desabafou imediatamente. — Não podemos beber a água do lago, podemos? — perguntou o outro, o desespero nítido em seu rosto.

Ambos deviam ter por volta de 35 anos. Um tinha cabelos crespos da cor da areia, e uma pequena barriga; o outro era ruivo, alto e corpulento o bastante para ser um linebacker. Os dois usavam jeans com enormes facas da marca Buck presas ao cintos e enormes mochilas com arco e flechas pendurados em sua diagonal.

— Vocês podem beber a água do lago, mas precisam filtrá-la antes — eu disse.

— Não temos filtro — disse o homem de cabelo cor de areia, tirando a mochila e colocando-a perto de uma pedra que ficava no meio de uma pequena clareira entre o lago e a trilha, onde eu planejava acampar. Eu tinha acabado de tirar a mochila quando eles apareceram.

— Podem usar o meu, se quiserem — eu disse. Abri o bolso da Monstra, tirei o purificador de água e o ofereci ao homem de cabelo cor de areia, que o pegou e foi até a margem imunda do lago e se abaixou.

— Como se usa isso? — ele me perguntou.

Mostrei a ele como colocar o tubo de entrada na água com a boia e como bombear a alavanca contra o cartucho.

— Você vai precisar de sua garrafa de água — acrescentei, mas ele e o amigo ruivo olharam um para o outro com arrependimento e me disseram que não tinham uma. Tinham subido apenas para passar o dia caçando. A caminhonete deles estava estacionada em uma estrada na floresta a cerca de 5 quilômetros dali, descendo uma trilha alternativa que eu tinha acabado de cruzar. Acharam que já teriam chegado a ela a essa altura.

— Vocês passaram o dia sem beber água? — perguntei.

— Trouxemos Pepsi — o homem de cabelo cor de areia respondeu. —

Cada um trouxe um engradado com seis.

— Vamos descer na direção de nossa caminhonete depois, então precisamos apenas de água suficiente para tomar outro gole, mas não estamos morrendo de sede — o ruivo disse.

— Aqui — eu disse, indo até a mochila para pegar a água que ainda tinha; cerca de um quarto de uma das minhas duas garrafas. Ofereci a garrafa para o ruivo, ele deu um longo gole e a passou para o amigo, que bebeu o resto. Fiquei preocupada com eles, mas estava mais preocupada com eles ali comigo. Estava exausta. Ansiava por tirar as botas, trocar a roupa suada, armar a barraca e preparar o jantar para que pudesse relaxar lendo The Ten Thousand Things. Além disso, fiquei com uma sensação estranha desses homens com suas Pepsis, seus arcos, suas grandes facas e a maneira como surgiram de repente. Alguma coisa que me fez hesitar do mesmo jeito que me senti na primeira semana na trilha, quando estava sentada na caminhonete de Frank e achei que talvez ele quisesse me fazer mal, mas em vez disso ele tirou a bala de alcaçuz. Deixei que a minha mente ficasse naquela bala de alcaçuz.

— Temos as latas vazias das Pepsis — disse o ruivo. — Podemos bombear água para sua garrafa e depois colocar dentro de duas delas.

O homem com cabelo cor de areia se abaixou na beira do lago com minha garrafa de água vazia e o purificador; o ruivo tirou a mochila e procurou dentro dela duas latas vazias de Pepsi. Fiquei olhando os dois de braços cruzados, cada vez mais desconfiada. As partes de trás molhadas de suor do short, da camiseta e do sutiã agora estavam geladas contra a minha pele.

— É realmente difícil bombear — o homem de cabelo cor de areia disse depois de um tempo.

— É preciso usar um pouco de força — eu disse. — É assim que funciona o filtro.

— Eu não sei — ele respondeu. — Não está vindo nada.

Fui até ele e vi que a boia estava toda para cima perto do cartucho e que a abertura no final do tubo de entrada tinha afundado na sujeira na parte mais rasa do lago. Peguei o purificador dele, coloquei o tubo na água limpa e tentei bombear. Estava completamente travado, emperrado com a sujeira compactada.

— Você não devia ter deixado o tubo entrar no lodo assim — eu disse. — Deveria ter mantido na água.

— Merda — ele disse sem pedir desculpas.

— O que vamos fazer? — o amigo perguntou. — Tenho que conseguir alguma coisa pra beber.

Fui até a minha mochila, peguei o kit de primeiros socorros e puxei o frasco de comprimidos de iodo que carregava. Eu não o usava desde que estive no reservatório infestado de sapos em Hat Creek Rim e quase fiquei fora de mim por causa de desidratação.

— Podemos usar isso — falei, fechando a cara ao perceber que beberia água tratada com iodo até conseguir consertar o purificador, se é que tinha conserto.

— O que é isso? — perguntou o homem de cabelo cor de areia. — Iodo. Você coloca na água e espera trinta minutos, depois a água está segura para beber. — Fui até o lago e afundei as duas garrafas no ponto com a aparência mais clara que pude encontrar e coloquei o iodo em cada uma delas, os homens fizeram o mesmo com as latas de Pepsi e também coloquei uma pílula em cada uma.

— Ok — eu disse, olhando para o relógio. — A água estará boa para tomar às sete e dez. — Torci que com isso eles fossem embora, mas apenas se sentaram e se acomodaram.

— Então, o que você está fazendo aqui sozinha? — perguntou o homem de cabelo cor de areia.

— Estou fazendo a Pacific Crest Trail — eu disse e imediatamente desejei não ter dito. Não gostava da maneira que ele estava me olhando, avaliando descaradamente meu corpo.

— Sozinha?

— Sim — disse com relutância, igualmente receosa de contar a verdade e temerosa de inventar uma mentira que só me deixaria mais irritada do que subitamente fiquei.

— Não dá para acreditar que uma garota como você estaria sozinha

aqui em cima. Você é bonita demais para estar sozinha aqui, se quer saber. Há quanto tempo está viajando? — perguntou.

— Há bastante tempo — respondi.

— Não acredito que uma coisinha jovem como ela possa estar aqui sozinha, você acredita? — falou para o amigo ruivo como se eu não estivesse

ali.

— Não — eu disse antes que o ruivo pudesse responder. — Qualquer pessoa pode fazer isso. Quer dizer, é só...

— Eu não deixaria você vir se fosse minha namorada, de certeza — o ruivo disse.

— Ela tem um corpo bem legal, não tem? — o homem de cabelo cor de areia disse. — Saudável, com curvas suaves. Do jeito que eu gosto. Emiti um som complacente, uma espécie de meia risada, apesar de a garganta ter fechado subitamente de medo.

— Bem, foi um prazer conhecer vocês, caras — falei, indo na direção da Monstra. — Estou indo um pouco mais à frente — menti —, então, é melhor ir andando.

