sexta-feira, 29 de maio de 2015

CANÇÃO DO EXÍLIO, de Murilo Mendes








Minha terra tem macieiras da Califórnia

onde cantam gaturamos de Veneza.

Os poetas da minha terra

são pretos que vivem em torres de ametista,

os sargentos do exército são monistas, cubistas,

os filósofos são polacos vendendo a prestações.

A gente não pode dormir

com os oradores e os pernilongos.

Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda.

Eu morro sufocado

em terra estrangeira.

Nossas flores são mais bonitas

nossas frutas mais gostosas

mas custam cem mil réis a dúzia.




Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade

e ouvir um sabiá com certidão de idade!


(Poemas; 1925-1931)



(Ilustração: Militão dos Santos - aves do paraíso)

terça-feira, 26 de maio de 2015

DUPLICIDADE, de José Marmelo e Silva








Julinha tem grafonola – e canta como um pássaro primaveril. Marta levanta dinheiro no banco. Celeste guia automóvel. Cantam em conjunto. Riem em coro.

Noémia impera.

Saem para toda a parte, passeio vai, passeio vem, a que horas poderei falar-lhes sossegadamente? Em casa dançam; dançam no campo. A alegria embriaga-as, excita-as, não param, não comem, desafiam todas as murmurações.

Displicente, atónito, vejo-as chegar, partir. Como proceder, como pensar? Cruzo por momentos os braços e observo-as inocentemente, como se voltasse ao princípio da minha vida. Nada sei. Que estranha filosofia me trará o seu tumultuoso conviver? Que estará além do muro desta euforia auto-suficiente?

Persigo-lhes a sombra sem ser visto, analiso-lhes o rastro de olhos no chão. Sou caixeiro, praticamente da loja de Noémia, a quem dou contas, nada mais. Até quando a resistência do meu furor? Constato que as freguesas me entram pela porta dentro com mais assiduidade (este povo é muitíssimo curioso!) posto que as vendas tendam mesmo a estancar. Certamente por usar da crueldade de transmitir às atrasadas o recado revoltante de Maria Noémia: «Pagam, ou tribunal com elas!»

Ah, este advocacismo ! Expliquei a Noémia a crise duma povoação que não vive senão do ajoujar da agricultura: as lágrimas das mães, o contágio das crianças com a tuberculose voraz dos pais, o socorro urgente necessário, a orfandade, a cólera, sei lá!, quantas circunstâncias que são dor de alma e retalham todos os propósitos, – mas Noémia atalhou-me implacavelmente:

– Isso não se cura com esmolas. Quem jamais se apiedou de nós? Esses que nos deviam, menino, são os mesmos que escarneceram de teu pai. São os mesmos que assaltaram a quinta, à sombra das ameaças dos credores. De resto, estava eu a secar-me do outro lado com trabalho, para vocês distribuírem fazendas aqui pelas aldeias! Como te pode caber uma dessas na cabeça?

Vestida de calças masculinas, traçou a perna, puxou, como por hábito, dum cigarro:

«Ouvira bem? Fiados, nem um real!»

O advocacismo tem argumentos, tem leis. No poder, ou na oposição, o advocacismo interpõe-se, agarra, esbulha. Vejam-no em arengas públicas: advoga um socialismo urgente, arroga-se o exclusivo de gritar, de candidatar-se, de vencer. Porém na vida prática, que faz? Esquecido de todas as necessidades do povo, sem planos, sem sacrifícios, ei-lo ao serviço do capitalismo mais sórdido, mais inumano, menos social. Justiça? E vê-la? Tudo retórica, até talvez as minhas próprias palavras! «Nada se remedeia com esmolas? E então?»

Por outro lado, como compreender Noémia, mesmo do ponto de vista religioso? O estado sentimental duma adolescente incomoda-a até às lágrimas; os lares de pai ou mãe inválidos, sem subsídio da lei, sem crime para ninguém, endurecem-na como cimentação. Quer dizer: há sensibilidades que só se derramam por compartimentos, como a água pelos tabuleiros de rega. A inclinação torna-se necessária.

Anoto, desorientado, uma série de futilidades elucidativas.

Marta, por medo dos ratos, dorme com Noémia.

– Medo,?! – intervenho – Que ideia!.

– Não é medo, é impressão... Bole-me com o nervoso. Na primeira noite, um rato enorme não me andava a lamber a chávena?

