sábado, 26 de agosto de 2023

CHE COSAS S´ABBIA A VOLERE / O QUE SE DEVE QUERER, de Leonardo da Vinci

  


        

Chi non può quel che vuoi, quel che può voglia;

Chè quel che non puó folle è da volere;

Adunque saggio è l`uomo da tenere,

Che da quel che non può suo voler toglia.



Però ch`ogni dileto nostro e doglia

Stà in si e no saper voler potere:

Adunque quel sol può, que col dovere

Ne trae la ragion fuor di sua soglia.



Nè sempre è da voler que che l`uom pote;

Spessa par dolce auel che torna amaro;

Piansi già quel ch´io volsi, poi chi´io l´ebbi.



Adunque, tu lettor di queste note,

Se a te vuoi esser buono, agli altri caro,

Vogli sempre poter quel che tu debbi...





Tradução de Oscar Dias Corrêa:





Quem não pode o que quer, qual pode queira;

Que o que não pode tolo é querer;

Pois sábio será o homem que ao saber

Que ter não pode, já querer não queira.



Eis porque todo gozo e dor inteira,

É sim e não saber querer poder;

Logo só pode aquele que, ao dever,

Não pode sua razão, que é voz primeira.



Não convém querer sempre que se pode,

Se o que parece doce, vira amaro;

Já chorei o que quis, logo atendido.




Tu, leitor destas notas, pois, acode:

Queres ser bom pra ti, aos outros caro?

Queiras sempre poder o que é devido!



(Meus versos dos outros)



(Ilustração: Leonardo da Vinci - dama com arminho)

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

O NARRADOR: CONSIDERAÇÕES SOBRE A OBRA DE NIKOLAI LESKOV[*], de Walter Benjamin (excerto)

 


Devemos imaginar a transformação das formas épicas segundo ritmos comparáveis aos que presidiram à transformação da crosta terrestre no decorrer dos milênios. Poucas formas de comunicação humana evoluíram mais lentamente e se extinguiram mais lentamente. O romance, cujos primórdios remontam à Antiguidade, precisou de centenas de anos para encontrar na burguesia ascendente, os elementos favoráveis a seu florescimento. Quando esses elementos surgiram, a narrativa começou pouco a pouco a tornar-se arcaica; sem dúvida, ela se apropriou de múltiplas formas, do novo conteúdo, mas não foi determinada verdadeiramente por ele. Por outro lado, verificamos que com a consolidação da burguesia – da qual a imprensa, no alto capitalismo, é um dos instrumentos mais importantes - destacou-se uma forma de comunicação que, por mais antigas que fossem suas origens, nunca havia influenciado decisivamente a forma épica. Agora ela exerce essa influência. Ela é tão estranha à narrativa como o romance, mas é mais ameaçadora e, de resto, provoca uma crise no próprio romance. Essa nova forma de comunicação é a informação.

Villemessant, o fundador do Figaro, caracterizou a essência da informação com uma fórmula famosa. "Para meus leitores", costumava dizer, "o incêndio num sótão do Quartier Latin é mais importante que uma revolução em Madri”. Essa fórmula lapidar mostra claramente que o saber que vem de longe encontra hoje menos ouvintes que a informação sobre acontecimentos próximos. O saber, que vinha de longe - do longe espacial das terras estranhas, ou do longe temporal contido na tradição -, dispunha de uma autoridade que era válida mesmo que não fosse controlável pela experiência. Mas a informação aspira a uma verificação imediata. Antes de mais nada, ela precisa ser compreensível "em si e para si". Muitas vezes não é mais exata que os relatos antigos. Porém, enquanto esses relatos recorriam frequentemente ao miraculoso, é indispensável que a informação seja plausível. Nisso ela é incompatível com o espírito da narrativa. Se a arte da narrativa é hoje rara, a difusão da informação é decisivamente responsável por esse declínio.

Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação. Metade da arte narrativa está em evitar explicações. Nisso Leskov é magistral. (Pensemos em textos como A fraude, ou A águia branca). O extraordinário e o miraculoso são narrados com a maior exatidão, mas o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor. Ele é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação.

Leskov frequentou a escola dos Antigos. O primeiro narrador grego foi Heródoto. No capítulo XIV do terceiro livro de suas Histórias encontramos um relato muito instrutivo. Seu tema é Psammenit. Quando o rei egípcio Psammenit foi derrotado e reduzido ao cativeiro pelo rei persa Cambises, este resolveu humilhar seu cativo. Deu ordens para que Psammenit fosse posto na rua em que passaria o cortejo triunfal dos persas. Organizou esse cortejo de modo que o prisioneiro pudesse ver sua filha degradada à condição de criada, indo ao poço com um jarro, para buscar água. Enquanto todos os egípcios se lamentavam com esse espetáculo, Psammenit ficou silencioso e imóvel, com os olhos no chão; e, quando logo em seguida viu seu filho, caminhando no cortejo para ser executado, continuou imóvel. Mas, quando viu um dos seus servidores, um velho miserável, na fila dos cativos, golpeou a cabeça com os punhos e mostrou os sinais do mais profundo desespero.

Essa história nos ensina o que é a verdadeira narrativa. A informação só tem valor no momento em que é nova. Ela só vive nesse momento, precisa entregar-se inteiramente a ele e sem perda de tempo tem que se explicar nele. Muito diferente é a narrativa. Ela não se entrega. Ela conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver. Assim, Montaigne alude à história do rei egípcio e pergunta: por que ele só se lamenta quando reconhece o seu servidor? Sua resposta é que ele "já estava tão cheio de tristeza, que uma gota a mais bastaria para derrubar as comportas". É a explicação de Montaigne. Mas poderíamos também dizer: "O destino da família real não afeta o rei, porque é o seu próprio destino". Ou: "muitas coisas que não nos afetam na vida nos afetam no palco, e para o rei o criado era apenas um ator". Ou: "as grandes dores são contidas, e só irrompem quando ocorre uma distensão. O espetáculo do servidor foi essa distensão". Heródoto não explica nada. Seu relato é dos mais secos. Por isso, essa história do antigo Egito ainda é capaz, depois de milênios, de suscitar espanto e reflexão. Ela se assemelha a essas sementes de trigo que durante milhares de anos ficaram fechadas hermeticamente nas câmaras das pirâmides e que conservam até hoje suas forças germinativas.

Nada facilita mais a memorização das narrativas que aquela sóbria concisão que as salva da análise psicológica. Quanto maior a naturalidade com que o narrador renuncia às sutilezas psicológicas, mais facilmente a história se gravará na memória do ouvinte, mais completamente ela se assimilará à sua própria experiência e mais irresistivelmente ele cederá à inclinação de recontá-la um dia. Esse processo de assimilação se dá em camadas muito profundas e exige um estado de distensão que se torna cada vez mais raro. Se o sono é o ponto mais alto da distensão física, o tédio é o ponto mais alto da distensão psíquica. O tédio é o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência. O menor sussurro nas folhagens o assusta. Seus ninhos - as atividades intimamente associadas ao tédio - já se extinguiram na cidade e estão em vias de extinção no campo. Com isso, desaparece o dom de ouvir, e desaparece a comunidade dos ouvintes. Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido. Quando o ritmo do trabalho se apodera dele, ele escuta as histórias de tal maneira que adquire espontaneamente o dom de narrá-las. Assim se teceu a rede em que está guardado o dom narrativo. E assim essa rede se desfaz hoje por todos os lados, depois de ter sido tecida, há milênios, em torno das mais antigas formas de trabalho manual.



[*]  Nikolai Leskov nasceu em 1831 na província de Orjol e morreu em 1895, em S. Petersburgo. Por seus 'interesses e simpatias pelos camponeses, tem certas afinidades com Tolstoi, e por sua orientação religiosa, com Dostoievski. Mas os textos menos duradouros de sua obra são exatamente aqueles em que tais tendências assumem uma expressão dogmática e doutrinária - os primeiros romances. A significação de Leskov está em suas narrativas, que pertencem a uma fase posterior. Desde o fim da guerra houve várias tentativas de difundir essas narrativas nos países de língua alemã. Além das pequenas coletâneas publicadas pelas editoras Musarion e Georg Müller, devemos mencionar, com especial destaque, a seleção em nove volumes da editora C. H; Beck.



(Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução: Sergio Paulo Rouanet).



