Na revista Harvard Business Review do bimestre julho/agosto de 1990 o norte-americano Michael Hammer publicou um artigo intitulado Reengineeiring Work: Don’t Automate, Obliterate [1]. Foi esse o embrião de um livro que Hammer escreveu posteriormente em parceria com James Champy: Reengineering the Corporation: A Manifesto for Business Revolution[3]. Em sua edição inaugural de 1993 o livro continha cerca de 90 páginas, triplicadas na edição de 2003, o que comprova seu enorme sucesso.
Curiosidade: o vocábulo inglês “hammer” é traduzido por “martelo”, em português; enquanto que “ladrillo”, nome com que foi batizado o neoliberalismo no Chile de Pinochet – seu berço ensanguentado –, é traduzido do espanhol por “tijolo”. Essa coincidência, esse simbolismo, são difíceis de serem ignorados, se considerarmos as iniquidades paridas pelo neoliberalismo e a reengenharia mundo afora – um casal perfeito, do ponto de vista do mercado.
Já na Introdução, sem quaisquer traços de modéstia, os autores declaram que suas ideias “são tão importantes para as empresas atuais como as ideias de Adam Smith o foram para os empresários e gerentes dos últimos dois séculos”. Não satisfeitos em se ombrear com um dos fundadores da Economia Política – os outros seriam François Quesnay e os fisiocratas –, Michael Hammer e James Champy ainda declaram que “na reengenharia, o modelo industrial é virado de cabeça para baixo”, metáfora, ao que parece, alusiva ao que escreveu outro revolucionário, Karl Marx, a respeito da dialética de Hegel, que para ele estava de cabeça para baixo: “É preciso desvirá-la, a fim de descobrir o cerne racional dentro do invólucro místico”, como escrito no posfácio da segunda edição do primeiro volume de O Capital.
O que é “reengenharizar”? Michael Hammer explica:
“Em vez de integrar processos obsoletos em silício e aplicativos, deveríamos destruí-los e recomeçar. Deveríamos 'reengenharizar' nossos negócios: usar o poder da tecnologia da informação e reformular radicalmente os nossos processos de negócios para chegarmos a melhorias dramáticas em sua execução.”
O que Hammer não escreveu, ou talvez não tenha sequer imaginado, foi que o significado de “obliterar” – destruir, fazer desaparecer pouco a pouco –, utilizado no título do artigo, foi um mote, um augúrio, um presságio – chamem-no como quiserem – da arrasadora extinção de empregos e direitos e garantias trabalhistas que indelevelmente se associariam ao neologismo “reengenharizar”. O "mercado" absorveu a novidade com a maior satisfação.
Antes de prosseguir convém mencionar o fato de que, dois anos antes do lançamento de Reeginneering the Corporation, o terreno já fora mais que adubado, para seu sucesso nos Estados Unidos, por outra inconteste campeã de vendas, a escritora Ayn Rand, para quem o individualismo radical, o egoísmo e o livre mercado são virtudes e não pecados do capitalismo. “Em pesquisa realizada pela Biblioteca do Congresso e pelo Clube do Livro do Mês, em 1991, os norte-americanos apontaram seu livro A Revolta de Atlas [no qual se encontra o famoso ‘discurso do dinheiro’, um título sugestivo] como o que mais influenciou suas vidas (depois da Bíblia)”[3]. Em 1998, “quando a Modern Library de Nova York solicitou a seus leitores que apontassem os 100 melhores livros do século XX, quatro livros de Ayn Rand encontravam-se entre os dez primeiros: A Revolta de Atlas e A Nascente ocuparam os dois primeiros lugares; outros dois, o sétimo e o oitavo.”[4] Outro indício de sua imbatível primeira posição foi confirmada pelas revistas Forbes e Fortune, que mencionam Ayn Rand como heroína de jovens empreendedores do Vale do Silício, de especialistas em teoria dos jogos e enxadristas, além de se encontrarem entre os mais lidos por executivos de Wall Street. Seu discípulo mais fervoroso e famoso, Alan Greenspan, comandou o Banco Central norte-americano – Federal Reserve – durante o período em que mais foram desregulados o sistema financeiro e o mercado de capitais norte-americanos (1987-2006), o que redundou no desastre que varreu quase que o mundo todo em 2008-2009.