— Estamos indo também. Não queremos esperar escurecer — disse o ruivo, já pegando a mochila; o homem de cabelo cor de areia também pegou a dele. Eu os observei enquanto fingia estar me preparando para partir, embora não quisesse ter que partir. Estava cansada e com sede, com fome e com frio. Estava quase anoitecendo e tinha escolhido acampar nesse lago porque o guia, que apenas descrevia superficialmente este trecho da trilha, já que não era de fato a PCT, sugeriu que este era o último lugar em um bom trecho onde era possível armar uma barraca.

Quando partiram, fiquei parada por um tempo, deixando que o nó na garganta se desfizesse. Eu estava bem. Estava a salvo. Estava sendo meio boba. Eles foram insolentes, sexistas e destruíram meu purificador de água, mas não fizeram nada comigo. Não queriam me machucar. Alguns caras apenas não sabem como agir de outra forma. Tirei as coisas da mochila, enchi a panela com a água do lago, acendi o fogareiro e coloquei a água para ferver. Tirei a roupa suada, coloquei a calça comprida vermelha e a camiseta de lã de manga comprida. Estendi a lona, e estava sacudindo a barraca para fora do saco quando o homem de cabelo cor de areia reapareceu. Ao vê-lo, eu sabia que tudo o que tinha sentido antes estava certo. Que eu tinha razão para ter medo.

Que ele tinha voltado para me pegar.

— O que está acontecendo? — perguntei em um tom falsamente relaxado, embora a visão dele sem o amigo me aterrorizasse. Era como se eu tivesse finalmente esbarrado com um puma e, contra todos os instintos, lembrasse que não devia correr. Não estimulá-lo com movimentos rápidos, nem antagonizá-lo com minha raiva, nem incentivá-lo com meu medo.

— Pensei que estivesse seguindo em frente — ele disse.

— Mudei de ideia — falei.

— Você tentou nos enganar.

— Não, não tentei. Apenas mudei de...

— Você mudou de roupa também — disse sugestivamente, e suas palavras se expandiram em meu estômago como uma rajada de balas. Meu corpo inteiro se arrepiou com a noção de que quando tirei as roupas ele estava por perto, me olhando.

— Gosto de sua calça — ele disse com um leve sorriso, tirando a mochila e colocando-a no chão. — Ou legging, se é assim que é chamada. 

— Não sei do que você está falando — falei de modo entorpecido, embora mal pudesse escutar minhas próprias palavras por causa do que pareceu ser o ressoar de um grande sino na minha cabeça, que era a percepção de que toda a caminhada na PCT pudesse dar nisso. De que, por mais durona, forte ou corajosa que eu tenha sido, por mais confortável que tenha vindo a me sentir por estar sozinha, também tive sorte, e que se minha sorte tivesse acabado seria como se nada antes disso tivesse existido, que essa única noite aniquilaria todos aqueles dias corajosos.

— Estou falando sobre gostar de suas calças — o homem disse com um toque de irritação. — Ficam bem em você. Mostram seus quadris e suas pernas.

— Por favor, não diga isso — eu disse do modo mais firme que pude.

— O quê? Estou te elogiando! Um cara não pode mais elogiar uma garota? Você devia se sentir lisonjeada.

— Obrigada — disse em uma tentativa de acalmá-lo, me odiando por isso. Minha mente se voltou para os Três Bonitões, que talvez ainda nem tivessem voltado à trilha. Depois ela procurou o apito mais barulhento do mundo que ninguém a não ser o ruivo poderia ouvir. Foi para o canivete suíço, longe demais no bolso superior esquerdo da mochila. Buscou a água ainda-não-fervente na panela sem cabo no fogareiro. E então aterrissou nas flechas que despontavam sobre a mochila do homem de cabelo cor de areia. Eu podia sentir a linha invisível entre mim e aquelas flechas, como se fosse um fio de alta tensão. Se ele tentasse fazer alguma coisa comigo, eu pegaria uma daquelas flechas e enfiaria em sua garganta.

— Acho melhor você ir embora — eu disse calmamente. — Vai ficar escuro logo. — Cruzei os braços no peito, completamente consciente do fato de que não estava usando sutiã.

— É um país livre — ele disse. — Vou quando estiver pronto. Eu tenho o direito, você sabe.

Ele pegou a lata de Pepsi e suavemente balançou a água lá dentro. — Que droga você está fazendo? — uma voz masculina chamou, e um momento depois o ruivo apareceu. — Tive que caminhar tudo de volta pra te encontrar. Achei que tinha se perdido. — Ele me olhou de forma acusadora, como se eu tivesse culpa, como se eu tivesse conspirado com o homem de cabelo cor de areia para fazê-lo ficar. — Temos que ir agora se quisermos chegar à caminhonete antes de escurecer.

— Se cuida — o homem de cabelo cor de areia me disse, pegando a mochila.

— Tchau — falei bem tranquila, não querendo responder nem irritá-lo por não responder.

— Ei. São sete e dez — ele disse. — É seguro beber a água agora. — Ele levantou a lata de Pepsi em minha direção e fez um brinde. — A uma garota sozinha na floresta — ele disse, dando um gole e depois se virando para seguir o amigo pela trilha.

Fiquei parada por um tempo, do mesmo jeito que tinha ficado na primeira vez que eles saíram, deixando que todos os nós de medo se desfizessem. Não aconteceu nada, disse a mim mesma. Estou perfeitamente bem. Foi apenas um homem repulsivo, assustador e nada legal, e agora ele foi embora.

Mas então eu coloquei a barraca de volta dentro da mochila, desliguei o fogareiro, joguei a água quase fervendo no mato e mergulhei a panela no lago para esfriar. Bebi um grande gole da água com iodo e enfiei a garrafa de água e a camiseta úmida, o sutiã e o short na mochila. Levantei a Monstra, afivelei-a, voltei à trilha e comecei a caminhar na direção norte em meio à luz que esmaecia. Caminhei, caminhei, minha mente entrou no automático, que era o esvaziamento de qualquer coisa a não ser do movimento à frente, e caminhei até que andar se tornasse insuportável, até achar que não conseguiria dar nem mais um passo.

E então eu corri.



(Livre – a jornada de uma mulher em busca do recomeço; tradução de Débora Chaves)



(*) Pacific Crest Trail – PCT - e é uma das trilhas mais longas, bonitas e desafiadoras dos EUA. Percorre uma distância de 4.265 quilômetros. Ela começa na fronteira entre os EUA e o México e segue até o Canadá, passando pelos estados da Califórnia, Oregon e Washington, quase sempre distante da civilização. Para realizar a trilha completa são necessários, ao menos, três meses.



(Ilustração: Mount Rainier National Park - Foto de Samantha Levang)


sábado, 16 de abril de 2022

O PORCOSSAURO, de Bruno Brum

 



O Porcossauro não está contente.

Precisa de novos amigos

e um novo lar.

Precisa se esforçar mais

e entender que nada na vida vem fácil.

O Porcossauro caminha pela cidade observando os outros porcossauros

aparentemente mais felizes do que ele.

Sabe que é hora de mudança.

Mas mudar o quê? pergunta-se, angustiado.

Ninguém poderia estar mais triste.

