sábado, 30 de janeiro de 2021

TRÊS TESOUROS PERDIDOS, de Machado de Assis

 


Uma tarde, eram quatro horas, o Sr. X... voltava à sua casa para jantar. O apetite que levava não o fez reparar em um cabriolet que estava parado à sua porta. Entrou, subiu a escada, penetra na sala e... dá com os olhos em um homem que passeava a largos passos como agitado por uma interna aflição.

Cumprimentou-o polidamente; mas o homem lançou-se sobre ele e com uma voz alterada, diz-lhe:

— Senhor, eu sou F..., marido da senhora Dona E...

— Estimo muito conhecê-lo, responde o Sr. X...; mas não tenho a honra de conhecer a senhora Dona E...

— Não a conhece! Não a conhece! ... quer juntar a zombaria à infâmia?

— Senhor!...

E o Sr. X... deu um passo para ele.

— Alto lá!

O Sr. F... , tirando do bolso uma pistola, continuou:

— Ou o senhor há de deixar esta corte, ou vai morrer como um cão!

— Mas, senhor, disse o Sr. X., a quem a eloquência do Sr. F... tinha produzido um certo efeito: que motivo tem o senhor...

— Que motivo! É boa! Pois não é um motivo andar o senhor fazendo a corte à minha mulher?

— A corte à sua mulher! não compreendo!

— Não compreende! oh! não me faça perder a estribeira.

— Creio que se engana...

— Enganar-me! É boa!... mas eu o vi... sair duas vezes de minha casa...

— Sua casa!

— No Andaraí... por uma porta secreta... Vamos! ou...

— Mas, senhor, há de ser outro, que se pareça comigo...

— Não; não; é o senhor mesmo... como escapar-me este ar de tolo que ressalta de toda a sua cara? Vamos, ou deixar a cidade, ou morrer... Escolha!

Era um dilema. O Sr. X... compreendeu que estava metido entre um cavalo e uma pistola. Pois toda a sua paixão era ir a Minas, escolheu o cavalo.

Surgiu, porém, uma objeção.

— Mas, senhor, disse ele, os meus recursos...

— Os seus recursos! Ah! tudo previ... descanse... eu sou um marido previdente.

E tirando da algibeira da casaca uma linda carteira de couro da Rússia, diz-lhe:

— Aqui tem dois contos de réis para os gastos da viagem; vamos, parta! parta imediatamente. Para onde vai?

— Para Minas.

— Oh! a pátria do Tiradentes! Deus o leve a salvamento... Perdoo-lhe, mas não volte a esta corte... Boa viagem!

Dizendo isto, o Sr. F... desceu precipitadamente a escada, e entrou no cabriolet, que desapareceu em uma nuvem de poeira.

O Sr. X... ficou por alguns instantes pensativo. Não podia acreditar nos seus olhos e ouvidos; pensava sonhar. Um engano trazia-lhe dois contos de réis, e a realização de um dos seus mais caros sonhos. Jantou tranquilamente, e daí a uma hora partia para a terra de Gonzaga, deixando em sua casa apenas um moleque encarregado de instruir, pelo espaço de oito dias, aos seus amigos sobre o seu destino.

No dia seguinte, pelas onze horas da manhã, voltava o Sr. F. para a sua chácara de Andaraí, pois tinha passado a noite fora.

Entrou, penetrou na sala, e indo deixar o chapéu sobre uma mesa, viu ali o seguinte bilhete:

— “Meu caro esposo! Parto no paquete em companhia do teu amigo P... Vou para a Europa. Desculpa a má companhia, pois melhor não podia ser. — Tua E...”.

Desesperado, fora de si, o Sr. F... lança-se a um jornal que perto estava: o paquete tinha partido às 8 horas.

— Era P... que eu acreditava meu amigo... Ah! maldição! Ao menos não percamos os dois contos! Tornou a meter-se no cabriolet e dirigiu-se à casa do Sr. X..., subiu; apareceu o moleque.

— Teu senhor?

— Partiu para Minas.

O Sr. F... desmaiou.

Quando deu acordo de si estava louco... louco varrido!

Hoje, quando alguém o visita, diz ele com um tom lastimoso:

— Perdi três tesouros a um tempo: uma mulher sem igual, um amigo a toda prova, e uma linda carteira cheia de encantadoras notas... que bem podiam aquecer-me as algibeiras!...

Neste último ponto, o doido tem razão, e parece ser um doido com juízo.



(Publicado originalmente em A Marmota, 1858)



(Ilustração: Jean Béraud)



quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

HIROSHIMA, de Manoel de Andrade




Hiroshima, Hiroshima

rosa rubra do oriente

fragrância de cerejeira

céu de anil no sol nascente.



Farol de luz no estuário

remanso dos vendavais

porto e escala dos juncos

roteiro dos samurais.



Verão de quarenta e cinco

no dia seis de agosto.

Clareando as águas do delta

a aurora beija o teu rosto.



Surge o Sol, se abre o dia

na luz e no movimento.

Tudo era paz e alegria

e nenhum pressentimento.



Teus colibris revoavam

no fresco azul dos teus ares

eram os casais, eram os ninhos

carícias, trino e cantares.



O arroz na água e na espiga

talo e seiva a palpitar

os rosais desabrochando

e os girassóis a girar.



Vidas…teu rosto eram vidas

nos campos e nos quintais

nos jardins, na verde relva

na algazarra dos pardais.



Folguedos, danças, cantigas

tua infância sem receios

teus escolares em flor

correndo pelos recreios.



As horas cruzavam o dia

os pais e os filhos na praça

o povo cruzava as ruas

cruzava o céu a desgraça.



De repente nos teus ares

a Águia do Norte, o Falcão

e num segundo, em teus lares,

gritos, fogo, turbilhão.



O beijo carbonizando

a luz devorando o dia

a carne viva queimando

na instantânea agonia.



No céu… um avião se afasta

na voz… a missão cumprida

no chão… a dor que se arrasta

e a cidade destruída.



Quem eras tu, Hiroshima

naquele dia distante…?

Eras sonhos e esperanças

incendiados num instante…



Quantos projetos de vida

mil sonhos acalentados

quantas mil juras de amor

nos lábios dos namorados.



Eras filhote no ninho

eras fruto no pomar

canteiro de brancas rosas

e toda a vida a cantar.



Eras mãe, eras criança

e no útero eras semente

ontem eras a esperança

e agora o braseiro ardente



Por que Hiroshima, por quê…?

o punhal de fogo, a explosão…?

Por que cem mil corações

ardendo sem compaixão…?



Tua inocência cremada

na fogueira do delírio.

Tua imagem retratada

na estampa do martírio.



Teu sangue vive na história

nas cicatrizes ardentes

nas lágrimas, na memória

na dor dos sobreviventes.



Quem previu tua agonia ?

Quem explodiu tua paz ?

Quem tatuou nos teus lábios

as palavras: nunca mais!?



Comandantes, comandados…

quem são os donos da guerra…?

e em que tribunal se julgam,

os genocídios da Terra…?



Por tanta dor, rogo a Deus

na minha prece tardia

que guarde no seu amor

os mártires daquele dia.