A reengenharia foi e ainda é a mais revolucionária e devastadora técnica de reordenação da pirâmide administrativa empresarial e industrial em novas e flexíveis hierarquias: ela ensina a suprimirem-se degraus da escada que vai do topo da pirâmide administrativa a sua base, promete maximizar lucros, agilizar tomadas de decisão, e, mais que tudo, fazer mais com menos – por menos, infere-se do que se lê nas páginas do livro. Como escrevem seus autores, reengenharia “é o repensar fundamental e a reestruturação radical dos processos empresariais que visam alcançar drásticas melhorias em indicadores críticos e contemporâneos de desempenho, tais como custos, qualidade, atendimento e velocidade”.
Empresas que se contentam em elevar seus lucros, seu padrão de qualidade e o atendimento aos clientes em 10%, e se satisfazem com cortes de 10% em seus custos (neles incluída sua força de trabalho, transformada em custo e, como se lê em Karl Marx, em mercadoria), certamente devem fugir da reengenharia, por não possuírem ambição suficiente para enfrentar o desafio. Ao contrário, as candidatas aos seus drásticos remédios seriam as empresas atoladas em dívidas, as que preveem nuvens negras pela frente ou mesmo “as que já atingiram o seu mais alto patamar de desempenho, mas gerenciadas por gente ambiciosa e agressiva”.
Por tudo isso, depreende-se que a reengenharia é mesmo drástica e radical, como enfatizam seus criadores, e deve ser utilizada quando se pensa em destruir tudo o que existe dentro de uma empresa, principalmente pessoas, pois no ambiente que ela varre, divisões, departamentos e outras estruturas organizacionais tradicionais têm o lixo por destino. Além disso, seus adeptos devem ser individualistas (leia-se: egocêntricos), autoconfiantes, propensos ao risco, inclinados à mudança; ser dotados de “imaginação, pensamento indutivo e um toque de loucura” ao redefinirem processos administrativos – o que vem sendo fartamente comprovado. Sob tal enfoque, “empresas perfeitamente viáveis são estripadas ou abandonadas, empregados capazes ficam à deriva, em vez de ser recompensados, simplesmente porque a organização deve provar ao mercado que pode mudar”[5].
A reengenharia também ensina que uma das forças (as outras seriam a concorrência e a mudança) a empurrar “as empresas cada vez mais para dentro de um território assustadoramente desconhecido para seus executivos e gerentes” é o cliente. Ele mesmo, quem poderia imaginar, do qual as empresas só se lembram em campanhas mercadológicas que – robustecidas ad nauseam pelos algoritmos das redes sociais que tudo sabem de toda gente – induzem-no ao consumo conspícuo e irrefletido. Assim hipocritamente definido, além de tanger as empresas rumo ao desconhecido, esse cliente reformulado passa a habitar a mente dos trabalhadores, assombrando-os, pois a reengenharia “exige que os empregados acreditem profundamente que trabalham para os seus clientes, e não para os seus chefes”
Visto que na estrutura administrativa arcaica um gerente supervisionava em torno de sete subordinados, ao passo que a reengenharia afirma que ele pode supervisionar trinta ou mais – hoje muito mais –, começou-se a fatiar a pirâmide administrativa à meia altura do topo, quando, em muitos casos, vários degraus da gerência intermediária foram excluídos. Era a compressão vertical da reengenharia, um de seus instrumentos de corte mais afiados, sendo posta em ação: além de levar ao nivelamento das empresas, ela supostamente delegaria aos trabalhadores o ônus da tomada de decisões autônoma ao dispensá-los de consultar um superior hierárquico já não mais presente. Assim procedendo, e levando-se em conta o novo papel do cliente nessa história toda, ao eliminar os escalões gerenciais intermediários a alta administração empresarial e industrial parece querer demonstrar sua vontade de aproximar-se “mais do mundo real”; aproximar-se mais “dos clientes e dos executantes do trabalho adicionador de valor da empresa”, como reza a reengenharia.