Nem mesmo os porcossauros que não têm onde morar e o que comer.

Tudo depende de você, dizem os porcossauros felizes.

E isso só piora as coisas.

O Porcossauro pensa na Porcossaura e no Porcossauro Jr.

A angústia aumenta.

Não há para onde ir, conclui, atravessando a rua.

Não há por onde continuar.





Mas deve haver um jeito.

Deve haver um jeito, resmunga.

Ou não me chamo Porcossauro.



(Tudo pronto para o fim do mundo)



(Ilustração: escultura de Liu Xue)



quarta-feira, 13 de abril de 2022

BRASILEIROS E ESTRANGEIRAS, de Antônio Torres (*)




Segundo se affirma, ha na nova reforma do Ministerio do Exterior uma disposição hostil ao casamento entre diplomatas brasileiros e mulheres estrangeiras. Por esse dispositivo nao ficam terminantemente prohibidos taes enlaces, mas qualquer diplomata brasileiro, que desejar — como diria o sr. Ruy Barbosa — fazer maridança com mulher forasteira, tera de solicitar licença ao ministro do Exterior.

Ha quem affirme ser perfeitamente inutil semelhante artigo, sobre o seguinte fundamento: a menos que se trate de alguma actriz malafamada, ou de alguma prostituta celebre, que tenha seduzido algum dos nossos diplomatas, estes sempre obterao licença para casar com estrangeiras. Por exemplo: um diplomata nosso pede e obtem licença para casar-se com uma ingleza; como negara o ministro licença a outro que deseje tomar por esposa uma argentina, que esteja em egualdade de condições moraes e sociaes com a ingleza?

Admittamos ainda a hypothese em que o ministro, por antipathia para com certo diplomata, lhe negue uma licença, embora egual ja tenha sido concedida a outros. O caso e perfeitamente possivel. Nada mais natural do que haver animadversoes entre o ministro do Exterior e seus subordinados, principalmente si o ministro houver sido tirado da carreira diplomatica… Bem pode ser, com effeito, que, entre o ministro e o diplomata em questão, haja havido outrora algum incidente por amor de alguma transferencia ou de alguma promoção em que um tenha sido supplantado pelo outro. O ministro, pois, aproveita-se da situaçao para vingar-se do seu antagonista, fazendo-lhe picuinhas em materia delicada, como e o casamento. Chega a negar-lhe a licença pedida, embora se trate de senhora digna de casar-se com qualquer dos mais gravibundos diplomatas.

Que fazer num caso desses ? Como agir para com semelhante ministro ? Mandar amigos fallar a S. Ex. ? Mas S. Ex. podera dizer a esses amigos, limpando com o lenço as suas lunetas :

— Nao pensem voces que eu queira perseguir o homem. Si lhe neguei a licença, foi porque tinha motivos. . .

— Mas não pode ser, sr. ministro. Sabemos que se trata de uma senhora honesta. Nos a conhecemos de Paris, de Londres, de Haya…

— Mas nao podem conhecel-a tanto quanto eu, que alias nunca a vi. Sei que ella nao merece a mao, por tantos titulos illustres, do nosso amigo. Tenho informações dos agentes confidenciaes . . .

Desolados, escrevem os amigos ao diplomata :

(Caro F . — O seu caso sentimental, que é, como V. sabe, tambem o nosso caso, complica-se cada vez mais. Estivemos eu e B. com o ministro, que se mostrou inconciliavel a esse respeito. Deve haver por ahi intrigantes interessados em molestal-o, porque, conhecendo como conhecemos a sua noiva e a V. tambem, que jamais commetteria a leviandade de dar o seu nome a mulher que o nao merecesse, passamos pela surpresa de ouvir declarar o ministro que o fundamento da recusa da licença eram informações desfavoraveis a Madame Tres Estrellas, informaçoes que — la o disse S. Ex . — lhe foram mandadas por agentes confidenciaes! Veja si ha, entre os nossos agentes confidenciaes aki, algum que tenha motivo de ressentimento contra V.. Mande-me suas ordens e creia que os seus amigos tudo farao pela sua felicidade, so desejando todos desmascarar os inimigos occultos da sua noiva. Procure V. indagar do grau de relações que por ventura existam entre a familia de sua noiva e o ministro da Hollanda aqui. Não sei porque, ando meio desconfiado deste fidalgo . . . Sempre seu —.»

Ora, o diplomata sabe perfeitamente que o ministro da Hollanda nada tem que ver com a attitude do ministro do Exterior ; que na sede da sua legação nao ha agentes confidenciaes do Brasil ; e que sua noiva e respeitadissima ; pelo que, urra de la aos amigos pelo cabo submarino: Ministro mentiu : nenhum confidencial aqui ; Hollanda innocente.

Supponhamos agora que o diplomata seja o que se chama homem de genio forte, e veja sua noiva emmaranhada pelo ministro nesse labiryntho de infamantes insinuações. A tal homem so lhe resta uma saida: pedir licença, ou, ainda sem licença, vir ao Rio de Janeiro, correr ao Itamaraty, cair como um raio no gabinete do sr. ministro e partir a murros uns tres ou quatro dentes a S. Ex., caso os tenha. A saida nao sera das mais finamente diplomaticas, mas, para casos desses, nao vislumbro outra. E os senhores vao ver que o futuro talvez me dê razão: esse dispositivo da reforma ainda nos proporcionara bons pratinhos…

Ha quem ja tenha suggerido adoptar o que se pratica na Inglaterra: prohibição absoluta, para qualquer agente diplomatico, de casar-se com mulher que nao seja ingleza.

A isto se responde, dizendo que:

Primeiro — nao se pode por freio ao coraçao de ninguem;

Segundo — a Inglaterra ja pode estabelecer limitações nesse sentido, ao passo que nós ainda nao estamos em condições de fazel-o.

Com effeito, a Inglaterra tem abundancia de mulheres bellas e aptas a serem boas e leaes companheiras do homem que eleger o seu coraçao; nos ainda nao temos o necessario… O diplomata inglez que, em todo o Reino Unido e no Imperio Britannico, nao encontrar uma mulher a sua feição, ou nao tem sorte nenhuma, ou entao e exigente de mais.

No Brasil, ja o caso e mais complicado. O rapaz que segue a carreira diplomatica passa geralmente tres a quatro e mais annos no estrangeiro. Por la trava elle suas relações familiares; portanto, nada mais natural que se embeice por alguma das moças do paiz e se case com ella. Demos, entretanto, de barato, que o rapaz, depois de quatro annos de ausencia, volte solteiro para o Brasil e queira casar-se com uma patricia. O diplomata, geralmente, nao conhece as moças do interior; e, embora venha a conhecel-as, provavelmente nao querera tomar por mulher uma rapariga bisonha, inexperiente e talvez refractaria ao viver que lhe destina seu marido. Assim, elle tem de escolher esposa por aqui mesmo.

