sábado, 28 de setembro de 2019
SIAMESES, de Juliana Frank
Má-mãe aceitou, sem titubear, ser infeliz para sempre com Papai Almofadonho. Era um escritor plagiador cheio de escrúpulos. Reproduziu grandes gênios da humanidade e criou várias frases que ficaram célebres, como essa: “Uma rosa é uma rosa é uma rosa. Não vou sofrer mais sobre as armações metálicas do mundo, como o fiz outrora, quando ainda me perturbava a rosa.” Má-mãe não gostou, porque só Camões, né? Também não agradava as flores dele. Azucrinantes, repetitivas. Preferia asfixiá-las e vê-las irrespiráveis. Romances de papai, todos líricos, ela punha a língua pra fora e retorcia a boca de nojo a cada passada de olhos nas linhas. Ele fingia não se importar, copiava com pretensão petulante ao esperar os resultados já obtidos dantes pelos poetas originais.
Passava tardes terrificantes escrevendo: longos são os caminhos da Galileia e curta a piedade dos homens. O destino é o seu próprio contrarregra. Eu vou pegar seu retratinho e colocar numa medalha, pendurá-lo no meu peito onde o coração trabalha. Papai dizia que escrever é um processo fatigante; após terminar suas frases, dormia 20 das 24 horas do dia. Não me impressionava ele ter um semblante muito melhor que o dos gatos. Bom mesmo, para ele, era acordar, ler sua produção diária e sentir orgulho do feito! Escrever não, escrever o padecia. Um dia, Má-mãe pediu para que ele escrevesse algo sobre vaginas. Na veneta de Papai brotou uma história riquíssima de uma mulher árabe e lasciva que viveu no interior de São Paulo. A mulher chama-se Uardi, mas ele preferiu “Feliciena” — nome usado uma vez e esquecido nos antros literários. Começou a história. Feliciena era adolescente e tinha um amante para quem dava a Tuchê. Má-mãe interrompeu a narrativa. Não queria que chamasse “Tuchê”. Mas era assim na história original, e ficou para sempre gravada nos orais e anais da literatura — defendeu papai, decidido. Tuchê era o nome da vagina e nada feito, continuou. Feliciena resolveu raspar a Tuchê para encontrar o seu amante e trepar com ele dentro do carro, como fazia aos domingos. Mas não sabia usar a gilete, portanto raspou ao avesso do pelo. Que pamonha!, disse Má-mãe, é como fazer carinho no gato ao contrário. A história já foi publicada e louvada, façamos assim — Papai prosseguiu. Raspada, a Tuchê ficou encarnada, carne viva, dolorida. Aos braços do amante Feliciena atirou-se. Dentro do carro, com o pau latejando, o amante a despiu com um tesão desorientado, mas, ao ver a Tuchê vermelhona, a atirou para fora do carro, gritando – Leviana! Ave de rapina! Rameira barata! Feliciena passeou pela cidade do interior nua, como quis nosso senhor. A Tuchê tão viva na cor de sangue que todos notaram. Pensaram que era doença da depravação. A família a atirou para o próprio azar ou sorte. Feliciena se entregou à jogatina. Apostou no vermelho. Deu preto. Nem um cão entre os amigos Feliciena encontrou. Daí teve mesmo que se prostituir, mas apesar da vagina encarnada e receptiva, era moça de família, bons modos, sabia segurar talheres sem embaraços. Casou-se rapidamente com um homem que odiava...
Má-mãe disse: Não! História velha. Cheia de moral. Copie algo valoroso.
Mas papai não sabia escolher algo que a agradasse. Má-mãe o encontrou pendurado num lustre trazido por ela do Extremo Oriente.
Aos seus pés, uma carta que trazia suas últimas palavras: Não me esperem para o jantar. Suicídio, claro, alternativa de qualquer escritor que se preze. Como não poderia deixar de ser, a carta era um plágio.
(Revista Palavra; julho/2014)
(Ilustração: Leonid Afremov)
quarta-feira, 25 de setembro de 2019
SONETO X (DIÁLOGO ENTRE UM PENITENTE FREIRÁTICO E UM CONFESSOR CASMURRO), de António Lobo de Carvalho
A um fradallhão bojudo e rabugento
Seus crimes confessava um desgraçado,
E entre eles dizia ter pecado
Com uma santa freira num convento:
Grita o frade: Não tardam num momento
Raios mil, que subvertam tal malvado;
Que as esposas de Cristo há profanado
No santo asilo seu, sacro aposento!
Ora diga, infeliz, como ousaria
Tal crime confessar, e ações tão brutas
A Jesus Cristo, lá no extremo dia?...
Padre, deixemos pois essas disputas;
Se ele me perguntasse, eu lhe diria:
Quem vos manda senhor casar com putas?
(Ilustração: Martin van Meytens (1695-1770) - Nonne agenouillée - ca. 1731)
domingo, 22 de setembro de 2019
OS FREIRÁTICOS, de Ana Miranda
Houve um tempo em que o desejo sexual transpôs os limites da espiritualidade reclusa. Os homens procuraram profanar os conceitos de virtude que os oprimiam e aos quais se submetiam num próprio ato irreverente de maculação. Como poucas vezes, a interdição sexual teve a função de afrodisíaco. Era preciso degradar o fascínio do mal; espiritualizar o corpo e erotizar a alma. Para isso, nada como buscar o prazer na escuridão das celas dos conventos.
O demônio, que é um espírito, e espírito soberbo, sem reverência pelos lugares sagrados, entrava nos claustros religiosos, passeava nos corredores e dormitórios e, por mais fechadas que estivessem as celas, sem gazua, sem ser ladrão se metia e morava nelas. “Por sinal, senhoras, que muitas o deixastes na vossa cela, e o achareis lá quando tornardes”, pregou o jesuíta Antônio Vieira às freiras no convento de Odivelas, em 1654.
Antes de Cristo e um pouco depois, na Igreja primitiva, o sacerdócio feminino tinha assegurado o seu direito de batizar, predicar, oficiar, exorcizar. Mais tarde a Igreja realizou suas inclinações patriarcais na criação do dogma e da hierarquia eclesiástica. Numa tentativa de transcender os instintos do ser humano, adotou a repressão, realizada através das promessas de condenação da alma. O inferno era inevitável para aqueles que se entregassem aos prazeres sexuais. A mulher, encarnação da volúpia, foi lançada a uma posição irrelevante e oculta na sociedade, ela mesma objeto das imprecações para afastar o mal. Viu usurpada a legitimidade de suas funções naturais de sedução, de sua força mágica de amar; foram envilecidos os prazeres que dela irradiam. Então, a ambivalência erótica surgiu de maneira surpreendente: a execração da mulher e a sua redenção.
Em resposta à demonização do sexo, os instintos de Eros se manifestavam dentro dos mosteiros através de alucinações e extravasamentos, como o refinamento cruel da autoflagelação do corpo, os desfalecimentos ambíguos, as convulsões eróticas do êxtase, a homossexualidade e a própria heterossexualidade, com o testemunho do nascimento de bastardos. “Os tormentos do corpo são inumeráveis, movidos de muitas maneiras por muitos demônios”, escreveu a mística italiana santa Ângela de Fulgino, que sentia os vícios se acenderem em seu corpo, ainda que os não tivesse experimentado.