Hiroshima, flor da vida,

semente, ressurreição.

Fênix, face renascida.

PAZ, santuário, canção.



(Poemas para a liberdade, 2009)



(Ilustração: Kichisuke Yoshimura "Covered with blood, trudging silently away like ghosts from the city, the injured looked like creatures from another world." - Hiroshima Peace Memorial Museum.)

domingo, 24 de janeiro de 2021

METÁFORAS SOBRE ONDE CANTA O SABIÁ, de Everardo Norões

 



Numa conversa sobre a importância do trabalho do escritor fora de seu "lugar", veio o mote: Onde canta o sabiá.

Esse mote sugere duas metáforas: a primeira refere-se a um exílio consentido por lembrar o conhecido poema de Gonçalves Dias, repetido nas escolas à época da ditadura do Estado Novo. A segunda, a da letra de Chico Buarque.

Gonçalves Dias não é um proscrito. Vai estudar em Coimbra, para onde eram encaminhados os que viriam a ser os letrados da época. O sabiá do Chico Buarque diz respeito aos anos 1970. É obrigado a fugir da gaiola.

Ao contrário de Gonçalves Dias, Chico Buarque deve ter tido o sentimento de alguém fora de um lugar que considera seu e para o qual não sabe se vai voltar.

Para o escritor, qualquer uma dessas situações desemboca numa indagação:

Qual o “lugar” do texto?

Toda existência supõe relação com locais onde vivemos, com pessoas que nos deixaram luzes ou cicatrizes. São artefatos armazenados nas estantes de nossa memória. Literatura é ficção. Ao mesmo tempo, é reconstrução do mundo da experiência. Movimenta personagens de um romance, ergue os andaimes de um poema. Ela está sempre diante de dois espelhos: um, o que reflete a realidade; outro, o que revela a fantasia. A construção de um lugar dentro da escrita, mesmo fictício, também desvenda novas alternativas ao existir, o que resulta numa forma de utopia, que pode ser chamada a "utopia do texto".

Por isso, o desterro é, ao mesmo tempo, o lugar da metáfora e a metáfora do lugar. E o essencial, para o escritor, sobretudo o poeta, é como essa metáfora toma forma.

Primeiro, ele busca descobrir o que passa despercebido.

Intitulei um de meus livros Poeiras na réstia. É uma imagem que traduz esse pensamento. Numa casa de telha-vã, um furo produzido pelo vento ou pela passagem de algum bicho deixa-se filtrar por um raio de sol.

A luz forte do sol ofusca, queima. Mas, através da fresta, podemos observar partículas microscópicas navegando na réstia.

É possível perceber a poeira da casa: o mínimo, o minúsculo.

O artista consegue observar através desse fiapo de luz porque está munido de uma espécie de antena.

Ele se sente tocado por alguma coisa que se assemelha a um fulgor ou espanto. Às vezes, um duende. Então, trabalha sua matéria-prima para nos desvelar uma obra susceptível de transmudar a tristeza ou o desassossego em algo que eleva ou consola.

No momento em que Picasso se depara com um guidom de bicicleta e o transforma numa cabeça de touro, essa cabeça de touro sofre uma metamorfose. E, de repente, passa a ser a própria imagem da Espanha.

Também o escritor se serve dessa aptidão para captar a aura que percebe em torno de circunstâncias ou de coisas. Em seguida, ele as transfigura de tal jeito que elas nunca mais serão vistas da mesma maneira.

Se o escritor possui uma antena assim, pouco importa o lugar onde se encontre. Pode ser uma sala, pode ser um país.

Ernest Hemingway andou pelo mundo de seu século enfrentando guerras e bichos. Giacomo Leopardi, enclausurado e doentio, quase nunca abandonou seu castelo de Recanati. Mas foi ali que escreveu o Zibaldone e compôs Il infinito, um dos mais preciosos poemas da literatura.

O escritor até pode "edificar" sua própria cidade com andaimes e tijolos imaginários. Assim o fez Juan Carlos Onetti, ao erguer sua Santa María, do romance Juntacadaveres. E, ao lermos Borges, ficamos com a sensação de que seu universo era uma biblioteca. Até poderíamos concluir que há uma espécie de livro a brotar de outros livros.

Além dessa matéria-prima, além dessa antena, a conversa em torno do Onde canta o sabiá acabou por escorrer para a importância do “lugar” na literatura. Esses “lugares” podem ser vários. Pois, no fundo, são apenas suportes onde ocorreram nossas vivências, aquelas que acabam por tecer uma espécie de colcha de retalhos. Há passagens que nos marcam mais do que um simples endereço. São esses contatos, aproximações, que nos levam a outras culturas, à apreensão de contextos estrangeiros. Quem sabe, nem tanto "estrangeiros", na medida em que são próximos de nós por serem, quase sempre, manifestações dos repetitivos acontecimentos humanos.

Num conto publicado no livro Entre moscas e na revista Granta, escrevi algo assim: "Quando alguém emigra, carrega sempre algum sabor estrangeiro: fruta invisível que contamina a língua para sempre. Um cheiro que fica encoberto por outros odores. A exemplo do sabor da goiabada com queijo ou do cheiro dos pequis".

Se me perguntassem sobre qual o meu “lugar”, diria que ele é múltiplo. Talvez por isso não me considere apenas da cidade onde demorei mais tempo. Apenas a observo como quem olha um rio cortando-lhe a carne feito um gume de navalha. Mesmo assim, em nós permanece o reflexo de tudo o que testemunhamos em nosso passear humano, num mundo do qual somos fragmentos. Donde, o poema:

Fractais


Pelo mergulho

das sombras,

calculo

o itinerário da luz.

Meço

os contornos de nossas ruínas

na matemática particular

dos desesperos.

Abro a janela

da página do sonho:

soletro, devagar, o Aywu rapitá:

o ser do ser da palavra,

(flor pronunciada

entre as estrelas).



A noite

desaba sobre as telhas

na explosão de um meteoro.

Conto estilhaços,

recomponho parábolas:

um mínimo do que sou

lembra as fronteiras

do Universo.


O humano não tem fronteiras.

As culturas acabam sempre por derrubar os muros que lhes são impostos. Por isso, o artista, o escritor, nunca está fora do lugar. Seu país é o de dentro, onde encontra o fermento de seu ofício.

Apesar de seu trabalho ser o de dentro, tampouco é mais importante do que outro trabalho.

Coincido com a observação do gênio instigante de Roberto Arlt (que rompeu com o preciosismo da gramática para dar mais luz ao romance argentino), quando observa que a diferença entre o pedreiro que constrói casas e o fabricante de livros é que livros não são tão úteis quanto as casas. E o fabricante de casas não é tão vaidoso quanto o escritor!



(Ilustração: Valery Koroshilov - writer Michail Shishkin)



quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

NO LA AMANTE / NENHUMA AMANTE, de Bernardo Ortíz de Montellano



No la amante, el amor. La singladura

de la noche que arrastra fuego frío

por las venas del sueño, poderío

de la encendida palidez oscura.



El amor, no la amante. El goce mío,

la imagen que desbasto. La onda pura

que invade entre las ruinas mi locura

de tallar en diamante lo sombrío.