Diz o dictado que quem imagina nao casa; ora, quem imagina alguns momentos a respeito das meninas do Rio, fica sem saber si casa ou nao casa. Ha de haver com certeza por ahi muita menina que, sendo intelligente e interessante, seja tambem honesta; mas nenhuma dellas traz estrella na fronte para distinguir-se das que nao o sao. E que pensar da moralidade domestica dominante numa cidade em que, aos primeiros rebates do Carnaval, saltam para a rua as moças todas, com suas maes e seus paes, com seus irmaos e seus noivos, com as suas irmas menores, a berrar despejadamente dentro de caminhoes, e a cantar coisas tao torpes que o jornaes se veem obrigados a chamar a attenção da policia? Ninguem quer que as moças e as meninas se vistam de burel e passem os dias em jejuns e cilicios; mas tambem nao se pode permittir que levem a sua liberdade ao ponto de entoar cantigas tao licenciosas, que nao se usam nem em assembleas de meretrizes, a nao ser que se trate de rebombeiras da mais baixa extracção. De maneira que, ao ver uma menina e ao pensar em casar-se com ella, deve o rapaz interrogar: «Tera esta pequena feito o Carnaval? Tera cantado o Na minha casa nao se racha lenha ?»

Entre as canções mais em voga durante o ultimo Carnaval (1920), uma havia cuja letra era a seguinte

CAVALHEIROS

Na minha casa nao se racha lenha !

DAMAS

Na minha racha ! Na minha racha !

CAVALHEIROS

Na minha casa nao ha falta d’agua !

DAMAS

Na minha abunda ! Na minha abunda !

DAMAS

Na minha casa nao se pica fumo !

CAVALHEIROS

Na minha pica ! Na minha pica !

E assim por deante…

Estas torpezas, em que a ausencia de espirito se consubstancia com a mais repugnante falta de grammatica, eram cantadas à porfia por moços e moças que se presumem de boas familias. A policia interveio a tempo de impedir que se generalisassem esses miasmas moraes.)

Grave erro sera suppor que os rapazes brasileiros, na sua maioria, desejem casar-se com meninas carnavalescas e levianas. A essas apreciam-nas os rapazes como companheiras de troça; quando, porém, se trata de casamento, buscam outras…

Tenhamos a coragem precisa para reconhecer o seguinte: o systema de educação adoptado para as meninas cariocas, assim como para as de outras cidades grandes do nosso paiz, e pessimo. Essa educação consiste num pouco de musica (piano e canto), algumas lambugens de lingua patria e de francez, dansa, futebol e arte de caçar maridos. A moça estrangeira, sem saber musica e entendendo mediocremente de futebol, sabendo theoricamente muito menos do que a brasileira de beiramar, que e a mais civilisada das brasileiras; a moça estrangeira, como nasceu e foi educada no trabalho em outros centros de cultura e civilisação, sabe trabalhar, sabe defender-se na lucta pela vida e sabe ser esposa seria, grave, solidamente compenetrada assim dos seus deveres como dos seus direitos. D’ahi, a preferencia que vao tendo as estrangeiras (francezas e italianas poucas, inglezas, um pouco mais, argentinas ja algumas, e principalmente as allemans) perante jovens brasileiros. A muitos conheço eu casados com estrangeiras e dao-se a maravilha com ellas e ellas com elles. De varios sei eu, rapazes de boas familias e de boas prendas, bem educados, bem apessoados, alguns ate com dinheiro de seu, que aguardam opportunidade para ir à Europa, onde pensam em casar-se, de preferencia com allemans, que as ha lindissimas, e sao geralmente mulheres muito calmas, muito boas donas de casa e habituadas a ver o mundo atravez das pupillas de seus maridos. As nossas patricias, pois, estao, no terreno sentimental e domestico, ameaçadas de perigosa concorrencia…

O que aqui digo é o que observo e o que ouço a amigos e conhecidos dignos de marca. Nao se trata da mulher do interior, a moça brasileira authentica, muito santa, boa engommadeira, mae maravilhosa, esposa adoravel como enfermeira, mas enfermeira muito insipida para esposa… A mulher de que aqui se trata e a brasileira civilisada. Ora, esta, na concorrencia, tem de ser derrotada pela estrangeira; porque a estrangeira medianamente educada e necessariamente mais intelligente, mais fina e mais civilisada do que a brasileira finamente educada, que traz para o lar, juntamente com a sua educação, uma serie infindavel de preconceitos ancestraes contra os trabalhos caseiros e contra a submissao que todas devem a seus maridos em virtude do direito natural do mais forte sobre a mais fraca. Ha excepções, mas ninguem pode argumentar com excepções, porque estas só servem para confirmar a regra geral. Ahi esta porque muitos rapazes de fina educação se temem de casar-se com as patricias, porque nao sabem o que esta do outro lado do veo… E as moças, que, com a sua desenvoltura e o seu desbragamento carnavalesco, suppoem arranjar bons partidos, vôam lindamente, alegremente, para a sua propria ruina, visto que os rapazes serios, graves, que desejam formar o seu lar honestamente, sem receio de serem victimas do ridiculo e apontados na rua, a dedo, como capricorneos, esses nao se casam com meninas assanhadas; mas, como nao e facil distinguir entre levianas e virtuosas, vao elles, por seguro, preferindo estrangeiras; ate porque, no caso de engano, muito menos doloroso sera para qualquer homem ser trahido por estrangeiras do que por patricias. Isto para os simples mortaes, que nao fazem parte da carreira diplomatica.

Que diremos entao dos diplomatas, que passam annos longe das patricias? Diremos que nao se lhes pode cercear o direito de escolher esposas entre as mulheres honestas dos paizes em que servirem. Demais, o casamento entre brasileiros e estrangeiras só nos pode trazer vantagens, uma das quaes e nao das menos apreciaveis, e a de melhorar a nossa triste raça…

Claro está que, quando eu digo mulheres estrangeiras, entendo alludir a raças fortes e bellas, como a germanica, a anglo-saxonica, a slava e a italica. Em materia de mulheres, como em materia de industrias texteis, nao podemos ainda ser proteccionistas, porque, em ambos estes pontos, o estrangeiro, por enquanto, produz e ainda durante muito tempo produzira mais, melhor e mais barato do que nos. Em questoes de mulheres, so podemos e devemos ser livres cambistas…



(Verdades Indiscretas)



(*) Relutei em manter a ortografia original, mas acabei por me curvar à ideia de que a verve e a ironia do autor ficarão mais resguardadas na forma como foi publicada.



(Ilustração: Michael Lang - Urban Expressions - masks)

domingo, 10 de abril de 2022

DE COMO LIDAR COM RIO, de Sidnei Schneider

 

        




Represar um rio é impossível.

O rio insulta a barragem.

Se sustém uma folha calma de lago,

amplia suas pernas de Heráclito.

Veloz, recortará efígies das escarpas

e nas curvas fará ondas de mar.



Mas se segue da nascente à foz,

na outra margem é que está a flor.

Não é pisando em peixes

que conseguiremos atravessá-lo.