Ora, à medida em que os ocupantes dos cargos intermediários eram degolados os da base da pirâmide, com frequência mais sujeitos ao aniquilamento periódico, aos salários em queda livre e às condições de trabalho mais aviltantes, olhavam aquilo com estranheza, eles que sempre foram os alvos prediletos das ceifadeiras que passavam ao largo, poupando-lhes os pescoços. Mas durou pouco sua inusitada valorização: a ânsia por se chegar também à compressão máxima dos custos e salários, e a um número mínimo de trabalhadores, terminou por prevalecer sobre as demais sugestões da reengenharia. Desde então, em todos os níveis hierárquicos, e em incontidas e sucessivas levas, empregados passaram a ser dizimados aos milhares, da mesma forma que os direitos trabalhistas, a segurança no emprego, a manutenção dos salários em níveis que até então possibilitavam a subsistência, algum conforto e o lazer de suas famílias. Por sua excelência, o procedimento foi alçado à família dos chamados projetos contínuos, aqueles que nunca perecem dentro das organizações, onde evoluem e ganham adendos, pois lá lucubra-se sempre sobre a melhor maneira de exercitá-lo com maior eficácia – eficácia é uma palavra de fortes conotações nesses ambientes. Resulta disso que, “enquanto as empresas consistirem em pessoas”[6], alguém lá dentro vai tentar eliminá-las, pois a cada nova extirpação parece sempre sobrar gente a entulhar o caminho até a calçada, onde os clientes, a cada dia mais necessitados de um emprego que lhes permita consumir e movimentar a economia, anseiam pela deferência de empresários e banqueiros, por seus produtos ISO-isto ou ISO-aquilo.
Superadas as agruras da reestruturação, desempenho e promoção são desvinculados um do outro na pós-reengenharia: a promoção é associada à habilidade; o desempenho, não, mas ao valor que as tarefas adicionam aos produtos manufaturados pela empresa ou aos serviços por ela prestados. Mas o que é adicionar, ou agregar, valor a um produto ou serviço? A reengenharia explica: “coloque-se no lugar do cliente e pergunte: ‘Eu me importo com isso? Se a resposta for não, o trabalho não adiciona valor”. Além disso, para que não reste qualquer traço de dúvida nas mentes de seus seguidores, a reengenharia ainda fornece este exemplo elucidativo, em ríspida dialética: “Os clientes se importam com os controles internos, as auditorias, a administração e os relatórios de uma empresa? Absolutamente não”. Entenda-se isso como se quiser...
Ainda segundo a teoria, admite-se até que um trabalhador possa vir a ser promovido, desde que adquira mais habilidades – esse, o nó górdio da administração de negócios da pós-modernidade, impossível de ser desfeito sem o suporte de um sindicato tão poderoso quanto os exércitos de Alexandre –, pouco importando se esse trabalhador apresenta, ou não, um desempenho fantástico, ou torne-se mais experiente no que faz. “O prêmio”, e não um aumento de salário, “é a recompensa apropriada para o serviço bem-feito. A promoção para um novo cargo não é [uma recompensa]”, o que, até certo ponto, está correto. Errado é o corolário do teorema: os prêmios que o trabalhador excepcional recebe por seu desempenho não só deixam de agregar valor ao seu salário – segundo a terminologia que a teoria utiliza – como também o congela, pois não mais existe progressão salarial dentro de um mesmo cargo do organograma, razão pela qual quem é hoje admitido em uma empresa não mais enxerga uma possibilidade de carreira, dada a exiguidade de degraus a serem escalados. Nesse contexto, a motivação do trabalhador vem, não da vontade de crescer, mas do medo de perder o cargo que ocupa, a cada dia mais escravizador, a cada dia menos valorizado e menos remunerado.