No la amante, el amor que le dio la vida.

Lo que mi mano roza y estos ojos

desojan, lo que nace de la herida



soledad en la noche de mi sueño;

¡encarnación que vive entre despojos,

de la que soy - oh dulce sangre - dueño!



Tradução de Adriana Zapparoli:




Nenhuma amante, o amor. A singradura

da noite que arrasta fogo frio

pelas veias do sonho, poderio

da incendida palidez escura.



O amor, nenhuma amante. O meu gozo,

a imagem que devasto. A onda pura

que invade entre as ruínas de minha loucura

de entalhar em diamante o assombroso.



Nenhuma amante, o amor que lhe deu a vida.

O que minha mão roça e estes olhos

desolham o que nasce da ferida.



Sozinho na noite de meu sonho;

encarnação que vive entre despojos,

da que sou - oh doce sangue - dono!




(Ilustração: Oskar Kokoschka - Bride of the Wind, a self portrait expressing his unrequited love for Alma Mahler, widow of composer Gustav Mahler, 1913)

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

FRAGMENTOS DE UM EVANGELHO APÓCRIFO, de Jorge Luis Borges



3. Desventurado o pobre de espírito, porque sob a terra será o que agora é na terra.

4. Desventurado aquele que chora, porque já tem o hábito miserável do pranto.

5. Felizes os que sabem que o sofrimento não é uma coroa de glória.

6. Não basta ser o último para ser alguma vez o primeiro.

7. Feliz aquele que não insiste em ter razão, porque ninguém a tem ou todos a têm.

8. Feliz aquele que perdoa aos outros e aquele que perdoa a si mesmo.

9. Bem-aventurados os mansos, porque não condescendem com a discórdia.

10. Bem-aventurados os que não têm fome de justiça, porque sabem que nossa sorte, adversa ou piedosa, é obra do acaso, que é inescrutável.

11. Bem-aventurados os misericordiosos, porque sua felicidade está no exercício da misericórdia e não na esperança de um prêmio.

12. Bem-aventurados os de coração puro, porque veem Deus.

13. Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque lhes importa mais a justiça que seu destino humano.

14. Ninguém é o sal da terra, ninguém, em algum momento de sua vida, não o é.

15. Que a luz de uma lâmpada se acenda, ainda que nenhum homem a veja. Deus a verá.

16. Não há mandamento que não possa ser infringido, e também os que digo e os que os profetas disseram.

17. Aquele que matar pela causa da justiça, ou pela causa que ele acredita ser justa, não tem culpa.

18. Os atos dos homens não merecem nem o fogo nem os céus.

19. Não odeies teu inimigo, porque, se o fazes, és de algum modo seu escravo. Teu ódio nunca será melhor que tua paz.

24. Não exageres o culto da verdade; não há homem que no final de um dia não tenha mentido com razão muitas vezes.

25. Não jures, porque todo juramento é uma ênfase.

26. Resiste ao mal, mas sem assombro e sem ira. A quem te ferir na face direita, podes oferecer a outra, sempre que não te mova o temor.

27. Não falo de vinganças nem de perdões; o esquecimento é a única vingança e o único perdão.

28. Fazer o bem a teu inimigo pode ser obra de justiça e não é árduo; amá-lo, tarefa de anjos e não de homens.

29. Fazer o bem a teu inimigo é o melhor modo de satisfazer tua vaidade.

30. Não acumules ouro na terra, porque o ouro é pai do ócio, e este, da tristeza e do tédio.

31. Pensa que os outros são justos ou o serão, e, se não for assim, não é teu o erro.

32. Deus é mais generoso que os homens e os medirá com outra medida.

33. Dá o santo aos cães, atira tuas pérolas aos porcos; o que importa é dar.

34. Procura pelo prazer de procurar, não pelo de encontrar…

39. A porta é a que escolhe, não o homem.

40. Não julgues a árvore por seus frutos nem o homem por suas obras; podem ser piores ou melhores.

41. Nada se edifica sobre a pedra, tudo sobre a areia, mas nosso dever é edificar como se fosse pedra a areia…

47. Feliz o pobre sem amargura ou o rico sem soberba.

48. Felizes os valentes, os que aceitam com ânimo similar a derrota ou as palmas.

49. Felizes os que guardam na memória palavras de Virgílio ou de Cristo, porque estas darão luz a seus dias.

50. Felizes os amados e os amantes e os que podem prescindir do amor.

51. Felizes os felizes.



(História Universal da Infâmia; tradução de Josely Vianna Baptista)



(Ilustração: Larry Rivers, History of Matzah)


sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

AUTOBIOGRAFIA, de Abdias do Nascimento

 


   



EITO que ressoa no meu sangue

sangue do meu bisavô pinga de tua foice

foice da tua violação

ainda corta o grito de minha avó



LEITO de sangue negro

emudecido no espanto

clamor de tragédia não esquecida

crime não punido nem perdoado

queimam minhas entranhas



PEITO pesado ao peso da madrugada de chumbo

orvalho de fel amargo

orvalhando os passos de minha mãe

na oferta compulsória do seu peito



PLEITO perdido

nos desvãos de um mundo estrangeiro

libra... escudo... dólar... mil-réis

Franca adormecida às serenatas de meu pai

sob cujo céu minha esperança teceu

minha adolescência feneceu

e minha revolta cresceu



CONCEITO amadurecido e assumido

emancipado coração ao vento

não é o mesmo crescer lento

que ascende das raízes

ao fruto violento



PRECONCEITO esmagado no feito

destruído no conceito

eito ardente desfeito

ao leite do amor perfeito

sem pleito

eleito ao peito

da teimosa esperança

em que me deito



(Ilustração: Adriana Varejão - filho bastardo II)



terça-feira, 12 de janeiro de 2021

POR QUE DEVEMOS PARAR DE FAZER APOLOGIA AO “NATUREBA”, de Alicia Kowaltowski


 

Somos submetidos constantemente a mensagens que sugerem que tudo que é derivado da natureza é bom para a nossa saúde. É uma presunção incorreta, pois não há nenhuma correlação entre a origem natural ou sintética de uma molécula e sua capacidade de ser perigosa ou benéfica para nós, humanos. De fato, eu prefiro evitar várias coisas completamente naturais, como ser picada por uma cobra, abrigar vermes parasitas nos meus intestinos ou pegar viroses epidêmicas. No entanto, se entramos numa farmácia, nos deparamos com dezenas de produtos cosméticos e suplementos derivados de plantas ou algas diversas, exibindo etiquetas proeminentemente indicando conter componentes da natureza. O consumidor geralmente assume que produtos que contêm componentes naturais são bons para a saúde, não causam efeitos colaterais, e são de modo geral desejáveis. 

A apologia ao “natureba” não se restringe às farmácias e também invadiu nossos supermercados. Neles, encontramos enorme quantidade de produtos etiquetados como “orgânicos”, ou produzidos sem uso de fertilizantes e pesticidas “artificiais”. O entendimento geral é que moléculas não naturais usadas para produzir nossa comida são ruins, enquanto o que vem diretamente da natureza nos faz bem. Esse entendimento é reforçado pelo fato de a comida orgânica ser mais cara, e portanto percebida como melhor. Investir nesse tipo de alimento, no entanto, é um péssimo negócio, pois não há nenhum benefício à saúde na ingestão de alimentos orgânicos, fora o efeito psicológico de se associar com a causa “natureba”. 

