quarta-feira, 30 de março de 2011
O PESA-NERVOS, de Antonin Artaud
Senti realmente que você rompia a atmosfera em torno de mim, que fazia o vazio para permitir que eu avançasse, para dar o lugar de um espaço impossível ao que em mim estava apenas em potência, a toda uma germinação virtual, e que devia nascer, aspirada pelo lugar que se oferecia. Coloquei-me com frequência nesse estado de absurdo impossível para tentar fazer nascer em mim o pensamento. Somos os poucos que nessa época quiseram atentar contra as coisas, criar em nós espaços para a vida, espaços que não existiam e pareciam não poder encontrar lugar no espaço.
Sempre me surpreendi com essa obstinação do espírito de querer pensar em dimensões e espaços, de se fixar nos estados arbitrários das coisas para pensar, de pensar em segmentos, em cristaloides, e que cada modo do ser permaneça petrificado num começo, que o pensamento não esteja em comunicação instantânea e ininterrupta com as coisas, mas que essa fixação e esse gelo, essa espécie de transformação da alma em monumento se produza por assim dizer ANTES DO PENSAMENTO. Evidentemente é a melhor condição para criar.
Mas fico ainda mais surpreso com essa incansável, com essa meteórica ilusão que nos insinua essas arquiteturas determinadas, circunscritas, pensadas, esses segmentos de alma cristalizados, como se fossem uma grande página plástica e em osmose com todo o resto da realidade. E a surrealidade é como um retraimento da osmose, uma espécie de comunicação invertida. Não que eu veja nisso uma diminuição do controle, vejo ao contrário um controle maior, mas um controle que, em lugar de agir, desconfia, um controle que impede os encontros da realidade cotidiana e permite encontros mais sutis e rarefeitos, encontros adelgaçados e reduzidos a um fio, que pega fogo e nunca se rompe. Imagino, como o único estado aceitável da realidade, uma alma trabalhada e enxofrada e fosforosa desses encontros.
Mas não sei que lucidez inominável, desconhecida, me dá o tom e o grito e faz com que os sinta como meus. Sinto-os numa certa totalidade insolúvel, quero dizer, de cuja sensação nenhuma dúvida se apodera. E eu, em relação a esses encontros turbulentos, estou num estado de ínfima comoção, quero que imaginem um nada imobilizado, uma massa de espírito enterrada em algum lugar, tornada virtualidade.
*
Vê-se um ator como através de cristais.
A inspiração por etapas.
Não se deve deixar a literatura penetrar demais. *
Visei apenas à relojoaria da alma, apenas transcrevi a dor de uma adequação abortada.
Sou um abismo completo. Os que me acreditavam capaz de uma dor inteira, de uma bela dor, de angústias fartas e carnudas, de angústias que são uma mistura de objetos, uma trituração efervescente de forças e não um ponto suspenso — mas com impulsos variados, desenraizantes, que vêm da confrontação de minhas forças com esses abismos do absoluto ofertado, (da confrontação de forças de volume potente) e há somente os abismos volumosos, a interrupção, o frio, – os que então me atribuíram mais vida, que me pensaram num grau inferior de queda do si, que me acreditaram mergulhado num ruído torturado, numa escuridão violenta com a qual lutava,
— estão perdidos nas trevas do homem.
No sono, nervos crispados ao longo das pernas.
O sono vinha de um deslocamento de crença, a constrição relaxava, o absurdo não caminhava sobre os pés.
*
É preciso compreender que toda inteligência é apenas uma vasta eventualidade, e que se pode perdê-la, não como o alienado que está morto, mas como um vivo que está na vida e que sente sobre si a atração e o sopro (da inteligência, não da vida).
As titilações da inteligência e essa brusca inversão das partes.
As palavras a meio caminho da inteligência.
Essa possibilidade de pensar para trás e de injuriar imediatamente o seu pensamento.
Esse diálogo no pensamento.
A absorção, a ruptura de tudo.
E de repente esse filete de água sobre um vulcão, a queda delgada e lenta do espírito. *
Encontrar-se num estado de extrema comoção, iluminado pela irrealidade, com pedaços do mundo real num canto de si mesmo.
*
Pensar sem a mínima ruptura, sem armadilha no pensamento, sem uma dessas escamoteações súbitas das quais minhas medulas são íntimas como postos-emissores de correntes.
Minhas medulas às vezes se entretêm com esses jogos, se divertem com esses jogos, se divertem com esses raptos furtivos presididos pela cabeça do meu pensamento.
Por vezes, seria preciso apenas uma palavra, uma pequenina palavra sem importância, para ser grande, para falar com o tom dos profetas, uma palavra testemunho, uma palavra precisa, uma palavra sutil, uma palavra bem macerada nas minhas medulas, saída de mim, que se fixaria no extremo limite de meu ser,
e que, para todo mundo, não seria nada.
Sou testemunha, sou a única testemunha de mim mesmo. Essa casca de palavras, essas imperceptíveis transformações do meu pensamento em voz baixa, dessa pequena parte do meu pensamento que desejo já ter sido formulada, e que aborta,
sou o único juiz a avaliar o seu alcance.
*
Uma espécie de esgotamento constante do nível normal da realidade.
(Tradução de Izabela Leal)
(Ilustração: Ernst Fuchs - Janus)
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Antonin Artaud - O pesa-nervos
segunda-feira, 28 de março de 2011
THE LAST TOAST / ULTIMO BRINDE, de Anna Akhmatova
I drink to our demolished house,
To all this wickedness,
To you, our loneliness together,
I raise my glass—
And to the dead-cold eyes,
The lie that has betrayed us,
The coarse, brutal world, the fact
That God has not saved us.
Tradução de Rubens Figueiredo:
Bebo ao lar em pedaços,
À minha vida feroz,
À solidão dos abraços
E a ti, num brinde, ergo a voz...
Ao lábio que me traiu,
Aos mortos que nada veem,
Ao mundo, estúpido e vil,
A Deus, por não salvar ninguém.
(Ilustração: Jean-Marie Poumeyrol – l’amie)
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Anna Akhmátova - The last toast / Último brinde
sábado, 26 de março de 2011
QUAL VAI SER O PROGRAMA, HEIN?, de Anthony Burgess
- Qual vai ser o programa, hein?