A vocação religiosa não era um dos motivos mais importantes para se mandar uma mulher para um convento em Portugal e no Brasil, nos séculos XVII e XVIII. A rebeldia, a sensualidade, o interesse intelectual, uma personalidade excessivamente romântica e apaixonada, um corpo demasiado atraente faziam com que se encerrassem moças nas celas úmidas dos mosteiros. Os homens mandavam para lá suas bastardas, suas amantes; também as filhas que perdiam a virgindade, as estupradas, as que se apaixonavam por um homem de condição inferior ou de má reputação. Ali reuniam-se virginais predestinadas e as arrebatadas jovens das famílias. Distanciadas da companhia dos pais opressores, desfrutavam de liberdade intelectual.
Privadas da presença dos homens, floresciam em sonhos românticos e fantasias sexuais. Nos conventos surgiram escritoras, como Mariana de Alcoforado, supostamente a autora das apaixonadas Cartas portuguesas; ou soror Violante do Céu, a dominicana intelectualizada; ou a sensível poetisa soror Maria do Céu; ou soror Maria Madalena Eufêmia da Glória. Nos conventos também surgiram amantes e cortesãs.
Não era necessário grande beleza para se tornar uma preferida conventual nas artes do amor. Bastava uma certa doçura, malícia, sensualidade e as roupas religiosas, detrás de portas de ferro e janelas gradeadas, para arrebatar o coração de um homem. Porque, dentre eles, eram poucos os que não se tornavam “freiráticos”.
Os verdadeiros adoradores de freiras eram platônicos.
“Freiráticos de Odivelas/ De mil flores entre as galas/ Entram só para cheirá-las/ Porém, não para colhê-las”, diz um verso anônimo, da época. Esses devotos, como mártires, arriscavam-se aos severos castigos dos meirinhos, do Ordinário, da Inquisição, pelo prazer de trocar olhares amorosos com a desejada. Numa voluptuosa tortura ansiavam pelo mistério e respeito, pela beleza oculta e inatingível, pela “comunhão imaterial de ânsias inconfessadas”, pelos sorrisos insuspeitos, pelos beijos incertos que o amor por uma monja poderia proporcionar.
A sedução era longamente desfrutada; a aproximação se dava num clima de excitação. Eles compareciam às cerimônias religiosas, floridos, com seus quitós dourados, um lenço de holanda fina, um livro debaixo do braço. Quase sempre homens de natureza sonhadora, eles flertavam, lançavam olhares suplicantes; enamorados, suspiravam, entregavam-se ao sofrimento. Em seguida iniciavam uma correspondência amorosa.
As freiras, no começo, não respondiam às cartas, e apenas os mais persistentes prosseguiam até receber uma resposta, um bilhete recortado com tesoura, salpicado com água de córdova ou outro perfume caro, dizendo que não podia amar, que era muito feia, coisas assim. Mais uma carta de lá, outra de cá, uma cena de ciúmes, de rivalidade, “Para que namorou sua mercê a soror Sicrana, que agora se vinga de sua mercê e a deixar de me querer bem a mim?”, e estava consumada a aproximação.
“Já que tem de ser, que seja em segredo”, escrevia a freira ao pretendente. Ela o convidava, então, a assistir ao sermão. Recomendava-lhe que ficasse em pé para que pudessem olhar-se. Quando se abriam as cortinas do coro, as freiras entoavam suas belíssimas vozes respondendo às antífonas, e os olhos não se desprendiam. Elas fruíam a volúpia de serem desejadas e admiradas; eles, a da violação do pudor feminino e do dogma religioso.
Os primeiros encontros se davam no ralo, quando podiam falar-se sem se ver. O freirático entregava-se à luxúria do amor impossível; com as mãos estendidas nas folhas de metal cheias de pequenos orifícios das janelas dos conventos, colava os lábios nas cruzes douradas. Depois se viam na escuridão do locutório, recinto dividido por grades, onde as religiosas recebiam visitas. Ele tremia com a visão escura de um vulto feminino atrás das barras de ferro, murmurava, num jogo de amor lírico, sem resultados garantidos. Muitas vezes isso era tudo.
Mas nem sempre os freiráticos ficavam do lado de fora dos conventos. Mandavam presentes, imagens de santos, presépios, capelas aos que tinham as chaves das celas; subornavam abadessas, abriam suas bolsas aos padres, para desimpedir o caminho em direção ao objeto desejado. Havia padres residentes que usavam seu trânsito nos conventos a fim de levar e trazer a correspondência dos freiráticos, com os tratos ilícitos. De noite, portões se abriam para que os amantes entrassem furtivamente; muros eram escalados, fugas eram empreendidas com escândalo, abadessas que criassem obstáculos eram ameaçadas com facas. Alguns se disfarçavam em hábito feminino para se insinuar nos corredores em busca da eleita.
As religiosas do convento de Santa Ana de Vila de Viana tinham nas proximidades várias casinhas aonde iam, fora de clausura, com pretexto de estarem ocupadas a cozinhar, e recebiam ali homens que entravam e saíam de noite, denunciou em 1700 o rei, em Lisboa. Nas celas os catres rangiam, os corpos alvos das freiras suavam sob o calor dos nobres, estudantes, desembargadores, provinciais, infantes. Os gemidos eram abafados com beijos.
Conventos de Portugal tomavam por modelo o de Odivelas, onde trezentas freiras belas e namoradeiras tinham, cada uma, um ou vários amantes, com os quais se distraíam. Essas religiosas eram tidas como as amantes mais atraentes dos portugueses nobres, nas palavras do general Demaurier, em 1755. Moravam em celas luxuosas, com as paredes recobertas de seda, cortinados nas janelas, lençóis de cetim; tomavam chá em xícaras de porcelana, levavam uma vida ociosa em que se entretinham a ler, pôr alcunhas, namorar e fazer doces. Chamavam a si mesmas de Caramelo, Pimentinha, Muleirinha, Caçarola, Vigairinha, Márcia Bela. Pregavam no rosto sinais de tafetá, os ferretes do inferno, usavam rendas nas camisas, luvas, leques, toalha açafroada, em irrequietos ademanes de mulheres disponíveis. Como descreveu Gongora, “Vio uma monja celebrada, tras la rexa el niño Amor, bien quebrada de color, y de amor bien requebrada”.
Em certas manhãs elas armavam, do lado de fora do convento, um bufete de doces e pratos especiais que continham bilhetes convidando seus admiradores. Sevados, moletes, argolinhas, melindres, canelões, bolinhos do bispo, loiros, sequilhos das maltesas de Estremoz enchiam as mesas. Naquele dia, as ruas ficavam intransitáveis; as portas dos conventos, repletas de estifas, seges, carruagens. Os portões se abriam e entravam os freiráticos. Descerravam--se as cortinas da grade de proteção e perante os homens apaixonados surgiam as religiosas, com as mãos escondidas nas mangas do hábito, sérias, pálidas, belas como são as mulheres desejadas. Aos poucos elas iam abandonando o ar grave, cruzavam as pernas, tocavam violas e harpas, recitavam versos provocantes, riam, divertiam-se, diante da clientela fascinada que se empanturrava de papos de anjo, suspiros, peitos de freiras. Os doces eram trocados por prendas: um resplendor, uma cabeleira para a comédia, um casal de pombos, um cãozinho de regaço, um frasco de água da rainha da Hungria.