Parte desse efeito psicológico positivo associado a comprar produtos orgânicos provavelmente se deve à percepção de que esse tipo de agricultura “natureba” é natural, e portanto preserva o meio ambiente. Porém, na agricultura orgânica se utiliza fertilizantes menos eficazes e há perdas maiores dos produtos para pragas agrícolas. O resultado é que esse tipo de agricultura requer maiores áreas de cultivo para produzir a mesma quantidade de comida, e essas maiores áreas plantadas podem promover maior perda de áreas naturais preservadas. Além disso, por causa da maior área necessária para a produção, estudos indicam que a agricultura orgânica provoca maior emissão de gases que contribuem para mudanças climáticas. 

Mas se a agricultura orgânica não é melhor para o ambiente, não seria melhor para nós por evitar a ingestão de pesticidas, que são potencialmente causadores de câncer? O bioquímico norte-americano Bruce Ames, criador de um teste altamente eficaz adotado mundialmente para detectar compostos capazes de mudar o DNA e causar cânceres (o teste de Ames), também criou um ranking de moléculas carcinogênicas (geradoras de câncer) encontradas em frutas e verduras comerciais. Ele viu que pesticidas adicionados a plantações estavam presentes em concentrações minúsculas, milhares de vezes menores que moléculas naturais que as plantas produzem. Plantas geram seus próprios pesticidas para sobreviver a insetos e outros predadores. Essas moléculas naturais são tão perigosas quanto pesticidas criados pelo homem, e compõem 99,99% dos carcinógenos presentes nas nossas frutas e verduras. Deste modo, pesticidas naturais, e portanto presentes em culturas orgânicas, são muito mais perigosos que pesticidas produzidos pelo homem, simplesmente por causa da sua enorme abundância relativa. 

A natureza é, de fato, um ambiente extremamente hostil, onde cada organismo vivo precisa estar evolutivamente preparado para se defender e sobreviver, ou será superado ou comido por outro organismo vivo. Nessa fantástica luta pela sobrevivência, bactérias possuem estruturas fascinantes em forma de agulha para injetar toxinas em outras bactérias competidoras. Plantas como a corriqueira mandioca naturalmente geram compostos cianogênicos (que produzem a toxina cianeto) para se defender contra animais que as comem (por isso é importante monitorar sua produção, para controlar níveis dessas toxinas). Animais como aranhas, escorpiões, serpentes, sapos e até o simpático ornitorrinco desenvolveram toxinas poderosas para se defender e sobreviver. A natureza não é um ambiente de coexistência bucólica, como o modismo natureba nos faz crer, e sim fascinantemente variada na sua violência entre espécies competidoras. 

Temos que ao mesmo tempo respeitar, admirar e estudar esses mecanismos de violência entre espécies, mas nunca desprezar algo natural como inofensivo. Entender e estudar essas defesas naturais através da Ciência é não somente uma maneira de evitar acidentes com essas toxinas, mas também a única maneira de aprender a usar, purificar e melhorar essas moléculas em nosso benefício. Um exemplo são os antibióticos, usados clinicamente para matar bactérias infecciosas, e em grande parte derivados e melhorados por cientistas a partir de moléculas produzidas por outros microrganismos que estavam se defendendo na Natureza. A Ciência se inspira na Natureza, e a domina para melhorar nossas vidas, de modo detalhadamente analisado e comprovado. 

É 2020. Vivemos numa sociedade em que pessoas fazem filas em lojas para ter a última tecnologia em celulares, monitoram seus batimentos cardíacos e atividade física continuamente com relógios inteligentes e passam horas por dia na internet, aproveitando da tecnologia da informação para seu trabalho e lazer. Nesse mundo repleto de benefícios modernos, não há nenhuma justificativa para fazer apologia ao mundo natural quando se trata de nossa saúde e alimentação. Deveríamos exigir a mais avançada tecnologia, cientificamente verificada, para nossos alimentos, medicamentos e cosméticos. Chega de modismo natureba! 



(Ilustração: Camille Pissarro)


sábado, 9 de janeiro de 2021

ORGANON DAS PROFECIAS, de Alberto Augusto Miranda

 



1



Do século em seus espaços e tempos eu via

Para lá do eixo funcional dos limites

Animal de quinta dimensão mantido

Ao choro unido sem quebra, cabra

Indomável palavra em figura perpassando

Sua digna continuada emoção.

Subia a hortícola saia para me garantir

Fazedora do esquecido vento em cada pulo



2



Passeava a cegueira pelo meu sorriso de fé

Eu hostiava as sombras para as contentar de luz

E tinha tanta verdade em meus olhos esplendida

Que já nada temia do ameaçador espelho

Afinal meu consolo, meu feito ser.

Assim o levo nos meus bolsos e peitilhos

Como documento de firmeza sempre preparado

A saltar às conversas desditosas e às dúvidas

A mim própria saltando. Mais do que a prece

O espelho, o construído espelho, inquebrável

Salvação, a minha alegria do divino.



3



Procurava os perdidos de nome e uma traviata

Reconhecidos de mim nas águas dos extremos

Arca de Noé, eu seria aparição no desespero

Até no esquecido desespero de uma apática entrega

Ao tridentino dono, industrial da lavoura dos nervos.

Mais e melhor entrega eu lhes era dizer na boca

O amor que nenhum lupanário conhece à vontade

De Deus corpo no corpo do corpo sou e aos homens

De membro em riste apenas os cerco de imagens

As coxas, os seios, o sexo, deitados em mãos de nuvem

E chuva do futuro em cada abandonante do presente

O ósculo sagrado, o beijo da comunhão.



4



Não há verbo nacarado que consiga

O aroma dos meus braços voantes e abertos

À recolha da solidão e do desastre, os meninos

Todos para mim, explosão de afecto em minha ara.

Não há verbo, precisamos do silêncio para dizer

Precisamos de sentir para falar em cada dedo

Sulcando o meu ventre pelo escuro da origem

Viajando até ao luar dos olhos compreendidos

Sinais de todos os músculos e de outras forças

De que me faço e me fazem embarcação

Dos nautas que não desistiram do infinito.



5



Não faço todas estas coisas por Ele ou para Ele

Em soma vos quero dizer: Ele não é meu

Chulo! É por mim que tudo faço até na renúncia

De omitir à cidade e a mim mesma omitir

A minha sensualidade que julgo ser muita mas não quero

Saber, tenho medo, tenho medo, tenho muito medo

Da sua Revelação, não aguentaria a dupla fatalidade:

Ser agnóstica sensual ou vulgar ninfeta

Incapaz de ser única, tal a Vida seria.

Tenho medo, tenho medo, tenho muito medo

De a mim própria me nomear pássaro e não voar.

Ó mãe, ó meu resíduo: é a parte do pai que fala.



6



Por inteiro, sem parábolas me prontifico

A lavar-me de manchas para nos outros as lavar.