Tinha eu, quer dizer, Alex e meus três drugues(*), quer dizer, Pete, Georgie e o Tapado, o Tapado sendo realmente tapado, e nós estávamos sentados no Leite-bar Korova, rassudocando o que fazer da noite, num inverno agitado, preto e gelado, uma merda, se bem que seco. O Leite-bar Korova era um méssito de tomar leite-com, e vós, ó meus irmãos, já podem ter se esquecido como eram aqueles méssitos, com as coisas mudando tão escorre hoje em dia e todo mundo muito rápido pra esquecer, os jornais também não muito lidos.
Bom, o que vendiam lá era leite com alguma coisa. Não tinham licença pra vender bebida, mas também ainda não tinha nenhuma lei contra prodar algumas das novas véssiches que eles costumavam botar no moloco, de modo que a gente podia pitar ele com velocete, ou sintemesque, ou drencrom, ou uma ou duas outras véssiches que deixavam a gente uns bons e tranquilos quinze minutos horrorshow admirando Bog e Todos os Seus Bem Aventurados Anjos e Santos no sapato esquerdo, e com luzes pipocando dentro do mosgue. Ou se podia pitar leite com facas, como a gente costumava dizer, e isso deixava a gente afiado e pronto pra uma sujeira de vinte-contra-um, e era isso que a gente estava pitando naquela noite com que eu estou começando a história.
Nossos bolsos estavam cheios de dengue, portanto, não havia realmente necessidade, do ponto de vista de crastar mais tutu, de toltchocar um veque velho qualquer num beco e videar ele nadando no próprio sangue, enquanto a gente contava a féria e dividia por quatro, nem de fazer ultraviolência com alguma trêmula ptitsa estarre de cabelo branco numa loja e aí sair esmecando com o recheio da caixa. Mas, como diz o outro, o dinheiro não é tudo.
Nós quatro estávamos vestidos no rigor da moda que, naquele tempo, eram umas malhas pretas muito justas, com um acolchoado preso às virilhas por baixo da malha, sendo isso pra proteger e também uma espécie de desenho que ficasse visível, havendo uma certa luz, de modo que eu tinha um com formato de aranha, Pete tinha um rúquer (quer dizer, mão), Georgie tinha uma flor muito bacaninha e o coitado do Tapado, um cretino dum litso (rosto, quer dizer) de palhaço, porque o Tapado não tinha muita noção das coisas e era, sem sombra da menor dúvida, o mais tapado de nós quatro. Depois, a gente estava usando jaquetas cintadas sem lapelas, mas com aqueles enchimentos enormes nos ombros (a gente dizia pletchos) e que eram uma espécie de arremedo de quem tinha os ombros realmente assim. Depois, meus irmãos, a gente estava usando aqueles gravatões largos, feito lenços, esbranquiçados, que pareciam purê de cartófel, ou batata, com uma espécie de desenho marcado em cima do tecido com um garfo. A gente usava o cabelo não muito longo e calçava botas pesadas horrorshow pra chutar.
- Qual vai ser o programa, hein?
Tinha três devótchecas sentadas juntas no balcão, mas nós, os maltchiques éramos quatro e geralmente o negócio era um por todos e todos por um. As tais gurias também estavam no rigor da moda, de perucas roxas, verdes e cor-de-laranja nos respectivos gúlivers, cada peruca não custando menos do que três ou quatro semanas de trabalho de cada uma delas, pelos meus cálculos, e usavam pintura combinando (quer dizer, arcoíris em volta dos glazes e a rote muito pintada). Depois, elas estavam de vestidos longos pretos, muito lisos e, na altura dos grudes, tinham plaquetas de prata com diversos nomes de maltchiques escritos - Joe, Mike e outros mais. Era pra ter os nomes dos diversos maltchiques com quem elas tinham espatado antes dos catorze anos. Olhavam muito na nossa direção e eu estava com vontade de dizer que nós três (isso seria com o canto da boca, é claro) devíamos dar uma saída pra fazer um pouco de pol e deixar o coitado do Tapado pra trás, porque era só questão de cupetar pra ele um meio litro de branco, mas dessa vez com uma bombada de sintemesque dentro, mas isso não ia ser da regra do jogo. O Tapado era muito feio, que nem o nome dele, mas numa briga suja ele era muito horrorshow e muito bom de bota.
- Qual vai ser o programa, hein?
O tcheloveque sentado ao meu lado, sendo o assento de pelúcia comprido e dando a volta a três paredes, estava muito noutra, com os glazinhos esgazeados e meio engrolando eslovos como "Aristóteles obra peleosso no campo ciclame fica forficulada aguda". Estava mesmo viajando, longe, em órbita, e eu sabia como era o negócio, que eu já tinha experimentado como todo mundo, mas naquela ocasião eu já estava achando que era uma véssiche muito covarde, ó meus irmãos. A gente ficava lá depois de beber o moloco e ai vinha o méssel de que tudo em volta estava como que no passado. A gente videava tudo, sim, tudo muito claro - as mesas, o estéreo, as luzes, as gurias e os maltchiques - mas era assim uma véssiche qualquer que tinha estado lá, mas já não estava mais. E a gente ficava meio hipnotizado pela bota, ou pelo sapato, ou por uma unha, e ao mesmo tempo era agarrado por três da gola e sacudido como se fosse um gato. Sacudido e sacudido até não ficar nada. Perdia o nome, o corpo, a personalidade, e nem ligava, ficava esperando que a bota ou a unha ficasse amarela, e cada vez mais amarela. Aí, as luzes começavam a estourar como se fossem atônicas e a bota, ou a unha, ou, podia ser, um sujinho nos fundilhos virava um méssito grande, grande, grande, maior do que o mundo todo e a gente ia ser apresentado ao velho Bog, ou Deus, quando tudo tivesse acabado. Depois a gente voltava à terra, aí meio choramingando com a rote toda se preparando prum buaaaaaaa'. Bem, tudo isso é muito agradável mas é muito covarde. A gente foi posto nesse mundo só pra entrar em contato com Deus. Esse tipo de coisa é capaz de esgotar toda a força e toda a bondade de um tcheloveque.