Largo, pinguela nele não cabe,

ponte não nos dará conhecê-lo.



Não seria sábio auscultar

o diário vaivém dos pássaros?

Com os braços dar forma

ao nosso sonho de asas?

De dentro domá-lo para sempre

com um simples remo?




(Ilustração: Foto de Fátima Alves - Carrancas/MG)

quinta-feira, 7 de abril de 2022

O OLHO, de Georges Bataille

 


Apavorado, o padre levantou-se, mas o inglês torceu-lhe um braço e jogou-o novamente nas lajes.

Sir Edmond amarrou-lhe os braços atrás das costas. Eu amordacei-o e atei-lhe as pernas com o meu cinto. Depois que ele foi parar no chão, estendido, o inglês segurou-lhe os braços, comprimindo-os em suas mãos. Imobilizou-lhe as pernas envolvendo-as com as suas. De joelhos, eu mantinha a cabeça entre as coxas.

O inglês disse a Simone:

- Agora, trepa nesse rato de sacristia.

Simone tirou o vestido. Sentou-se sobre o ventre do mártir, com a boceta perto do cacete mole.

O inglês continuou, falando sob o corpo da vítima:

- Agora, aperta-lhe a garganta, um canal mesmo por trás da maçã de Adão: uma forte pressão gradual.

Simone apertou: um tremor crispou o corpo imobilizado, e o pau ergueu-se. Agarrei-o e introduzi-o na carne de Simone. Ela continuava apertando a garganta.

Violentamente, a moça, ébria até o sangue, remexia, num movimento de vaivém, o pau retesado no interior de sua vulva. Os músculos do padre ficaram tensos.

Por fim ela apertou tão decididamente que um violento arrepio fez estremecer o moribundo: ela sentiu a porra inundá-la. Então largou a garganta e caiu, derrubada por uma tempestade de prazer.

Simone permanecia estendida sobre as lajes, de barriga para o ar, com o esperma do morto escorrendo pelas coxas. Estendi-me para fodê-la também. Estava paralisado. Um excesso de amor e a morte do miserável tinham-me esgotado. Nunca me senti tão feliz. Limitei-me a beijar a boca de Simone.

A jovem teve vontade de ver a sua obra e afastou-me para se levantar. Trepou novamente, de cu pelado sobre o cadáver pelado. Examinou o rosto, limpou o suor da testa. Uma mosca, zumbindo num raio de sol, voltava incessantemente para pousar sobre o morto. Ela enxotou-a porém e de repente aconteceu algo estranho: pousada sobre o olho do morto, a mosca deslocava-se sobre o globo vítreo. Agarrando a própria cabeça com as mãos, Simone sacudiu-a, tremendo. Vi-a mergulhar num abismo de pensamentos.

Por mais estranho que possa parecer, nós não nos tínhamos preocupado com o modo como essa história pudesse acabar. Se algum intrometido tivesse surgido, nós não teríamos deixado que manifestasse a sua indignação durante muito tempo... Mas não importa. Simone, saindo de seu embrutecimento, levantou-se e aproximou-se de Sir Edmond que se encostara a uma parede. Ouvia-se a mosca voar.

- Sir Edmond, disse Simone, grudando seu rosto contra o ombro do inglês, você vai fazer o que eu lhe pedir?

- Vou... provavelmente, respondeu o inglês.

Ela me levou até ao lado do morto e, ajoelhando-se, levantou a pálpebra e abriu inteiramente o olho sobre o qual a mosca tinha pousado.

- Você está vendo o olho?

- E daí?

- É um ovo, disse ela, com toda a simplicidade.

Insisti, perturbado:

- Aonde você quer chegar?

- Quero me divertir com ele.

- E mais o quê?

Levantando-se, ela parecia afogueada (estava, então, terrivelmente nua).

- Escute, Sir Edmond, disse ela, quero que você me dê o olho já. Arranque-o.

Sir Edmond não estremeceu; pegou uma tesoura numa bolsa, ajoelhou-se, recortou as carnes e, em seguida, enfiando os dedos na órbita, retirou o olho, cortando os ligamentos estendidos. Colocou o pequeno globo branco na mão de sua amiga.

Ela olhou a extravagância, visivelmente constrangida, mas não hesitou. Acariciando as pernas, fez escorregar o olho sobre elas. A carícia do olho sobre a pele é de uma doçura excessiva... e produz um horrível som, como um grito de galo.

No entanto, Simone divertia-se, fazia o olho escorregar na racha das nádegas. Estendeu-se no chão, levantou as pernas e o cu. Tentou imobilizar o globo contraindo as nádegas, mas ele pulou como um caroço entre os dedos - e caiu sobre a barriga do morto.

O inglês tinha-me despido.

Joguei-me sobre a moça e a sua vulva engoliu o meu pau. Fodi-a: o inglês fez rebolar o olho entre nossos corpos.

- Enfie ele no meu cu, gritou Simone.

Sir Edmond introduziu o olho na fenda e empurrou.

Finalmente, Simone deixou-me, tirou o olho das mãos de Sir Edmond e introduziu-o em sua carne. Nesse momento, puxou-me contra ela e beijou o interior da minha boca de um modo tão ardente que o orgasmo me veio logo: minha porra espirrou nos seus pelos.

Levantando-me, afastei as coxas de Simone: ela jazia no chão, estendida de lado. Encontrei-me então diante do que, imagino, eu esperara desde sempre, assim como uma guilhotina espera a cabeça que vai decepar. Os meus olhos pareciam-me eréteis de tanto horror; eu vi, na vulva peluda de Simone, o olho azul pálido de Marcela me olhar, chorando lágrimas de urina. Rastros de porra no pelo fumegante conferiam a esse espetáculo uma dimensão de dolorosa tristeza. Mantinha as coxas de Simone afastadas: a urina ardente escorria por baixo do olho, sobre a coxa apoiada no chão...



(História do Olho; tradução de Glória Correia Ramos)



(Ilustração: Hans Bellmer - door of perception)





segunda-feira, 4 de abril de 2022

AMANHECÊNCIA, de Flora Figueiredo

 




Quero ficar só,

para respirar a estrela.

Deixar a noite escorrer a mágoa,

dissolvê-la em enxurrada.

Não deixar nada a comprimir o peito.

Quero a madrugada de tal jeito,

que a alma possa flanar sem pouso certo

e sugar o primeiro brilho esperto

de uma gota.

Beijar a pétala rota

pelo mau jeito de um espinho,

deglutir devagarinho

o mel do espasmo nascente.

Quero o orgasmo

do pólen, da semente;

eu quero o sumo.

Para recompor a vida,

pra renascer o afeto,

pra retomar o rumo.



(Florescência, 1987)



(Ilustração: August Macke)


sexta-feira, 1 de abril de 2022

DISCURSO DE LANÇAMENTO DO PRÉ-SAL, Luiz Inácio Lula da Silva

 




Hoje é um dia histórico.