Um primeiro quente me acaricia o rosto

Na missão de ligar as almas ao Supremo

Ao inacreditável, ao impossível, a todos os signos

Prefixados de negação: sou-vos afirmativa,

De mim corre e escorre tudo o que é meu

Fonte vossa, nosso resultado, espiral

Penteando os cabelos dos acessos difíceis

Meu máximo gosto, minha máxima razão é

Minha máxima culpa, meu máximo ser

Clareando em perigo uma pequenina célula

Locatária do escuro e meu máximo triunfo.



7



Algures, em retiro, sentava-me no areal

E soprava na flauta de bisel edulcorantes sons

Como virtuosa hameline seduzindo

Pequenas multidões prontas de brancura atrás

De mim, oásis em regaço sem miragem

Hamsters abandonando o jogo da caça

Alegres do Sol, primevas claridades

Agora recuperadas na água baptismal

Todo o passado apagando por esta tigela de alumínio

Com que os faço nascer, lhes confiro um nome

E pelo livre arbítrio os torno diferentes

Em seus corpos inscrevendo

Uma oração comum no discurso da semelhança.



8



Talvez seja assustador o meu extra-vento

O tranquilo golpe da minha mirada

O desafio de desafiar sem combate expresso

Porque todos têm medo, muito medo

De abandonar o refúgio do seu caos

E saberem nas narinas o que lhes era sabido:

O lado mordente da natureza de cada um,

O lugar de árvore e fruto que era o seu

O céu que queriam e a que nunca chegaram

Por muito exercício e conquista em jejum

Seus metaquímicos transes pudessem ser

A palavra iniciática do profeta.



9



Eu de vento-rindo meu desmusculado segredo

Pura e transparente mão do milagre ou

Outro membro vos unte esses alimentos

Onde cozinhais em transmitida receita

Vosso mito por salgar

Que hoje aprendi no organon das profecias

Ser do profeta irredutível dever

Falar ao ouvido das setas

Em olhos reviravoltados.



(Semântica do Olhar, Lisboa, 1997)



(Ilustração: Henry Fuseli - Titania)


quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

A CANÇÃO DE ROLANDO E SUA LEITURA HISTÓRICO-SOCIAL, de Ligia Vassalo

 


Embora existam muitos textos medievais sobre a história de Rolando, o manuscrito mais antigo e o mais artisticamente literário é o que foi descoberto na biblioteca de Oxford, redigido em dialeto anglo-normando e pertencendo ao ciclo do Rei ou ciclo de Carlos Magno, um dos mais prolíficos. Contém 4.002 versos decassílabos assonânticos, distribuídos em 291 estrofes de extensão desigual – as laisses – e dividido em quatro partes: “A Traição” (versos 1 a 1016), “A Batalha” (versos 1017 a 2396), “O Castigo dos Pagãos” (versos 2397 a 3674), “O Castigo de Ganelão” (versos 3675 a 4002). 

Pela ideologia do texto e pelo estado da língua, acredita-se que tenha sido escrito entre o final do século XI e meados do século XII, depois que a ideia de cruzada contra os pagãos já vicejava na Europa cristã. Admite-se no entanto que o manuscrito de Rolando seja o remanejamento de versões anteriores. Ignora-se a autoria do texto apesar da menção a Turoldus no último verso (“Ci falt la geste que Turoldus declinet”), porque o sentido de declinet permanece obscuro, podendo ser compor, transcrever, recitar ou copiar. 

O enredo da canção repousa sobre um fato real ocorrido no reinado de Carlos Magno (768814), a batalha de Roncesvales (15/8/778), quando o rei (742-814), que só se tornará imperador em 800, tinha apenas 36 anos. O exército franco havia ido a Saragoça por solicitação do governador de Barcelona, Sulayman Ben Al Arab, revoltado contra o emir de Córdoba, seu superior. O desentendimento entre os chefes árabes e uma revolta de saxões ao norte levaram Carlos a retornar em poucas semanas e não após os sete anos do poema: é quando bascos cristãos dizimam sua retaguarda, perecendo no combate sobrinhos do rei, como Rolando, e o bispo Turpino entre outros. 

Por causa do hierarquizado sistema de alianças então vigente, a guerra torna-se um assunto de família. A retirada e o massacre são episódios de monta, que levam o rei a desistir de aventuras na Espanha e a fortificar suas fronteiras na Aquitânia. Por prudência e diplomacia, os cronistas da época atestam o fato minimizando-o. Enquanto isso, no Oriente, Carlos Magno aliava-se ao califa de Bagdá, o célebre Harum Al-Rachid. Portanto, embora defensor da cristandade, Carlos Magno não era inimigo dos árabes e a ideia de cruzada não é do seu tempo. Mas ela pertence à época do manuscrito e identifica-se com a Reconquista espanhola. 

No entanto, os inúmeros anacronismos do texto levam a uma transfiguração da história: um episódio local serve de pretexto à exaltação da mística feudal e da monarquia, o serviço das armas abre as portas da eternidade e assim por diante; Carlos Magno já é o imperador da anacrônica barba florida, com mais de 200 anos, as armas e a forma de lutar não correspondem ao século VIII. Em compensação, o manuscrito reflete problemas políticos e jurídicos próprios da época de sua composição, como a independência dos senhores feudais, o papel social e político da linhagem, os deveres morais e feudais do rei, o lugar da realeza no sistema vassálico. Esta literatura, surgida do esfacelamento feudal e herdeira do mito imperial carolíngio, chega à maturidade num momento em que as estruturas do poder estão em plena mutação. Conclusão: não se trata de um texto histórico, mas de uma reelaboração dos dados reais do século VIII a partir da ideologia e da vivência dos séculos XI e XII. Excetuando-se alguns nomes próprios e de lugares e o malogro da expedição, tudo o mais é fictício. 

Alguns personagens têm existência histórica atestada (Carlos Magno), embora nem sempre seu papel real equivalha à importância que lhe atribui o poema (Rolando). Outros podem ser identificados com pessoas vivas ou um amálgama de várias (Naimes, Ogier, Turpino, Gerier, Gaifet, Torleu ou Traulos – chefe de uma seita religiosa). Outros ainda são pura ficção: Olivier – que representa o companheiro de guerra; Turpino ou o monge-soldado das Cruzadas; Ganelão o traidor, personagem tradicional de poema épico. 

Os doze pares de Rolando são: Olivier, Turpino, Gerino, Gerier, Oton, Berenger, Ivon, Ivório, Engelier, Samson, Anseís, Gerard de Roussillon. Esta lista varia segundo a gesta. Pares aqui significam os que estão em pé de igualdade em relação a Rolando. Primitivamente recebiam esta denominação os vassalos de um mesmo suserano. Posteriormente estendeu-se dos vassalos mais poderosos, palatinos (isto é, do palácio, da corte) e que deviam ao chefe conselho e auxilio (militar e pecuniário). São portanto os defensores, donde a derivação para paladinos. Neste sentido o poema revela conceitos da feudalidade e da monarquia. 