- Qual vai ser o programa, hein?
O estéreo estava ligado e a gente tinha a impressão do que a golosse do cantor estava se mexendo de um lado pro outro do bar, voando pro teto e depois mergulhando de novo e zunindo de parede a parede. Era Berti Laski, rouquejando um sucesso já muito estarre chamado Você Empola a minha tinta. Uma das três ptitsas no balcão, a de peruca verde, estava mexendo com a barriga pra dentro e pra fora, ao ritmo daquilo que chamavam de música. Eu sentia as facas do moloco começar a espetar e já estar pronto pra um pouco de vintecontra-um. Por isso, berrei: "Fora fora fora fora!" e aí rachei o tal veque que estava sentado ao meu lado e joguei ele longe, estalando-lhe uma tapona no uco, ou ouvido, mas ele não sentiu e continuou com o seu "Ferragens telefônicas e quando o longicúlulo ficar ratatatatá". Ele ia sentir direitinho quando ficasse bom, devolta da viagem.
- Fora pra onde? - disse Georgie.
- Ah, só pra andar um pouco - disse eu - e videar o que é que pinta no horizonte, ó meus irmãozinhos.
Então a gente se mandou pela grande nótchi de inverno e caminhou descendo o Marghanita Boulevard, depois virou na Boothby Avenue e lá a gente encontrou bem o que estava procurando, um passatempozinho malenque pra começar a noitada. Tinha um veque estarre, trêmulo, com pinta de professor, de óculos, a rote aberta pro ar frio da nótchi. Tinha livros debaixo do braço e um guarda-chuva sebento e estava dobrando a esquina da Bíblio Pública que muito poucas líudes frequentavam naquele tempo. Na verdade, nunca se via muita pinta de burguês velho nas ruas, naquele tempo, depois do cair da noite, assim com a escassez de policia e nós os jovens maltchiquezinhos à solta, e aquele velho com pinta de professor era o único andando na rua inteira. Então nós gulhamos em direção a ele, muito corteses, e eu falei:
- Com licença, irmão.
Ele pareceu um malenque pugle quando videou nós quatro saindo assim tão silenciosos e corteses e sorrindo, mas falou: - Sim? o que é? - com uma golosse alta, de professor, como se estivesse tentando nos mostrar que não estava pugle. Ai, eu falei:
- Vejo que o senhor está com livros debaixo do braço, irmão: é realmente um raro prazer, nos dias que correm, cruzar com alguém que ainda lê, irmão.
- Ah - disse ele todo trêmulo. - É mesmo? Ah, sei. - E continuava olhando de um para o outro de nós quatro, se sentindo agora como que no meio de um quadrado, todo assim muito sorridente e cortês.
- É - disse eu. - Me interessaria muitíssimo, irmão, se tivesse a bondade de me deixar ver que livros são esses que o senhor tem debaixo do braço. Não há nada de que eu goste mais neste mundo do que de um bom livro sadio, irmão.
- Sadio - disse ele. - Sadio, hein? –
E aí Pete esquivatou os três livros dele e distribuiu bem escorre. Sendo três, cada um de nós tinha um livro pra videar, com exceção do Tapado. O que estava comigo se chamava Cristalografia Elementar, então eu abri e falei:
- Excelente, realmente de primeira classe - sempre virando as páginas. Aí, eu disse, com uma golosse muito chocada: - Mas, o que é isso aqui? Que eslovo sujo é esse? Eu fico ruborizado só de ver essa palavra. Você me decepciona, irmão, realmente me decepciona.
- Mas... - tentou ele - mas, mas...
- Veja - disse Georgie -, isto aqui é o que eu chamo de coisa imunda. Tem uma palavra que começa com um "f" outra que começa com um "c" . - Ele estava com um livro chamado o Milagre do Floco de Neve.
- Ih - disse o coitado do Tapado, esmotando por cima do ombro de Pete e engrossando demais, como sempre -, aqui conta o que ele fez com ela e tem fotografia e tudo! Puxa - disse ele - você não passa de um velho lelé da cuca, que só pensa em sujeira.
- Um velho da sua idade, irmão - disse eu, e comecei a rasgar o livro que estava comigo e os outros fizeram o mesmo com os que tinham nas mãos, o Tapado e Pete fazendo cabo-de-guerra com O Sistema Romboédrico.
O estarre com pinta de professor começou a critchar:
- Mas não são meus, pertencem a municipalidade, isto é deboche e vandalismo! - e uns eslovos assim. E ele mesmo tentou arrancar os livros da gente, o que foi assim patético.
–Você está precisando de uma lição, irmão - disse eu -, lá isso está.
O tal livro de cristais que estava comigo tinha uma encadernação muito sólida e era duro de rasrezar em pedaços, porque era muito estarre e feito no tempo em que as coisas eram feitas assim pra durar, mas eu consegui arrancar as páginas e atirar aos punhados como se fossem flocos de neve, só que grandes, em cima do velho que critchava, e os outros fizeram a mesma coisa com os deles, o Tapado só dançando em volta, que nem o palhaço que era.
– Pronto - disse Pete -, taí a carne do cozido pra você, seu porco, leitor de sujeira e indecência.
- Ah, seu velho safado - disse eu, e aí a gente começou a toltchocar ele. Pete segurou-lhe os ruqueres e Georgie escancarou-lhe a rote, e aí o Tapado arrancou de lá de dentro os zubes postiços, os de cima e os de baixo. Jogou tudo na calçada e eu comecei a moê-los a botinadas, se bem que fossem duros paca, feitos que eram assim de algum novo troço de plástico horrorshow. O veque velho começou a fazer uns chumes resmungando - uuf, uaf, uof - por isso Georgie largou os gúberes dele e mandou-lhe um murro na rote desdentada com seu mãozão cheio de anéis, e isso fez o veque velho começar a gemer à beça, aí é que começou a sair o sangue, meus irmãos, uma beleza. Aí, a gente só fez foi arrancar as pletes externas dele, deixando ele de colete e ceroulas (muito estarres; o Tapado quase estourou de tanto esmecar). Pete deu-lhe um lindo chute na pança e então nós largamos ele. Ficamos meio cambaleando, que realmente não tinha sido um toltchoque tão pesado assim, fazendo ah ah ah, sem saber o que era aquilo tudo, ainda gozamos ele um bocado e depois revistamos os bolsos dele, enquanto o Tapado dançava em volta com o guarda-chuva sebento, mas não tinha grande coisa nos bolsos. Tinha umas cartas estarres, algumas datando lá de 1960, com "Meu muito querido" escrito em cima e aquela tchipuca toda, e um chaveiro e uma caneta estarre vazando. O Tapado parou com a dança da sombrinha e, é claro, tinha que começar a ler uma das cartas em voz alta, assim pra mostrar pra rua vazia que sabia ler.