(Ilustração: Robert Teeling - irish writers)

domingo, 20 de agosto de 2023

NOSSA IRMÃ LUA, de Noémia de Sousa

 






Uma irmãzinha meiga que nos cubra

a todos com a quentura terna e gostosa

do seu carinho...

que entorne toda a sua claridade

sobre as nossas tristes cabeças vergadas

e, como um feitiço forte e misterioso,

nos afugente as raivas fundas e dolorosas

de revoltados,

com a sua morna carícia de veludo...

sua enorme mão,

luminosamente branca, consegue-nos tudo.

E sob o seu feitiço potente, serenamos.

E pouco a pouco, momento a momento,

Sossegando vamos...

Fechando nossos olhos pacientes de esperar,

Já podemos vogar no mar

Parado dos nossos sonhos cansados...

E até podemos cantar!

Até podemos cantar o nosso lamento...

De olhos para dentro, para dentro de nós,

Sentimo-nos novamente humanos,

Somos nós novamente,

E não brutos e cegos animais aguilhoados...

Sim. Nós cantamos amorosamente

A lua amiga que é nossa irmã.

– Embora nos repitam que não,

nós o sentimos fundo no coração...

(que bem vemos

que no seu largo rosto de leite há sorrisos brandos de doçura

para nós, seus irmãos...)

só não compreendemos

como é que, sendo tão branca a nossa irmã,

nos possa ser tão completamente cristã,

se nós somos tão negros, tão negros,

como a noite mais solitária e mais desoladamente escura...




(In notícias, 07.03.1958, página “Moçambique 58”)



(Ilustração: John Madu - City Girls on rousseaus beach)



quinta-feira, 17 de agosto de 2023

DA FILOSOFIA COMO MODO SUPERIOR DE DAR O CU OU DELEUZE E A “HOMOSSEXUALIDADE MOLECULAR”, de Paul Beatriz Preciado

 

Só há uma sexualidade, a homossexual … Só há uma 

sexualidade, a feminina.

Félix Guattari, 1979



A homossexua1idade é a verdade do amor.

Gilles Deleuze, 1964




A noção de “homossexualidade molecular” de Deleuze continua sendo um conceito periférico raramente analisado pelos comentaristas deleuzianos, apesar da posição estratégica que esta ocupa na estrutura de O Anti-Édipo e da frequência com a qual Deleuze e Guattari se afirmam “homossexuais moleculares” durante os anos setenta: “Somos heterossexuais estatisticamente ou molarmente, mas homossexuais pessoalmente, quer o saibamos ou não, e, por fim, transexuados elementarmente, molecularmente.”[1]

A “homossexualidade molecular”, ou local, materializada através de um coming-out que não se deixa reduzir nem à identidade nem à evidência das práticas, pertence indubitavelmente ao conjunto de traços com que Deleuze se apresenta como pessoa pública. A “homossexualidade molecular” e suas unhas (excessivamente longas e descuidadas) aparecem como estranhos atributos individualizantes através dos quais Deleuze (personagem muito menos midiático que outros de seus contemporâneos, como Derrida ou Foucault) pode ser reconhecido ou caricaturado, mas cuja importância filosófica ou política é frequentemente reduzida a uma anedota hagiográfica.

Poderíamos, sem dúvida, explicar a “homossexualidade molecular” de Deleuze como parte do que chamaríamos de “efeito unhas”, isto é, reduzi-la a uma espécie de estranheza ou de conceito-capricho (uma pose esnobe, “como os óculos escuros de Greta Garbo”[2], uma noção-descuido cujo discernimento não afeta a leitura dos principais anátemas deleuzianos. Decidi, no entanto, submeter o “caso da homossexualidade molecular” à hipótese de O Anti-Édipo segundo a qual “não há conceito lógico que não dê lugar a operações físicas”.

Trata-se, então, de entender que tipo de operações físicas a “homossexualidade molecular” produz enquanto conceito: qual é a relação entre a noção obscura de “homossexualidade molecular” e o mantra constantemente repetido “devir-mulher”?[3] Qual teria sido o objetivo da cuidadosa distinção de Deluze entre dois tipos de homossexualidades: uma molecular e outra global? Quais são as condições do discurso público do intelectual francês que, depois de 1968, tornaram possível a ele e a Guattari se proclamarem “homossexuais moleculares”, enquanto Foucault, gay e frequentador assíduo dos backrooms sadomasoquistas de São Francisco, omitisse qualquer enunciação em primeira pessoa sobre a homossexualidade em suas análises e evitasse tomar posição frente às novas formações políticas e identitárias dos anos setenta e oitenta na França? Qual é a “molecularidade” que Foucault não compartilha com Deleuze e Guattari?

*

Na Universidade de Vincennes (hoje Paris VIII) durante a década de setenta, Deleuze se transformou no mentor filosófico não só de René Schérer e Guy Hocquenghem[4], como também de parte da Fhar [Frente Homossexual de Ação Revolucionária]. Sem ser homossexual, escreverá Schérer, “Deleuze acompanhou esta luta e a sustentou”.[5] Nesse último grupo encontramos também Michel Cressole, que haveria de protagonizar o primeiro enfrentamento com Deleuze em relação à “unidade de uma pretendida filosofia do desejo”.[6] Michel Cressole, jovem jornalista de esquerda no Libération, bicha e amigo/inimigo pessoal de Deleuze, será o primeiro a duvidar da verdade, filosófica e política, de um discurso sobre as drogas, a esquizofrenia ou a homossexualidade que não conhecesse a dependência, a doença mental ou a fecalidade. Em 1973, Cressole dirige uma carta aberta a Deleuze na qual ataca diretamente a ambiguidade de sua posição: “Você sempre quis exprimir a posição em que você está, com seu corpo, ante a loucura, a droga, o álcool e o ânus. De fato, não é possível te recriminar quando você se apresenta como genealogista ou funcionalista – sua grande decência ou a hipocrisia de sua demência ou de sua fecalidade, tal como Artaud fez com Caroll.”[7] Mais adiante, numa ocasião ainda mais virulenta, a crítica se articula em tomo de uma nova e esclarecedora oposição, você (Deleuze)/as bichas:

“Quando você observa como caminham as bichas, e quando você lhes conta o que vê, elas gostam, acham que de fato é assim, mas quando elas se viram, ingênuas como crianças, para saber quem foi que disse, se ‘de fato’ está aí quem falou, descobrem um senhor correto e simpático, que lamenta publicamente, que não as proíbe de nada, que se dispõe a defendê-las, mas a ‘defender’ pelas costas, eternamente protestando contra o sofrimento de serem isso, como se protestasse de uma boa fé.”

Para Cressole, a suposta “homossexualidade molecular” de Deleuze é, como teria dito La Lupe, “puro teatro, simulacro calculado”, uma forma de lamentar publicamente por trás da qual se esconderia uma demência e uma fecalidade que só poderiam ser qualificadas de hipócritas. Resta saber, no entanto, por que Deleuze, um “senhor correto e simpático”, teria tido a necessidade de se identificar como homossexual, e de se separar de tal identificação mediante o adjetivo “molecular”.

Vinte e cinco anos mais tarde, Ian Buchanan, num congresso realizado na Austrália (que viria a certificar a globalização da filosofia de Deleuze através de sua tradução para o inglês), tenta responder às críticas de Michel Cressole utilizando o conceito de “transversalidade” e de “relação transversal”. Segundo Deleuze, é possível pensar ou escrever transversalmente sobre certos fenômenos sem passar pela experiência real, do mesmo modo que é possível viajar sem sair do lugar. Félix Guattari já conhecia e utilizava a noção de transversalité em seu trabalho psicoterapêutico durante os anos cinquenta na clínica de La Borde, em Cour-Cheverny. O conceito de relação transversal, tal como é empregado por Deleuze, não só retoma essa noção psicanalítica como também, e especialmente, uma ideia de David Hume que postula que qualquer efeito de um processo sempre pode ser produzido por outros meios. Um exemplo citado com frequência por Deleuze seria o chamado “porre de Henry Miller”, um experimento que consiste em chegar à embriaguez bebendo água. Em Deleuze, a transversalidade adquire nova força, convertendo-se em condição de possibilidade de certas experiências de “devir”. Assim, por exemplo, o “nomadismo abstrato” não só supõe que seja possível viajar sem se mover, como também opõe, à experiência habitual da viagem, uma prática transversal que se dá exclusivamente em repouso: se você quer viajar de verdade, “é preciso não se mexer demais para não espantar os devires”.[8]

Transversalmente, a molecularidade é a homossexualidade da mesma forma que a água é o porre de Henry Miller, e o repouso é o nomadismo abstrato. Na resposta de Deleuze à carta de Cressole, a alusão à transversalidade é clara:

“E minha relação com as bichas, os alcoólatras ou os drogados, o que isso tem a ver com o assuntos, se obtenho em mim efeitos análogos aos deles por outros meios? (…) Eu não devo nada a vocês, nem vocês a mim. Não há nenhuma razão para que eu frequente seus guetos, já que tenho os meus. O problema nunca consistiu na natureza deste ou daquele grupo exclusivo, mas nas relações transversais em que os efeitos produzidos por tal ou qual coisa (homossexualismo, droga etc.) sempre podem ser produzidos por outros meios.”[9]

Nesse argumento, a homossexualidade se apresenta, junto com o álcool e a droga, como uma experiência de toxicidade e de gueto por meio da qual se tem acesso a certos efeitos. E se a toxicidade e o gueto não são desejáveis, os efeitos parecem, no entanto, ser imprescindíveis para a esquizoanálise. Deleuze parece preocupado em obter, à sua maneira, isto é, transversalmente, os mesmos efeitos que as bichas, os drogados e os alcoólatras obtêm, mas reduzindo de algum modo a toxicidade do gueto. Se esta “relação transversal” é crucial, é exatamente porque permite a Deleuze esquivar, ao menos de forma retórica, da questão da política de identidade.[10] A relação transversal não é da ordem nem do indivíduo nem da propriedade: a experiência da embriaguez, por exemplo, não é algo que um indivíduo tem, e sim o próprio material, o fluxo do qual o embriagado é constituído durante certo tempo. A relação transversal tampouco é da ordem da comunidade ou do grupo. A identificação como “alcoólatra” não dá conta nem do evento da embriaguez nem da eventual possibilidade do porre hidráulico ao estilo de Miller.

Aparentemente, Deleuze não está interessado nos discursos que são produzidos em torno da identidade (embora ele mesmo confesse ter seu próprio gueto). Segundo ele, “o argumento da experiência reservada é um mau argumento reacionário” que peca por “raso realismo”. Nesse sentido a homossexualidade não é para Deleuze nem identidade nem essência: “nenhuma bicha jamais poderá dizer com certeza ‘eu sou bicha’.” A comunidade homossexual não pode servir, portanto, como referente da verdade da enunciação de um “nós”, do mesmo modo que a identidade homossexual não pode servir como referente da verdade da enunciação do “eu”. O problema da filosofia, dirá Deleuze, não é tanto determinar quem pode pensar ou falar sobre o que, e sim como criar um conjunto de condições que permitiriam a todos e a cada um falar.

Entretanto, todos esses ajustes lógicos não permitem concluir o sentido da afirmação de Deleuze como “homossexual molecular”. Cabe ainda perguntar: quais são os mecanismos de transversalidade, as passagens de conversão através das quais é possível para Deleuze “ser homossexual” evitando a fecalidade e a toxicidade do gueto? Quais são os efeitos que Deleuze acredita ter alcançado molecularmente e que lhe permite “ser homossexual” sem “dever nada” às bichas? Quais seriam as operações lógicas que permitiriam afirmar a homossexualidade como posição de enunciação universal? E se esta posição fosse possível, independentemente da identidade, do gueto e das práticas sexuais, qual seria o sentido dessa homossexualidade conceitual depurada?

*

Embora a expressão “homossexualidade molecular” não apareça até O Anti-Édipo, de 1971-72, já em 1964 Deleuze realizou, em Proust e os signos, uma análise detalhada da figura do homossexual e da própria Recherche de Proust como uma operação de decifração de signos homossexuais. Como acontece com frequência nos estudos monográficos que faz de outros autores (Nietzsche, Espinosa, Foucault, Bergson, Leibniz etc.), Deleuze acaba produzindo uma maquinaria interpretativa que funciona na medida em que ela própria fabrica, deleuzianamente, seu próprio objeto de leitura. Proporei aproveitar estes elementos performativos, aqui, para decifrar retrospectivamente Deleuze à luz de seu próprio Proust.

A primeira divergência que Deleuze oferece com relação às interpretações habituais de Proust será considerar a Recherche não como uma compensação pela passagem do tempo e pela perda da memória através da escrita, mas sim como um processo de aprendizagem amorosa. Em primeiro lugar, Deleuze vai rejeitar a definição clássica de memória como acumulação de representações de fatos ou acontecimentos passados. Esta noção acumulativa de memória supõe certa equivalência entre cada uma das unidades de tempo: a memória não passaria de um arquivo mais ou menos elaborado de representações mentais no qual cada instante do tempo corresponde a um fato. Se assim fosse, a Recherche seria reduzida a uma taxonomia detalhada de fatos/imagens ordenados de acordo com uma cronologia crescente. Para Deleuze, no entanto, a Recherche não pode ser uma coleção sequencial de fatos/imagens porque não existe uma unidade de tempo que sirva de denominador comum a todos os eventos. A diferença de intensidade de cada instante provoca inflexões, invaginações no curso do tempo, obriga o tempo a se dobrar sobre si mesmo, dobra que explicaria por que dois momentos cronologicamente distantes aparecem representados por uma única imagem e uma única unidade de memória. Assim, as madeleines ou os campanários de Martinville contêm uma densidade monádica de lembranças que não podem ser reduzidas nem a um só fato nem a um só instante do tempo. A Recherche de Proust é, para Deleuze, a aprendizagem temporal de decifração de diferentes tipos de signos. É através da atividade concreta da decifração que podemos apreender o tempo: aprender do tempo.

Em sintonia com o ambiente semiótico da Paris pós-Saussure e pós-Hjelmslev[11] dos anos sessenta, Deleuze afirmará que a realidade não se oferece ao sujeito em forma de objeto e sim em forma de signo codificado, consequentemente, o filósofo vai estruturar sua análise de Proust a partir da especificidade dos signos decifrados: sua matéria, sua forma, os efeitos que os signos provocam, a relação entre o signo e o significado, a faculdade implicada no processo de decifração, sua estrutura temporal e, finalmente, a relação particular que os signos estabelecem com a verdade.

O primeiro nível dos signos que se oferece à decifração na Recherche é o nível da “mundanidade”. Curiosamente, os signos mundanos são os signos que aparecem na amizade e na filosofia. São signos vazios e estúpidos, dirá Deleuze, e embora se ofereçam à inteligência, estão marcados pelo esquecimento. São signos cruéis e estéreis, já que dependem da própria falácia da representação, isto é, da ilusão de acreditar na realidade objetiva do signo sem conhecer as operações através das quais este a substitui. A amizade depende de certa boa vontade na interpretação dos signos, do mesmo modo que a filosofia depende da boa vontade na procura pelo verdadeiro. Deleuze opõe a amizade ao amor e a filosofia à arte. Enquanto a amizade e a filosofia são produtos da boa vontade, o amor e a arte dependem do intercâmbio de signos enganosos, mentiras que, como veremos, emanam de uma homossexualidade criptografada.

O segundo nível de codificação dos signos é o do amor. De acordo com Deleuze, Proust mostra na Recherche que se apaixonar não passa de aprender a reconhecer o outro por seus signos específicos. O amor exige a dedicação do amante numa atividade intensa de decifração dos signos particulares que o ser amado produz. O amante da Recherche é, antes de tudo, um “investigador” de signos, um tradutor e um intérprete, que aspira a decifrar os signos do amor em cada encontro sexual. Mas a decifração de signos amorosos é paradoxal: à medida que o amante aprende a decifrar os signos da amada, compreende também que o código não foi criado para ele: “Não podemos interpretar os signos de um ser amado sem desembocar em mundos que se formam sem nós, que se formaram com outras pessoas, onde não somos, de início, senão um objeto como os outros.”’[12] É por isso que os mesmos signos que um dia convidaram ao amor agora o conduzem até a dor do ciúme. A decifração torna-se, assim, decepção e desencanto quando os signos do ser amado excluem o amante. É dessa forma que todo o tempo investido na aprendizagem e na decifração dos signos do outro aparece agora como tempo perdido.

Deleuze chamará de “contradição do amor” esta relação inversamente proporcional entre a decifração e a verossimilhança do amor: quanto mais sofisticada é a decifração dos signos da amada, mais próximo está o final do amor e a amarga decepção do ciúme. Mas é exatamente nesse momento que Deleuze muda a direção na qual os conceitos pareciam se mover para definir o ciúme não só como um afeto doloroso, mas também como um processo de descobrimento, como uma verdade que justifica a perda de tempo que implica a decifração. O ataque de ciúmes é um momento de revelação crucial no processo de aprendizagem serial do amor. Junto à dor e à perda de tempo, o ciúme oferece ao amante, pela primeira vez, o prazer de uma verdade mais forte que o próprio amor: “o ciúme é mais profundo do que o amor; ele contém a verdade do amor.”[13] O reconhecimento de um signo como mentira e o desenvolvimento dos ciúmes como exclusão e, portanto, como impossibilidade de continuar a decifração, empurram o amante a abandonar o mundo da amada e a continuar a Recherche. Assim começa a primeira repetição serial do amor como interpretação de signos. Nessa primeira aproximação, o amor está condenado a ser simples monogamia heterossexual serial.