Na verdade, feliz é o trabalhador que ainda tem um salário, mesmo que congelado ou reduzido com o passar do tempo, já que os danos nele causados pela inflação são revertidos em benefícios para quem o emprega. Assim, no ambiente reformulado pela reengenharia, a remuneração passa a ser proporcional ao desempenho, que por sua vez se correlaciona (saiba-se lá por que passe de mágica) com o valor do trabalho agregado aos produtos. Além de tudo, quando determinada tarefa não adiciona valor aos produtos ou serviços, seus executantes são candidatos à extirpação; ou, se lhes sobra alguma sorte, à queda brutal de salários e benefícios da terceirização; ou, pior ainda, ao desamparo total da precarização ou uberização ou do contrato zero ou intermitente de trabalho – deem-lhes o nome que lhes aprouver.
Quanto ao nível de exigência das tarefas reformuladas, depois de reduzidas a cinzas e renascidas sob novas feições, elas se afiguram complexas, como ensina a reengenharia, e demandam gente especializada para executá-las, “quando antes eram simples e não-especializadas”. Ora, como o tempo gasto em trabalhos adicionadores de valor é maior que o despendido nos trabalhos que anteriormente nada adicionavam aos produtos, a teoria ensina ainda que isso aumentaria a contribuição do trabalhador à empresa, razão pela qual “os serviços tendem, globalmente, a ser mais bem remunerados”.
Entretanto, mais à frente isso é contraditado pelo que poderíamos chamar de segunda lei do empresariado, que, em consonância com a segunda lei da termodinâmica, segundo Sir Arthur Stanley Eddington, jamais pode ser posta em dúvida: “Como o desempenho de um trabalhador oscila e pode decair no futuro, os salários básicos tendem a permanecer relativamente constantes, descontada a inflação” – descontada a inflação, ora pois...
Portal através do qual presidentes, diretores e executivos vislumbram a possibilidade de aproximar-se assintoticamente do custo zero de produção – uma obsessão a atormentar-lhes os dias –, o advento da reengenharia, aliado aos malefícios da doutrina neoliberal e da globalização; ao abandono pelos governos das teses acordadas em Bretton Woods, e da desregulação dos mercados marcaram decisivamente o desvio brusco rumo à estratosfera das curvas dos salários e bonificações de presidentes e altos executivos das organizações. Concomitantemente, as curvas que assinalam as tendências dos níveis de emprego, dos salários dos trabalhadores e investimentos governamentais em políticas de bem-estar social se inflectem aceleradamente rumo ao chão. Nesse contexto, só nos resta lembrar da espoliação sofrida pelos antigos artesãos na transição do feudalismo para os tempos sombrios da Revolução Industrial – e de suas piores consequências.
Aceso o rastilho que espalhou o pavor de se perder o emprego, reduziu-se a pó, no ambiente das empresas, a harmonia que sustentava os alicerces do convívio civilizado entre chefes e subordinados e entre colegas. Por mais que se afirmasse haver chegado ao fim as sucessivas ondas de demissões e revogação de direitos trabalhistas, perdeu-se para sempre a credibilidade de tal assertiva, ou de quaisquer outras de natureza apaziguadora vindas do topo da pirâmide. Como consequência, a antiga disputa mais ou menos civilizada para ascender-se aos cargos superiores, muitos deles hoje extintos, cedeu de vez à luta por garantir-se a todo custo um lugar nessas balsas de Medusa que singram as águas do novo capitalismo. Dando-se conta da ameaça iminente, seus ocupantes procuram defender, nos limites da decência frequentemente ultrapassados, seus lugares sob ameaça. Desse modo, deixando de lado o emparelhamento harmonioso entre chefes e subordinados, os níveis hierárquicos passaram a combinar-se em rimas interpoladas de um soneto à discórdia: o chefe, longe dos tempos em que preparava seu melhor subordinado para que o sucedesse, tenta agora jogar para fora do barco aquele que julga estar cobiçando sua posição; este, procurando a qualquer custo manter-se sobre o casco, e ambicionando o timão a que o seu chefe se agarra, lamuria mágoas aos ouvidos do chefe de seu chefe, insinua competências menosprezadas, coloca sob suspeita as qualidades e as aptidões de quem o gerencia, sibila sua língua bipartida em sub-reptícias sugestões aos ouvidos de quem, ele sabe, também não aprecia ver-se ameaçado pelo subordinado posto em questão, o chefe do insurrecto. Sobre tecido roto, disseminam-se emaranhadas redes de intrigas e mal dissimuladas violações de caráter.