"Meu bem-ama-do", recitava ele com a sua golossezinha mais aguda. "Vou ficar pensando em você enquanto você estiver ausente e espero que você se lembre de se agasalhar bem quentinho quando sair a noite." Aí, soltou um esmeque muito chumento - ah ah ah -, fingindo limpar o iama com a carta.
- Tá bom - disse eu -, vamos embora, ó meus irmãos. Nas caças do tal veque estarre tinha só um malenquezinho de cortador (dinheiro, quer dizer) - não mais do que três golhes - por isso a gente jogou a titica das moedinhas dele pro alto, já que era mixaria perto da quantidade de tutu que a gente já tinha. Então, quebramos o guarda-chuva dele, rasrezamos as suas pletes e jogamos tudo aos ventos que sopravam, meus irmãos, e aí, pra nós estava encerrada a nossa história com o veque estarre com pinta de professor. Sei que a gente não tinha feito grande coisa, mais era assim só o começo da noite e não peço desculpas a vós e vós outros por isso. As facas do leite-com estavam picando gostoso e horrorshow, agora.
(*) As gírias são invenções do autor – neologismos criados a partir da língua russa, principalmente. Aqui estão o significados das que estão no texto:
Bog – Deus
cartófel – batata
chume - barulho, ruído
critchar - gritar, berrar
cupetar - comprar, pagar
dengue – dinheiro
devótcheca - moça, garota
drencrom - droga, tóxico
drugue - amigo, "faixa", "chapa"
escorre - rápido, depressa
eslovo - palavra, termo
esmecar – rir
esmotar – olhar
espatar – dormir
estarre - velho, antigo
glaze – olho
golhe - a unidade monetária
golosse – voz
grude - seio, peito
gúber - lábio, beiço
horrorshow - bom, bem , gostoso, legal
iama - buraco (ânus, no caso)
litso – rosto
líudes - pessoas, gente
malenque – pequeno
maltchique - rapaz, garoto
méssel – pensamento
méssito - lugar, local
moloco – leite
mosque – cerébro
pletes – roupas
pol – sexo
prodar - produzir, fabricar
ptisa - guria, garota
rasrezar – rasgar
rassudocar - pensar, imaginar
rúquer, ruque - braço, mão
sintemesque - droga, tóxico
tcheloveque - pessoa, homem
tchipuca – absurdo
toltchocar - bater, dar panacada
uco - orelha, ouvido
velocete - droga, tóxico
veque - (v. tcheloveque)
véssiche – coisa
videar - ver, olhar
zubes – dentes
(Laranja Mecânica – tradução de Nelson Dantas)
(Ilustração: Jean-Marie Poumeyrol – L’abattoir)
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quinta-feira, 24 de março de 2011
AREIA, de Natércia Freire
Areia pisada,
areia dorida,
areia beijada,
areia batida,
areia doirada,
areia estendida,
areia rolada,
rolada na vida.
Frescura abraçada
ao mar que se vai,
e os braços crispados
pregados num ai.
E a areia rolada
nos olhos profundos,
e as matas de sombra
ao fundo dos mundos…
E o paço de pedra
Erguido no espaço
e as capelas tristes
que perco e abraço…
E o sonho do vento,
que gela e que deixa,
e a voz que ergo e calo
e é vida e é queixa…
Os degraus que subo
e são mais que cem,
e os cisnes vogando
nos lagos de além…
E as estradas brandas
onde correm fontes,
e as moças que sonham
sem verem os montes…
E os bancos abertos
aos corpos cansados,
e a chuva da tarde
nos parques molhados…
E os riscos de luz
que bordam o Céu,
e a cortina branca
que ao Sol me escondeu…
E os quartos alheios
que giram à roda,
e as vozes na estrada
que me tolhem toda…
E eu dentro de um sonho
suspensa e vibrante
- areia beijada num mar mais distante –
e rica e mais longa,
e presa e mais livre
- sem mal e sem vida…
Areia doirada,
areia estendida,
areia rolada,
rolada na vida!
(Horizonte Fechado, 1942)
(Ilustração: Balthus – the mountain)
terça-feira, 22 de março de 2011
MATEMÁTICAS, de Lautréamont
Ó matemáticas severas, não vos esqueci desde que vossas sábias lições, mais doces que o mel, infiltraram-se no meu coração, qual onda refrescante.
Aspirava instintivamente, desde meu nascimento, a beber em vossa fronte mais antiga que o sol, e continuo ainda a piscar o átrio sagrado de nosso templo solene, eu, o mais fiel de vossos iniciados.
Havia qualquer coisa de vago no meu espírito, um não sei que de espesso como a fumaça; mas eu soube transpor religiosamente os graus que levam a vosso altar e vós dissipastes esse véu escuro, assim como o vento dissipa uma tempestade.
Colocastes em seu lugar uma frieza excessiva, uma prudência consumada e uma lógica implacável. Com a ajuda de vosso leite fortificante, minha inteligência desenvolveu-se rapidamente, tomando proporções imensas em meio à claridade com que presenteais, prodigamente, quem vos ama de um amor sincero, Aritmética ! álgebra ! geometria! trindade grandiosa ! triângulo luminoso ! quem vos desconhece é um insensato ! este mereceria a provação dos maiores suplícios; pois demonstra um cego desprezo em sua ignorante apatia; mas quem vos conhece e vos aprecia nada quer dos bens terrestres; contenta-se com vossos prazeres mágicos; e carregado por vossas asas sombrias, deseja apenas subir com um voo ligeiro, construindo uma espiral ascendente rumo à borda esférica do céu.