Celebrámos todos três a pilhéria deste «rato enorme».

Noémia admoesta-me:

– Tu namoras a Laide. Vi-a ontem: é um amor de criança.

O meu pensamento riscou orgulhosamente:

«É um amor de mulher... »

– Para um leviano como tu!

Entupi. «Leviano?! Serei eu assim leviano como dizes?»

Estes pequenos episódios desenrolavam-se de dia para dia, de momento para momento, num crescendo de imprevisto que chegava a tolher-me os movimentos defensivos mais legítimos. Quantas vezes ficara eu amesquinhado e de rosto receoso, contraído!

Marta, durante o chá, servindo-se uma vez desses pequenos bolos de espuma de ovo chamados familiarmente «suspiros», mal levou um à boca, atirou com ingénua malícia:

– Suspiro pela Julinha!

Levando outro:

– Suspiro pela Celeste!

Ao terceiro, inclinando-se para Noémia com meiguice extrema que lhe pôs nos olhos um brilho liquescente extraordinário, murmurou:

– Suspiro pela Senhora D. Noémia, – ao cubo!

Noémia escrevia em revistas femininas, eu presumia-o, tendo a seu cargo, numa delas, o «consultório sentimental». Certa vez, sem que seja meu hábito espreitar, surpreendi-a no corredor a ler um manuscrito a suas pupilas:

«– Aquela rapariga da Figueira, conforme noticiaram os jornais, foi uma vítima da sedução dos homens. É santa e mártir: porque diante da desonra preferiu morrer.»

Noémia tremia, horrorizada. Tornava a viver a tragédia, transmitiu-a a suas amigas. Percebia-se, lá donde emergiam as suas palavras, uma intenção muito firme e decidida.

Segura de que nenhum homem assistia à sua representação, infinitamente triste, acentuou:

«– Alerta, meninas católicas, não se deixem iludir pelo capuchinho vermelho de namoros aparentemente inocentes. Reparem que monstruosidades tamanhas são capazes de cometer os homens! Um noivo atrai a sua própria noiva a uma cilada vil. A infeliz cessa de lutar, quando tem caído extenuada. Pois nesse momento cobarde, (ó céus, que não desabastes sobre a terra negra!) o tirano conspurca-a, arrasta-a canibalescamente para o automóvel e proporciona-a como repasto aos seus amigos!»

O nervosismo de Júlia era excitante. Celeste compunha com o lencinho o borbulhar dos olhos. Desde aí, todas me olhariam com desconfiança, com desprezo, com náusea... Mas eu andava nessa hora com uma fleuma verdadeiramente britânica, pensei: «As minhas mulheres sublevam-se!»

Caminhei para elas despreocupado, desejaria encará-las frente a frente; entretanto o pano, sobre aquela encenação, ainda não caíra. O paroxismo atingiu Noémia, que já não deu por mim. Numa onda de revolta, ergueu repentinamente o busto magro, vestido de negro, e, rígida como eu nunca a vira, tombou nos braços solícitos de Marta. Júlia, Celeste acudiram-lhe, na minha presença, com as suas carícias desajeitadas. Tive também a tentação de desmaiar, mas não com aquela língua negra à dependura escorrendo baba...

Que horror!

Para gáudio e celebração, compram bombons e ponche. Gostam de ponche, que tenho eu com isso? Não as vejo bebê-lo, mas dizem-no diante de mim, à mesa:

– Ontem, quatro garrafas que entornámos! – Pequenas, não foi muito! – aplaudo.

E rejubilam:

– O sr. também gostava, ai não? Vejam lá!

Outro dia passava na rua um cão com o seu dono. Coisa banal... Um rafeiro e um rapaz. Brincavam, acariciavam-se mutuamente como irmãos. A preceptora blagueou para Marta:

– Há alguma diferença entre eles?

A discípula, embevecida:

– Não parece... – e mostrou o canino sobreposto.

Eu, que, repelindo a afronta ao sexo forte, me mostraria quixotesco ou trivial, satisfiz a douta expectativa:

– Há uma diferença: o cão é fiel.

E ambas me acharam uma graça infantil.