Depois da grade de doces, os freiráticos podiam encontrar-se com suas musas nos locutórios, mas não a sós. Tinham de admitir a presença de uma gradeira com a missão de vigiar o que diziam e faziam. Antes do encontro, vinha uma monja confidenciar ao freirático que sua amada morria de paixão por ele. Depois entrava a desejada. Tocavam-se as pontas dos dedos; ele segurava-lhe o braço; ela mostrava-lhe o pé, o tornozelo ou, entre a alvura da toalha, desnudava o seio, que ele acariciava, sob o olhar descuidado da sentinela.
Dentro do caráter escarninho e maldizente da tradição portuguesa, surgiu a poesia do amor freirático, ora satírica, ora lírica, mas sempre passional, em cuja liturgia afrodisíaca a obscenidade desempenhava uma função mágica, assim como de desmistificação e profanação da santidade. A adesão a uma prática libertina se realizava por meio da cumplicidade que o riso estabelece. Essa poesia tinha, também, um caráter político, pois atacava um ponto vulnerável do poder monárquico, sustentado pela autoridade da Igreja inquisitorial.
“Quando eu estive em vossa cela / Deitado na vossa cama / Chupando nas vossas tetas / Então foi que me lembrei / Linhas brancas, linhas pretas”, escreveu um poeta anônimo, sobre mote que lhe dera uma freira. Os poemas obscenos de amores freiráticos, onde aparece a repressão ascética e aviltante do sexo e da mulher, são inúmeros.
Neles, quase sempre, os trovadores vilipendiam em sádicos escárnios as suas companheiras de prazer. “Puta dum corno, dos diabos freira, / Eu me ausento por mais não aturar-te; / Tu cá ficas, cá podes esfregar-te / Com quem melhor te apague essa coceira”, escreveu o implacável Lobo da Mandragoa, o poeta satírico português Antonio Lobo de Carvalho.
“Mostrem-me um homem que tratasse com freira que não saísse logrado, sevandijado, ultrajado, esfolado, arrastado, esfalfado, sacudido, consumido, vendido, aborrecido, caído, perseguido, desfavorecido, banido, tolhido”, diz o Advertências freiráticas, um manuscrito da época. Elas amavam sem amor, mentiam sem temor, pediam sem porquê, dizem as trovas populares do período, tantos eram os episódios de homens que se arruinavam para conquistar uma freira.
Os casos se tornavam públicos. Não eram os freiráticos apenas rapazes descomprometidos, mas homens revestidos de altos cargos, na magistratura, na milícia, na Igreja, na nobreza. O conde do Rio era amante de soror Catarina de Trindade; Dom Luís da Silveira escalava o muro do convento do Salvador para encontrar sua amante; Dom Martinho de Mascarenhas visitava a Gamarra em sua cela; o conde de Valadares vestia manto e touca para visitar sua leiga de Santa Clara; o arcediago de Braga foi descoberto à noite na cela da abadessa de São Bento de Barcelos. O marquês de Gouvêa, o conde de Tarouca, o morgado de Oliveira tinham suas freiras. O famoso conde de Ericeira, Dom Fernando de Menezes, fez uma poesia a uma freira que estava a borrifar a grade do coro com água de licor-flagrante.
Tantos foram os escândalos em mosteiros, os bastardos, as fugas, as sátiras, que Dom João V iniciou uma feroz perseguição aos freiráticos. As cadeias se encheram de homens flagrados em seus amores proibidos. Freiráticos foram desterrados para Angola, para o Brasil, foram espancados ou açoitados pelos alcaides, tosquiados de multas pelo Desembargo, presos em hospícios ou agrilhoados no Aljube.
Mas Dom João V não teria sido o mais autorizado para essa caça aos pecadores dos conventos, não fosse ele o rei de Portugal. Era ele quem descia de seu coche em Odivelas para fazer leituras com freiras sentadas em seu colo. Frequentava as grades de doces e o chamavam de o Galo de Odivelas e de Via Longa. Teve amantes em conventos, e até mesmo filhos bastardos, chamados de “os meninos de Palhavã”, de sua amada Paula, bela madre de origem napolitana.
Após receber críticas de seus ministros quanto ao fato de entrar pecaminosamente em lugar sagrado, o rei construiu uma casa para seus encontros, ligada ao mosteiro por uma passagem secreta. Com o ouro chegado das minas coloniais, decorou a alcova de madre Paula: tetos lavrados de talha dourada, vênus nuas pintadas por Negreiros e Quillard, silhares e cabeceiras de azulejos, leitos entalhados, relógios que tangiam minuetes, uma espineta cor-de-rosa, tapetes de damasco, baixelas, louças e dois bispotes de prata da Alemanha para que a freira urinasse suntuosamente, desenhados com figuras em baixos-relevos sobre as quais “nenhuma mulher podia debruçar-se sem corar”.
O Brasil adotava os mesmos costumes de sua metrópole, era “espelho de Portugal, seara de vícios sem emenda”. Tanto em conventos masculinos como em femininos, pareciam incontroláveis as maquinações do instinto. Desde os tempos do padre Manoel da Nóbrega os clérigos tinham “mais ofícios de demônios”. Além dos pecados de natureza pecuniária, herética, filosófica, padres viviam concubinados com índias e negras; freiras recebiam homens em suas celas. Há raras informações sobre os freiráticos no Brasil, mas o poeta Gregório de Matos deixou depoimentos de suas aventuras nos nossos mosteiros, assim como nos de Portugal, e das aventuras de outros frequentadores. Foi recebido por uma freira que se vestia com peles preciosas de marta; amou a que se apelidava Urtiga; descreveu sua ardorosa paixão por uma monja cantora a quem “de ver fiquei sem sentido e de ouvir sem pensamentos”. A mais bela de suas histórias amorosas com as “cortesãs enclausuradas” é quando a cama de uma delas se incendeia de noite, e ele diz que foi o seu amor que queimava os corpos através dos espíritos. Era o gosto sensual do mundo, na dimensão profunda dos que têm seus pensamentos e apetites numa mesma região de prazer e dor.
Os freiráticos partiram em mil pedaços a divisão do corpo da mulher entre céu e inferno, abrindo caminho para que se iluminassem as “trevas pecaminosas com que o platonismo cristão assombrara o paraíso dos amantes”. O verso libertino foi atenuado e depois substituído pela romântica possibilidade do amor carnal e espiritual em comunhão. A mulher pôde, assim, tratar de recuperar sua natureza feminina, atingir a plenitude de seu poder sagrado.