A terra só lhe mostra ilusões e fantasmagorias morais; porém vós, matemáticas concisas, pelos encadeamentos rigorosos de vossas proposições tenazes e a constância das vossas leis de ferro, fazei brilhar aos olhos deslumbrados um reflexo poderoso desta verdade suprema, cuja marca se percebe na ordem do universo.
Mas a ordem que vos rodeia, representada principalmente pela regularidade perfeita do quadrado, o amigo de Pitágoras, é ainda maior; pois o Todo Poderoso revelou-se completamente, a si e a seus atributos, nesse trabalho memorável que consiste em fazer saírem das entranhas do caos vossos tesouros de teoremas e vossos magníficos esplendores.
Nas eras antigas e nos tempos modernos, mais de uma grande imaginação humana viu seu gênio aterrar-se na contemplação de vossas figuras simbólicas traçadas sobre um papel ardente, qual outros tantos sinais misteriosos, vivos por um hálito latente, que não são compreendidos pela vulgaridade profana, revelação esplendorosa de axiomas e hieróglifos eternos, que existiram antes do universo e permanecerão depois dele.
E ela se pergunta, debruçada ante um precipício de um ponto de interrogação fatal, como é possível que as matemáticas contenham grandezas tão imponentes e verdades tão incontestáveis, enquanto, ao compará-la com o homem, só encontra neste último o falso orgulho e a mentira.
Então, esse espírito superior, entristecido, a quem a nobre intensidade de vossos conselhos faz sentir ainda mais intensamente a pequenez da humanidade e sua incomparável loucura, afunda a cabeça embranquecida na mão descarnada e permanece absorto em meditações sobrenaturais.
Dobra seu joelho à vossa frente e sua veneração presta homenagem a vosso rosto divino, como à própria imagem do Todo Poderoso.
Na minha infância, aparecestes, numa noite de maio, ao clarão da lua, sobre um prado verdejante, às margens de um límpido regato as três iguais em graça e pudor, as três cheias de majestade, como rainhas. Traçastes alguns passos em minha direção, com vosso longo manto flutuando como um vapor, e me atraístes para vossos altivos seios, como se eu fosse um filho abençoado.
E foi então que acorri rapidamente às mãos crispando-se sobre vosso alvo pescoço. Alimentei-me com reconhecimento de vosso maná fecundo e senti que a humanidade crescia em mim e se tornava melhor.
Desde então, ó deusas rivais, nunca mais vos abandonei. Desde então, quantos projetos enérgicos, quantas simpatias que acreditava gravadas nas páginas do meu coração como no mármore não foram apagando lentamente suas linhas configurativas da minha razão desenganada, assim como a aurora nascente apaga a sombra da noite ! Desde então, eu vi a morte, com a intenção visível a olho nu de povoar os túmulos, devastar os campos de batalhas alimentados pelo sangue humano, fazendo crescerem flores matinais sobre as ossadas fúnebres.
Desde então, assisti às revoluções de nosso planeta; os tremores de terra, os vulcões com sua lava ardente, os simum dos desertos e os naufrágios da tempestade tiveram minha presença como espectador impassível. Desde então, eu vi inumeráveis gerações humanas erguerem pela manhã seus olhos na direção do espaço, com a alegria inexperiente da crisálida que saúda sua derradeira metamorfose, para morrerem ao entardecer, antes do pôr do Sol, a cabeça curvada, como flores murchas embaladas pelo soprar lamentoso do vento.
Vós, porém, permaneceis sempre as mesmas. Nenhuma mudança, nenhum ar empestado roça os rochedos escarpados e os imensos vales da vossa identidade. Vossas pirâmides modestas durarão muito mais que as pirâmides do Egito, formigueiros erguidos pela estupidez e pela escravidão. O fim dos séculos ainda verá, em pé sobre as ruínas dos templos, vossas cifras cabalísticas, vossas equações lacônicas e vossas linhas esculturais sentadas à direita vingadora do Todo Poderoso, quando as estrelas afundarem em desespero, como trombas, na eternidade de uma noite horrível e universal, enquanto a humanidade, contorcendo-se, tentar prestar contas ao Juízo Final.
Obrigado pelos inúmeros serviços que me prestastes. Obrigado pelas qualidades singulares com que enriquecestes minha inteligência. Sem vós, talvez eu fosse derrotado em minha luta contra o homem. Sem vós, poderia ter rolado na sujeira e beijado a poeira de seus pés. Sem vós, com uma pérfida garra teriam retalhado minha carne e meus ossos. Mas fiquei em guarda, como um atleta experiente.
Vós me destes a frieza que nasce das vossas concepções sublimes, isentas de paixões. Dela servi-me para recusar com desprezo os prazeres efêmeros da minha breve viagem e para devolver à minha porta as oferendas, simpáticas porem ilusórias, dos meus semelhantes. Vós me destes a prudência incessante que se decifra a cada passo em vossos métodos admiráveis de análise, síntese e dedução. Delas servi-me para derrotar as artimanhas perniciosas de meu inimigo mortal, para atacá-lo por minha vez e para enfiar nas vísceras do homem um punhal agudo que permanecerá para sempre cravado em seu corpo; pois essa é uma ferida da qual ele não se curará. Vós me destes a lógica, que é como a alma de vossos ensinamentos cheios de sabedoria; com seus silogismos, cujo labirinto complicado é cada vez mais compreensível para mim, minha inteligência viu duplicarem-se suas forças audazes.
Com a ajuda desse auxiliar terrível, descobri na humanidade que nada para as profundezas, frente aos escolhos do ódio, a maldade negra e horripilante que vegetava no meio de miasmas deletérios, contemplando seu próprio umbigo. Fui o primeiro a descobrir, nas trevas das suas entranhas, o vício nefasto, o mal! superior nela ao bem. Com essa arma envenenada que me concedestes, fiz descer de seu pedestal, construído pela covardia do homem, o próprio Criador! Rangia os dentes, enquanto sofria o ignominioso insulto; pois tinha como adversário alguém mais forte que ele. Porém deixá-lo-ei de lado, como um pacote de trapos para baixar meu vôo...
O pensador Descarte fazia, certa vez, a reflexão de que nada sólido foi construído sobre vós. É um modo engenhoso de fazer entender que o primeiro recém chegado nunca poderia descobrir imediatamente vosso valor inestimável.