Em ambiente tão conturbado, as promoções, antes vistas como absolutamente normais e recebidas com tranquilidade por agraciados e não-agraciados, transformam-se em outro ponto de discórdia e disputa. Em alguns casos elas passaram a ser secretas, pois, em sua maioria, deixam de obedecer a critérios técnicos e de competência, o que leva a que sejam comentadas à sorrelfa pelos corredores, em sussurros de profunda mágoa, feroz desaprovação e furibunda revolta. Se comunicadas, dão origem a manifestações de afronta incontida a que boa parte dos preteridos se entrega, por não as ter também recebido. Não raro, um encabulado agraciado que bem mereceu sua promoção recebe, quase se desculpando meio envergonhado, felicitações de alguns dos que vão cumprimentá-lo, levando na bagagem derrisórias e mal dissimuladas insinuações de favorecimento ilícito.
Ao mesmo tempo em que o corte drástico era exercitado alhures, no outro extremo da raia a turma da Qualidade, farisaica e compulsiva aspiração que atormenta altos dirigentes, avançava e produzia, a pleno vapor, toneladas de manuais recheados de normas que (augurava-se) seriam capazes de direcionar a qualidade dos produtos produzidos ou serviços prestados rumo à excelência. Mas, como “só na vida de fantasia e muitíssimo bem paga dos consultores pode uma grande organização definir um novo plano de negócios, enxugar-se e ‘replanejar-se’ à perfeição, e depois tocar em frente o novo negócio”[7], chegou-se inesperadamente a um impasse incontornável e – poder-se-ia dizer – inimaginável no ambiente bem planejado das corporações: como operacionalizar toneladas de normas para a melhoria da qualidade dos produtos e serviços se, ao aproximar o presidente da calçada, onde o esperam os ansiosos clientes da empresa, a outra turma, a da guilhotina, eliminara tanta gente; se os poucos que sobraram, desmotivados e tensos em meio à longa travessia, mal dispõem de tempo para estudar e memorizar procedimentos adequados à manufatura de produtos impecáveis; se, para cuidarem de seus afazeres sem as preocupações com um futuro pintado em cores sombrias e melhorar a qualidade dos produtos, a busca obsessiva pelo custo zero de produção impõe metas mais severas de redução de despesas e investimento a cada orçamento anual? Nenhum conflito, pois as empresas da pós-modernidade abominam a hesitação, o titubeio: que a segunda turma continue a burilar suas normas, versões sempre melhoradas de uma mesma coisa, não importando se irão ou não ser honestamente postas em prática. Basta-lhes que sejam aprovadas por algum representante local da severa e celebrada International Organization for Standardization[8]. Uma vez obtida a certificação, não se acusará a empresa de descuidos na produção, e seus produtos serão identificados como sendo produzidos segundo uma norma ISO que lhes atribua confiabilidade, quando estampada nos rótulos dos produtos, na mercadologia de serviços, ou brilhasse no frontão do Edifício Sede.
Dizimados seus quadros mais experientes, as corporações passaram a delegar a auditores e consultores a análise de seus procedimentos administrativos e a viabilização de mudanças bruscas em seu modus operandi. Ao encarregar terceiros de reformular seus procedimentos operacionais ou administrativos, o que é levado a cabo em voos rasantes e sob denso nevoeiro, dirigentes livram-se de risco e ônus a eles inerentes, e também da responsabilidade pelo fracasso de um passo em falso dado no escuro. Por sua vez, donos confiantes e despreocupados do poder paralelo que exercem dentro das organizações, por onde circulam com desenvoltura, consultores descompromissados com os meios que os levarão à consecução de seus projetos dão feição às mudanças por eles sugeridas e avaliadas, seguros de que sempre é possível reverter as turbinas do avião antes da decolagem. Assim confiantes, mal perceberão se o ponto de inflexão que separa a interrupção bem-sucedida do desastre já não foi ultrapassado. Mas quem se importa caso o avião se esborrache no chão? Muitíssimo dinheiro, além de tempo perdido e gente degolada, é jogado no lixo das empresas por conta disso, sem que se cortem cabeças no topo da pirâmide administrativa.