Mas essa semiologia dos ciúmes não teria nada de excepcional a não ser pelo modo como Deleuze, lendo Proust, vai resolver o problema da repetição e da serialidade (e, de quebra, a questão da monogamia). O aprofundamento dos signos, que começa com o primeiro ataque de ciúmes, atinge seu ponto de inflexão quando o amante reconhece que está excluído do mundo dos signos da amada não de um modo acidental, e sim estrutural, já que os signos que a amada produz não estão dirigidos a outro homem (com o qual o amante poderia se medir e competir), mas a outra mulher. A verdade do amor entre homem e mulher é dita em forma de mentira. O amor heterossexual, afirmará Deleuze seguindo Proust, é o produto enganoso de um intercâmbio de signos dirigidos a um outro encoberto: o homem produz signos para outros homens (“signos de Sodoma”), a mulher produz signos para outras mulheres (“signos de Gomorra”). O amor aparece, assim, como um campo de tiro semiótico no qual a relação heterossexual é o resultado do encontro fortuito, mas necessário, de balas cruzadas. Dirá Deleuze, “no amor, a essência se encarna a princípio nas leis da mentira, mas, em seguida, nos segredos da homossexualidade: a mentira não teria a generalidade que a torna essencial e significativa se não se referisse à homossexualidade como à verdade que ela encobre. Todas as mentiras se organizam e giram em torno dela, como em torno de seu eixo”.[14] Como mais tarde mostrará René Schérer, os amores heterossexuais se caracterizam por sua “profundidade superficial”, enquanto os amores de Sodoma e Gomorra descobrem uma “superfície saturada de verdade”.

Assim, chegamos a compreender por que a aprendizagem dos signos não depende da boa vontade, nem de uma espécie de inclinação à verdade, mas da violência de uma situação concreta que nos leva a essa busca.[15] É por isso que a amizade e a filosofia, ainda que estejam próximas da produção de signos homossexuais, carecem de instrumentos adequados de decifração posto que são fundamentalmente atividades “realistas” e ingênuas que não podem enfrentar o signo que se desdobrou contra si mesmo na forma de mentira. A verdade do amor não é, como gostaria a filosofia, o pressuposto da razão, e sim o resíduo, o detrito de um processo de decifração que só encontra sucesso na medida em que falha. A verdade é o resultado da violência que nos obriga a abandonar o prazer da repetição serial do amor, é a necessidade que nos faz acreditar na mentira e na força, com a qual a escolha da dor se impõe à vontade perante a ameaça de Sodoma e Gomorra. O ciúme do outro “homossexual” constitui o ponto de fuga e a linha de divergência da repetição serial de amores heterossexuais.

Finalmente, seguindo uma inércia que só encontrará razão de ser em O Anti-Édipo e que supera a interpretação de Proust, Deleuze afirma: “A homossexualidade é a verdade do amor.”[16] Nesse ponto o texto alcança uma complexidade injustificada: primeiro, Deleuze denomina amores “intersexuais” as relações heterossexuais, desenhando uma oposição entre intersexuais e homossexuais que remete à linguagem médica de fins do século XIX,[17] e à qual Deleuze não dará atenção explícita.[18] E, segundo, a homossexualidade se revela na realidade como produto de um hermafroditismo originário, sendo todo “amor intersexual” o acoplamento de dois corpos hermafroditas:

“No infinito de nossos amores está o hermafrodita original. Mas o hermafrodita não é um ser capaz de fecundar-se. Ao invés de reunir os sexos, ele os separa; é a fonte de onde jorram continuamente as duas séries homossexuais divergentes, a de Sodoma e a de Gomorra. É ele que possui a chave da predição de Sansão: ‘Os dois sexos morrerão cada um para seu lado. Assim, os amores intersexuais são apenas a aparência que encobre a destinação de cada um, escondendo o fundo maldito onde tudo se elabora.’”[19]

Agora compreendemos distintamente como a homossexualidade é a verdade do amor: “A verdade do amor é, de início, a divisão [cloisonement] dos sexos.”[20] A homossexualidade, antes de ser identidade ou prática, é estrutura: separação originária dos sexos que funda o teatro do amor heterossexual.

Talvez em resposta a esta complexidade, Deleuze acrescenta, em 1970, uma segunda parte a Proust e os signos que intitulará “A máquina literária”, na qual incluirá não só a distinção proustiana entre a homossexualidade grega e a homossexualidade judia, como também a análise dos dois tropos fundamentais da homossexualidade em Proust (que serão centrais para a esquizoanálise), a metáfora vegetal e a eletromecânica. É na segunda parte de Proust e os signos que ele incluirá, também, a distinção entre a homossexualidade global e específica e a homossexualidade local e não específica. Tal distinção se fará temática na oposição entre homossexualidade molar e molecular em O Anti-Édipo. Por último, a homossexualidade, na figura de Charlus, irá se revelar como uma das máquinas literárias mais potentes, uma antecipação do que serão os objetos parciais, as máquinas desejantes e os corpos sem órgãos em O Anti-Édipo e em Mil platôs.

A homossexualidade, para Deleuze, não se explica pelos signos autônomos que produz, e sim por referência a uma unidade originária, a uma mitologia vegetal fundadora:

“É aí, justamente, que o tema vegetal adquire todo o seu sentido, por oposição a um lagos-vivente: o hermafroditismo não é a propriedade de uma totalidade animal hoje perdida, mas a compartimentação atual dos dois sexos numa mesma planta. ‘O órgão masculino está separado nela por um tabique do órgão feminino.’ ( …) um indivíduo de determinado sexo (se se é de determinado sexo global ou estatisticamente) traz em si mesmo o outro sexo, com o qual não pode comunicar-se diretamente.[21]

Tanto a homossexualidade como a heterossexualidade são produto de uma arquitetura disciplinadora que ao mesmo tempo separa os órgãos masculinos e femininos e os condena a permanecer unidos. Desse modo, toda relação intersexual (isto é, heterossexual) é o cenário do intercâmbio de signos hermafroditas entre almas do mesmo sexo, ou, nas palavras de Deleuze, “uma comunicação aberrante [que] se faz em uma dimensão transversal entre sexos compartimentados”. Esta é a relação que Deleuze denominará “homossexualidade molecular”:

“não mais uma homossexualidade global e específica em que os homens se relacionam com os homens e as mulheres com as mulheres numa separação de duas séries, mas uma homossexualidade local e não específica em que o homem procura também o que há de masculino na mulher, e a mulher, o que há de feminino no homem; e isso na contiguidade compartimentada dos dois sexos como objetos parciais.”[22]

Deleuze já efetuou, cuidadosamente, duas substituições estratégicas: primeiro, onde deveria dizer heterossexualidade diz intersexualidade; segundo, deu o nome de “homossexualidade local ou molecular” a uma forma particular dessas relações intersexuais. O terceiro deslocamento de significado, mais violento e injustificado, estabelecerá uma equação entre a “homossexualidade molecular” e o que Deleuze haverá de chamar de “transexualismo”.[23] Não é de surpreender que Deleuze tome a noção de “transversalidade” nesse ponto para explicar essa forma específica de homossexualidade. Será Charlus que levará a cabo o trabalho da transversalidade, atuando como “inseto polinizador” e fecundando os sexos de um modo que certamente haverá de complicar o discreto intercâmbio dos signos deleuzianos.

Detenhamo-nos um momento em Charlus, e sigamos, através dele, a transição entre as duas partes de Proust e os signos (entre as quais há seis anos de diferença, além da presença cada vez mais constante de Guattari na obra de Deleuze), ou melhor, entre a afirmação “a homossexualidade é a verdade do amor” e a restrição da homossexualidade a sua modalidade molecular a partir de 1970.

Deleuze parece oscilar, atraído por Charlus, entre duas leituras opostas da homossexualidade. Por um lado, a homossexualidade se apresenta como o cenário doloroso no qual se mostra a separação originária dos sexos. Charlus exibe a divisão e leva até o fim a polinização que aspira a reunir os sexos compartimentados. Nesse sentido, o homossexual é, antes de tudo, uma figura pedagógica, um espelho no qual o heterossexual observa sem perigo o devir do signo e a separação hermafrodita de seu próprio sexo, como se de outro se tratasse. Charlus é uma lente, um método de conhecimento, um instrumento de representação dos mecanismos que fundam o amor heterossexual. Por outro lado, Charlus parece anunciar a dissolução dos gêneros, o final do sexo como acoplamento de órgãos, e, de alguma maneira, ameaça a própria distinção entre homossexualidade e heterossexualidade.