Com efeito, o que pode haver de mais sólido que as três qualidades principais já nomeadas, elevando-se entrelaçadas como uma coroa única, sobre o píncaro augusto de vossa arquitetura colossal? Monumento que cresce sem cessar em cotidianas descobertas em vossas minas de diamantes, e explorações científicas em vossos soberbos domínios. Ó matemáticas santas, que possais, por meio de vosso comércio perpétuo consolar o resto dos meus dias da maldade do homem e da injustiça do Grande Todo!
(Cantos de Maldoror - tradução de Claudio Willer)
(Ilustração: Dalí – construção mole com feijões cozidos)
domingo, 20 de março de 2011
A ALVORADA DO AMOR, de Olavo Bilac
Um horror, grande e mudo, um silêncio profundo
No dia do Pecado amortalhava o mundo.
E Adão, vendo fechar-se a porta do Éden, vendo
Que Eva olhava o deserto e hesitava tremendo,
Disse:
Chega-te a mim! entra no meu amor,
E e à minha carne entrega a tua carne em flor!
Preme contra o meu peito o teu seio agitado,
E aprende a amar o Amor, renovando o pecado!
Abençoo o teu crime, acolho o teu desgosto,
Bebo-te, de uma em uma, as lágrimas do rosto!
Vê tudo nos repele! a toda a criação
Sacode o mesmo horror e a mesma indignação...
A cólera de Deus torce as árvores, cresta
Como um tufão de fogo o seio da floresta,
Abre a terra em vulcões, encrespa a água dos rios;
As estrelas estão cheias de calafrios;
Ruge soturno o mar; turva-se hediondo o céu...
Vamos! que importa Deus? Desata, como um véu,
Sobre a tua nudez a cabeleira! Vamos!
Arda em chamas o chão; rasguem-te a pele os ramos;
Morda-te o corpo o sol; injuriem-te os ninhos;
Surjam feras a uivar de todos os caminhos;
E, vendo-te a sangrar das urzes através,
Se emaranhem no chão as serpes aos teus pés...
Que importa? o Amor, botão apenas entreaberto,
Ilumina o degredo e perfuma o deserto!
Amo-te! sou feliz! porque, do Éden perdido,
Levo tudo, levando o teu corpo querido!
Pode, em redor de ti, tudo se aniquilar:
Tudo renascerá cantando ao teu olhar,
Tudo, mares e céus, árvores e montanhas,
Porque a Vida perpétua arde em tuas entranhas!
Rosas te brotarão da boca, se cantares!
Rios te correrão dos olhos, se chorares!
E se, em torno ao teu corpo encantador e nu,
Tudo morrer, que importa? A natureza és tu,
Agora que és mulher, agora que pecaste!
Ah! bendito o momento em que me revelaste
O amor com teu pecado, e a vida com o teu crime!
Porque, livre de Deus, redimido e sublime,
Homem fico na terra, à luz dos olhos teus,
Terra, melhor que o Céu! homem maior que Deus!
(Bilac Tempo e Poesia; publicado em 1965)
(Ilustração: Raúl Villalba)
Preme contra o meu peito o teu seio agitado,
E aprende a amar o Amor, renovando o pecado!
Abençoo o teu crime, acolho o teu desgosto,
Bebo-te, de uma em uma, as lágrimas do rosto!
Vê tudo nos repele! a toda a criação
Sacode o mesmo horror e a mesma indignação...
A cólera de Deus torce as árvores, cresta
Como um tufão de fogo o seio da floresta,
Abre a terra em vulcões, encrespa a água dos rios;
As estrelas estão cheias de calafrios;
Ruge soturno o mar; turva-se hediondo o céu...
Vamos! que importa Deus? Desata, como um véu,
Sobre a tua nudez a cabeleira! Vamos!
Arda em chamas o chão; rasguem-te a pele os ramos;
Morda-te o corpo o sol; injuriem-te os ninhos;
Surjam feras a uivar de todos os caminhos;
E, vendo-te a sangrar das urzes através,
Se emaranhem no chão as serpes aos teus pés...
Que importa? o Amor, botão apenas entreaberto,
Ilumina o degredo e perfuma o deserto!
Amo-te! sou feliz! porque, do Éden perdido,
Levo tudo, levando o teu corpo querido!
Pode, em redor de ti, tudo se aniquilar:
Tudo renascerá cantando ao teu olhar,
Tudo, mares e céus, árvores e montanhas,
Porque a Vida perpétua arde em tuas entranhas!
Rosas te brotarão da boca, se cantares!
Rios te correrão dos olhos, se chorares!
E se, em torno ao teu corpo encantador e nu,
Tudo morrer, que importa? A natureza és tu,
Agora que és mulher, agora que pecaste!
Ah! bendito o momento em que me revelaste
O amor com teu pecado, e a vida com o teu crime!
Porque, livre de Deus, redimido e sublime,
Homem fico na terra, à luz dos olhos teus,
Terra, melhor que o Céu! homem maior que Deus!
(Bilac Tempo e Poesia; publicado em 1965)
(Ilustração: Raúl Villalba)
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Olavo Bilac - Alvorada do amor
sexta-feira, 18 de março de 2011
PEQUENAS SUGESTÕES E RECEITAS DO ESPANTO ANTITÉDIO PARA SENHORES E DONAS DE CASA DURANTE O CARNAVAL, de Hilda Hilst
I.
Pegue um nabo. Coloque duas ou três palavras dentro dele, por exemplo: bastão, ouro, amplidão. Chacoalhe. Você não vai ouvir ruído algum. É normal. Aí ajoelhe-se com o nabo na mão e diga:
“Com o bastão que me foi dado
Com o ouro que me foi tirado
E sem nenhuma amplidão
De conceitos e dados
Quero nascer brasileiro
E poeta.”
Quem te ouvir vai ficar besta.
II.
Colha um pé de couve e dois repolhos. Embrulhe-os. Faça as malas e atravesse a fronteira. Ta na hora.
III.
Pergunte ao seu filhinho se ele quer laranja descascada de tampinha ou de gomo. Se ele disser que quer laranja descascada de tampinha, diga que um menino bem educado sempre escolhe a de gomo. Se ele começar a chorar, chupe você a laranja. De tampinha, naturalmente.