Quanto às consultorias, elas pouco se importam com as consequências, uma vez posto o dinheiro, que não é pouco, no bolso: são sabedoras de que o mercado tem memória curta e necessidades prementes de seus serviços, e que sempre necessitará de bacias profundas onde mãos de dirigentes despreocupados, pois agora livres das auditorias internas e sem compromissos com procedimentos que desencadeiam, possam ser lavadas de qualquer culpa – afinal, só o que hoje interessa aos acionistas majoritários é o quanto a empresa cresceu de um ano para o outro. Tampouco essas consultorias são levadas às barras dos tribunais ou instadas a dar conta do dinheiro investido na canoa furada. Isentas de culpa, continuam a circular por aí, vendendo serviços que são depois auditados por outro ramo do negócio a que pertencem, em um conflito de interesses espúrio e desavergonhado. No fim das contas, as consequências sobrarão para os trabalhadores, que carregam a empresa nos ombros e sempre arcam com os prejuízos, recuperados pela redução de seus salários ou pela degola de alguns deles.
Não é só no interior das empresas que se esbarra com consultores ou seus afeiçoados prosélitos: as revistas de negócios estão sempre recheadas da sabedoria desses mestres manipuladores de bujarronas e velachos das empresas que singram os mares em busca de novos rumos. Sua sabedoria é sempre formulada em conselhos aureolados de esotérica magia, como exemplifica encarte publicitário inserido em número da revista Você S/A [9] (o exemplo é velho, mas tão simbólico de uma época, que julgo por bem mantê-lo vivo), publicada quando os consultores começavam a experimentar o auge de seu esplendor dentro das organizações.
A matéria, intitulada O mundo das consultorias de RH, faz descrições sucintas de alguns serviços disponíveis no mercado de então, entremeadas por pontos de vista de diretores e vice-presidentes de recursos humanos (outra espécie em extinção dentro das corporações, pois que quase dizimadas ou terceirizadas), onde abundam exemplos do seu jargão profissional, a linguagem dos consultores, que também poderíamos chamar de portuglês, tal a sua disseminação desde então e ora utilizada até mesmo pela lanchonete da esquina, que anuncia como vantagens para seus clientes o delivery e o cashback. Sob o primeiro subtítulo, Executive Search – ou, na linguagem corrente, busca por um executivo no mercado – descobre-se que “o mundo das consultorias envolve vários tipos de serviços, alguns contratados por empresas, outros diretamente pelos profissionais. Remunerados com honorários que giram em torno de 33% do pacote de salário anual do executivo pesquisado, os headhunters atuam basicamente na alta administração”. Opinião de um contrariado vice-presidente de RH: “Às vezes o networking é insuficiente ou esbarra em questões éticas. Para posições onde há carência de profissionais, o search amplia o radar e consegue captar mais talentos em campos escassos”, o que não impede um diretor de choramingar: “O preço cobrado é excessivo”. Mais à frente, sob o subtítulo Outplacement, a autora do texto elucida origens e constata a inexorabilidade do desemprego atual, ao escrever que “fusões, reestruturações e novas estratégias que demandam recomposição do quadro funcional são hoje parte do jogo entre empregadores e força de trabalho”. Reforçando essa opinião, uma pragmática diretora de RH reconhece que “a consciência de que, numa organização, estamos todos de passagem já está desenvolvida”, um truísmo do novo capitalismo. Concordando com esse ponto de vista, a redatora do texto acrescenta que “neste contexto, têm ganhado força os serviços de outplacement patrocinados pelas empresas”, que, segundo outra diretora, é o reconhecimento implícito da contribuição dada pelo profissional à companhia. Finalmente, sob o subtítulo “Aconselhamento de Carreira” (estranhamente escrito em português), oferecem-se variados tipos de salva-vidas aos executivos à deriva: “Outra vertente que está conquistando espaço é o das consultorias de aconselhamento de carreira, que oferecem programas em assessment, counseling, mentoring, coaching e congêneres”.