Charlus não é só o personagem homossexual por excelência da Recherche, mas, e sobretudo, o nome paradigmático da homossexualidade masculina; o narrador da Recherche, ao reconhecer nos homens os traços afeminados da homossexualidade dirá: “É um Charlus.” Charlus é uma dobra de signos enganosos, um nó górdio de codificação e decifração. O corpo de Charlus, saturado de signos, oferece-se ao trabalho da decifração como um texto feito de carne. Na descrição de Charlus como rede de signos, Deleuze se aproxima curiosamente da explicação que mais tarde fará Eve K. Sedgwick da dialética de mostrar-ocultar que caracteriza a “epistemologia do armário”. O homossexual se mostra exatamente através dos mesmos signos que o dissimulam: “os gestos, os olhares, os silêncios, as posturas são as cifras falantes de um hieróglifo.”[24] Charlus não é simplesmente um emissor de signos (enganosos), sua essência mesma é ser signo. No entanto, essa inflação semiótica não se resolve em significação. Se, para Deleuze, a homossexualidade é uma forma superior de conhecimento, é exatamente porque nela se expressam e se dissolvem todas as contradições da metafísica ocidental: na figura de Charlus, vítima sacrifical de um ritual semiótico, produz-se a mudança do plano vertical da verdade como oposição entre o significante e o significado, entre o baixo e o elevado, entre o feminino e o masculino. Este é o primeiro momento da perversão: inversão nietzschiana de todos os contrários, transvaloração de todos os valores. Mas a perversão, num segundo momento, é principalmente a torsão do plano vertical da verdade, a alteração da correspondência entre os signos e a verdade transcendental que estes parecem invocar. O plano horizontal da homossexualidade é um teatro no qual os signos circulam sem referente transcendental. Do mesmo modo que o esquizofrênico se entrega ao fluxo da cadeia de significantes sem sentido, Charlus goza do devir da simulação; talvez por isso, Deleuze e Guattari afirmarão em O Anti-Édipo: “Charlus é certamente louco.”

Charlus é ao mesmo tempo a encarnação do hermafrodita vegetal e do inseto polinizador que permite a comunicação dos sexos separados. Mas esta fecundação, que Deleuze chamará de “transexual”, é descrita de um modo contraditório:

“Mas tudo se torna complicado porque os sexos separados, divididos, coexistem no mesmo indivíduo: ‘Hermafroditismo inicial’ como numa planta ou num caramujo, que não podem ser fecundados por si próprios, mas ‘podem sê-lo por outros hermafroditas’. Acontece, então, que o intermediário, em lugar de assegurar a união do macho com a fêmea, desdobra cada sexo em si mesmo. Símbolo de uma autofecundação, tanto mais comovente por ser homossexual, estéril, indireta”.[25]

Charlus não pertence à ordem do indivíduo, situa-se além (ou aquém) do sujeito unissexuado, em um espaço botânico onde se encarrega de finalizar o trabalho de polinização. Esquiva o dilema sexual do Édipo graças à polinização anal: “Édipo já não deve saber se está vivo ou morto, se é homem ou mulher, pai ou filho. Incesto, será zumbi e hermafrodita.”[26] Charlus fecunda sem necessidade de irromper na filiação do pai e do filho. Entrega o ânus e evita o incesto: possibilidade de uma geração que escapa à cruel repetição da reprodução sexual. Sem dúvida agora, podemos concluir que o que fascina Deleuze, e o que ele denominará “homossexualismo molecular” em O anti -Édipo, é a habilidade do homossexual, inseto polinizador, de empreender um processo de fecundação, de geração e de criatividade entre aqueles que de outro modo senão estéreis.

Charlus é o grande inseto polinizador, o que estabelece conexões fecundantes entre os hermafroditas; o que faz o trabalho paradoxal da “fecundação estéril”.[27] O Charlus-molecular situa-se antes e depois da história, antes da evolução animal que conduz ao homem e depois da humanidade como genealogia heterossexual edípica, aproximando-se da ordem sem sentido do antilogos: a ordem da máquina, da arte, do pensamento. Não se identifica nem com a culpa nem com o gueto,[28] não se deixa absorver pelas “duas associações malditas que reproduzem as duas cidades bíblicas”, Sodoma e Gomorra. Agora, a distinção entre o Charlus molar e o Charlus molecular aparece mais clara, entre a paranoia e a esquizofrenia, entre a homossexualidade-identidade e a homossexualidade-transversal:

“Trata-se, sobretudo, da diferença entre dois tipos de coleções ou de populações: os grandes conjuntos e as micromultiplicidades. (…)Todo investimento é coletivo, todo fantasma é de grupo e, neste sentido, posição de realidade. Mas os dois tipos de investimento distinguem-se radicalmente (…) Um é investimento de grupo sujeitado, tanto na forma de soberania quanto nas formações coloniais do conjunto gregário, que reprime e recalca o desejo das pessoas; o outro é investimento de grupo sujeito nas multiplicidades transversais portadoras do desejo como fenômeno molecular, isto é, objetos parciais e fluxos, por oposição aos conjuntos e às pessoas.”[29]

O Charlus molecular está feito de incessantes devires: devir-mulher, devir-animal, devir-flor, devir por um instante fluxo que entra e sai do ânus, mas não se identifica nem com a mulher nem com o inseto, nem com a flor nem com a merda. Charlus é molecular porque quando dá o cu, fecunda.

A molecularidade restringe a homossexualidade à fecundação, à geração e à criatividade.[30] Nesse sentido, um ato de criação supõe certa “fecundação estéril” entre “autores” do sexo masculino, uma geração inocente, vegetal, mecânica, virginal, mas… anal. Talvez por isso uma das definições mais citadas da criação filosófica em Deleuze (que curiosamente se encontra na resposta de Deleuze a Cressole) toma a forma de uma “inseminação pelas costas”: “(…) concebendo a história da filosofia como uma espécie de enrabada [encoulage], ou, o que dá no mesmo, de imaculada concepção. Eu me imaginava chegando pelas costas de um autor e lhe fazendo um filho, que seria seu, e no entanto seria monstruoso.”[31] A história da filosofia aparece, então, como uma cadeia de fecundações anais entre homossexuais moleculares sem gueto e sem culpa. Isto é, entre homens “intersexuais” que têm seus próprios guetos heterossexuais, mas que se reproduzem entre eles num circuito hermafrodita que escapa às leis da reprodução sexual.[32] Além da maldição da geração “natural” que parece dominar Édipo (reprodução uterina que encadeia o homem à filiação de Eva e, portanto, à culpa e à identidade), a homossexualidade abre o ânus molecular a uma fecundação artificial e monstruosa. Os filósofos anais da história estão ligados pelo fluxo textual de uma margarida que une os ânus e os pintos, que interpreta e traduz. A filosofia é, portanto, uma forma de inseminação artificial por meio da qual o ânus semiótico vem a ser útero (mulher) e mais tarde inseto polinizador (animal), e assim uma e outra vez, incessantemente. “Tudo existe nessas zonas obscuras em que penetramos como em criptas, para aí decifrar hieróglifos e linguagens secretas. O egiptólogo, em todas as coisas, é aquele que faz uma iniciação – é o aprendiz.”[33] O filósofo, como bom egiptólogo em face do fluxo de signos, devém como mãe-proctologista que lança ao mundo a progenitura dos que se amaram até serem estéreis.



Notas.

1 Gilles Deleuze e Félix Guattari, O Anti-Édipo. Trad. bras. de Luiz Orlandi. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 97.

2 Esta será uma das acusações de Michel Cressole a Deleuze. usar a homossexualidade do mesmo modo que Greta Garbo usava seus óculos escuros, como uma pose esnobe. Ver: Michel Cressole. Deleuze. Paris: Éditions Universitaires, 1973.

3 Neste artigo, não será possível responder à questão da relação que se estabelece entre as noções de homossexualidade molecular e de “devir-mulher” pois esta demanda uma análise independente. Deixarei de lado também a figura complexa de Albertine na discussão sobre Proust e os signos, que tratei em outro artigo: “Alberline Anal” (manuscrito não publicado). Sobre a cautela do feminismo americano diante do “devir-mulher”, ver: Deleuze and Feminist Theory. Ian Buchanan e Claire Colebrook (Orgs.). Edimburgo: Edinburgh University Press, 2000.