Provocava eu próprio as humilhações? a zombaria? Fui arrastado para o inverosímil: transferir-me eu mesmo voluntariamente para o campo mental em que elas se agitam e procuram viver. Aconselhar Noémia? Seria o mesmo que pedir à Lua que nunca se vestisse de quarto minguante. Noémia repudiaria em absoluto, ingratamente, a minha compaixão, o meu auxílio. Pelo contrário: era ela até quem me hostilizava com a insistência dos seus conselhos sobre casos meramente pessoais. Comecei a repontar-lhe. Porquê não olhava para ela? Surpreendida, quis imediatamente dominar-me:

– Eu desconheço-te, Eduardo! Terás tu descido ao nível desta gente? Terás esquecido?...

– Basta! – interrompo-a grosseiramente, batendo a mão na mesa.

Tínhamos acabado de jantar, Noémia levantara-se e preparava-se mais uma vez para despejar sobre mim um acumulado de impropérios, ao fim dos quais, sem dar tempo sequer de defender-me, arrastava Marta abraçadamente (pobre Marta!) e com ela deslizava corredor fora praticando as lamechices do costume.

Desta vez hostilizei-a:

– Em primeiro lugar, que entendes tu por «nível desta gente»?

Noémia pretendia esquivar-se, com determinada mímica ou o que quer que emitia entre-lábios para a discipulazinha.

– Decerto não falavas do nível higiénico, nem económico! – desafiava-a.

Mas Noémia continuava a arredar-se da minha decisão. Eu tinha de enervá-la, de prendê-la pelo insulto ou pela violência:

– Tomaras tu viver moralmente no mesmo nível!

– Olhem como ele está hoje bem educadinho! Querem ver? Mas porquê, ora porquê, menino, diga lá!

– Porque esta gente não tem uma... duplicidade de vida!

– Duplicidade de vida? Que me dizes tu?!

Um pouca intimidado, generalizei:

– Esta gente tem defeitos, tem sobretudo privações. Mas «nível» moral? A cidade está a perder o conceito de moralidade. As convenções sociais prostituíram tudo. Vós já não sabeis o que é nobreza de sentimentos, solidariedade humana, sacrifício pelo semelhante, nem sequer personalidade interior perpetuamente responsável.

– Palavras gastas e ocas e a cantiga do costume. Sabes o que é isso? A tua mania das leituras proibidas...

Protegi o rosto com as mãos à espera do insulto «...com o meu rico dinheirinho, ainda por cima!» Noémia, porém, susteve-se, e apenas lhe reapareceu nos lábios tensos a palavra «duplicidade!»

– Noémia – digo-lhe num apelo de conciliação – porque és assim um temperamento tão complicado?

– Complicado?! – surpreendeu-se. E, pensativa, revestiu-se de súbita modéstia:

– Não. Sou tão simples como qualquer outra.

Uma visível nuvem de tristeza e de silêncio cada vez mais profundo apoderou-se-lhe do pensamento. O círculo nocturno dos seus olhos aumentou. Pela primeira vez eu me senti vitorioso diante de Noémia. Cansadamente e suspirando, retirou-se derreada sobre Marta, e ambas se refugiaram no quarto, fechando-se, como tantas vezes, libertas duma acusação imanente.

«Quem sabe se ela quis apenas afastar a curiosidade? Se foi tudo defensiva simulação?» – ponderei.

Ouviam-se, entretanto, risinhos abafados. Sobre mim, sozinho, desceu imediatamente uma sensação de logro. Noémia, para me vencer, não precisou senão dum pouco de humildade, apesar de tudo disfarçada.

No entanto, o primeiro passo estava dado. Seguiam-se, é verdade, longas horas de abstracção, uma espécie de torpor que me tolhia toda a vontade e só as grandes dores eram suficientemente fortes para produzir. A este, outros estados de alma se sucediam. Acudia-me por vezes um desespero inaudito contra a pureza física de Marta, desperdiçada; contra o abandono da pequenina Júlia, ardente; contra Celeste, leitosa e sobranceira, que eu sempre julguei capaz duma traição.



(Sedução)






(Ilustração: as três graças, Normund Braslins)






sábado, 23 de maio de 2015

quarta-feira, 20 de maio de 2015

BRASILEIROS E ESTRANGEIRAS, de Antônio dos Santos Torres






Segundo se affirma, ha na nova reforma do Ministerio do Exterior uma disposição hostil ao casamento entre diplomatas brasileiros e mulheres estrangeiras. Por esse dispositivo nao ficam terminantemente prohibidos taes enlaces, mas qualquer diplomata brasileiro, que desejar — como diria o sr. Ruy Barbosa — fazer maridança com mulher forasteira, tera de solicitar licença ao ministro do Exterior.