IV.
Enfeite a mesa com flores. Compre um peru. Feche as crianças no banheiro. Antes de começar a ceia, convide seu marido para dançar ao redor da mesa (não mexa com o Peru). Inopinadamente pergunte se ele gosta de trufas. Se ele disser que sim, gargalhe algum tempo atrás da porta e diga que “trufas não tem não, amorzinho”.
V.
Compre manteiga. Passe-a nos dedos (esqueça Marlon Brando). Chupe-os. E diga em tom de oração: Que vida solitária, meu Deus! (Contenha-se).
VI.
Compre uma língua de tucano (é uma umbelífera), uma língua de vaca (Chaptalia nutans é seu nome cientifico), um lírio branco (Lilium candidum), dois caquis (não é cáqui, não vá comprar o brim da cor dos caquis), ferva durante cinco minutos. Depois jogue fora, olhando para o alto. É uma simpatia para você não dormir.
VII.
Corte um saco em pequenos pedaços. Um de estopa, evidente. Embrulhe vários ovos, um por um, em cada pequeno pedaço de estopa. Pinte caras descarnadas, dentes pontudos e beiços vermelhos na cara dos ovos (sempre esses de galinha ou de pato, é desses que eu estou falando). Quando alguma das tuas crianças começar a pedir aquelas coisas caríssimas e imbecis que são sugeridas na televisão, cubra-se de negro à noite, use tintas fosforescentes para ressaltar a cara dos ovos (aqueles) e quebre-os um a um nas pequeninas cabeças dizendo com voz rouca: parem de pedir coisas impossíveis a sua mãe, seus canalhas!
VIII.
(Se você for PhD, leia até o fim. Se não, pule esta).
Faca um buquê de orelhas. É fácil. Peça apenas uma a cada um de seus dez amigos íntimos. Diga-lhes que é para uma causa nobre. Se perguntarem qual causa (não confundir com Cáucaso, é outra coisa), diga que você precisa mandar o buquê para tua velha e querida preceptora inglesa (quando você tinha quinze anos, lembra-se?), que arrancou as tuas duas porque você insistiu inquebrantável durante doze horas seguidas que aquela primeira frase de Marco Antonio para o povão era, na “tua” tradução, “Emprestai-me vossas orelhas”. Todos concordarão, acredite, com o teu pedido. Ainda mais porque todo mundo sabe que “Lend me your ears” quer dizer isso mesmo.
IX.
Se você quer se matar porque o país está podre, e você quase, pegue uma pedrinha de cânfora e uma lata de caviar e coloque ao lado seu revólver. Em seguida, coloque a pedrinha de cânfora debaixo da língua e olhe fixamente para a lata de caviar. Só então engatilhe o revólver. (É bom partir com olorosas e elegantes lembranças. Atenção: não dê um tiro na boca porque a pedrinha de canfora se estilhaça).
(Outras Crônicas)
(Ilustração: Brian Viveros - Mess with the bull)
quarta-feira, 16 de março de 2011
QUER'EU EN MANEYRA DE PROENÇAL, de Don Diniz
Quer'eu en maneyra de proençal
fazer agora hun cantar d'amor
e querrey muyt'i loar mha senhor,
a que prez nem fremusura non fal,
nen bondade, e mays uos direy en:
tanto a fez, Deus comprida de bem
que mays que todas las do mundo ual.
Ca mha senhor quiso Deus fazer tal
quanto a fez, que a fez sabedor
de todo bê e de mui grã ualor
e cõ tod'est [o] é mui comunal,
aly hu deue; er deu-lhi bõ sem
e des y nõ lhi fez pouco bem,
quando nõ quis que l'outra foss'igual.
Ca en mha senhor n'ca Deus pos mal,
mays pos hi prez e beldad' e loor
e falar mui bê e riir melhor
que outra molher; des y é leal
muyt', e por esto nõ sey oi' eu quê
possa compridamête no seu bê
falar, ca nõ á tra lo seu bem, al.
(CBN 485)
(Ilustração: Barahona Possolo)
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Dom Diniz - Quer'eu en maneyra de proençal
sábado, 12 de março de 2011
A RESISTÊNCIA AO MEIO CRIA O HOMEM, de Máximo Gorki
Contudo é verdade... vou estudar, vou para partir para a Universidade de Kazan – quem entretanto o diria?
A ideia de Evreinov, estudante do liceu, um belo adolescente de olhos meigos, foi quem ma incutiu. Residia no cimo da habitação, no mesmo prédio que eu, e interessou-se por mim penso que por ver-me muitas vezes voltado às minhas leituras. Travamos conhecimento. Logo Evreinov procurou me convencer de que “eu tinha queda extraordinária para a ciência”.
– A natureza criou-te para servir a ciência! – dizia ele, sacudindo a sua farta e linda cabeleira. Nessa época, todavia, ignorava o papel de cobaia que poderia ser ser útil a ciência. Evreinov demonstrava-me com forte evidência, que as universidades necessitavam de gente precisamente como eu! Naturalmente, não deixou de mencionar Miguel Lomonosov; Evreinov dizia-me que em Kazan eu viveria em sua casa, que durante o outono e o inverno frequentaria o curso dos liceus, que faria depois “uns exames” – era assim que ele dizia “uns exames” – que, na universidade, ganharia uma bolsa de estudo e que, no prazo de cinco anos, me converteria “sábio”. Tudo isto era absolutamente simples, porque Evreinov tinha dezenove anos e um bom coração.
Partiu após ter feito seus exames e, passados quinze dias, segui-o.
Minha avó, quando a deixei, deu-me este conselho: - não te irrites contra as pessoas, foste sempre irritado, exigente e arrogante. Isso, herdaste de teu avô, mas quer era o teu avô? Tanto tempo viveu e nunca passou de um imbecil, de um velho intratável. Lembra-te de uma coisa: não é deus que julga os homens, ao demônio é que isso agrada. Bem, bem... adeus...
E, enxugando umas lágrimas que teimavam em correr pelo rosto flácido e cor-de-cera, acrescentou:
- Nunca mais nos veremos: tu não paras, vais para longe e eu... eu, qualquer dia, morro...