4 Em 1972, diretamente inspirado em O Anti -Édipo, Guy Hocquenghem publica Le Désir homosexuel (Paris: Les Éditions Universitaires, 1972). Gilles Deleuze escreverá o prefácio de seu segundo livro, L’Après Mai des faunes. Paris: Grasset, 1974.

5 René Schérer, Regards sur Deleuze. Paris: Éditions Kimé, 1998.

6 Unité d’une prétendue philosophie du desir. A narração de alguns desses encontros deleuzianos pode ser acompanhada em François Châtelet, Chronique des idées perdues. Paris: Stock, 1997.

7 Michel Cressole, Deleuze. Paris: Éditions Universitaires, 1973, p. 102.

8 Gilles Deleuze, Conversações. Trad. bras. de Peter Pál Pelbart. São Paulo; Editora 34. 2008, p. 172.

9 Ibid., pp. 20-21.

10 Ver o argumento em torno deste problema em Ian Buchanan (Org.), A Deleuzian Century? Durham: Duke University Press, 1999, p.5.

11 Deleuze e Guattari, ao invés de seguir a divisão de Saussure do signo em significante e significado, adotam a fórmula de Hjelmslev de acordo com a qual o signo se desdobra em formas de conteúdo e em formas de expressão.

12 Gilles Deleuze, Proust e os signos. Trad. bras. de Antonio Piquete Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003 pp. 7-8.

13 Ibid., p. 8.

14 Ibid., p. 76

15 Ibid., p.14.

16 Ibid., p. 76.

17 Embora o discurso médico nunca será evocado por Deleuze na análise de Proust, seria possível estabelecer uma aproximação entre a interpretação da homossexualidade de Proust (e, por derivação, de Deleuze) e a teoria do Terceiro Sexo, de Karl Heinrich Ulrichs. Desenvolvi esta conexão no texto ”Devenir Urning” (manuscrito não publicado).

18 Em O Anti-Édipo, Deleuze preferirá a linguagem da heterossexualidade à da intersexualidade.

19 Gilles Deleuze, Proust e os signos, op. cit., p. 10.

20 Ibid., p. 75.

21 Ibid., p. 128.

22 Ibid., pp. 129-130.

23 Ibid., p. 131.

24 René Schérer, op. cit., p. 65.

25 Gilles Deleuze, Proust e os signos. op. cit., p. 75.

26 Gilles Deleuze e Félix Guattari, O Anti-Édipo. Trad. bras. de Luiz Orlandi. São Paulo: Editora 34. 2010, p. 105.

27 Se para Deleuze Charlus é o inseto polinizador e a máquina desejante, para Guy Hocquengem Charlus é sobretudo o “grande cu” e a “máquina de transar”.

28 Sobre o tema da culpa e a consciência depressiva da lei ver: Gilles Deleuze, Proust e os signos, op. cit., pp. 134-137; Gilles Deleuze, Le froi et le cruel. Apresentação de Sacher-Masoch. Paris: Éditions de Minuit. 1967, capítulo VII; Gilles Deleuze, O Anti-Édipo, op. cit., pp. 61-64; René Schérer, op. cit., pp. 71-73.

29 Gilles Deleuze e Félix Guattari, O Anti-Édipo, op. cit., p. 370.

30 Deleuze conhece Guattari em 1969 e fica impressionado por alguém que, não sendo filósofo de formação, “encara a filosofia em estado de criatividade”. A partir desse momento, Deleuze e Guattari irão trabalhar juntos em vários projetos durante mais de duas décadas. Gilles Deleuze, “Entrevista” in Libération, edição de 12 de setembro de 1991.

31 Gilles Deleuze, Conversações, op. cit., p. 14.

32 Aqui seria preciso voltar aos escritos de Otto Weininger, de Nietzsche, de Freud, de Lacan etc. para descobrir a pergunta pela heterossexualidade escondida atrás das pesquisas sobre a feminilidade, a diferença sexual ou a homossexualidade (ver a análise de Slavoj Zizek sobre Weininger, Nietzsche e Freud em Metastasis of Enjoyment Nova York: Verso, 1995). A heterossexualidade molar é a verdade da “homossexualidade molecular”. De repente, o problema de interpretação que parecíamos perseguir durante todo o texto se inverte: não se trata de saber por que Deleuze e Guattari se afirmaram como “homossexuais moleculares”, e sim de entender por que não puderam, em 1970, fazer seu coming out enquanto heterossexuais.

33 Gilles Deleuze, Proust e os signos, op. cit, p. 86.



(Manifesto Contrassexual: Práticas subversivas de identidade sexual. Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro).





(Ilustração: Carlos Barahona Possollo)

segunda-feira, 14 de agosto de 2023

DESAFIO, de Mariana Ianelli

 



Um último olhar para os canteiros repisados,

Ainda isso te comove -



São coisas familiares que retornam,

Pequenas pedras, lâmpadas de um caminho,

Uma trilha sob o arco da folhagem

Como se apesar de tudo os mesmos passos,

A mesma ronda, o mesmo afogueado abrigo.



Provando o rumor dos interiores,

As cores sóbrias, o lado gótico da vida,

Pouco a pouco perdendo o fogo e o viço,



O desafio é quanto pode durar o teu sorriso

Contra toda a tua escória, as tuas derrotas,

No fragor dos estilhaços, algum brilho.



(O amor e Depois)



(Ilustração: Tetsuya Ishida)

sexta-feira, 11 de agosto de 2023

A BELEZA NÃO EXISTE. SÓ ESTÁ NA MENTE DOS SERES HUMANOS, de Francisco Mora


Quando escuto em um grande auditório o último movimento da Nona Sinfonia de Beethoven, tocada por uma grande orquestra, e com um grande coral, experimento “algo” que me transporta. É algo sublime, algo que me domina, me subjuga, me torna pequeno. Também não posso evitar esse outro sentimento diferente, que deixa meus olhos colados àqueles sóis flamejantes, àqueles céus azuis retorcidos pela tempestade pintados por Van Gogh. Olhar para aquelas pinturas me subjuga. Sem dúvida, todo mundo sabe que estou falando de beleza. Ao falar dessa maneira, parece evidente que contemplamos uma beleza que é inerente ao que se ouve ou se vê, mas não é assim. A beleza não existe no mundo que vemos, ouvimos ou tocamos. Não existe em nada que nos rodeia. O mundo não possui nenhuma beleza; não é, em nada, uma propriedade inerente a ele. A beleza é criada pelo cérebro humano. Só existe na mente dos seres humanos. É um prodígio do cérebro.

Antes, é verdade, pensava-se que a beleza era um atributo imanente às coisas do mundo ou constitutivo da obra artística criada. A beleza tinha sua existência em si mesma, no objeto ou nos estímulos sensoriais externos, e a pessoa era apenas um sujeito passivo, contemplativo. Em outras palavras, a beleza era objetiva, com uma presença externa e eterna no mundo. Hoje sabemos, pelo contrário, que a beleza é algo subjetivo, criado pelo ser humano e que não está fora, no mundo sensorial. Hoje entendemos que a beleza é criada pelo ser humano depois de observar e perceber certas características do objeto que ele contempla. A beleza é, na verdade, uma construção mental composta de percepções, emoções, sentimentos e conhecimento.

No centro da nossa experiência de beleza está esse algo mais emocional que nasce daquilo que percebemos. Um algo mais emocional evocado, como um fio invisível, pelas palavras ao se ler um poema, ou a visão de uma pintura ou escultura, ou o sublime som de uma sinfonia, de uma paisagem de verdes com múltiplos tons, de um alvorecer de cores sem formas ou um rosto de proporções perfeitas. Mas, precisamente por ser uma emoção produzida naquele cérebro profundo, onde se depositam as memórias mais íntimas e pessoais em cada ser humano, nem todos percebem a beleza da mesma maneira ou nas mesmas coisas. Além disso, é aquela emoção — que quando banhada de consciência se torna sentimento — que faz com que cada um, cada ser humano, experimente sua própria beleza, única e diferente de qualquer outra.