(Ilustração: Clovis Trouille)
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Ana Miranda - Os freiráticos
quinta-feira, 19 de setembro de 2019
ZEITGEIST, de Fernando Pinto do Amaral
Os meus contemporâneos falam muito
e dizem: “Então é assim”,
com o ar desenvolto de quem se alimenta
do som da própria voz, quando começam
a explicar longamente as actuais tendências
das artes ou das letras ou das sociedades
a pouco e pouco iguais umas às outras
neste primeiro mundo em que nascemos,
agora que o segundo deixou de existir
e que o terceiro, mais guerra, menos fome,
continua abstracto, em folclore distante.
Parece que está morta a metafísica
e que a verdade adormeceu, sonâmbula,
nos corredores vazios onde, às escuras,
se vão cruzando alguns milhões de frases
dos meus contemporâneos. Todavia,
falam de tudo com o entusiasmo
de quem lança «propostas» decisivas
e percorre as «vertentes» de novos caminhos
para a humanidade, enquanto saboreiam
a cerveja sem álcool, o café
sem cafeína e sobretudo
o amor sem amor, pra conservarem
o equilíbrio físico e mental.
Os meus contemporâneos dizem quase sempre
que não são moralistas, e é por isso
que forçam toda a gente, mesmo quem não quer,
a ser livre, saudável e feliz:
proíbem o tabaco e o açúcar
e se por vezes sofrem, tomam comprimidos
porque a alegria é uma questão de química
e convém tê-la a horas certas, como
o prazer vigiado por preservativos
e outros sempre obrigatórios cintos
de segurança, pra que um dia possam
sentir que morrem cheios de saúde.
Quando contemplo os meus contemporâneos
entre as conversas trendy e os lugares da moda,
“tropeço de ternura”, queria ser
pelo menos tão ingénuo como eles,
partilhar cada frémito dos lábios,
a labareda vã das gargalhadas
pela madrugada fora. No entanto,
assedia-me a acédia de ficar
assim, mais preguiçoso do que um Oblomov
à escala portuguesa - ó doce anestesia
a invadir-me o corpo, a libertar-me
desse feitiço a que se chama o «espírito
do tempo» em que vivemos, sob escombros
de um céu desmoronado em mil pequenos cacos
ainda luminosos, virtuais
estrelas que se apagam e acendem
à flor de todos os écrans
que os meus contemporâneos ligam e desligam
cada dia que passa, nunca se esquecendo
de carregar nas teclas necessárias
para a operação save
e assim alcançarem a eternidade.
(Poesia Reunida, 1990-2000)
(Ilustração: Michael Lang - Urban Expressions - wanderers)
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Fernando Pinto do Amaral - Zeitgeist
segunda-feira, 16 de setembro de 2019
“LÚCIA”, DE CASTRO ALVES: UMA MULHER NEGRA, UM POETA BRANCO E TRÊS INTERPRETAÇÕES, de Alex Castro.
O poema curto “Lúcia” foi escrito em São Paulo, em 1866, e publicado pela primeira vez em 1881, em uma edição comemorativa dos dez anos de morte do poeta, Castro Alves¹. Atualmente, aparece em algumas edições de Espumas Flutuantes mas é geralmente incluído em Os Escravos. Seu enredo é traiçoeiramente simples: o narrador conta a história de sua colega de brincadeiras da infância, Lúcia. A princípio, ele só descreve delícias e alegrias da vida em uma fazenda (grifos sempre meus):
“Eu e Lúcia corríamos — crianças
Na veiga, no pomar, na cachoeira
Como um casal de colibris travessos.”
Logo, entretanto, percebemos que Lúcia é uma escrava:
“Ai! Pobre Lúcia… como tu sabias,
Festiva, encher de afagos a família
Que te queria tanto e que te amava
Como se fosses filha e não cativa…”
O narrador conta então como a família branca amava Lúcia, o quanto ela tocava suas vidas e os fazia felizes. Mesmo assim, entretanto, ela logo é vendida e mandada para longe. O poema não explica porque a família venderia uma escrava pretensamente tão amada, mas sugere pobreza:
“Mas um dia a miséria, a fome, o frio,
Foram pedir um pouso nos teus lares…
A mesa era pequena… Pobre Lúcia!
Foi preciso te ergueres do banquete
Deixares teu lugar aos mais convivas…”
Antes de ser mandada embora, Lúcia se despede da fazenda como se tudo fosse sua culpa e diz, “conversando com a natureza”:
“Perdoai-me que eu parto para sempre!
Venderam para longe a pobre Lúcia!… (…)
Não te esqueças de mim que te amo tanto”
Enquanto vai sendo levada embora, Lúcia ainda agita um lenço branco. Muitos anos se passam. O narrador, agora adulto, está andando em uma estrada do interior quando percebe a mulher solitária caminhando a sua frente, cantando uma cantiga triste, carregando água sobre a cabeça, pés descalços no chão de terra — pessoas escravizadas eram proibidas de usar sapatos. Subitamente, ele reconhece a canção:
“De repente, Lembrei-me… “Lúcia! Lúcia!”
… A mulher se voltou… fitou-me pasma,
Soltou um grito… e, rindo e soluçando,
Quis para mim lançar-se, abrindo os braços.
… Mas súbito estacou… Nuvem de sangue
Corou-lhe o rosto pálido e sombrio…
Cobriu co’a mão crispada a face rubra
Como escondendo uma vergonha eterna…
Depois, soltando um grito, ela sumiu-se
Entre as sombras da mata… a pobre Lúcia!”
E assim termina.
A leitura mais comum desse poema vê nele a romântica história de um incipiente caso de amor precocemente abortado pela dura realidade da escravidão. Em uma época onde ainda era raro desconfiar do narrador, ele era visto como um pobre jovem inocente que, por ter as mãos atadas por uma realidade socioeconômica maior que ele, perde talvez o grande amor da sua vida. Mais recentemente, pessoas leitoras já escaldadas por Dom Casmurro tendem não só a desconfiar do narrador como a tentar ver a situação pelo ponto de vista da personagem subalterna, transferindo sua empatia do narrador para Lúcia.
Seguindo essa linha, o crítico Flávio Kothe, no livro ‘O Cânone Imperial’², faz uma análise especialmente dura do poema, tomando como ponto de partida a leitura acima. Pra começar, ele pergunta: se Lúcia era tão importante e tão amada, por que foi vendida? Naturalmente, não deveria ser tão importante assim. Além disso, também é fácil culpar outrem por uma separação que fatalmente aconteceria quando ele saísse da fazenda para estudar e Lúcia ficasse para trás, trabalhando pra pagar seus luxos na cidade grande:
“O fato de Lúcia, companheira de folguedos, ser vendida de repente só importa na medida em que, com a ausência dela, o sinhozinho se sente ferido.” (pg. 339)²
Kothe também questiona a razão da vergonha de Lúcia. Sua vergonha seria não por sua condição de escrava, pois ela já era escrava antes. Será vergonha de encontrar um dos membros da família que ela pensou que a amava, mas a vendeu como gado? Será vergonha que encontrar o homem que provavelmente, caso não tivesse sido vendida, a teria deflorado, como faziam quase todos os sinhozinhos?