Ha quem affirme ser perfeitamente inutil semelhante artigo, sobre o seguinte fundamento: a menos que se trate de alguma actriz malafamada, ou de alguma prostituta celebre, que tenha seduzido algum dos nossos diplomatas, estes sempre obterao licença para casar com estrangeiras. Por exemplo: um diplomata nosso pede e obtem licença para casar-se com uma ingleza; como negara o ministro licença a outro que deseje tomar por esposa uma argentina, que esteja em egualdade de condições moraes e sociaes com a ingleza?

Admittamos ainda a hypothese em que o ministro, por antipathia para com certo diplomata, Ihe negue uma licença, embora egual ja tenha sido concedida a outros. O caso e perfeitamente possivel. Nada mais natural do que haver animadversoes entre o ministro do Exterior e seus subordinados, principalmente si o ministro houver sido tirado da carreira diplomatica… Bem pode ser, com effeito, que, entre o ministro e o diplomata em questão, haja havido outrora algum incidente por amor de alguma transferencia ou de alguma promoção em que um tenha sido supplantado pelo outro. O ministro, pois, aproveita-se da situaçao para vingar-se do seu antagonista, fazendo-lhe picuinhas em materia delicada, como e o casamento. Chega a negar-lhe a licença pedida, embora se trate de senhora digna de casar-se com qualquer dos mais gravibundos diplomatas.

Que fazer num caso desses ? Como agir para com semelhante ministro? Mandar amigos fallar a S. Ex. ? Mas S. Ex. podera dizer a esses amigos, limpando com o lenço as suas lunetas :

— Nao pensem voces que eu queira perseguir o homem. Si Ihe neguei a licença, foi porque tinha motivos. . .

— Mas não pode ser, sr. ministro. Sabemos que se trata de uma senhora honesta. Nos a conhecemos de Paris, de Londres, de Haya…

— Mas nao podem conhecel-a tanto quanto eu, que alias nunca a vi. Sei que ella nao merece a mao, por tantos titulos illustre, do nosso amigo. Tenho informações dos agentes confidenciaes . . .

Desolados, escrevem os amigos ao diplomata :

(Caro F . — O seu caso sentimental, que é, como V. sabe, tambem o nosso caso, complica-se cada vez mais. Estivemos eu e B. com o ministro, que se mostrou inconciliavel a esse respeito. Deve haver por ahi intrigantes interessados em molestal-o, porque, conhecendo como conhecemos a sua noiva e a V. tambem, que jamais commetteria a leviandade de dar o seu nome a mulher que o nao merecesse, passamos pela surpresa de ouvir declarar o ministro que o fundamento da recusa da licença eram informações desfavoraveis a Madame Tres Estrellas, informaçoes que — la o disse S. Ex . — lhe foram mandadas por agentes confidenciaes! Veja si ha, entre os nossos agentes confidenciaes aki, algum que tenha motivo de ressentimento contra V.. Mande-me suas ordens e creia que os seus amigos tudo farao pela sua felicidade, so desejando todos desmascarar os inimigos occultos da sua noiva. Procure V. indagar do grau de relações que por ventura existam entre a familia de sua noiva e o ministro da Hollanda aqui. Não sei porque, ando meio desconfiado deste fidalgo . . . Sempre seu — /4.»

Ora, o diplomata sabe perfeitamente que o ministro da Hollanda nada tem que ver com a attitude do ministro do Exterior ; que na sede da sua legação nao ha agentes confidenciaes do Brasil ; e que sua noiva e respeitadissima ; pelo que, urra de la aos amigos pelo cabo submarino: a. Ministro mentiu : nenhum confidencial aqui ; Hollanda innocente. >

Supponhamos agora que o diplomata seja o que se chama homem de genio forte, e veja sua noiva emmaranhada pelo ministro nesse labiryntho de infamantes insinuações. A tal homem so lhe resta uma saida: pedir licença, ou, ainda sem licença, vir ao Rio de Janeiro, correr ao Itamaraty, cair como um raio no gabinete do sr. ministro e partir a murros uns tres ou quatro dentes a S. Ex., caso os tenha. A saida nao sera das mais finamente diplomaticas, mas, para casos desses, nao vislumbro outra. E os senhores vao ver que o futuro talvez me dê razão: esse dispositivo da reforma ainda nos proporcionara bons pratinhos…

Ha quem ja tenha suggerido adoptar o que se pratica na Inglaterra: prohibição absoluta, para qualquer agente diplomatico, de casar-se com mulher que nao seja ingleza.