De fato, a apreciação da beleza é, em grande parte, produto da experiência pessoal e da própria educação recebida. Tudo isso faz com que alguns percebam, de um modo especial, a beleza na pintura, mas não na música (Sigmund Freud seria um bom exemplo), ou que na pintura alguns valorizem as cores, mas não tanto as formas ou os traços borrados do movimento ou o figurativo estático. Ou, claro, que a música (de apreciação estética tão multifacetada — sustenidos harmônicos, contrapontos, acordes, ritmos e as infinitas combinações de graves, agudos e silêncios) seja percebida de modo tão diverso por tantas pessoas diferentes. (…)

Por que O Nome da Rosa, romance de Umberto Eco, cativou centenas de milhares de pessoas do começo ao fim e fez com que tantas outras perdessem o interesse antes de terminar a leitura? O que afasta tantas pessoas de Stravinski e, no entanto, as aproxima de Mozart ou Beethoven? O que tantas pessoas que admiram tão profundamente a arte de Velázquez rejeitam nas pinturas de Picasso? O que faz as esculturas de Chillida serem, para muitos, “pedras sem arte”, mas que torna as esculturas de Rodin tão evocadoras de beleza? O que provoca o entusiasmo e a admiração ao Duomo de Milão, mas que não produz o mesmo efeito para muitos em relação ao Guggenheim de Bilbao?

Essa emoção que subjaz à apreciação da beleza é aquela que se expressa no prazer diante do que se vê ou se ouve. O prazer, como expressão emocional inconsciente, é o componente básico na apreciação da beleza. Mas não o prazer relacionado a esses prazeres básicos, aqueles que sustentam a sobrevivência do indivíduo, tais como os obtidos a partir da comida, da bebida, da sexualidade, do jogo ou do sono, quando estamos privados deles. O prazer associado com a beleza não é o prazer do desejo e do orgasmo, que consumado pontualmente nos empurra “sem razão, e como isca engolida, a manter-se vivo” (William Shakespeare). O prazer, o deleite referido à beleza é conseguido pelos ingredientes neuronais adicionados no cérebro àqueles outros mais básicos. (…) São prazeres gerados em parte pela cultura em que se vive e além do cérebro emocional e de sua atividade primitiva. São prazeres que surgem de uma interação muito próxima entre o córtex cerebral humano e o cérebro emocional, por isso nenhum animal os possui. Dessa interação nasce a consciência, a compreensão, o entendimento, a razão humana.

Precisamente este último, a interação com as coisas do mundo (percepção), produz o conhecimento, o outro ingrediente básico para a percepção da beleza. Porque a beleza é isso em sua essência, prazer e conhecimento e, neste último, a capacidade cognitiva de perceber a ordem, a proporcionalidade, a simetria, a clara delimitação do que é percebido. E tudo isso tem muito a ver com a educação recebida e com a cultura em que nascemos e vivemos. (…) Basta pensar que poucos cidadãos da Idade Média ou até do Renascimento poderiam ter encontrado beleza na figuras humanas torcidas, nos vermelhos policromados e flamejantes das árvores, nos amarelos vivos dos campos de trigo ou nos azuis giratórios e atormentados das pinturas de Van Gogh, ou na obra de Antonio Gaudí (…) A arte, portanto, e com ela a beleza, é uma verdade subjetiva para cada um. Verdade para a qual muitas pessoas tiveram expressões como “valeu a pena viver para experimentá-la”. Sem dúvida, a beleza é um fenômeno cerebral que mudou o mundo dos seres humanos e as mitologias e verdades vivas de cada sociedade, cultura ou nação. A beleza, que não existe no mundo, é talvez um dos grandes prodígios criados pelo cérebro humano.



(Originalmente publicado em El País Brasil, 29 outubro 2018).



(Ilustração: Ernest Eugene Barnes Jr. - lift every voices)


terça-feira, 8 de agosto de 2023

ELES VINHAM DA MISSA, de Maria Azenha

 

 




eles vinham da missa.

eles vinham da missa sozinhos.

traziam nos olhos o céu

nos pés talvez trouxessem

o coração.

eles vinham da missa …

mas eles vinham da missa sozinhos!

traziam nas mãos pechisbeques

unhas rentes oração

piolhos imaginados

um certo olhar vazio aveludado

em certo estilo

uma faca cravada nos dentes

uma amante nos slip’s

o põe-e-tira-a-chaga e tira-aquilo

dois lábios cronometrados

uma 6ª feira no adro

um frade no sermão.



eles vinham como um fardo.

eles vinham como o vinho.

eles vinham da missa amestrados

eles vinham consagrados.

e traziam à volta um chimpanzé

que lhes vendia a medo o império do Cavaco.

eles vinham da missa sozinhos

rodas-baixas na oração

com as damas pelos joelhos

ão, ão,

ao serviço dos supermercados.



eles vendiam a porcaria da Justiça

às galinhas da Praça!,

à Mexicana,

aos gelados sacré-coeur noites de Verão

eles traziam plantas carnívoras

nas barbas e nos lábios.



aos milhares como galáxias

eles diziam-se meus irmãos.

eles tinham um olho no deserto

e Outro ao lado das mãos.

eles vinham da missa.

eles vinham da notre-dame-nulle-part,

bourdel das lágrimas vazias,

pirâmides de Ravel.

mas está na moda um tumor de vez em quando

ou o Roberto Carneiro ou o Carneiro Carneiro

pisca-pisca na televisão.



eles tinham de facto filhos

como bolas de sabão,

e a mulher era a Nossa Senhora da Face das Papoilas

a constituir uma equipe de football.



às vezes eles saíam da missa aos domingos

com facas nas algibeiras,

faziam-se peditórios palestras

marchas Stº Antónios

uma marca na lapela

e está tudo a postos para a Gravação:

o céu a clientela o Santo Padre nas janelas

como um fantasma ao Sol.

eles tinham fome e roubavam

as estrelas moribundas que passavam.



ah! eles vinham da missa aos molhos

como uma procissão.

usam no próprio nome a Praça

e o desespero suga-lhes o coração

os termos a graça a raça

a Primavera de costas as mãos.

eu própria eu sei

que a Arte é uma coisa muito perigosa!

mas eles saem da missa

na vela dos seus iates.

e quando o Amor sopra

eles comem lagosta

no bidé da Praça.



eles fazem sempre amor quando o sacrário se abre.

eles inclinam as cabeças.

e se o Inverno intempestuosamente passa

eles põem olhos-de-sofrer nas gravatas.

eles são como flores fechadas

no enterro das Praças.

roubaram todo o ano o Templo dos Anarquistas!



eles sabem que a Arte é perigosa.

eles sabem que a Arte é preparada

Hora-a-Hora e não acaba.

eles têm medo quiçá das trevas do esteves cardoso

do Portas dos Poetas dos loucos dos pobres

dos filhos-de-Nada dos fala-Baratas

e por isso comem mortos!



mil e uma vezes eles sabem

que as armas dos Artistas

derrubam as Grades: a televisão os cigarros

as regras a macrobiótica

as greves os corpos

os deputados as datas,

quais fumos em Altos-fornos

por onde a gente passa!…



eles saem da missa sozinhos

mascando Haxe nos lábios.

eles fumam a favor da Liberdade.

eles sabem que estão salvos.

eles sabem que são bonzinhos.

eles sabem que Deus é Deus

e Deus sabe tudo como eles.

eles sabem jazz eles sabem eletricidade.

eles conhecem Expo-Sevilha,

eles sabem Fado.

eles sabem tudo.

eles comem tudo.

eles são a grafonola da Canalha.



a morte p’ra eles é Pop,

é molinha tem I.V.A. e tudo!

porque os outros é que morrem.

os outros é que atravessam

a porcaria da História,

com discursos com ruas

com buraquinhos

com beijocas nos cemitérios

com os Lusíadas debaixo do braço

com a Demasia do Pessoa

com a série-noire do Vang Gof

com panfletos na pátria

com moscas no cafezinho.



eles sabem que a Arte é perigosa.

eles são Pop!



são a estereofonia ouvida em mono.



eles vêm da missa de jeep

como cristóvão colombo de barco.

eles trazem a América no carro.

eles pintam a morte num abrir e fechar dólhos

como que a dedilhar uma trova

e os pobres dão-lhes um osso.

e eles mordem.

eles são mesmo óptimos!

estão salvos com o céu todo.

eles vivem no caixão do Padre.



eles sabem que a Reencarnação

é uma ideia retrógrada.

eles sabem tudo. eles sabem Nada.

eles usam Nódoas.



eles vão ao “dancing”

ao “Bora-Bora” ao “Trumps”

eles vão pôr flores nos campos

relinchando orações pela boca-fora.

eles dançam às modas.



eles trazem um tremoço de Dante

no nevoeiro de D. Sebastião.

eles usam saco. eles usam molas.

eles usam até as metáforas na Televisão.



eles usam tudo.

eles sabem tudo.

eles comem tudo.

eles fedem tudo.



eles usam até binóculos

para dançar à espanhola na História.