O poema também menciona a profunda tristeza de Lúcia: de acordo com a leitura tradicional, por ter sido separada de seu inesquecível amado da infância. Kothe se pergunta: uma escrava trabalhando sem parar, brinquedo sexual do patrão, sofrendo todas as indignidades imagináveis, será que não tinha outros motivos mais concretos para sua melancolia?
Finalmente, Lúcia foge e o narrador não a segue. Na interpretação mais tradicional, ele o faz por pudor, para respeitar seu desejo de ficar sozinha. Na releitura de Kothe, esse ato acaba sendo reinterpretado como uma denúncia da hipocrisia do narrador, do poeta e do próprio leitor atual:
“Sugere-se que ela não queria ser encontrada e, portanto, não queria que ele fizesse algo por ela (exceto um poema). Assim, ele não precisa enfiar a mão no bolso para comprar a liberdade da amiga e dar-lhe vida mais digna. Também não precisa fazer politicamente nada, comprar qualquer briga, já que toda a culpa era dos outros e do passado. Desse modo é fácil ser abolicionista. (…) É a postura do político conservador que declara em público a sua solidariedade com os desgraçados e, na prática, nada faz. O leitor aceitar tal enredo é sinal de que ele também não foi mais longe. Ainda existe algo da mentalidade escravagista no inconsciente da população em regiões onde preponderou o escravismo.” (pgs. 352, 370-371)²
Mas, independentemente de como o poema foi escrito em 1868, ou de como foi lido desde então, ele também pode ser entendido não como uma celebração da hipocrisia, pusilanimidade e egocentrismo do narrador (e, por extrapolação, das elites brasileiras, inclusive do próprio leitor do século XXI) mas, precisamente, como sua denúncia. Hoje em dia, Lúcia seria uma empregada doméstica qualquer, tratada como se fosse “da família” mas despedida por ter engravidado. A análise incisiva de Kothe demonstra não a falta de valor da poesia de Castro Alves mas, pelo contrário, sua profundidade e relevância política sempre atuais.
O poema, entretanto, não se esgota nessas possibilidades. Uma leitura cuidadosa revela que o narrador nunca de fato se identifica: nadaindica que ele seja branco, livre ou que pertença à família que possuía Lúcia. Ele brincava livremente com ela na infância, mas ela era escrava e também brincava livremente. Seria o narrador também escravo? Existe uma cuidadosa e ambígua operação de aproximação e distanciamento entre o narrador e a família branca: o narrador, ao falar que a miséria tomou pouso em “teus lares”, se coloca cuidadosamente fora desses lares — assim como acima fala “a família” e não “nossa família”. A que família e a que lares ele pertence então? Se uma interpretação mais política e contemporânea focalizou em Lúcia em detrimento do narrador, talvez fosse interessante voltar nosso olhar a ele: sabemos quem é Lúcia, mas quem é o homem que narra o poema? Se nada indica que é branco, rico ou dono de escravos, nada também indica que é negro, pardo ou escravo: entretanto, a cuidadosa escolha de vocabulário do poema permite todas essas possibilidades.
Poderíamos perfeitamente reler “Lúcia” como uma abortada história de amor (e talvez nem mesmo isso) entre duas pessoas escravizadas. Quando o narrador encontra Lúcia na estrada, não há menção a nada que indique uma posição socioeconômica superior da parte dele: ele não está nem mesmo a cavalo, mas caminhando assim como ela — talvez também descalço ou carregando peso. Se começarmos a ler nas entrelinhas, desconfiaremos até da pretensa história de amor: quando Lúcia está para ir embora, ela faz um longo discurso de despedida que termina em “não te esqueças de mim que te amo tanto.” Nesse ponto, muitos leitores podem presumir que ela está falando com o narrador, mas, já no começo do discurso, o poema deixa explicitamente claro que ela estava “conversando com a natureza”, se despedindo da mata, dos passarinhos, dos coqueiros e das violetas. Do mesmo modo, logo em seguida, quando ela acena um lenço branco ao longe, nada indica que esteja se despedindo do narrador, mas provavelmente da mesma natureza com a qual estava dialogando há pouco. Não deixa de ser curioso: por que o poema não mostra nenhuma interação, diálogo ou despedida entre os dois? Por que, pelo contrário, faz questão de deixar bem marcado que ela não estava se despedindo dele? Talvez a intenção do poeta fosse justamente deixar claro o caráter completamente platônico do relacionamento. Ao quebrar nossas expectativas de despedidas românticas e declarações apaixonadas, o poema parece estar enfaticamente afirmando: “essa não é uma história de amor, nosso assunto aqui é outro.”
Por fim, resta apenas a questão da vergonha final de Lúcia. Se fossem apenas duas pessoas escravizadas se encontrando em uma estrada, por que ela fugiria? Em primeiro lugar, porque encontrá-lo de novo a fez reviver toda a vergonha de ter sido vendida, aquele momento traumático no qual uma menina inocente, até então criada como se “fosse filha e não cativa”, descobriu o quanto de fato valia e qual era o seu verdadeiro lugar na ordem social. Talvez houvesse até uma ponta de ressentimento contra o narrador: afinal, ela foi vendida e ele não. Talvez ele fosse realmente amado e valorizado. Em segundo lugar, porque talvez de fato fossem de fato amigos, ou apaixonados um pelo outro, e Lúcia introjetou toda a culpa da separação. Assim como muitas mulheres estupradas que se sentem adúlteras ao encarar seus companheiros, Lúcia é duplamente vitimizada: além de ter sido vendida e separada de seu amigo e potencial companheiro, ela também introjeta a responsabilidade por essa separação, como se tivesse sido tudo sua culpa, como se ela pudesse ter evitado a separação se tivesse sido uma escrava mais diligente e trabalhadora. Assim, sentindo-se culpada pelo crime que sofreu, não consegue mais encarar o narrador e foge.
O objetivo dessa análise não é, naturalmente, esgotar as possibilidades do poema mas exemplificar suas potencialidades. Um romântico e sentimental poeta é separado de sua amada pela perversa realidade da escravidão. Menina escrava é vendida para longe de sua casa e família, e seu egocêntrico amigo e sinhozinho só consegue pensar em si mesmo e em como isso o afeta. Casal de escravos que cresceu juntos é separado e mulher introjeta a culpa da separação. Um mesmo poema e três enredos bastante diferentes: é por essa riqueza que Castro Alves continua fascinando as pessoas leitoras.
Referências
¹Publicado pela primeira vez em Bosquejo Literário a Propósito do Decenário do Castro Alves, Bahia, 1881.
² Kothe, Flávio R. O Cânone Imperial. Brasília: Editora UnB, 2000. Páginas 315-383.
(Ilustração: Jacques Etienne Arago - Castigo de Escravos, 1839)
sexta-feira, 13 de setembro de 2019
ELEGIA 1.9, Sexto Propércio
Dicebam tibi uenturos, irrisor, Amores,
….nec tibi perpetuo libera uerba fore:
ecce taces supplexque uenis ad iura puellae,
….et tibi nunc quaeuis imperat empta modo.
Non me Chaoniae uincant in Amore columbae (5)
….dicere, quos iuuenes quaeque puella domet.
Me dolor et lacrimae merito fecere peritum:
….atque utinam posito dicar Amore rudis!