Todos os personagens pertencem à nobreza em sua mais alta estirpe, dispondo pois de função militar na sociedade medieval, onde constituem o grupo dominante junto com o clero. Por isso não há personagens do povo nem plebeus. Frequentemente há vários parentes na mesma equipe. Dentre eles sairão os reféns, que garantem a palavra empenhada por um dos membros de seu clã. Assim, a guerra e o serviço militar são casos de família. A partir do texto, este fenômeno ocorre com os cristãos e com os pagãos. Um personagem pode ser denominado por vários títulos, além do de barão. Assim, Carlos Magno é rei, imperador; Rolando é conde, marquês da marca ou marquesado (território de fronteira) da Bretanha. 

Armas, lanças e espadas constituem os instrumentos de ação do guerreiro, daí receberem nomes próprios. Atesta-se a importância dos cavalos – companheiros de trabalho – nesta sociedade através da descrição dos animais, seu comportamento, sua especialização, conforme a tarefa a ser realizada – o que não deixa de revelar uma noção de hierarquia. 

Apesar de não ser uma obra histórica, o texto permeia vários traços da sociedade que o escreveu, alguns deles anacrônicos quanto à época dos eventos da Canção. 

a) A questão política do comportamento de Ganelão: vingança pessoal (já anunciada desde o princípio) ou traição ao chefe supremo? Esta dúvida transparece no julgamento do cunhado de Carlos Magno, quando se propõe perdoá-lo por esta vez. Porém, numa sociedade que repousa sobre a fidelidade aos acordos feitos, a atitude pessoal não pode ultrapassar os limites da segurança do chefe supremo, daí sua condenação. 

b) O julgamento de Deus materializado pelo duelo judiciário, que traz ganho da causa em litígio ao vencedor da luta corporal. 

c) A prisão e tortura do réu (Ganelão), bem como sua humilhação (é guardado por gente inferior à sua casta). 

d) A dicotomia Céu-Inferno, já que o conceito de Purgatório só se concretizará ao longo do século XIII. O Paraíso é um campo de flores, para onde vai diretamente a alma dos justos ou mártires, cabendo o Inferno aos pagãos, danados ou pecadores. 

e) A guerra de religião não existia ao tempo de Carlos Magno, mas decorre do espírito das cruzadas. Assim, são mártires os que morrem em defesa de sua fé. Por isso, a penitência imposta pelo arcebispo aos soldados é lutar bem. Por outro lado, o guerreiro é consciente do devotamento que deve demonstrar na defesa dos valores pelos quais luta e que lhe trarão fama. Prova disto é o temor às canções maldosas (satíricas) que poderão ser feitas a respeito dele se sua atitude não se identificar com o padrão almejado. 

f) A conquista da Inglaterra, obra de Guilherme o Normando em 1066, não fez parte da política de Carlos Magno, mas sua menção no texto permite de certo modo datá-lo como posterior a este evento. 

g) Os limites da Francia no século X: Saint-Michel du Péril ou São Miguel do Perigo (Bretanha-Normandia), Saints (Colônia ou Xanten, no rio Reno), Wissant (porto do canal da Mancha, ao norte de Boulogne), Besançon (junto às montanhas do Jura) – atestados na tempestade pela morte de Rolando – não correspondem às fronteiras do vasto império carolíngio. Conforme a passagem do texto, o termo França corresponde a um ou a outro destes dois conceitos territoriais. 

h) Durante cerca de um mês por ano cada nobre prestava seu serviço militar ao suserano, geralmente na primavera-verão, quando se realizavam as campanhas. No texto é maio. O rei ou imperador percorria seus domínios para utilizar tais serviços na própria região em que se encontrava, bem como para consumir os impostos que lhe eram debitados sob a forma de víveres. 

Além da importância ideológica da religião, percebe-se no texto, no âmbito cultural em sentido estrito, o impacto da formação de base clerical, através da influência da Bíblia sobre o escriba, atestada em inúmeras passagens, como a dos sonhos premonitórios do imperador, a dos signos precursores do fim do mundo (tempestade pela morte de Rolando), a parada do sol para que o combate se prolongue, a referência à terra de Datan e Abiron, a oração de Carlos Magno antes da batalha final. Por outro lado, é ainda por via desta mesma formação de base clerical que devem ter chegado ao poeta referências a Virgílio e Homero, simples menções não exploradas na Canção de Rolando. 

Pode-se ainda assinalar nesta canção de gesta o padrão de beleza medieval, representado não só pela atlética aparência física dos guerreiros como também pelos olhos. A excelência recai sobre os de cor cambiante, como os de Ganelão. O termo original, vair, confunde-se por homofonia com vert, verde, cor identificada com a dos olhos traidores, o que reforça este traço do personagem. 

A apresentação épica opera em terceira pessoa, através de um narrador que apresenta os personagens mediante estrutura dialogada. Aquele não se anula por trás da narrativa. Talvez como marca da oralidade, ele interrompe seu relato para se dirigir ao auditório, comentando os fatos e externando suas opiniões, favoráveis aos valores vigentes. Por isso, lamenta a sorte dos partidários de Rolando. Por outro lado, desde o início ele já anuncia o que vai ocorrer: a traição de Ganelão. Deste modo, retira-se a tensão. Resta apenas o prazer de narrar, cheio de digressões, próprias do estilo épico. Aliás, uma das convenções épicas repousa sobre o fato de que todos sabem o que vai ocorrer (narrador e fruidor da obra), exceto os personagens. Outros lugares-comuns característicos do épico são os sonhos, os avisos premonitórios e maus presságios, as cenas de batalha e de descrição da dor, o adeus fúnebre e a genealogia dos personagens, os epítetos, as repetições (de situações, gestos, estrofes, versos). E como intercalam-se o presente da narrativa com o relato do passado, o período também alterna pretérito e presente. 

Os personagens são estereotipados e sem densidade psicológica, falam pouco e se exprimem por gestos. Isto se verifica a partir do epíteto, reduzindo os actantes a um único traço, marcado por oposição ou por complementaridade Assim, o traidor Ganelão (félon, injúria máxima) se opõe a Rolando (o preux – valor supremo), corajoso e valoroso paladino dos valores estatuídos; o bravo se completa com a presença do prudente e sensato Olivier, o sábio (sage). Os traços antitéticos naturalmente colaboram para representar uma visão de mundo maniqueísta. Logo, os personagens atuam aos pares: Rolando e Olivier, Ganelão e Pinabel, Ganelão x Rolando, Pinabel x Thierry, sendo o companheirismo muito exaltado nos poemas épicos. Algumas vezes esta noção transparece através da semelhança de nomes: Gerino, Gerier; Ivon, Ivório; Basan, Basilio; Clarien, Clarifan. 

Os diálogos dos personagens, que na mesma fala alternam tu e vós como formas de tratamento, restringem-se a ordens de comando, apelo às armas, elaboração de estratégias de luta, comentários sobre a batalha campal, invectivas verbais para incitar o corpo-a-corpo, muito bem simbolizadas pelos brados de guerra. Excetua-se a discussão entre os paladinos a respeito do toque do olifante, um pouco mais elaborada devido à argumentação apresentada. No entanto é curioso constatar que, num embate onde tudo opõe os dois grupos de participantes, nenhum tem dificuldade em compreender a língua do outro. 