A isto se responde, dizendo que:

Primeiro — nao se pode por freio ao coraçao de ninguem;
Segundo — a Inglaterra ja pode estabelecer limitações nesse sentido, ao passo que nós ainda nao estamos em condições de fazel-o.

Com effeito, a Inglaterra tem abundancia de mulheres bellas e aptas a serem boas e leaes companheiras do homem que eleger o seu coraçao; nos ainda nao temos o necessario… O diplomata inglez que, em todo o Reino Unido e no Imperio Britannico, nao encontrar uma mulher a sua feição, ou nao tem sorte nenhuma, ou entao e exigente de mais.

No Brasil, ja o caso e mais complicado. O rapaz que segue a carreira diplomatica passa geralmente tres a quatro e mais annos no estrangeiro. Por la trava elle suas relações familiares; portanto, nada mais natural que se embeice por alguma das moças do paiz e se case com ella. Demos, entretanto, de barato, que o rapaz, depois de quatro annos de ausencia, volte solteiro para o Brasil e queira casar-se com uma patricia. O diplomata, geralmente, nao conhece as moças do interior; e, embora venha a conhecel-as, provavelmente nao querera tomar por mulher uma rapariga bisonha, inexperiente e talvez refractaria ao viver que lhe destina seu marido. Assim, elle tem de escolher esposa por aqui mesmo.

Diz o dictado que quem imagina nao casa; ora, quem imagina alguns momentos a respeito das meninas do Rio, fica sem saber si casa ou nao casa. Ha de haver com certeza por ahi muita menina que, sendo intelligente e interessante, seja tambem honesta; mas nenhuma dellas traz estrella na fronte para distinguir-se das que nao o sao. E que pensar da moralidade domestica dominante numa cidade em que, aos primeiros rebates do Carnaval, saltam para a rua as moças todas, com suas maes e seus paes, com seus irmaos e seus noivos, com as suas irmas menores, a berrar despejadamente dentro de caminhoes, e a cantar coisas tao torpes que o jornaes se veem obrigados a chamar a attenção da policia ? Ninguem quer que as moças e as meninas se vistam de burel e passem os dias em jejuns e cilicios; mas tambem nao se pode permittir que levem a sua liberdade ao ponto de entoar cantigas tao licenciosas, que nao se usam nem em assembleas de meretrizes, a nao ser que se trate de rebombeiras da mais baixa extracção. De maneira que, ao ver uma menina e ao pensar em casar-se com ella, deve o rapaz interrogar: «Tera esta pequena feito o Carnaval? Tera cantado o Na minha casa nao se racha lenha?» (1)

Grave erro sera suppor que os rapazes brasileiros, na sua maioria, desejem casar-se com meninas carnavalescas e levianas. A essas apreciam-nas os rapazes como companheiras de troça; quando, porém, se trata de casamento, buscam outras…

Tenhamos a coragem precisa para reconhecer o seguinte: o systema de educação adoptado para as meninas cariocas, assim como para as de outras cidades grandes do nosso paiz, e pessimo. Essa educação consiste num pouco de musica (piano e canto), algumas lambugens de lingua patria e de francez, dansa, futebol e arte de caçar maridos. A moça estrangeira, sem saber musica e entendendo mediocremente de futebol, sabendo theoricamente muito menos do que a brasileira de beiramar, que e a mais civilisada das brasileiras; a moça estrangeira, como nasceu e foi educada no trabalho em outros centros de cultura e civilisação, sabe trabalhar, sabe defender-se na lucta pela vida e sabe ser esposa seria, grave, solidamente compenetrada assim dos seus deveres como dos seus direitos. D’ahi, a preferencia que vao tendo as estrangeiras (francezas e italianas poucas, inglezas, um pouco mais, argentinas ja algumas, e principalmente as allemans) perante jovens brasileiros. A muitos conheço eu casados com estrangeiras e dao-se a maravilha com ellas e ellas com elles. De varios sei eu, rapazes de boas familias e de boas prendas, bem educados, bem apessoados, alguns ate com dinheiro de seu, que aguardam opportunidade para ir à Europa, onde pensam em casar-se, de preferencia com allemans, que as ha lindissimas, e sao geralmente mulheres muito calmas, muito boas donas de casa e habituadas a ver o mundo atravez das pupillas de seus maridos. As nossas patricias, pois, estao, no terreno sentimental e domestico, ameaçadas de perigosa concorrencia…