Quid tibi nunc misero prodest graue dicere carmen
.…aut Amphioniae moenia flere lyrae? (10)
Plus in Amore ualet Mimnermi uersus Homero:
….carmina mansuetus lenia quaerit Amor.
I, quaeso, et tristis istos sepone libellos,
….et cane quod quaeuis nosse puella uelit!
Quid si non esset facilis tibi copia? Nunc tu (15)
….insanus medio flumine quaeris aquam.
Necdum etiam palles, uero nec tangeris igni:
….haec est uenturi prima fauilla mali.
Tum magis Armenias cupies accedere tigris
….et magis infernae uincula nosse rotae, (20)
quam pueri totiens arcum sentire medullis
….et nihil iratae posse negare tuae.
Nullus Amor cuiquam facilis ita praebuit alas,
….ut non alterna presserit ille manu.
Nec te decipiat, quod sit satis illa parata: (25)
….acrius illa subit, Pontice, si qua tua est;
quippe ubi non liceat uacuos seducere ocellos,
….nec uigilare alio limine cedat Amor.
Qui non ante patet, donec manus attigit ossa:
….quisquis es, assiduas a fuge blanditias! (30)
Illis et silices et possint cedere quercus,
….nedum tu possis, spiritus iste leuis.
Quare, si pudor est, quam primum errata fatere:
….dicere quo pereas saepe in Amore leuat.
Tradução de Guilherme Gontijo Flores:
Eu te disse, palhaço — Amores chegariam
….e não terias mais palavras livres.
Eis que te calas suplicante sob as leis
….dessa recém-comprada que te impera.
Como as pombas Caônias eu canto no Amor (5)
….que jovens cada moça amansará.
Pranto e dor me tornaram perito por mérito,
….mas antes sem o Amor eu fosse um leigo!
De que vale, infeliz, cantar solene agora
….chorando os muros que fizera Anfíon? (10)
No Amor melhor que Homero é um verso de Mimnermo:
….suaves cantos busca o manso Amor.
Vai, eu te peço, e larga esses tristes livrinhos
….e canta algo que a moça queira ouvir!
O que farás se te faltar assunto? Agora, (15)
….insano, em pleno rio pedes água.
Não estás pálido, não viste ainda o fogo:
….são só fagulhas do teu mal vindouro.
Então preferirás brincar com tigre Armênio
….e na roda infernal acorrentar-te (20)
do que sentir na espinha o arco do menino
….sem poder negar nada à moça irosa.
Nenhum Amor deu asas fáceis para alguém
….sem também o oprimir com a outra mão.
Não acredites se ela parecer disposta — (25)
….mais te consome, Pôntico, ao ser tua:
não poderás correr teus olhos livremente,
….o Amor não deixará que veles outra.
Não podemos senti-lo até que atinja os ossos:
….quem quer que sejas, foge das carícias! (30)
A elas cederiam pedras e carvalhos —
….e tu, sopro ligeiro, mais ainda.
Por fim, se tens pudor, confessa logo os erros:
….contar as dores alivia o Amor.
Notas:
O poema é clara continuidade de 1.7, após o intervalo de 1.8, de modo que os três formam um pequeno conjunto em que vemos as ameaças de Propércio ao gênero épico (1.7); seu próprio risco de falhar, mas resultando no sucesso de manter Cíntia (1.8), representando seus poderes como poeta elegíaco; e a derrota final de Pôntico, agora apaixonado por uma escrava, ou prostituta (1.9), incapaz de continuar sua carreira de poeta épico, mas também incapaz de iniciar uma poesia elegíaca, por já ser tarde demais. Vitorioso, Propércio inicia seu trabalho de magister amoris.
vv. 5-6: A Caônia era uma região do Epiro, mas a referência específica é a Dodona, onde havia um oráculo de Zeus, que se realizava por meio do auspício de pombas. Vale recordar que as sacerdotisas também recebiam o nome de pombas (columbae).
v. 4: Há duas leituras para modo empta, como notam Butler & Barber, que tentei manter quanto pude. Trata-se a) de uma escrava “recém-comprada”; ou b) de uma prostituta, que até então estava à venda.
v. 8: Anfíon é o bardo mítico que teria construído a muralha de Tebas apenas com o poder de sua lira, com a qual ele guiava as pedras. Em 1.7.2 (cf. nota), vimos que Pôntico escrevia uma Tebaida.
v. 11: Mimnermo é um poeta elegíaco grego arcaico, com temática amorosa e sobre a juventude. Aqui Propércio usa-o para fazer uma oposição fundamental entre elegia e épica, atestando a utilidade daquela sobre esta, bem como sua brevidade: mais valeria apenas um verso de Mimnermo do que toda a obra de Homero.
vv. 15-16: “Pedir água no meio do rio” é um provérbio grego muito citado pelos romanos como sinal de loucura, mas aqui também tem a conotação metafórica do rio caudaloso simbolizar a poesia épica.
v. 20: Ixíon fora preso por Júpiter a uma roda cercada de serpentes, sempre a rodar, no mundo dos mortos, porque tentara estuprar Juno.
(Poemas de Sexto Propércio, apresentação, tradução & notas de Guilherme Gontijo Flores)
(Ilustração: Peinture murale romaine - Scène érotique - Pompéi)
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Sexto Propércio - Elegia 1.9.
terça-feira, 10 de setembro de 2019
UM SENHOR PIQUENIQUE! de Adoniran Barbosa
– Que horas são?
– Três de la matina. Eu vou dormir.
– Eu não vou. Já são três horas e o ônibus sai às cinco!
– Que ônibus?
– Não sabe? Eu conto pro senhor. Nóis vai fazê um piquenique na Praia Grande. O ônibus sai às cinco, nóis chega lá às sete e meia. Vai ser um senhor piquenique! Um sinhô piquenique!
– Nóis? Nóis quem?
– Gente da minha rua. Todos de lá. Quase tudo da mesma firma. Gente da Casa Pirani, da Companhia de Gás, ali no Gasômetro, da Maria Zélia, Matarazzo, da Arno. A gente mora quase todos na mesma rua. Quase todos. Pessoal da Caetano Pinto, Carneiro Leão, Visconde de Parnaíba e adjacência. Todos nóis! Quase uma família só, a bem dizer. Trabalhemos quase tudo na mesma firma, e moremos tudo perto um do outro.
– Mas como é que é o piquenique?
– O sinhô nunca foi num piquenique?
– Não.
– Qué i junto? Eu falo com o Dante e nóis arranja lugá pro sinhô no ônibus! O sinhô vai vê o que é o piquenique na Praia Grande, feito por nóis.
– Deve ser bom demais…
– Ô!!! O Dante, que é o mais velho da turma, é que organiza tudo. Primeiro, ele consurta quem qué i. Depois que tudo mundo aceita, ele vem e fala: o ônibus custa cento e quarenta conto. Aumentou. Mas tem uma coisa: o ônibus fica à nossa disposição o dia inteirinho, com chofer e tudo. O ônibus chega na praia, deixa nóis ali, encosta num canto longe da praia, e espera até a hora que a gente marquemos pra volta. No ano passado teve um. Foi ótis, doutor, ótis! Ninguém mais esquece aquele piquenique do ano passado, de tão ótis que foi!