O governo está enviando ao Congresso Nacional sua proposta do marco regulatório para a exploração de petróleo e gás no chamado pré-sal.

Estou seguro de que, nos próximos meses, os deputados e senadores, recolhendo também as contribuições de governadores e prefeitos, aperfeiçoarão as propostas do governo, trabalhando com responsabilidade, espírito público, compromisso com o país e, sobretudo, muita visão de futuro.

Estou seguro também de que o povo brasileiro entrará de corpo e alma nesse debate tão importante para o destino do Brasil e para o futuro dos nossos filhos.

Porque esse não é um assunto apenas para os iniciados e especialistas. Nem é tampouco um tema que deva ficar restrito somente ao parlamento. Ao contrário, ele interessa a todos e depende de todos.

Por isso mesmo, quero convocar cada brasileiro e cada brasileira a participar desse grande debate. Trabalhadores, donas de casa, lavradores, empresários, intelectuais, cientistas, estudantes, servidores públicos, todos podem e devem contribuir para que tomemos as melhores decisões.

Minhas amigas e meus amigos,

O chamado pré-sal contém jazidas gigantescas de petróleo e gás, situadas entre cinco e sete mil metros abaixo do nível do mar, sob uma camada de sal que, em certas áreas, alcança mais de 2 mil metros de espessura.

Não se pode ainda dizer, com certeza, quantos bilhões de barris o pré-sal acrescentará às reservas brasileiras. Mas já se pode dizer, com toda segurança, que ele colocará o Brasil entre os países com maiores reservas de petróleo do mundo.

Trata-se de uma das maiores descobertas de petróleo de todos os tempos. E em condições extremamente importantes: as reservas encontram-se num país de grandes dimensões, de grande população e de abundantes recursos naturais. Um país que conta com um regime político estável e instituições democráticas em pleno funcionamento. Um país pacífico que faz questão de viver em paz com seus vizinhos. Um país que possui uma economia sofisticada, com um parque industrial diversificado, uma agropecuária de ponta e um setor de serviços moderno. Um país que, tendo dado passos importantes na superação das desigualdades sociais, encontrou seu caminho e está maduro para dar um salto no desenvolvimento.

Como já disse em outra oportunidade, o pré-sal é uma dádiva de Deus. Sua riqueza, bem explorada e bem administrada, pode impulsionar grandes transformações no Brasil, consolidando a mudança de patamar de nossa economia e a melhoria das condições de vida de nosso povo.

Mas o pré-sal também apresenta perigos e desafios. Se não tomarmos as decisões acertadas, aquilo que é um bilhete premiado pode transformar-se em fonte de enormes problemas. Países pobres que descobriram muito petróleo, mas não resolveram bem essa questão, continuaram pobres.

Outros caíram na tentação do dinheiro fácil e rápido. Passaram a exportar a toque de caixa todo o óleo que podiam e foram inundados por moedas estrangeiras. Resultado: quebraram suas indústrias e desorganizaram suas economias. E, assim, o que era uma dádiva transformou-se numa verdadeira maldição.

Para evitar esse risco, desde o primeiro instante, determinei à comissão de ministros que preparou o marco regulatório do pré-sal que trabalhasse em cima de três diretrizes básicas.

Primeira: o petróleo e o gás pertencem ao povo e ao Estado, ou seja, a todo o povo brasileiro. E o modelo de exploração a ser adotado, num quadro de baixo risco exploratório e de grandes quantidades de petróleo, tem de assegurar que a maior parte da renda gerada permaneça nas mãos do povo brasileiro.

A segunda diretriz é de que o Brasil não quer e não vai se transformar num mero exportador de óleo cru. Ao contrário, vamos agregar valor ao petróleo aqui dentro, exportando derivados, como gasolina, óleo diesel e produtos petroquímicos, que valem muito mais. Vamos gerar empregos brasileiros e construir uma poderosa indústria fornecedora dos equipamentos e dos serviços necessários à exploração do pré-sal.

A terceira diretriz: não vamos nos deslumbrar e sair por aí, como novos ricos, torrando dinheiro em bobagens. O pré-sal é um passaporte para o futuro. Sua principal destinação deve ser a educação das novas gerações, a cultura, o meio ambiente, o combate à pobreza e uma aposta no conhecimento científico e tecnológico, por meio da inovação. Vamos investir seus recursos naquilo que temos de mais precioso e promissor: nossos filhos, nossos netos, nosso futuro.

Ao examinar os projetos de lei que estamos enviando hoje ao Congresso, depois de tanto trabalho e estudo, vejo com satisfação que eles estão em perfeita sintonia com essas diretrizes.

Minhas amigas e meus amigos,

Uma mudança importante no marco regulatório será a adoção do modelo de partilha de produção no pré-sal e em outras áreas de potencial e características semelhantes. É uma mudança absolutamente necessária e justificada.

Estamos vivendo hoje um cenário totalmente diferente daquele que existia em 1997, quando foi aprovada a Lei 9.478, que acabou com o monopólio da Petrobras na exploração do petróleo e instituiu o modelo de concessão.

Naquela época, o mundo vivia um contexto em que os adoradores do mercado estavam em alta e tudo que se referisse à presença do Estado na economia estava em baixa. Vocês devem se lembrar como esse estado de espírito afetou o setor do petróleo no Brasil. Altas personalidades naqueles anos chegaram a dizer que a Petrobras era um dinossauro – mais precisamente, o último dinossauro a ser desmantelado no país. E, se não fosse a forte reação da sociedade, teriam até trocado o nome da empresa. Em vez de Petrobras, com a marca do Brasil no nome, a companhia passaria a ser a Petrobrax – sabe-se lá o que esse xis queria dizer nos planos de alguns exterminadores do futuro.

Foram tempos de pensamento subalterno. O país tinha deixado de acreditar em si mesmo. Na economia, campeava o desalento. O Brasil não conseguia crescer, sofria com altas taxas de juros, de desemprego, e juros estratosféricos, apresentava dívida externa elevadíssima e praticamente não tinha reservas internacionais. Volta e meia quebrava, sendo obrigado a pedir ao FMI ajuda, que chegava sempre acompanhada de um monte de imposições.

Além disso, não produzíamos o petróleo necessário para nosso consumo. Ferida, desestimulada e desorientada, a Petrobras vivia um momento muito difícil. Tinha dificuldades de captação externa e não contava com recursos próprios para bancar os investimentos. Nessa época, é bom lembrar – e a Dilma já falou – o preço do barril do petróleo estava em torno de US$ 19.

Hoje, nós vivemos um quadro é inteiramente diferente. Em primeiro lugar, os países e os povos descobriram na recente crise financeira internacional que, sem regulação e fiscalização do Estado, o deus-mercado é capaz de afundar o mundo num abrir e fechar de olhos. O papel do Estado, como regulador e fiscalizador, voltou, portanto, a ser muito valorizado.