A linguagem gestual dos personagens atesta sua parca elaboração interior e a importância da sociedade oral no texto, motivo pelo qual tudo deve-se transformar em ação. Assim, a luva caindo da mão de Ganelão torna-se um mau presságio; os sonhos do imperador se concretizam em visões; um acordo é selado com beijos, presentes e juras; o anjo fala; a barba exposta sobre o peito indica desafio; o bastão e a luva representam o embaixador; o emir bate com a luva no joelho como garantia do que diz; o mártir Rolando prepara o cenário de sua morte e volta a luva para Deus, em sinal de submissão; as ações são reiteradas: um dá, o outro recebe. 

A simplificação do personagem confere com a simplificação do enredo, resumido nas peripécias da batalha. Este campo semântico permite justificar os episódios de luta corporal retratados com sangrento realismo, as batalhas colossais e o agigantamento das situações. Neste sentido, no primeiro embate há 20 mil francos contra 400 mil infiéis, depois reduzidos a 60 combatentes contra 100 mil. Há 15 mortos árabes para cada cristão abatido. Em torno de Turpino jazem 400 cadáveres. Os três últimos sobreviventes agonizantes, Rolando, Gautier e Turpino, eliminaram respectivamente 22, 6 e 5 vítimas, sendo que os três se defrontam com mil homens a pé e 40 mil montados. Diante do corpo de Rolando, cem mil franceses desmaiam. 

Neste mundo, onde predominam os valores e atividades masculinos, a fidelidade à palavra empenhada supera qualquer outro preceito. Por isto, Ganelão não pode trair o suserano por uma questão de vingança pessoal contra Rolando; Alda falece ao saber da morte do noivo, pela quebra do pacto e não por amor, sentimento desconhecido à época das canções de gesta. 

Mas nesta guerra, a religião serve apenas de ponto de partida. Pagãos e cristãos lutam por prestígio, poder, terras, riquezas, bens materiais, saques, acobertados ideologicamente sob a antinomia Bem/Mal. Seus valores são os mesmos, porém invertidos. Por isso, os francos são fiéis, valentes, seguidores da lei de Cristo, belos, bons e detêm a certeza de suas posições, ao passo que os árabes são infiéis, covardes, heréticos, feios, maus e detentores do erro. Tudo se opõe, no entanto há homologias entre os dois campos contendores. Em ambos os exércitos há um chefe supremo, de barba branca como flor, escoltado por um sobrinho e inúmeros familiares; cada um dispõe de doze pares e de um grito de guerra, uma religião defendida com a luta. Como o escriba ignora o contexto árabe, fato confirmado pela falta de menção verossímil ao território ocupado bem como à sua geografia e pelos nomes vagos ou inventados, atribuiu-lhe a mesma estrutura sócio-política dos francos e concede-lhe uma estranha santíssima trindade, composta por Maomé (profeta do Islã), Tervagante (divindade fictícia) e Apolo (adaptação do paganismo grego, ao qual também se junta Júpiter). 

E por conta destas transposições e associações do mundo cristão europeu, onde clero e nobreza compõem a classe dominante, o poder e o sagrado vêm juntos também no poema. Deste modo, as intervenções do maravilhoso cristão (pranto da natureza pela morte do herói, prolongamento do dia para vingar a morte dos pares de França, a corte celestial levando a alma de Rolando para o Paraíso, a intimidade entre o anjo Gabriel e Carlos Magno) só incidem sobre quem detém o poder – o imperador – ou seu representante – o sobrinho. No conjunto das identificações, o imperador corresponde ao cavaleiro de Cristo, Rolando ao apóstolo fiel, Ganelão a Judas, os doze pares aos apóstolos. 

Finalmente cumpre mencionar a parataxe épica. Na Canção de Rolando os versos são longos, comportando uma oração predominantemente coordenada. Pode-se supor que a conjunção destruiria a harmonia do verso ou que o estado da língua não a aceita. Na verdade a coordenação épica corresponde a uma estrutura e um estado de espírito, em homologia com a sociedade feudal cerrada e hierarquizada, em consonância com o estilo românico rural na medida em que não há governo central e que não há mobilidade social. 

Em suma, o caráter épico da Canção de Rolando enfatiza um único ponto de vista, não deixando margem a ambiguidades. Daí seu caráter exemplar, que permite extrapolar seus conceitos para outras sociedades igualmente maniqueístas. Desse modo se explica, em nossos dias, sua intensa sobrevivência na literatura de cordel brasileira, com todas as adaptações que o fenômeno comporta, porquanto o sertanejo profundamente religioso peleja em busca de justiça num mundo de antagonismo entre ele e o poderoso dono da terra, seu arqui-inimigo e representante do Mal. O mito carolíngio, embelezado pela lenda, espalhou-se através do mundo ocidental, o que se atesta pelas inúmeras estátuas, vitrais e iluminuras em toda a Europa, bem como por sua presença, retomada não só através de textos de várias épocas, mas também pelos enredos das marionetes sicilianas. 



(Ilustração: As oito fases da Canção de Rolando numa só figura - Simon Marmon - Grandes chroniques de France)

domingo, 3 de janeiro de 2021

LE CHÂTIMENT DES SARRASINS / A DERROTA DOS SARRACENOS, de Turoldus (autor suposto, não comprovado)

 



« Roland est mort : Dieu en a l'âme aux cieux... 

- L'Empereur cependant arrive à Roncevaux... 

Pas une seule voie, pas même un seul sentier, 

Pas un espace vide, pas une aune, pas un pied de terrain 

Où il n'y ait corps de Franc ou de païen 

« Où êtes-vous? s'écrie Charles; beau neveu, où êtes-vous? 

Où est l'Archevêque? où le comte Olivier? 

Où Gerin et son compagnon Gerier? 

Où sont le comte Bérengier et Othon? 

Ive et Ivoire, que j'aimais si chèrement? 

Où est Engelier le Gascon? 

Et le duc Samson et le baron Anséis? 

Où est Gérard de Roussillon, le vieux? 

Où sont les douze Pairs que j'avais laissés derrière moi? » 

Mais, hélas! à quoi bon? personne, personne ne répond. 

« O Dieu, dit le roi, j'ai bien lieu d'être en grand émoi 

N'avoir point été là pour commencer la bataille! » 

Et Charles de s'arracher la barbe, comme un homme en grande colère; 

Il pleure, et tous ses chevaliers d'avoir aussi des larmes plein les yeux. 

Vingt mille hommes tombent à terre, pâmés 

Le duc Naimes en a très grande pitié. 

La douleur est grande à Roncevaux : 

Il n'y a pas un seul chevalier, pas un seul baron, 

Qui de pitié ne pleure à chaudes larmes. 

Ils pleurent leurs fils, leurs frères, leurs neveux, 

Leurs amis et leurs seigneurs liges. 

Un grand nombre tombent à terre, pâmés. 

Mais le duc Naimes s'est conduit en preux, 

Et le premier a dit à l'Empereur : 

« Voyez-vous là-bas, à deux lieues de nous, 

Voyez-vous la poussière qui s'élève des grands chemins? 

C'est la foule immense de l'armée païenne. Chevauchez, 

Sire , et vengez votre douleur. 