Nos últimos tempos, tinha de fato, afastado da adorável velhinha, e via-a mesmo raras vezes, porém naquele preciso momento senti, de repente, que nunca mais encontraria alguém que me fosse tão chegado pela carne e pelo coração.
De pé, à proa do barco, vi-a na ponte, benzer-se com ambas as mãos, enxugar com a ponta do velho xale o rosto, os olhos fundos, resplandecentes de inexaurível amor pelos homens.
Eis-me nesta cidade meio tártara, alojado num exíguo compartimento e uma caca térrea. Esta solitária casinha que se diria sobreposta sobre um outeiro, ao fundo da rua estreita e pobre, dava para um terreno inculto em que abundavam as ervas ruins. Aí, num matagal de absinto, urtigas, azedas bravas, entre moitas de sabugueiros, erguiam-se as ruínas de um edifício de tijolos; no seu fundo, viviam e morriam os cães vadios. Lembro-me muito bem desse recinto: uma das minhas universidades.
Os Evreinov, mãe e dois filhos, viviam de uma pensão miserável. Logo nos primeiros dias observei a tristeza trágica com que a pobre viúva, de estatura pequena e apagada, estendia sobre a mesa da cozinha as compras insignificantes que fizera no mercado, procurando solucionar este difícil problema: como tirar de tão insignificantes pedaços de carne de terceira, quantidade suficiente de boa alimentação para três rapazes saudáveis, sem já contar com ela mesma.
Taciturna, os seu olhos cinzentos refletiam a teimosia doce e resignada do cavalo esgotado pelo trabalho excessivo; o pobre animal arrasta a carroça na ladeira; sabe que não chegará ao fim, mas continua.
Certa manhã, dois ou três dias após a minha chegada, enquanto os filhos ainda dormiam e eu a ajudava na cozinha a descascar as batatas, perguntou-me com um ar sério e doce:
- Que veio fazer aqui?
- Estudar na universidade.
As sobrancelhas subiram-lhe juntamente com a pele amarela da testa; fez um corte no dedo com a faca e, chupando o sangue, deixou-se cair numa cadeira mas levantou-se imediatamente, murmurando:
- Diabo!...
Enrolou o lenço no dedo cortado e fez-me este elogio:
- Sabe descascar batatas.
Como não havia eu de sabê-lo! Contei-lhe então que trabalhara num barco. Perguntou-me:
- E pensa que isso chega para entrar na universidade?
Nessa época, compreendia mal a ironia. Levando a sério a pergunta, expliquei-lhe, minuciosamente, o plano de ação que deveria abrir-me as portas do templo da ciência. Suspirou:
- Ah, Nicolau, Nicolau!
No mesmo instante, Nicolau, ainda com sono, despenteado, alegre como de costume, entrou na cozinha para se lavar.
- Mãe, não seria nada mau se fizesses empadas.
- Está bem, está bem – concordou ela.
Eu, para exibir meus conhecimentos culinários, declarei que, para empadas, a carne não prestava e que, aliás, era escassa.
Bárbara Ivanovna zangou-se, lançou-me ao rosto palavras de tal forma violentas que senti minhas orelhas se queimarem. Atirou o molho das cenouras pela mesa afora e saiu da cozinha. Nicolau, para explicar a atitude da mãe, piscou-me o olho e segredou-me:
- Está mal disposta...
Sentado num banco, declarou-me que, de modo geral, as mulheres eram mais nervosas que os homens; era próprio da sua natureza, como fora, peremptoriamente, demonstrado por um sábio muito sério – um suíço, julgava ele; e John Stuart Mill, um inglês, dissera também qualquer coisa a esse respeito...
Nicolau gostava muito de me amoldar a inteligência. Aproveitava toda a ocasião favorável para me meter na cabeça alguma dessas noções indispensáveis à vida. Eu o ouvia com interesse, do que resultava que Foucault, La Rochefoucauld, La Rochejacquelin, se confundiam no meu espírito numa única personagem, e que não conseguia discernir qual dos dois, Lavoisier ou Dumouriez, tinha decepado a cabeça do outro.
O meu amável companheiro desejava ardentemente “fazer de mim um homem”, prometia-mo com toda a convicção, mas faltava-lhe tempo e condições várias para se ocupar de mim como devia. O egoísmo e a frivolidade da juventude impediam-no de avaliar ao menos os quantos esforços e subterfúgios com que a mãe ia mantendo a casa, e o irmão, um colegial pesadão e taciturno, reconhecia-os menos ainda. Por mim, conhecendo a fundo, há muito tempo, os artifícios complicados da química e economia culinárias, apercebia-me muito bem da engenhosa habilidade daquela mulher, obrigada a enganar diariamente os estômagos dos filhos e, além do mais, alimentar um intruso de aparência desagradável e mal educado. Era evidente que todo o bocado de pão que eu recebia, me caísse na alma como uma pedra; portanto, decidi-me a procurar trabalho. Logo pela manhã saía de casa para não almoçar e, quando chovia, metia-me no recinto do terreno inculto. Então, respirando o cheiro dos cães e gatos mortos, sob o ruído da chuva e o sibilar do vento, não tardei a compreender que a universidade não passava de uma ilusão e que seria mais sensato partir para a Pérsia; já me encarnava na figura de um mágico de barba grisalha, capaz de fazer crescer os grãos de trigo até ficarem do tamanho de maçãs, batatas e pesarem quinze libras e inventar uma porção de benfeitoria para este planeta no qual não era o único a me debater com tão drásticas dificuldade.
Eu aprendera a imaginar aventuras extraordinárias, feitos grandiosos. Ajudava-me deveras nos maus dias e, como eram numerosos, cada vez mais eu me entregava a esses sonhos.
Não contava com auxílio de quem quer que fosse, tampouco tinha esperança de qualquer feliz acaso, mas a pouco e pouco desenvolvia-se em mim uma vontade obstinada e, quanto mais duras eram as condições de vida, tanto mais forte, mais inteligente me sentia. Bastante cedo compreendi que é a resistência ao meio que cria o homem.
(As Minhas Universidades; tradução de Paulo Rodrigues)
(Ilustração: Egon Shiele - family)
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