A economia do Brasil vive também um novo momento. De 2003 a 2008, crescemos em média, 4,1% ao ano. Nos últimos dois anos, nosso crescimento foi superior a 5%. Nesse período, o país gerou cerca de onze milhões de empregos com carteira assinada. O desemprego caiu de 11,7% para 8%, em 2008. Hoje, as taxas de juros atuais são as menores de muitas décadas em nosso país.

Não só pagamos a dívida externa pública, como acumulamos reservas superiores a US$ 215 bilhões. E mais: reduzimos de modo consistente a miséria e as desigualdades sociais. Mais de 30 milhões de brasileiros saíram da linha da pobreza e 2 milhões ingressaram... e 20 milhões ingressaram na nova classe média, fortalecendo o mercado interno e dando vigoroso impulso à nossa economia.

O fato é que hoje temos uma economia organizada, pujante e voltada para o crescimento. Uma economia que foi testada na mais grave crise internacional desde 1929 e saiu-se muito bem na prova. Não só não quebramos, como fomos um dos últimos países a entrar na crise e estamos sendo um dos primeiros a sair dela. Antes, éramos alvo de chacotas e de imposições. Hoje, nossa voz, a voz do Brasil, é ouvida lá fora com muita atenção e com muito respeito.

Meus queridos companheiros e companheiras,

Desde o primeiro instante, meu governo deu toda força à Petrobras. Passamos a cuidar com muito carinho do nosso querido dinossauro. Os recursos da empresa destinados à pesquisa e ao desenvolvimento deram um salto de US$ 201 milhões, em 2003, para R$ 960 milhões, em 2008.

A companhia voltou a investir, aumentou a produção, abriu concursos para contratação de funcionários, encomendou plataformas, modernizou e ampliou refinarias, além de construir uma grande infra-estrutura de gás natural e entrar também na era de biocombustíveis.

Deixamos claro que nossa política era fortalecer, e não debilitar, a Petrobras. E a companhia – estimulada, recuperada e bem comandada – reagiu de forma impressionante.

Resultado: a Petrobras vive hoje um momento singular. É o orgulho do país. É a maior empresa do Brasil. É a quarta maior companhia do mundo ocidental. Entre as grandes petroleiras mundiais, é a segunda em valor de mercado. É um exemplo em tecnologia de ponta. Descobriu as reservas do pré-sal, um feito extraordinário, que encheu de admiração o mundo e de muito orgulho os brasileiros. É uma empresa com crédito e autoridade internacionais. Tanto que, nos últimos meses, levantou cerca de US$ 31 bilhões em empréstimos. Seus investimentos previstos até 2013 somam US$ 174 bilhões.

E ainda para ajudar, para completar, o preço do barril de petróleo oscila hoje em torno de US$ 65, mais do triplo do que em 1997.

Em suma, os tempos e o ambiente no mundo são outros. A situação da economia brasileira é outra. O Brasil e o prestígio do Brasil são outros. A Petrobras é outra. E outra também é a situação do mercado do petróleo.

Minhas amigas e meus amigos,

Também não há termos de comparação entre as áreas que vinham sendo exploradas até agora e as áreas do pré-sal.

No pré-sal, os riscos exploratórios são baixíssimos. A taxa de sucesso dos poços operados pela Petrobras na área é de 87%, sendo que nos blocos situados na Bacia de Santos ela é de 100%. Foram 13 poços perfurados. E nos 13 comprovou-se a existência de grandes quantidades de óleo e gás, com excelentes perspectivas de viabilidade econômica.

Nessas circunstâncias, seria um grave erro manter na área do pré-sal, de baixíssimo risco e grande rentabilidade, o modelo de concessões, apropriado apenas para blocos de grande risco exploratório e baixa rentabilidade.

No modelo de concessões, a União, proprietária do subsolo, permite que as companhias privadas procurem petróleo, mediante o pagamento de uma taxa chamada bônus de assinatura. Se elas encontrarem óleo ou gás, podem extraí-lo e comercializá-lo como quiserem. São donas do petróleo arrancado das entranhas da terra, porque, a partir da boca do poço, a União perde os direitos de propriedade, recebendo apenas uma parcela pequena da renda do petróleo, na forma de royalties e participações especiais.

Já no modelo de partilha, que prevalece em todo o mundo em áreas de baixo risco exploratório e grande rentabilidade, a União continuará dona da maior parte do petróleo e do gás mesmo depois de sua extração. Nesse modelo, o Estado não transfere toda a propriedade do óleo para grupos privados, mas fecha contratos para a exploração e a produção em determinada área – diretamente com a Petrobras ou, mediante licitação, no caso de outras companhias.

No modelo de partilha, as empresas são remuneradas com uma parcela do óleo extraído, suficiente para cobrir seus custos e investimentos e ainda proporcionar uma rentabilidade adequada ao risco do projeto. Já o Estado fica com a maior parte dos lucros da exploração e produção de petróleo, parte esta bem superior ao que recebe hoje no regime de concessão. A regra do modelo de partilha é clara: nas licitações, vence a empresa que oferecer a maior parcela do lucro da operação para o Estado e para o povo brasileiro.

Amigas e amigos,

Como no modelo de partilha a maior parte do petróleo, mesmo depois de extraído, continuará a pertencer ao Estado, ela controlará o processo de produção. Assim, ela poderá definir claramente o ritmo de extração, calibrando-o de acordo com os interesses nacionais, sem se subordinar às exigências do mercado. Dessa maneira, ficará mais fácil para o Brasil contornar os riscos inerentes à produção excessiva, que poderia inundar o país de dinheiro estrangeiro, desorganizando nossa economia – aquilo que os especialistas chamam de doença holandesa.

Além disso, poderemos produzir petróleo nas condições que mais convêm ao país. E desse modo poderemos aproveitar a riqueza do petróleo, que Deus nos deu, para produzir mais riqueza ainda com o nosso trabalho.

Dessa forma, consolidaremos uma poderosa e sofisticada indústria petrolífera, promoveremos a expansão da nossa indústria naval e converteremos o Brasil num dos maiores polos mundiais da indústria petroquímica do mundo.

Trabalhando com essa perspectiva, encomendaremos – e produziremos aqui dentro – milhares e milhares de equipamentos, gerando emprego, salário e renda para milhões de brasileiros.

Minhas amigas e meus amigos,

Para gerir os contratos de partilha e os contratos de comercialização de petróleo e gás, zelando pelos interesses do Estado e do povo brasileiro, estamos criando uma nova empresa estatal na área do petróleo, a Petrosal.

Ela não concorrerá com a Petrobras, já que não participará da prospecção ou da exploração de petróleo e gás. Sua missão é inteiramente diferente. A nova estatal será, isso sim, a representante dos interesses do Estado brasileiro, o olho atento do povo brasileiro, acompanhando e fiscalizando a execução dos contratos firmados na área do pré-sal.

Será uma empresa enxuta, com corpo técnico altamente qualificado, formado por profissionais com experiência comprovada. Em vários países que adotaram o modelo de partilha, empresas com esse caráter revelaram-se imprescindíveis para defender os interesses públicos e nacionais nas negociações e na gestão de contratos e processos complexos e sofisticados como os que caracterizam a indústria petrolífera.