« - Grand Dieu! s'écrie Charles, ils sont déjà si loin! 

Le droit et l'honneur, voilà, Seigneur, ce que je vous demande; 

Ils m'ont enlevé la fleur de douce France. » 

Alors le roi donne des ordres à Gebouin et à Othon, 

À Thibaut de Reims et au comte Milon : 

« Vous allez garder ce champ, ces vallées et ces montagnes. 

Vous y laisserez les morts étendus comme ils sont; 

Mais veillez à ce que les lions et les bêtes sauvages n'y touchent pas, 

Non plus que les écuyers et les garçons. 

Je vous défends de laisser personne y poser la main, 

Jusqu'à ce que nous soyons de retour, par la grâce de Dieu. » 

Et les quatre barons lui répondent doucement, par amour : 

« Ainsi ferons-nous, cher Sire, droit empereur. » 

Ils retiennent avec eux mille de leurs chevaliers. 

L'Empereur fait sonner ses clairons ; 

Puis il s'avance à cheval, le baron, avec sa grande armée; 

Enfin ils trouvent la trace des païens, 

Et, d'une ardeur commune, commencent la poursuite. 

Mais le roi s'aperçoit alors que le soir descend; 

Il met pied à terre sur l'herbe verte, dans un pré, 

S'y prosterne, et supplie le Seigneur Dieu 

De vouloir bien pour lui arrêter le soleil, 

Dire à la nuit d'attendre, au jour de demeurer. 

Voici l'Ange qui a coutume de parler avec l'Empereur, 

Et qui, rapide, lui donne cet ordre : 

« Chevauche, Charles, la clarté ne te fera point défaut. 

Tu as perdu la fleur de la France, Dieu le sait; 

Mais tu peux maintenant te venger de la gent criminelle. » 

A ces mots, l'Empereur remonte à cheval. 

Pour Charlemagne Dieu fit un grand miracle; 

Car le soleil s'est arrêté, immobile, dans le ciel. 

Les païens s'enfuient; mais les Francs les poursuivent, 

Et, les atteignant enfin au Val-Ténèbres, 

A grands coups les poussent sur Saragosse; 

Ils les frappent terriblement; ils les tuent; 

Ils leur coupent leurs chemins et leurs voies. 

Devant eux est le cours de l'Ebre; 

Le fleuve est profond et le courant terrible. 

Pas de bateau, pas de dromond, pas de chaland. 

Alors les Sarrasins invoquent Mahomet, 

Tervagant, Et Apollon, pour qu'ils leur viennent en aide. 

Puis ils se jettent dans l'Ebre, mais n'y trouvent pas le salut. 

Parmi les chevaliers qui sont les plus pesants, 

Beaucoup tombent au fond; 

Les autres flottent à vau-l'eau; 

Les plus heureux y boivent rudement. 

Tous finissent par être noyés très cruellement. 

« Vous avez vu Roland, s'écrient les Francs; 

mais cela ne vous a point porté bonheur. » (Chanson de Roland). 



Tradução em prosa de Ligia Vassallo: 




Rolando morreu, Deus tem sua alma no céu. O imperador chega a Roncesvales. Não há caminho nem atalho, nem espaço vazio medindo uma vara ou um pé onde não haja um Francês ou um pagão. Carlos grita: “Onde estais, caro sobrinho? Onde está o arcebispo? E o conde Olivier? Onde está Gerino e seu companheiro Gerier? Onde está Oton? E o conde Berenger? Ivon e Ivório a quem eu queria tanto? O que houve com o Gascão Engelier? O duque Samson? O bravo Anseís? Onde está Gerard de Roussillon, o Velho? Os doze pares que deixei?” Mas para que chamar quando ninguém responde? “Deus”, diz o rei, “tenho motivos de desolação porque não estava aqui no início da batalha!” Ele puxa a barba como um homem irritado; seus barões cavaleiros choram; vinte mil desmaiam no chão; Naimes o duque sente grande piedade deles. 

Entre eles não há cavaleiro nem barão que não chore dolorosamente; choram os filhos, os irmãos, os sobrinhos e os amigos e os vassalos fiéis; muitos desmaiam no chão. O duque Naime agiu como um bravo; foi o primeiro que falou ao imperador: “Olhai duas léguas à nossa frente, vereis o quanto os caminhos empoeirados estão cobertos pela corja Sarracena. Cavalgai então! Vingai esta dor!” – “Oh Deus”, diz Carlos, “eles já estão tão longe! Concedei meu direito e minha honra! Eles me arrebataram a flor da Doce França!” O rei chama Geboino e Oton, Teobalt de Reims e o conde Milon: “Guardai o campo, os vales e os montes. Deixai os mortos caídos como estão, que não os toque animal ou leão, que não os toque nem escudeiro nem criado; proíbo-vos de deixar alguém se aproximar até que Deus consinta voltarmos a este campo.” Suavemente e com amor respondem: “Justo imperador, caro senhor, assim faremos!” Mil cavaleiros permanecem ali. 

O imperador manda soar os doze clarins, depois o bravo cavalga com seu grande exército. Forçaram os de Espanha a lhes voltarem as costas, empreendem a perseguição, todos juntos. Quando o rei vê cair a tarde, desce à relva verde de um prado, deita-se na terra e pede a Nosso Senhor que pare para ele o curso do sol, retarde a noite e prolongue o dia.[1] Então um anjo [2] que costumava falar com ele deu-lhe logo voz de comando: “Cavalga, Carlos, pois a ti a claridade hão falta. Tu perdeste a flor da França, Deus sabe. Podes te vingar da corja criminosa!” Ante estas palavras, o imperador montou a cavalo. 

Para Carlos Magno Deus realizou uma grande maravilha: o sol interrompe seu curso. Os pagãos fogem. Os Francos os perseguem com firmeza. Alcançam-nos no Vale Tenebroso. Atacam-nos e fazem-nos recuar até Saragoça, enchem-nos de golpes e os massacram, barram-lhes os caminhos e os atalhos maiores. Diante deles estão as águas do Sebro [3]; são profundas e a correnteza é maravilhosamente violenta, ali não há nenhum barco, navio de guerra nem barcaça. Os pagãos invocam um de seus deuses, Tervagante. Depois saltam, mas sem nenhuma proteção! Os que têm armadura são os mais pesados, afundam no rio, e são muitos; os outros boiam à tona. Os menos desgraçados beberam tanta água que se afogaram, em maravilhosa angústia. Os Franceses gritam: “Muita piedade por vós, Rolando!” 





Notas: 

[1] Intervenção do maravilhoso cristão de fonte bíblica: Deus parou o sol e a lua para Josué dizimar as tropas inimigas. 

[2] Gabriel. 

[3] Não é o rio Ebro. Talvez o Segro, rio da Catalunha. Imprecisão comum no poema. 



(Nota do blog: o texto original deve ter sido escrito em dialeto normando e a melhor cópia existente, bastante precária, é o chamado manuscrito de Oxford. O próximo texto deste blog abordará um estudo sobre o poema). 



(La chanson de Roland; A canção de Rolando – c. 1150-1160) 




(Ilustração: Mort de Roland - 1455-1460)