– Vai muita gente?
– Hiii! Lotação compreta: trinta e seis sentado. Se a agência do ônibus deixava, ia mais uns vinte. Mas nós somos ordeiro, respeitemos tudo. Eu vou contar, só pro sinhô ter uma idéia. Quando é na véspa, cada um arruma as suas coisa, principalmente essas coisa pra comê, o sinhô sabe, não? Nessa altura, o Dante já recolheu o dinheiro de cada um. Uns cinco, déis conto por pessoa. Já pagou a agência, e já tá com o recibo. Hora marcada e tudo. Aí ele e a patroa (conhece dona Mafalda? Não? Magina!!!) começa a preparar as coisa. Ela faz uns vinte frango cheio, sendo que cada uma das mulher faz outras coisa. As moça se arruma, corta as unha dos dois pé, tem umas que compra maiô novo na loja, tem as outras que manda enrolá o cabelo, pra soltá de manhã, e é uma beleza! Nessa noite, tudo mundo pega o berço mais cedo, que é pra levantar disposto, porque o Dante é igigente e todo mundo respeita ele, porque ele num demite atraso e nem confusão. Ele avisa um por um: “Ângelo, o ônibus sai cinco hora. Quatro e meia no largo da Concórdia, tudo mundo. Avisa quem você encontrar!” Nessa noite, doutor, tou garantindo que ninguém drome dereito. O mar fica fazendo onda na cabeça da gente! E gente que ainda sonha fica sonhando com o céu azulzinho, a espuma branca batendo na areia, as onda que vai e que vem! É um sonho, doutor, um sonho! O sinhô já sonhô furta-cor? Contaram alguma vez da Disneylândia pro sinhô? É quase igual, eu nunca fui lá, mas é quase igual!
– Esse é o nosso ônibus! Vamo pegá o nosso lugar! Cada um com a sua sacola. Ninguém perturba! – esse é o Dante que fica de olho na gente. O Dante – sabe? – é gordo, corado, bonito, um pedaço de homem desse tamanho! Ele gosta de piquenique, doutor, nem queira saber!
– Aquiles, não sai de perto de nóis! Quando chega lá, fica tudo mundo junto! – É a dona Carmeluccia que tá falando. Coitada! Com as criança, a cesta, a sacola, pacote de sanduíche (para comer na viagem), ela entra no ônibus. E o resto vai subindo, pegando lugar, até um casal de namorado (o filho da dona Guiomar com a filha do seu Orlando) senta lá atrás, porque os dois não quer se misturar com a gente. Nóis também não se incomoda, porque o ano passado aconteceu igual com a Iolanda e o Amílcar e os dois casaram e nem vão amanhã, porque ela vai ter nenê por esses dias. Bem feito! Aí, o ônibus sai. As mãe manda as criança dá tchau pra gente que ficou no largo da Concórdia. Nem bem começa a viagem, o Gardelito (ele mora com a nona na Visconde de Parnaíba) começa a tocar violão. Doutor, ninguém quase fica queto. A gente canta pro motorista:
“Motorista meu amor! Motorista você é artista! Não corra tanto, por favor, queremos chegar vivo, sim senhor!”
– Para na biquinha pra gente fazê xixi.
– Para pra bebê água! Xixi é na moita!
– Qué sanduíche, filho?
– Não, mãe, espera mais pra adiante!
– Num afasta o banco que me espreme as perna!
– Coitado do Romano, não pôde vim!
– Por quê?
– Teve que drobá no serviço lá no Gasômetro.
Aí o Américo aponta pro lado e tudo mundo olha:
– Óia a Voquisvage! Aí que é a Voquisvage! São Bernardo do Campo!
– O ano que vem, eu acho que compro um Fusquete desses! Olha quantos que tem aí!
– Tudo zero quilómis!
Tem gente dormindo no ônibus. Menos as mocinha e o Dante (esse não dorme), olhando sempre pra tráis. E as mocinha canta:
“Eu te amo! Eu te amo!”
Vem a bronca do Riccieri:
– Mas até aqui? Já não chega o dia inteiro lá em casa?
Mas as moça dão o troco:
– Eh, tio, vê se num enche. Seu tempo já passô.
– Passô? Gardelito, dá o tom maior aí.
Gardelito dá um acorde, e nóis batuca nos braço da poltrona, e no pandeiro do Cláudio, só pra elas ver que nóis num passemos:
“É da banda da banda de lá! É da banda da banda de cá! Houve retreta domingo e a banda da banda de lá veio tocar na banda de cá. Durante a retreta com a banda da banda de lá e a banda da banda de cá, alguém desafinou: trocaram o dó pelo fá e todo mundo protestou! É da banda da banda de lá! É da banda da banda de cá!”
– Velho, hein? Todo mundo cantou com nóis. E teu “ti amo”, alguém cantou?
– Pessoal, sigura que tá descendo a serra! Já tô meio surdo!
– Não é nada. É a impressão da altura da serra! Respira fundo que passa!
– Magina se o ônibus rodopeia daqui! Não sobra ninguém!
– Bidu! Olha o Cubatão! Lá tem oloduto!
– Que qui é oloduto, pai?
– Ólio encanado. Vai dereto pras bomba de gasolina de São Paulo.
– Tá chegando!
– O mar num é lá?
– Acho que é!
– Daí a pouco a gente tá chegando na Praia Grande.
O ônibus para e o motorista avisa a gente:
– É aqui. Desce tudo mundo e as coisa pode ficá no carro que eu tomo conta. Eu vou encostá um pouco retirado, porque é proibido estacioná na praia, o sinhô sabe, não?
Aí os home desce. Fica só as mulher, que é pra poder trocar de roupa. O Dante leva a gente pra trocar de roupa numa casa que tá em construção. O Dante conversa com o home e a gente pode tomar banho e vestir o calção e, na volta, ele disse que pode tirá o sal. Tem chuveiro. A gente troquemos, dobremos nossas roupa e tudo mundo vai guardar suas coisa no ônibus.
– Não entra ainda! Tem moça se trocando! – é a dona Mênega que fala.
– Já dá pra tomar uma batida, não dá, seu Dante?
– Não! Eu truxe um garrafão. Fiz onti di noite, no capricho.
– Mas mesmo assim nóis vai – cochicha o Ernesto.
A mãe do Amílcar dá bronca:
– Olha, vocês viero aqui pra tomá banho de mar, e não pra enchê o caco. Cuidado, hein, bom?
Tá tudo pronto. As moça tudo de maiô, bem penteada, os home de calção e as mãe de maiô cumprido, se cobrindo com o penhoar.
– Meio-dia tudo mundo aqui! Não vão longe! Aqui embaixo dessas álvores.
– Perfeitamente, seu Dante! Fica sossegado!
O seu Dante ainda avisa:
– Não vão longe! Olha as criança, pelo amor de Deus!