O que aqui digo é o que observo e o que ouço a amigos e conhecidos dignos de marca. Nao se trata da mulher do interior, a moça brasileira authentica, muito santa, boa engommadeira, mae maravilhosa, esposa adoravel como enfermeira, mas enfermeira muito insipida para esposa… A mulher de que aqui se trata e a brasileira civilisada. Ora, esta, na concorrencia, tem de ser derrotada pela estrangeira; porque a estrangeira medianamente educada e necessariamente mais intelligente, mais fina e mais civilisada do que a brasileira finamente educada, que traz para o lar, juntamente com a sua educação, uma serie infindavel de preconceitos ancestraes contra os trabalhos caseiros e contra a submissao que todas devem a seus maridos em virtude do direito natural do mais forte sobre a mais fraca. Ha excepções, mas ninguem pode argumentar com excepções, porque estas só servem para confirmar a regra geral. Ahi esta porque muitos rapazes de fina educação se temem de casar-se com as patricias, porque nao sabem o que esta do outro lado do veo… E as moças, que, com a sua desenvoltura e o seu desbragamento carnavalesco, suppoem arranjar bons partidos, vôam lindamente, alegremente, para a sua propria ruina, visto que os rapazes serios, graves, que desejam formar o seu lar honestamente, sem receio de serem victimas do ridiculo e apontados na rua, a dedo, como capricorneos, esses nao se casam com meninas assanhadas; mas, como nao e facil distinguir entre levianas e virtuosas, vao elles, por seguro, preferindo estrangeiras; ate porque, no caso de engano, muito menos doloroso sera para qualquer homem ser trahido por estrangeiras do que por patricias. Isto para os simples mortaes, que nao fazem parte da carreira diplomatica.

Que diremos entao dos diplomatas, que passam annos longe das patricias? Diremos que nao se lhes pode cercear o direito de escolher esposas entre as mulheres honestas dos paizes em que servirem. Demais, o casamento entre brasileiros e estrangeiras só nos pode trazer vantagens, uma das quaes e nao das menos apreciaveis, e a de melhorar a nossa triste raça…

Claro está que, quando eu digo mulheres estrangeiras, entendo alludir a raças fortes e bellas, como a germanica, a anglo-saxonica, a slava e a italica. Em materia de mulheres, como em materia de industrias texteis, nao podemos ainda ser proteccionistas, porque, em ambos estes pontos, o estrangeiro, por enquanto, produz e ainda durante muito tempo produzira mais, melhor e mais barato do que nos. Em questoes de mulheres, so podemos e devemos ser livres cambistas…

(1) Entre as canções mais em voga durante o ultimo Carnaval (1920), uma havia cuja letra era a seguinte:

CAVALHEIROS

Na minha casa nao se racha lenha !

DAMAS

Na minha racha ! Na minha racha !

CAVALHEIROS

Na minha casa nao ha falta d’agua !

DAMAS

Na minha abunda ! Na minha abunda !

DAMAS

Na minha casa nao se pica fumo !

CAVALHEIROS

Na minha pica ! Na minha pica !

E assim por deante…

Estas torpezas, em que a ausencia de espirito se consubstancia com a mais repugnante falta de grammatica, eram cantadas à porfia por moços e moças que se presumem de boas familias. A policia interveio a tempo de impedir que se generalisassem esses miasmas moraes.


(Obs.: manteve-se a grafia da época, do autor)

(Verdades Indiscretas)



(Ilustração: Gianni Strino)



segunda-feira, 11 de maio de 2015

TERRA LONGÍNQUA, de Dhalia Ravikovitz













Esta noite voltei em um barco à vela

Das ilhas do sol e dos arbustos de corais.

Donzelas ornadas com pentes de ouro

Continuaram na praia das ilhas do sol.

Durante quatro anos de mel e de leite

Passeei pelas ilhas do sol.

Os cabazes achavam-se cheios de frutos.

As cerejas resplandeciam ao sol.

Marinheiros e marujos de setenta países

Navegavam para as ilhas do sol.

E durante quatro anos, sob o sol ardente,

Eu contei as naves de ouro.