Que os menos afeitos à linguagem dos consultores, de presidentes e diretores de empresa e profissionais de recursos humanos não se sintam constrangidos caso as várias palavras encontradas no parágrafo anterior padeçam de significado. Dentre as que merecem a elucidação de seus sentidos encontram-se as enfileiradas na última citação do parágrafo anterior: elas guardam em si tudo o que pais e mães – a que ponto chegamos – fazem quando educam seus filhos segundo preceitos hoje quase ultrapassados: testar e avaliar suas habilidades, encorajá-los, aconselhá-los, acompanhar seu aprendizado e dar um reforço nas tarefas da escola, quando necessário for; quanto a congêneres, que todos sabem o que significa, no contexto a palavra é tão supérflua quanto obscura. Outra delas, outplacement, citada até em demasia, disfarça um rito de despedida encenado nas empresas então temerosas do que vão dizer lá fora os infelizes executivos que recebem (em bom português) um pé na bunda em seu interior. Na verdade, outplacement, palavra e prática hoje em desuso, recende a falso interesse ou, voltando à linguagem dos consultores, a crocodile tears, o nosso bem conhecido “lágrimas de crocodilo”.
Finalmente, na página 25 da revista, a legenda de uma fotografia informa que uma empresa de São Paulo, “encontrou uma forma inusitada de promover a integração de sua equipe: no Dia das Bruxas todos os funcionários de seu Call Center trabalharam fantasiados”. Dessa forma, além de mostrar que, neocolonizados que somos, já importávamos bobagens como o Dia das Bruxas (porque não Halloween?), o texto ainda reforça a suspeita de que os laços afetivos dentro das empresas tornavam-se a cada dia mais tênues e esgarçados até chegarem aos níveis atuais, o que faz com que seja necessário introjetar na mente de seus efêmeros passageiros sentimentos de coleguismo e camaradagem, por meio de artifícios como esse e tantos outros mais.
Outra característica marcante das empresas dos primeiros anos da década de 1990 – mais ainda nas da atualidade – é que desde muito cedo começaram a amoldar seus executivos à feição predatória dos interesses dos grandes capitais; a amestrá-los na arte do egocentrismo e da submissão à cupidez de executivos e acionistas majoritários gananciosos. Arregimentavam-nos ainda imberbes nas melhores universidades, antes que fossem inadvertidamente corrompidos pela ética e pelo ideário do Iluminismo, malvistos dentro das corporações, onde egolatria e sujeição sempre foram e são atributos díspares a conviver em perfeita harmonia na alma de quem almeja subir a todo custo ao topo da pirâmide de cargos. Aqueles de ambição mediana vão, ao longo da carreira, perdendo força na dura escalada, sinal de que os tolhe alguma afeição, mal detectada no aliciamento, à família e aos princípios éticos e morais, o que é mal visto no ambiente onde trabalham; outros tantos, de ambição desmedida e notabilizada pela ânsia de suprir superiores de boas ideias, por vezes alheias, por vezes torpes, são os chamados high-fliers, pássaros de alto voo, esbaforidos novos faustos do novo capitalismo, que cedo se revelam dispostos a vender a própria alma pela efêmera posse de algum poder, graal sequiosamente procurado pelos que fazem de sua busca nunca saciada o objetivo maior de suas existências. Alguns sacrificam o apreço dos colegas, a família e a própria autoestima pela ilusão de escalar o organograma de uma organização que não lhes pertence – embora pensem o contrário – e não hesitará em lançá-los fora de suas engrenagens quando apropriado for (assim funcionam as empresas, em cujo interior não são servidos almoços de graça, como costumam dizer os norte-americanos, mestres do descarte pragmático que cortam empregos em sua própria pátria ao transferirem fábricas inteiras para lugares do mundo, quaisquer lugares, onde possam economizar um punhado de centavos de dólar em salários a