Minhas amigas e meus amigos,

Se vocês estão cansados, imaginem eu. Outra novidade importante é a criação do Fundo Social. Ele será responsável pela administração da renda do petróleo e pela sua aplicação em investimentos seguros e de boa rentabilidade, tanto no Brasil como no exterior.

De um lado, o novo fundo será uma mega poupança, um passaporte para o futuro, que preservará e incrementará a renda do petróleo por muitas e muitas décadas. Os rendimentos do fundo serão canalizados, prioritariamente, para a educação, a cultura, o meio ambiente, a erradicação da pobreza e a inovação tecnológica. Vamos aproveitá-los para pagar a imensa dívida que o país tem com a educação e para permitir que a aplicação do conhecimento científico seja, na verdade, a nossa maior garantia do nosso futuro.

De outro lado, o novo fundo funcionará, também, como um dique contra a entrada desordenada de dinheiro externo, evitando seus efeitos nocivos e garantindo que nossa economia siga saudável, forte e baseada no trabalho e no talento dos milhões e milhões de brasileiros.

Assim, a renda gerada pela produção do pré-sal será administrada de forma planejada e inteligente. E seu ingresso na economia nacional será dosado de modo a fortalecê-la e a impulsioná-la, jamais a desorganizá-la.

Minhas amigas e meus amigos,

Não poderia deixar de prestar aqui uma sincera homenagem à Petrobras, a sua diretoria e a todo o seu corpo de funcionários.

A descoberta do pré-sal, que coloca o Brasil num novo patamar no cenário mundial, não foi fruto do acaso ou de um golpe de sorte. Ao contrário, ela só foi possível graças ao talento, à competência e à determinação da Petrobras. E também, é claro, graças ao revigoramento da empresa nos últimos anos, à recuperação da sua autoestima e aos investimentos crescentes em pesquisa e prospecção.

Poucas empresas no mundo têm hoje a experiência da Petrobras na exploração de petróleo em águas profundas e ultra profundas. E nenhuma empresa petrolífera conhece e é capaz de obter resultados tão expressivos em nossa plataforma submarina como ela. Trata-se de um ativo, de um patrimônio de enorme valor, que deve ser bem e de forma extraordinária aproveitado.

Por isso mesmo, a Petrobras terá um status especial no marco regulatório do pré-sal. Será a única empresa operadora nessa província. Outras empresas poderão ter participação, inclusive majoritária, nos consórcios que explorarão os blocos contratados. Mas a operação – vale dizer, a exploração, o desenvolvimento, a produção e a desativação das instalações – estará sempre a cargo da nossa querida e orgulhosa Petrobras.

Além disso, as reservas do pré-sal, que pertencem ao Estado e ao povo brasileiro, oferecem uma excelente oportunidade para que a União fortaleça a Petrobras para enfrentar os novos desafios. Nesse sentido, estamos enviando projeto de lei ao Congresso Nacional autorizando a União a promover aumento de capital da companhia. O valor total do aumento de capital será aquilo que a ministra Dilma já falou, de até cinco bilhões de barris equivalentes de petróleo, obviamente, relativos às jazidas contíguas às áreas que a empresa já detém no pré-sal.

Nos termos da lei, os acionistas minoritários que desejarem participar dessa chamada de capital poderão adquirir ações da companhia, o que contribuirá para reforçar economicamente nossa maior empresa nesse momento decisivo.

Se os acionistas minoritários não exercerem integralmente seus direitos de opção, a capitalização promovida pela União implicará aumento da participação do povo brasileiro no capital total da Petrobras.

Minhas amigas e meus amigos,

Nesse momento em que o Brasil discute o melhor caminho para se tornar um grande produtor mundial de petróleo, quero render minhas homenagens a todos os brasileiros que lutaram para que este sonho se transformasse em realidade.

Em primeiro lugar, homenageio os que acreditaram quando era mais fácil descrer. E não deram ouvidos às aves de mau agouro que, durante décadas, apregoaram aos quatro ventos que o Brasil não tinha petróleo. Foram, por isso, chamados de fanáticos e maníacos. Ainda bem que houve fanáticos que nos ensinaram a duvidar dos preconceitos e a ter fé em nossas próprias forças.

Rendo minha homenagem também aos que se insurgiram contra a ladainha que proclamava que, mesmo que o Brasil tivesse petróleo, não teria competência para explorá-lo. E que deveria deixar essa tarefa para o capital estrangeiro. Muitos foram tachados de lunáticos, prisioneiros de uma idéia fixa, como o grande e saudoso Monteiro Lobato, porque teimaram em lutar para que o Brasil explorasse suas riquezas. Benditos lunáticos que ensinaram o país a enxergar longe, em tempos de escuridão, e iluminaram os caminhos dos que vieram depois.

Rendo minha homenagem ainda aos que saíram às ruas em todo o país na campanha do “O Petróleo é nosso”, levando o presidente Getúlio Vargas a instituir o monopólio estatal do petróleo e a criar a Petrobras. Foi uma batalha travada em condições duríssimas. Basta ler os jornais da época, alguns em circulação até hoje, que ridicularizavam a campanha nacionalista. E eu digo: bendito nacionalismo, que permitiu que as riquezas da nação permanecessem em nossas mãos.

Rendo homenagem muito especial, por fim, a todos os que defenderam a Petrobras quando ela foi atacada ao longo de sua história – e ainda hoje – e aos funcionários e petroleiros que se mantiveram de pé quando a empresa passou a ser tratada como uma herança maldita do período jurássico. Benditos amigos e companheiros do dinossauro, que sobreviveu à extinção, deu a volta por cima, mostrou o seu valor. E descobriu o pré-sal – patrimônio da União, riqueza do Brasil e passaporte para o nosso futuro.

Olho para trás e vejo que há algo em comum em todos esses momentos, algo que unifica e dá sentido a essa caminhada, algo que nos trouxe até aqui e ao dia de hoje: é, sinceramente, a capacidade do povo brasileiro de acreditar em si mesmo e no nosso país. Foi em meio à descrença de tantos que querem falar em seu nome... O povo – principalmente ao povo – devemos esse momento atual.

É como se houvesse uma mão invisível – não a do mercado, da qual já falaram tanto, mas outra, bem mais sábia e permanente, a mão do povo – tecendo nosso destino e construindo nosso futuro. Não creio que seja uma coincidência o fato de a Petrobras ter descoberto as grandes reservas do pré-sal justamente num momento da vida política nacional em que o povo também descobriu em si mesmo grandes reservas de energia e de esperança. Num momento em que o país, deixando para trás o complexo de inferioridade que lhe inculcaram durante séculos, aprendeu como é bom andar de cabeça erguida e olhar com confiança para o futuro.

Muito obrigado, companheiros.


(Brasília, 2009)



(Ilustração: foto de Antonio Scorza)