Durante quatro anos redondos de maçãs

Eu uni fieiras de corais.

Mercadores e bufarinheiros das ilhas do sol

Estendiam tecidos escarlates.

O mar era profundo no fundo das profundezas

Quando voltei das ilhas do sol.

Gotas de luz pesadas feito o mel

Rolavam sobre a ilha à hora do poente.





(Quatro mil anos de poesia; tradução de J. Guinsburg)




(Ilustração: Thomas Cole - The Course Empire of Consummation, 1835 - 1836)



sexta-feira, 8 de maio de 2015

EXAME DE OBJETO DELITO, de Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva






 Relutante, ela entra na Delegacia de Mulheres.

- "Pois não." diz a detetive de plantão.

- "Eu queria uma informação."

- "Pode falar."

- "Eu queria saber onde é que eu posso levar a televisão que meu marido quebrou pra fazer um exame de objeto delito."

- "A senhora está brincando comigo."

- "Não, não. Estou falando sério."

- "Mas, minha senhora..."

- "Primeiro foi meu radinho de pilha que eu levava pra cozinha. Um dia eu disse a ele que não aceitava mais que ele me tratasse mal na frente dos parentes dele. Ele jogou  meu radinho na rua e o ônibus passou em cima dele. Só sobrou a capinha de couro cor-de-rosa. Tinha sido presente do dia dos namorados. Antes de casar, né? Porque agora, ele não me dá presentes mais. Diz que é invenção de judeu, que presente não tinha que ter data marcada pra dar, que a gente dá é na hora que está com vontade. Dez anos de casamento! O único presente que ele me deu foi há uns cinco anos. Um aparelho de som. Mas só ele sabe mexer na aparelhagem. Eu não entendo aqueles botões todos e ele disse que é melhor eu não mexer pra não estragar."

- "Minha senhora, tem muita gente lá fora esperando..."

- "O som, ele quebrou no dia que eu reclamei que eu vivia socada em casa, que ele saía todas as sexta-feiras pra tomar chopinho, e que eu só ia a aniversário de criança em casa de parentes e, mesmo assim, quase sempre sozinha porque ele estava sempre cansado."

- "Ele alguma vez bateu na senhora?"

- "NÃO, nunca! Só um empurrão e um tapinha de leve. Toda vez que eu falo o que ele não quer escutar, ele ameaça me bater. Mas eu não tenho medo não. Eu queria que ele me batesse pra marcar, pra eu poder mostrar pra todo mundo. Pra senhora, principalmente. Mas ele só aponta pra mim com a mão fechada, como se fosse dar um soco, e diz "ai que vontade de quebrar você todinha. Cala essa boca que eu ainda te arrebento. Um dia eu não aguento e te estraçalho." Mas bater nunca. Ele já quebrou o telefone. Ah! o sem fio também, o rádio relógio..."

- "Mas então o que a senhora veio fazer aqui?"

- "Pedir informação pra fazer exame da minha televisão."

- "Eu acho que a senhora veio ao lugar errado."

- "Mas não é aqui que protegem as mulheres de seus maridos violentos?"

- "E televisão é mulher?"

- "Não é, mas fala. E ele tem ódio quando eu começo a falar que eu não tenho obrigação de catar as meias que ele joga no chão; que eu não tenho obrigação de ir ao banco e enfrentar fila pra ele; que eu não tenho obrigação de guardar suas roupas, arrumar suas gavetas, limpar seus sapatos, esvaziar seu cinzeiro e guardar as garrafas que ele esvazia. O dia que ele quebrou o toca-fita, eu tinha falado que minha boca ninguém fechava. Ele tem mania de mandar eu calar a boca, mas eu não calo. Se eu não posso gritar com ele, ele também não pode gritar comigo. A senhora não acha?"

- "Até agora, eu não consegui entender o que eu posso fazer pela senhora."

- "A senhora não entendeu ainda? Eu corro risco de vida. A televisão era a única coisa que ainda falava lá em casa. Agora só eu falo... porque as crianças só falam o que ele quer escutar. A televisão não, ela fala um monte de coisas que ele não gosta de ouvir. Fala, por exemplo, de orgasmo feminino que ele acha que não existe, fala de diálogo entre os pais e os filhos, de alcoolismo... Fala sobre tudo que o incomoda. Eu também o incomodo. Eu sei. Eu sou a próxima vítima. Eu sou o único objeto falante que sobrou, entende?"