cada dia mais miseráveis). Além disso, à medida que escalam a pirâmide, tais alpinistas se revelam grosseiros e mal-educados com os subordinados, que tratam como seus vassalos; outros tantos, dissimulados e de fala mansa, escondem-se sob falsa aparência amistosa: sorrateiros, são os mais maléficos e traiçoeiros. Rapidamente eles sobem aos mais altos postos, não só pela competência profissional, mas pela destreza no manejo da foice, pois as corporações, com sua política de resultado a todo custo e do desprezo à lealdade, estimula e premia sua ambição. Lá chegados, e com raríssimas quebras deste preceito, muitos deles escondem na arrogância seu vazio interior, o despreparo intelectual e emocional para habitar as alturas. Em sua cegueira na busca insaciável de poder e glória – efêmeras ilusões –, morrerão sem saber o que é se emocionar com um trecho de música, com os versos de um poema, com uma pintura de mestre (só adquirida, por vezes a preço exorbitante, por exibicionismo ou investimento), ou com o entardecer, que quase nunca veem, que jamais apreciam. Sob sua guarda, empilha-se dinheiro em suas pirâmides, onde pessoas comuns são destruídas sem condescendência ou remorso.
Precarização, uberização, contrato zero ou intermitente de trabalho são alguns dos nomes de batismo dos filhos bastardos gerados pela união do neoliberalismo com a reengenharia: a extirpação dos direitos trabalhistas – contratos formais de trabalho, férias anuais, progressão de carreira e ascensão a cargos superiores; a não cobertura de riscos (indenização por demissão, coparticipação do empregador na contribuição previdenciária do empregado); a eliminação do poder dos sindicatos e o não acompanhamento sindical nas rescisões de trabalho; a impossibilidade de se processarem empresas por transgressões trabalhistas como um direito e não como risco assumido por quem, lesado em seus direitos trabalhistas, apela a um sistema judiciário corrompido, parcial e favorável aos patrões, e outros tantos mais rebentos de sua inumerável prole, prazerosamente acolhida por Estados e governos ao redor do mundo.
E hebraico, pão e luta (léhem e léham) são indissociáveis, pois proveem de uma mesma raiz semântica, o que nos leva a pensar, por analogia, na angústia que o desemprego e a falta de meios para manter-se uma família produzem; na precária tábua de salvação de trabalhadores que ainda possuem um emprego ou um bico como trabalho; e em suas piores consequências.
Permanência fugaz, submissão a longas jornadas mal remuneradas, doação da própria alma, renúncia ao lazer, conformidade a salários em queda livre, intranquilidade, insegurança, estresse, desespero e surda revolta são as novas palavras de ordem, uma estranha mealha de competências que terminarão por gerar seus próprios remédios, quem sabe, amargos; talvez violentos.
Notas:
[1] "Reengenharia: Não automatize, elimine". Reengineering Work: Don't Automate, Obliterate | Harvard Business Publishing Education.
[2] No Brasil, Reengenharia – Revolucionando a empresa em função dos clientes, da concorrência e das grandes mudanças da gerência. Rio de Janeiro. Editora Campus.1994.
[3] HELLER, Anne C. Ayn Rand and the world she made. New York. Books. 2009.
[4] Ibidem.
[5] Sennett, Richard. A Corrosão do Caráter. Editora Record. 2000. Rio de Janeiro. p. 59.
[6] Esse fragmento de frase foi extraído de seu contexto original: “Enquanto as empresas consistirem em pessoas, algum grau de verificação e controle será inevitável”, cujo sentido guarda, indubitavelmente, subliminar esperança.
[7] Richard Sennett, op. cit., p. 57
[8] Organização Internacional para a Padronização, fundada em Genebra em 1947, responsável pela padronização de produtos, exceto os elétricos e eletrônicos.
[9] Você S/A. Editora Abril (novembro/2001) pp. 66-70
(Quando florirem os flamboyants)
(Ilustração: Jean Louis Theodore Géricault - A balsa de Medusa -1819)