Olé! Olé! Olé!



eles sabem que a Arte

é a coisa mais perigosa!



por isso a Greve sendo pomposa

é um processo estatelado na Cova.

nunca se deve fazer Greve

a favor de Nada.



a Greve é o Cartoon do Cunhal.

a Greve é construção-Naval.

a Greve é um grande Carnaval:



compra a mãe compra o padre

compra o filho num segundo

compra todo o mundo.

compra tudo.



o que se deve é fazer Arte.

Arte é Diálogo!

Arte aos Berros! Arte Triunfal! Arte no Pontão!

Arte no Porão!

Arte no Coração!

Arte no Sangue! Arte na Garganta!

Arte às mãos-cheias da matéria

das galáxias!

Arte nas Igrejas! Arte nos Cavalos!

Arte no Jornal!

Arte nas crianças!



a Arte só se deve Vender às Baleias!



a Arte é o Espírito-todo o ano

todo o ouro atravessado nas igrejas.

a Arte é uma pedra violada

pelo chão!



a Arte é um Anjo!



a Arte é um carro envolto em nevoeiro

às buzinadelas na estrada,



a Arte meu Deus

não é uma ideia!



a Arte é Virgindade!

a Arte é reencarnação!

a Arte é a chuva

reencarnada nas montanhas!

a Arte é o vento

espetado nas veias,

a Arte é no mundo não haver Cadeias!

a Arte é o Amor amar todos por igual!

a Arte é tudo!

a Arte é Sinfonia!

a Arte é o maior Sinal!



mas eles saem da missa sem ideias…

eles saem para a rua

perfurados como um cartão …



E eu sou

como dizer-lhes?!

um Poeta de Variedades!!!





(Ilustração: Fred Benoit - La nonne dévoilée)

sábado, 5 de agosto de 2023

FEMINÁRIO, de Monique Wittig



As meninas procuram os ninhos de pintassilgos de tentilhões e pintarroxos nos arbustos e nas árvores. Encontram canários verdes e os cobrem de beijos, segurando-os contra o peito. Correm cantando, saltam sobre as pedras. São cem mil, voltando às suas casas para abrigar os pássaros. Na pressa, elas os seguram com muita força. Correram. Abaixaram-se para recolher as pedrinhas que jogaram longe, por cima das sebes. Não prestaram atenção aos gorjeios. Subiram diretamente para os quartos. Tiraram os pássaros de suas roupas, os encontraram sem vida e com a cabeça caída. Todas, então, tentaram reanimá-los, pressionando-os contra a boca, deixando cair sobre eles a respiração quente, levantando a cabeça mole, tocando o bico com os dedos. Eles permaneceram inertes. Então as cem mil meninas choram a morte dos canários verdes nos cem mil quartos das cem mil casas.

FLORA ZITA SAVÉ CORNÉLIA

DRAUPADI JULIANA ETMEL

CLOÉ DESDÊMONA RAFAELA ÍRIS VERA ARSÍNOE LISE

BRENDA ORFISA HERODIAS

BERENICE SIGRID AUDOVERA

Seja qual for a hora fixada para designar o início da ação, é preciso se apressar para que acabe antes do pôr do sol. Pode-se ver a parte inferior das escadas posicionada no chão, o topo escondido no amontoado de folhas e frutas. As cestas ao pé das árvores por vezes transbordam de cerejas: belles de Choisy cerejas inglesas ginjas marascas cerejas de Montmorency bigaudelles cerejas selvagens. São pretas brancas vermelhas translúcidas. Ao redor das cestas, maribondos e zangões se movimentam freneticamente. Elas sobem nas árvores, descem com os braços carregados de frutas. Algumas têm cestas presas na cintura. Outras estão imóveis nos degraus em diferentes alturas. Há também aquelas que se movem entre os galhos. Nós as vemos saltar para o chão e soltar a carga. Os raios oblíquos do sol incidem sobre as folhas e as fazem brilhar. O céu está cor de laranja.

Elas dizem que expõem seu sexo para que o sol se reflita nele como em um espelho. Dizem que retêm seu brilho. Dizem que os pelos pubianos são como uma teia de aranha que captura os raios. Nós as vemos correr a passos largos. Estão totalmente iluminadas no centro, a partir do púbis do clitóris encapuzado das ninfas duplas e dobradas. O clarão que emitem quando se imobilizam e viram a face faz com que desviem o olhar por não suportarem a visão.

Quando a lua está cheia, o tambor bate na praça principal. Os cavaletes são erguidos. Há copos de todas as cores e garrafas contendo líquidos coloridos. Alguns são verdes vermelhos azuis e evaporam se não ingeridos tão logo seja retirada a rolha que os encapsula. Cada uma pode beber até cair morta de bêbada ou até perder o controle de si mesma. O aroma das drogas que deixamos escapar das garrafas paira na praça, nauseante doce. Todas bebem em silêncio, em pé ou deitadas nos tapetes desenrolados ao longo da rua. Então elas fazem vir as meninas. Nós as vemos meio adormecidas desnorteadas hesitantes. Elas são convidadas a usar seu poder sobre os corpos estendidos, chorosos. As crianças vão de uma para outra tentando despertá-las, usando pedras dos baldes d’água, gritando com toda a força, acocorando-se para alcançar os ouvidos das mulheres adormecidas.

Marthe Vivonne e Valérie Céru fazem um relatório. Dizem que o rio se eleva entre as bordas. Os campos de flores às margens estão tomados por água. Corolas arrancadas, de cabeça para baixo, giram na correnteza, reviram-se. Há um odor de putrefação ao longo do rio. Ouve-se um rugido, como de uma eclusa rompida. Barcos virados passam à deriva. Árvores inteiras são levadas, seus galhos carregados de frutas arrastados pela água. Marthe Vivonne e Valérie Céru dizem não ter visto cadáveres de animais. Relatam que, por muito tempo, no caminho de volta, ouviram o ruído do rio, os choques entre seu curso e o leito.

Os passeios com as glenúrias em suas coleiras não são fáceis. Seus corpos longos e filiformes são sustentados por milhares de pés. Constantemente, elas tentam se mudar para um outro lugar, diferente de onde estão. Seus inúmeros olhos estão dispostos em torno de um orifício gigante que lhes serve de boca, ao mesmo tempo em que ocupa o lugar da cabeça. Uma membrana macia e expansível, capaz de se contrair e relaxar, a preenche. Cada um desses movimentos produz um som diferente. Compara-se o concerto das glenúrias com os pífanos os tambores o coaxo dos sapos o miado dos gatos no cio os sons agudos de uma flauta. Os passeios com as glenúrias são interrompidos a todo momento. O motivo é que elas se enfiam, sistematicamente, nas fendas que permitem passagem a seu corpo, as grades dos jardins públicos, as grades dos esgotos, por exemplo. Elas entram e recuam, o volume da cabeça as faz parar em um dado momento, encurraladas, e gritam de maneira horrenda. Então é preciso libertá-las.

Elas dizem que, no feminário, a glande e o corpo do clitóris são descritos como encapuzados. Está escrito que o prepúcio na base da glande pode se mover ao longo do órgão, provocando uma sensação viva de prazer. Dizem que o clitóris é um órgão erétil. Está escrito que ele se bifurca para a direita e para a esquerda, que ele se inclina, prolongando-se em dois corpos eréteis apoiados no osso pubiano. Esses dois corpos não são visíveis. O conjunto forma uma zona erógena intensa, que irradia todo o sexo, fazendo dele um órgão ávido por prazer. Elas o comparam ao mercúrio, também chamado de prata viva devido à prontidão para se espalhar, se propagar e mudar de forma.

AIMÉE POMME BARBE

BENEDITA SUZANA

CASSANDRA OSMONDE

GENE HERMÍNIA KIKA

AURÉLIA EVANGELINA

SIMONE MAXIMILIANA

Danièle Nervi, escavando fundações, desenterrou um quadro no qual está representada uma moça. Ela é toda reta e branca, deitada de lado. Está nua. Mal se pode ver os seios em seu torso. Uma perna, dobrada sobre a outra, deixa a coxa levantada, escondendo assim o púbis e a vulva. Seus cabelos longos dissimulam parte dos ombros. Ela sorri. Os olhos estão fechados. Está meio apoiada em um cotovelo. O outro braço forma uma alça sobre a cabeça, segura na mão um cacho de uvas pretas perto da boca. Então elas riem. Dizem que Danièle Nervi ainda não desenterrou a faca sem lâmina desprovida de cabo.



(As Guerrilheiras; tradução de Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo)



(Ilustração: Christian Schad)