- "Mas televisão quebrada não é caso pra Delegacia de Mulher."

- "A senhora não entende? Por favor! Ele quebrou a televisão. Eu sou a televisão. Eu não existo sem a televisão. Quando eu ligo a televisão, eu tenho o corpo bonito, a sexualidade desreprimida, roupas lindas, amantes afetuosos... Eu sou revolucionária, contestadora, intelectual, política, executiva, repórter, artista, heroína, independente, segura, dona de mim... Eu vejo o noticiário e finjo que faço parte desta cidade, deste estado, deste país, deste mundo. Mas agora, eu não sou nada. Eu sou só a mulher do meu marido. E que eu nem sei se é só meu ou se divido com outras."

- "Mas minha senhora. Não é crime quebrar um objeto. Não se faz exame de corpo delito em objetos, só em pessoas."

- "E se ele me quebrasse? Eu poderia fazer exame de corpo delito?"

- "Claro. E nós chamaríamos seu marido aqui e abriríamos um inquérito. Mas a senhora mesma disse que ele não te agride."

- "Mas então eu não estou entendendo mais nada. A televisão lá em casa sempre foi mais gente do que eu. Eu sim é que fui e sou objeto. Ele não olha pra mim, ele olha pra televisão. Ele não conversa comigo, mas com a televisão ele conversa. Quando aparece um político ele diz, "demagogo, sem vergonha". Se aparece uma mulher bonita, ele diz, "isso é que é mulher!" Se aparece uma mulher inteligente no programa da Hebe falando do machismo do homem brasileiro, ele logo diz, "essa aí devia estar choferando um fogão ou um tanque de roupa." Mas, se eu tento conversar, ele finge de surdo ou então diz, sem tirar os olhos da televisão, "pera aí que eu quero ouvir", e aponta pra televisão. Se eu começo a conversar com as crianças ou com alguém no telefone, ele aumenta o volume da televisão. A senhora não acha que a televisão é muito mais gente do que eu?"

- "Olha minha senhora, a única coisa que eu posso te dizer é que não podemos fazer nada pra te ajudar. Não há leis protegendo objetos da agressão de seus donos."

- "Mas quebrar coisas que falam não é crime?"

- "Não."

- "Mas ele pode me quebrar."

- "A senhora vai me desculpar, mas não podemos trabalhar com hipóteses. Se em quinze anos de casada, ele nunca agrediu a senhora, não será agora que ele vai fazê-lo, não é?"

- "Mas isso também é uma hipótese."

- "A próxima, por favor."

Vencida pelo argumento da autoridade, a mulher foi para casa. O marido que havia avisado que não viria para o jantar chegara primeiro e a olhava desconfiado. A televisão continuava calada. Ela correu para a cozinha e foi ajudar a empregada no preparo do jantar. Da sala o marido, em silêncio, furava-lhe com os olhos. Quando ela colocou a sopa fumegante na mesa, ele virou a sopeira em cima dela sem dizer uma palavra. Ela soltou um grito de dor logo abafado pelo soco que lhe rachava os dentes e outro que lhe sangrava o nariz. Assim que tomou um fôlego, ela gritou que iria denunciá-lo na Delegacia de Mulheres. Ele pegou o revólver e deu-lhe um tiro na boca. A morte arregalou-lhe os olhos que se fixaram no aparelho de televisão quebrado. As crianças, que estavam na casa do vizinho, entraram correndo e encontraram o pai, atônito, olhando para o retrato de casamento em cima do aparelho de televisão. A filha mais nova abraçou o pai e disse, "não chora papai, ela está caladinha, do jeitinho que o senhor gosta."




(Ilustração: Gottardo Ciapanna - tentazioni di santo Antonio, detalhe)



terça-feira, 5 de maio de 2015

HAIKAIS, de Guilherme de Almeida







CARIDADE




Desfolha-se a rosa.


Parece até que floresce


O chão cor-de-rosa.







VELHICE




Uma folha morta.


Um galho, no céu grisalho.


Fecho a minha porta.







NOROESTE




Dilaceramentos...


Pois tem espinhos também


A rosa-dos-ventos.






O "HAIKAI"




Lava, escorre, agita


A areia. E, enfim, na bateia


Fica uma pepita.






INFÂNCIA




Um gosto de amora


Comida com sol. A vida


Chamava-se: "Agora".





(Ilustração: Marc Chagal)