O Romeu trouxe a bola pra uma pelada na praia. Ele é o Rivelino da turma. A gente formemos dois time: velho contra moço. As mocinha vão jogar peteca e as mulher vão arranjando lugar na areia, enquanto que as criança vão fazer castelinho de areia, mas alguns querem mesmo é pegar conchinha pra trazer de lembrança.
A essa altura, o Étore já está no bar, arrepiado com a primeira:
– Não sei como é que branco bebe isso!
O resto da turma vai deixando o futebol e vem encostá o imbigo no balcão.
– Eu quero uma com maracujá.
– Uma pura e um picolé de limão pra misturá.
– Pra mim faz uma caipirnha sem casca!
– Pra mim tamém!
– Pra mim tamém! Mas coadinha!
– Pra mim tamém! Com bastante gelo.
O Dante vem e bronqueia:
– E quem é que vai bebê aquela que eu truxe? Voceis não tem jeito mesmo. Parece que nunca viro cachaça!
E depois o Dante pede pro dono do bar:
– Duas dúzia de cerveja, e duas de guaraná pras criança. Eu pago o depósito do vasilhame. Tudo bem geladinho, hein!
– Tudo mundo tomá banho!
– Não vão longe, hein?
A espuma do mar vem vindo, vem vindo e chega na ponta do meu pé:
– Brrrrrrrrrrr!
– Tá fria, Rolando?
– Que fria nada, paulista. Entra duma vez que você perde o medo!
A gente olha e já vê tudo mundo brincando nas onda!
O filho da dona Guiomar e a filha do seu Orlando não se mistura com a gente. Tão suzinho lá adiante. Dois bobocas…
– Aquilo vai dá casamento!
– Deus queira!
Tudo mundo da turma tá alegre demais!
– Pula essa onda, manhê!
– Que lindo que é o mar! Dá vontade de comê!
– Olha o sol! Parece um remendo branco na calça azul do céu!
– Já perdi a fome. Queria bebê o mar inteiro!
– Que pena que daqui a pouco teremos que i simbora!
Um menino dá risada:
– Olha os gambito branco do Seu Adamo! Branco que nem leite!
Aí o Brancato fica beservando a moça:
– Bobona! Não quer mostrar as gâmbia! Bela porcaria.
O último que saiu do bar foi o Roberto!
– Já me esquiatei quatro bela caipirinha dupra e, agora, eu vou ver a cor d’água!
E lá vai ele cantando:
“Por que bebes tanto assim, rapaiz?”
O Ricieri dá uma baita bronca no garoto.
– Porco! Onde se viu fazê xixi no mar? Quem te ensinô a fazê isso daí? Alguma vez seu pai fez isso? E agora temo que nadá nisso aí? Porco!
Chega o Dante:
– Hi, quantas vez eu discarreguei no mar! Se fosse contá, dava pra enchê um balde!
A pelada está no fim. Os velho ganharam, como sempre.
É aí que a dona Olívia não aguenta mais:
– Pessoar! Vamo comê! Chega de água do mar!
Então todo mundo vai saindo d’água, vai rindo, tomando o caminho do ônibus, pra ir pegar comida e arranjar lugar embaixo das álvores. Cada um vai arrumando a toalha no chão, as mulher vão abrindo os pacote, as sacola e vão pondo tudo na toalha e já tem gente mastigando em falso, com água na boca!
O almoço é uma festa. Cada família fez uma coisa. É só olhar e ver tudo em cima das toalhas estendidas na grama: frango cheio, pimentão cheio, brajolinha, abobrinha cheia, torta de frango, cuscuz, bife à milanesa, coxinha, mortadela, presunto, salaminho, pão de peito da Rua Glicério, vinho da cantina do irmão do Dante (vinho bom), garrafão de pinga com limão, que o Étore preparou, cheiro de frango, cheiro de pastéis (foi a nona do Gardelito quem fez), a risada do Roberto e os palpites do Guido:
– Fui até naquela onda lá!
O Dante previne a gente:
– Dispois de comé, ninguém vai nadá na água, porque dá digestão!
Tudo mundo divagarzinho vai ficando quieto. O sono tá batendo na gente e a persiana do zolhos querendo fechar. Os moço não dorme. O Gardelito pega o violão e começa a cantar tango:
“Estoy me poniendo viejo de tras de la alma se va la vida. Hoy me miré al espejo e senti mi alma que está moriendo cuando mi amor me acariciava…”
Música vai, música vem e está na hora do último banho:
– Vamo entrar mais um poco n’água?
Tudo mundo volta pra água. E começa de novo as risadas, o jogo de bola, gente furando onda, batendo peteca, as criança na areia, o namorado desenhando com o dedão do pé um coração com flecha na areia molhada, as mulher conversando, e começa o cansaço até que o Dante dá a orde:
– Vamo se arrumá, que às quatro o ônibus sai. São três e meia. Acho que já chega.
O pessoal vai saindo, as mulher vão tirá o sal no chuveiro da casa em construção, que o Dante pediu emprestado. E, depois do banho, a gente já tá meio triste, cansado, tudo mundo se arrumou e vão subindo no ônibus. E, quando tá tudo pronto, o motorista avisa que vai embora e o Dante examina, vê se não falta ninguém e manda tocar. E a gente nas janelinha vai olhando a praia que fica dizendo que é uma pena!
– Ainda é cedo! Fica mais um pouco, pessoar!
Mas a gente diz que não pode, porque a estrada tá muito cheia, tem muito carro e a gente precisamos chegar cedo, pra trabalhar amanhã no nosso serviço, porque temos os nosso compromissos.
O ônibus sai depressa e levanta as folha de jornal e de papel que deixemos na praia e esses papel voando lá atrais parece que tão dizendo adeus e querendo que a gente fique mais um pouco!
A tarde vai morrendo e nóis na estrada, ouvindo só o ronco do motor, mas tem alguém que ainda canta:
“Motorista, motorista, por favor. Não corras tanto! Devagar é pressa! É pressa, sim senhor. Do jeito que saímos nós queremos chegar…”
Já é quase noite. O ônibus já está no Brás. Para no Largo da Concórdia, justo onde o Dante combinou a chegada. A porta abre e a gente vai descendo e ninguém diz até logo e nem nada. Nós moremos perto, quase tudo uma família só. E nessa noite tem alguém que sonha com a espuma branca do mar, a onda braba que vinha, o sol tostando o corpo, e a areia queimando o pé da gente, e nós ouvindo o ronco do mar, a voz do Gardelito, o samba no ônibus, o iê-iê das meninas, tudo que a gente viu e ouviu. E a gente fica triste, quando escuta dona Edna dizendo que não pôde aproveitar:
–Justo hoje! Porca pipa! Não faz mal, as minhas menina se divertiro bastante! Graças a Deus!
E quando tudo mundo já entraram cada um em suas casa, nóis entremo no bar, pedimos a penúltima, olhamos pra tudo mundo, até gente que nós não conhece, enchemos o peito, depois de um gole, e suspiramos fundo, mas cheio de orgulho:
–Grande! Como é grande um piquenique na Praia Grande!…
(Dá Licença de Contar, biografia de Adoniran Barbosa, por Ayrton Mugnaini Jr.)
(Ilustração: John Edward Costigan -Picnic along the Brook)
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